Comentário a Lévinas et le socialisme libertaire

 

Etienne Alfred Higuet[1]

 

Referência do artigo comentado: Balbontin-Gallo, C. Levinas et le socialisme libertaire. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 69 –88, 2021.

 

Balbontin-Gallo (2021) menciona a figura do terceiro, da instituição, que Lévinas introduz, apesar da sua crítica do Estado, como presença da instância política reguladora das relações entre as singularidades concretas na sociedade. Mas ele traz também a noção de an-arquia como instância crítica do próprio terceiro. Trata-se, não apenas de fazer referência a uma ordem de sentido imemorial no vestígio do outro em si, mas também de remeter à anarquia no sentido político, a qual reivindica uma desordem, até uma potência de revolta oriunda da socialidade ética, que a experiência do semblante desperta em relação com a política. Trata-se da reivindicação an-árquica da socialidade do humano, frente à abstração do ser humano em instituições objetivas do social.

            Acredito que o conceito de an-arquia poderia ser utilmente completado pela noção de hospitalidade, assim como é trabalhada por Jacques Derrida, em referência a Lévinas. Encontraremos, assim, um outro critério do estabelecimento e da superação do terceiro. Segundo Derrida, o livro de Emmanuel Lévinas, Totalidade e infinito, é um imenso tratado da hospitalidade, embora o termo esteja pouco presente nele. A hospitalidade é o nome daquilo que se abre ao semblante ou ao infinito, que o acolhe, e que fica atento à palavra (DERRIDA, 1997a, p. 50, 52). Em Adieu à Emmanuel Levinas, Derrida se pergunta como pensar, juntas, ética e política, apoiando-se nos paradoxos da hospitalidade, os quais implicam uma responsabilidade infinita em relação ao outro, e também no surgimento de um terceiro condicionado, institucional, que só pode trair essa hospitalidade.

Para isso, Derrida distingue dois tipos de hospitalidade: a hospitalidade incondicional, pura ou absoluta, quando se trata de uma visitação, isto é, quando deixo a minha casa aberta ao outro ou estrangeiro, até ao intruso; e a hospitalidade condicional, quando faço um convite em função das regras em uso no meu lar. Na hospitalidade incondicional, o anfitrião renuncia às barreiras de proteção e aceita se expor ao visitante imprevisível, nas suas leis e nos seus comportamentos. Ele aceita se transformar em função do hóspede, até perder a própria identidade e o controle de si mesmo e do próprio lar. Aqui não há simetria: o anfitrião aceita o risco de deslocamento de todas as fronteiras que limitam e ordenam a sua existência, mas não exige do estrangeiro a mesma atitude.

A hospitalidade pura aparece como princípio e horizonte ilimitado de toda relação, de toda ética. Segundo Lévinas, a hospitalidade incondicional “[...] é a própria eticidade, o todo e o princípio da ética, que obriga em relação com todo outro.” (DERRIDA, 1997a, p. 94). É uma lei que não depende de uma decisão ou de uma escolha e que abre a possibilidade do acolhimento. Ela depende de um “sim” pré-originário (uma arché antes do início) do hóspede estrangeiro, o qual já é uma resposta e abre a possibilidade de um “sim” do anfitrião, de um acolhimento hospitaleiro. O acolhimento pacífico é an-árquico (sem arché, sem imposição de alguma autoridade) e anacrônico (sem data definida). Ele transcende as instituições e se impõe como a alteridade do outro. Mas é suscetível de ser imediatamente esquecido ou denegado, na guerra, na violência, na alergia ao outro, pois a hospitalidade pura é sempre suscetível de perversão.[2] Tanto o hóspede quanto o anfitrião podem se tornar inimigos. Deixados no face a face, eles podem se destruir um ao outro.

Por isso, na prática, a hospitalidade é sempre condicionada, mediatizada por um terceiro: a instituição, a justiça, o Estado etc., pois, na sua radicalidade, a hospitalidade pura é impraticável:

[...] os indivíduos, as famílias, as cidades ou os Estados só praticam a hospitalidade condicional, aquela que exige que o convidado observe as tradições, as regras, as normas, a cultura e a língua do seu anfitrião. (DELAIN, 2011-2017).

 

O terceiro introduzido por Lévinas se interpõe no face a face. Contudo, o próprio terceiro pode se tornar perigoso, ameaçador, hostil, opressor, enquanto o acolhimento levinassiano do outro é imediato, infinito e incondicional. É pacífico por essência, independentemente das relações de força e apesar do apelo imediato a um terceiro (o direito, o Estado) que protege, mas o qual pode também exercer a violência.

Por conseguinte, frente à multiplicação dos refugiados, emigrantes, exilados, deslocados, expulsos e dos crimes contra a hospitalidade, exige-se uma mutação, uma conversão ética do conceito de política (DERRIDA, 1997a, p. 90). Os crimes contra a hospitalidade convidam à conversão, à ordem messiânica, a um além do político, o qual continua sendo, apesar de tudo, uma política. Um pensamento que ficaria puramente político não poderia pensar a paz (DERRIDA, 1997a, p. 146, 172).

Nessas condições, temos a responsabilidade de inventar um lugar de encontro, de conciliação, que deixe à hospitalidade um lugar cada vez único, no direito e além do direito, um lugar “entre” as duas hospitalidades (DERRIDA, 2004, p. 189). Na prática, é preciso encontrar um novo compromisso, também único, o menos conflitivo e violento possível, levando em conta as leis e as condições econômicas e sociais específicas (DERRIDA, 2001, p. 134-135).

Um exemplo desse compromisso é a noção de cidade-refúgio, presente num comentário talmúdico de Lévinas, baseado em três versículos bíblicos (Dt. 4: 41-43): “E Moisés reservou três cidades no outro lado do Jordão, na parte leste, para que ali se refugiasse o homicida que tivesse assassinado seu irmão sem premeditação, sem o ter odiado antes; ele poderia então salvar a própria vida fugindo para uma daquelas cidades.” (DERRIDA, 1997a, p. 183). A ideia de cidade-refúgio está presente na Bíblia, no estoicismo, em Cícero, em São Paulo, na tradição medieval e religiosa (as igrejas como refúgio inviolável) e no iluminismo. Com a cidade-refúgio, emergiria um novo conceito de cidade, um novo direito de asilo, uma outra hospitalidade que transformaria o direito internacional. Derrida pensava, em primeiro lugar, na questão dos imigrantes clandestinos. Seria possível uma cidade se distinguir de um Estado e assumir, pela própria iniciativa, um estatuto original que a autorizaria, apenas nesse ponto preciso, escapar das regras usuais da soberania nacional? Inventar algo desse tipo pode ser uma utopia, mas é também uma tarefa teórica e crítica urgente. Poderíamos até pensar em locais de refúgio dentro das próprias cidades, os quais ficariam livres do poder discricionário e da ação violenta da polícia. Para Lévinas e Derrida, a cidade de Jerusalém teria a vocação de ser a cidade de refúgio por excelência. Há décadas que a situação é bem diferente! (DERRIDA, 1997b, p. 22-23) Teríamos, assim, uma das formas possíveis de superação do Estado ou sistema da totalidade, no “além do Estado” mencionado pelo autor do artigo.

 

REFERÊNCIAS

Balbontin-Gallo, C. Levinas et le socialisme libertaire. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 69 –88, 2021.

BENVENISTE, Emile. Le vocabulaire des institutions indo-européennes. Paris: Minuit, 1969.

DELAIN, Pierre. Hospitalité. In: Index des mots de l’oeuvre de Jacques Derrida, 2011-2017. Disponível em: https://idixa.net/pagixa-0506091008.html. Acesso em: 01 jul. 2018.

DERRIDA, Jacques. Adieu à Emmanuel Levinas. Paris: Galilée, 1997a.

DERRIDA, Jacques. Cosmopolites de tous les pays, encore un effort! Paris: Galilée, 1997b.

DERRIDA, Jacques. Le “concept” du 11 septembre. Paris: Galilée, 2004.

DERRIDA, Jacques; SEFFAHI, Mohammed; COLLECTIF. De l’hospitalité. Autour de Jacques Derrida. Paris: La passe du vent, 2001.

 

Recebido: 13/02/2021

Aceito: 15/02/2021


 

 



[1] Professor aposentado da Universidade Metodista de São Paulo, São Paulo, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3994-6392. E-mail: ethiguet@uol.com.br.

[2] A ambiguidade própria à língua francesa, na qual hôte significa tanto o anfitrião quanto o hóspede, já está presente na etimologia dos termos latinos hospes e hostis. Em latim, “convidado” se diz hostis ou hospes. Hostis pode significar “inimigo” ou “hóspede”, “adversário” ou “convidado”. As duas palavras se juntam, para significar “estrangeiro”. A ideia de estrangeiro favorável evoluiu para a noção de convidado; a ideia de estrangeiro hostil evoluiu para a noção de inimigo (BENVENISTE, 1969, p. 95-96).