Referência do artigo comentado: Fernández, D. H. “Nichts zu sagen. nur zu zeigen”: en torno al método de “mostración” del pensamiento benjaminiano a partir del fragmento “N 1 a 8” del Libro de los pasajes. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 115–135, 2021.
O artigo do professor Diego Fernández (2021), que se propõe abordar o peculiar “método” de apresentação (Darstellung) filosófica de Walter Benjamin, a partir da análise de um recorte do trabalho das Passagens (o chamado Konvolut “N”, que trata do imbricamento “Teoria do conhecimento, Teoria do progresso”), traz à tona reflexões fundamentais sobre um dos grandes impasses para o modo como se pode compreender a atividade filosófica em nosso tempo, a saber, promove a avaliação crítica das condições impostas pela linguagem nas relações entre conteúdo e forma. Fernández parte da afirmação de Benjamin de que sua monumental e inacabada pesquisa filosófica sobre a Paris do século XIX não teria “nada a dizer, somente a mostrar”.
O professor buscou, com isso, primeiramente, esclarecer como se davam os procedimentos de pesquisa e escrita para o pensador alemão, baseado na ideia de que os objetos devem ser “mostrados”, para que “falem por si” em sua respectiva “obra” e como esta consistiu em uma espécie de “dispositivo crítico” que pode ser “acessado” de diferentes modos. Em segundo lugar, o autor do artigo expõe como o “método” empregado por Benjamin (considerando aqui todos os problemas que esse termo apresenta para o filósofo) acentuou a importância do debate sobre a forma de apresentação (Darstellungform) filosófica e oferece, desse modo, elementos que nos levam a pensar sobre como o conteúdo e a forma se tornaram inseparáveis para a compreensão da atividade filosófica atual.
Fernández (2021) faz essa exposição com maestria, discorrendo sobre conceitos fundamentais do corpus benjaminiano – como “constelação”, “crítica de arte” ou “dissolução” – e se valendo, ainda, das indicações teóricas de indispensáveis pesquisadores sobre a obra do filósofo, além de articular seus argumentos com as observações pertinentes sobre o referido trabalho e com as ideias de pensadores consagrados, como Karl Marx, Martin Heidegger e Jacques Derrida. O autor procurou, com isso, acentuar as características essenciais, as distinções e, sobretudo, as limitações em relação ao que, a partir de Benjamin, pode ser considerado uma “obra filosófica”. Tal condição de impasse, ou de hesitação, não é novidade para aqueles que se dedicaram a explorar “o método” de Benjamin. A título de exemplo, é significativo o que pode ser conferido, mais diretamente, na reflexão da pesquisadora Susan Buck-Mors (2002, p. 261), presente na pergunta-título que deu a uma das seções de seu extenso trabalho sobre as Passagens (2011b) de Benjamin; questiona ela: “Isto é filosofia?”
Segundo Jeanne-Marie Gagnebin (2014, p. 72), esse tipo de questionamento sobre a natureza do trabalho filosófico em Benjamin tem sua explicação porque, para a professora, o pensador articula “verdade e beleza” em formas linguísticas e históricas que aproximam filosofia e arte. Em outra perspectiva, mas no mesmo campo de discussões, o “método” e a “forma de apresentação” filosóficos de Benjamin, indicam Marc Berdet e Thomas Ebke (2014, p. 7), demonstram a aproximação e a atualização de um certo tipo de materialismo antropológico, originário do século XIX, o qual busca uma nova relação do pensamento e do crítico com os objetos. Uma forma de pesquisa (e de apresentação) materialista que, como apontou Fernández em seu artigo, se assenta em uma peculiar “objetividade”, a qual almeja “dar palavras às coisas” e que, com isso, visa a romper com elementos míticos das teorias do conhecimento modernas que mantêm hierarquias de poderes na relação entre sujeito e objeto. Fernández lembra, ainda, de um jeito diferente de “voltar às coisas mesmas”, subvertendo a “soberania do eu” e a “intencionalidade” da fenomenologia em uma forma de exposição daquilo que a “linguagem das coisas” pode comunicar.
Todos esses importantes elementos do “método” de Benjamin são adequadamente apresentados no artigo de Diego Fernández. Esses são o mérito e o aporte do autor para os estudos sobre o pensamento do filósofo e que, por sua vez, conforme mencionamos, contribuem para as reflexões sobre a forma de se fazer e de se apresentar filosofia na atualidade. No entanto, queremos oferecer alguns complementos às observações do autor a um tema que, talvez pela natureza do seu trabalho de pesquisa, tenha sido, de modo geral, negligenciado no artigo. A nosso ver, a discussão “epistemológico-crítica” sobre a forma de apresentação filosófica de Benjamin traz, em seus limiares, uma indispensável preocupação ético-política do filósofo. Essa dimensão do “método” de Benjamin é tratada de forma breve pelo autor, ao mencionar os temas “violência fundadora”, “julgamento” e “arbitrariedade” (vide “exceção”), na crítica que o filósofo faz ao caráter antecipatório, possessivo e mediador (instrumental) da relação desproporcional entre sujeito e objeto, estimada pelas teorias modernas do conhecimento.
Deve-se lembrar que a obra Origem do drama barroco alemão (1925), de onde o autor retirou boa parte de suas referências e cujo prefácio tem relação com a mencionada seção N do trabalho das Passagens, foi gestado no contexto no qual Benjamin objetivava escrever um livro sobre política. Desse projeto não realizado restaram poucos fragmentos e o seminal ensaio Para uma crítica da violência (1921), que rendeu, ao longo de quase um século, importantes reflexões sobre poder e violência (Gewalt) para pensadores tão distintos, como Hannah Arendt e Slavoj Zizek. O ensaio foi, também, essencial no projeto de estudos sobre o estado de exceção para Giorgio Agamben e tem sido objeto das recentes especulações éticas de Judith Butler.
Como tema comum aos campos da epistemologia e da política, a linguagem, explica Benjamin (2011a, p. 53-54), fazendo uma crítica à redução desta ao seu caráter comunicacional, é um medium, no sentido de ambiente material e histórico, no qual o pensamento se torna possível. Nem sempre essa compreensão linguística ampliada está à mão nos empreendimentos humanos e é, então, por esse motivo, que a violência do mito se estabelece: o mito procura uma verdade “atemporal” ou “sagrada”, que possa ser comunicada pela linguagem sem maiores dificuldades. É o mito que, na política, por exemplo, funda “o que é de direito” e “comunica” o que é legítimo no interior da maioria dos Estados (BENJAMIN, 2011a, passim). E o faz, muitas vezes, ao tentar justificar como naturais as relações de meios e fins de violência que foram estabelecidas historicamente e que se mantêm pelo poder que exercem sobre a mera vida (blosse Leben). A linguagem instrumental, que visa apenas articular meios e fins violentos (ou de poder), nessa perspectiva, está disponível ao soberano para sua decisão, para seu julgamento. E o julgamento fundamental que este pode executar é o de decidir, arbitrariamente, o que pode ser considerado “exceção” ou “direito”. Benjamin (2011a, p. 149), influenciado pelas considerações do revolucionário Georges Sorel, escreve que, dessa maneira, o direito (Recht) nunca almejou a efetiva promoção da justiça e que, por sua vez, se configurou, historicamente, como privilégio (Vorrecht) dos poderosos.
Assim, pode-se compreender a “tarefa do historiador” (ou de qualquer pesquisador) como uma tarefa política. Para Benjamin, em diversos momentos de sua obra, o pesquisador que não está consciente dessa tarefa acaba pactuando com uma compreensão da história que insiste em “dizer” a verdade sobre como os fenômenos se dão, partindo de uma relação causal, linear e inexorável. Com isso, coloca-se no território mítico do destino e da culpa, na qual, em termos ético-políticos, nada ou muito pouco pode ser feito. Por outro lado, o pesquisador que mobiliza o pensamento de tal modo a “mostrar” os objetos para que estes “falem por si”, seja pelo princípio da montagem, seja por “dispositivos críticos” (como o trabalho das Passagens), seja ainda pela produção de imagens dialéticas ou de alegorias, tendo consciência da materialidade de relações vivas e expressivas da linguagem, atingirá a compreensão de um tempo carregado de “agoras” que podem trazer novas “cognoscibilidades” históricas. Essa compreensão, ressalta Benjamin (2006, p. 504-505), é idêntica ao momento do despertar. E, enfatizamos, no que diz respeito ao campo ético-político atual, há muito o que, a partir do “mostrar”, necessita ser despertado.
Referências
BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. Organização, apresentação e notas de Jeanne Marie Gagnebin; tradução de Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2011a.
BENJAMIN, Walter. Passagens. Organização e posfácio de Willi Bolle e colaboração de Olgária Chain Féres Matos; Tradução de Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Editora da UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011b.
BERDET, Marc; EBKE, Thomas. “Introduccion”. In: BERDET, Marc; EBKE, Thomas. (org.) Anthropologischer Materialismus und Materialismus der Begegnung: Vermessungen der Gegenwart im Ausgang von Walter Benjamin und Louis Althusser; Matérialisme anthropologique et matérialisme de la reencontre: Arpenter notre présent avec Walter Benjamin et Louis Althusser. Berlin: Xenomoi, 2014.
BUCK-MORS, Susan. Dialética do olhar: Walter Benjamin e o projeto das Passagens. Tradução de Ana Luiza Andrade. Belo Horizonte: Editora da UFMG; Chapecó: Argos, 2002.
Fernández H., Daniel. “Nichts zu sagen. nur zu zeigen”: en torno al método de “mostración” del pensamiento benjaminiano a partir del fragmento “N 1 a 8” del Libro de los pasajes. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 115–135, 2021.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin. São Paulo: Ed. 34, 2014.
Recebido: 11/02/2021
Aceito: 14/02/2021
[1] Doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Professor de Filosofia da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8611-6060. E-mail: m.jarek@hotmail.com.