JAMES SCOTT E A ORIGEM AGRÁRIA DO ESTADO: UM ROUSSEAUISMO INCONFESSO
Resumo: A narrativa de Rousseau sobre a origem do Estado foi retomada nos últimos séculos por diversas tradições, fazendo-se notar no seio do iluminismo escocês e nos trabalhos de Engels. James Scott, em seu recente livro Contra o grão, de 2017, ecoa algumas teses de Rousseau. Dentre tantos pontos de convergência, três se destacam e serão analisados no decorrer deste artigo: i) de um lado, a variedade dos modos de ser e de se relacionar com a natureza dos povos sem Estado, a idade de ouro dos bárbaros; de outro, a estratificação dos povos sob o Estado, o empobrecimento dos agricultores cerealistas; ii) as condições ecológicas raras e especialíssimas favoráveis à emergência do aparelho estatal, em oposição às dificuldades de se formar o Estado, em regiões de abundância naturais, donde se faz necessário estabelecer a hipótese de mudanças climáticas que alteram as condições de existência; iii) e, por fim, a importância dos grãos para o processo civilizatório, isto é, a afinidade entre economia agrária de cereais e Estado.
Palavras-chave: James Scott. Rousseau. Grãos. Estado.
INTRODUÇÃO
Rousseau aborda a questão sobre a origem do Estado, a partir de uma sucessão de transformações na esfera econômica, sendo estas ensejadas por causas tanto físicas quanto morais, como os elementos climático-geográficos, os acidentes naturais, o aumento demográfico, o desenvolvimento da metalurgia e da agricultura e, não menos importante, o despertar das paixões, em especial a eclosão do amor-próprio. De acordo com as análises de Graeber e Wengrow (2015, 2018 e 2021), a narrativa de Rousseau foi frequentemente retomada nos últimos séculos por diversas tradições, fazendo-se notar, no próprio século XVIII, no seio do iluminismo escocês (Adam Smith e Adam Ferguson), e no XIX, nos trabalhos de Engels. James Scott parece ser o caso mais recente de retorno a Rousseau. O livro Against the grain (Contra o grão), de 2017,[2] ecoa alguns temas e teses caros ao cidadão de Genebra. Dentre tantos pontos de convergência, três se destacam para o propósito deste trabalho: i) de um lado, a variedade e liberdade dos povos não estatais, a idade de ouro dos bárbaros, a riqueza de diversidade dos modos de ser e de se relacionar com a natureza de povos caçadores, coletores, pescadores, criadores de rebanhos, agricultores itinerantes; de outro, a estratificação dos povos com Estado, o empobrecimento dos agricultores cerealistas; ii) as condições ecológicas raras e especialíssimas favoráveis à emergência do aparelho estatal, em oposição às dificuldades de se formar o Estado em regiões úmidas e de abundância naturais, donde se faz necessário estabelecer a hipótese de uma mudança climática que altera as condições de existência; iii) e, por fim, a importância dos grãos para o processo de civilizar os seres humanos, isto é, a afinidade ou correlação entre economia agrária de cereais e Estado, bem como a existência de agriculturas contra o Estado.
Embora sejam inúmeras as aproximações, Scott toma distância de Rousseau, ao não considerar o Estado como uma consequência, senão necessária e automática, ao menos quase necessária ou quase automática, do modo de produção cerealista. Prudente, Scott julga que o complexo agrário cerealista é necessário, no entanto, não é suficiente para a emergência do Estado. Evidentemente, os cereais tornam a emergência estatal possível, mas de maneira alguma inelutável. Com isso, o autor problematiza as teorias que pretendem naturalizar a forma Estado como um grande romance evolutivo: segundo elas, onde existiam as condições apropriadas, o Estado emergia.
A maior parte das narrativas contam a mesma história de etapas e de atração inevitável rumo à sedentarização, à agricultura e ao Estado: “[...] de Thomas Hobbes a John Locke, de Giambattista Vico a Lewis Henry Morgan, de Friedrich Engels a Herbert Spencer, de Oswald Spengler às explicações sócio darwinianas da evolução social em geral.” (SCOTT, 2019, p. 25). Scott critica as teorias para as quais, uma vez estabelecidas a agricultura e a sedentarização, respectivamente as primeiras condições tecnológicas e demográficas da emergência do Estado, este deveria lógica e naturalmente fazer sua aparição, enquanto entidades mais eficazes para garantir a ordem política. Pesa, para tanto, o argumento de que o Estado adveio apenas alguns milênios após o nascimento e estabelecimento da agricultura sedentária.
Em nenhum momento de seu livro, Scott se refere a Rousseau, sendo destarte difícil sustentar que o primeiro tenha recorrido ao último, para formular suas hipóteses interpretativas dos dados arqueológicos existentes. Isso não interdita, contudo, considerar que Scott tenha refeito cientificamente e por outros meios os passos conjecturais imaginados por Rousseau sobre o elo existente entre agricultura e política ou entre grãos e Estado. Vejamos então como o autor insere suas hipóteses na história e pré-história das primeiras formações estatais, a partir da análise e interpretação dos dados disponíveis nos trabalhos arqueológicos.
A pesquisa levada a cabo em Against the grain se concentra sobre a Mesopotâmia, berço dos primeiros Estados, mesmo sem ser as primeiras regiões de estabelecimentos sedentários ou centros protourbanos. O período analisado é 6.500 a.C. – 1.600 a.C., sendo a grande maioria de seu estudo concentrada entre 4.000 e 2.000 a.C. Particularmente, Scott se interessa pelo Estado de Uruk, por volta de 3.200 anos antes de nossa era, na medida em que esse sítio dispõe de abundantes dados arqueológicos e históricos que fazem dele a “sede das entidades políticas” – sendo também tido como a primeira cidade-Estado –, tais como “[...] muralhas, tributação e a existência de uma camada de funcionários.” (SCOTT, 2019, p. 134).
1 VARIEDADE VS EMPOBRECIMENTO DOS MODOS DE VIDA
Antes de mais nada, é preciso desfazer alguns equívocos sobre sedentarização e agricultura, recombinar esses termos para melhor compreendê-los. A linearidades da grande narrativa estabelecida pelos autores do século XVIII, a partir de etapas ou estágios de desenvolvimento (fim do nomadismo, sedentarização, domesticação das plantas, dos animais e dos próprios humanos, agricultura) é posta em xeque. Durante muito tempo se pensou que a domesticação das plantas e dos animais envolvera diretamente o fim do nomadismo e o início da agricultura sedentária – como frisa Rousseau, no Ensaio, “[...] os povos que não se fixam não sabem cultivar a terra” (ROUSSEAU, 2020, p. 316), sendo a “habitação permanente” uma condição indispensável para a emergência e consolidação da agricultura.
No entanto, a sedentarização não está inevitavelmente atrelada à agricultura, assim como a prática de caçadores-coletores não se liga irremediavelmente ao nomadismo. A sedentarização aparece muito antes da agricultura, podendo inclusive ser compatível com o modo de vida de caçadores-coletores. Por sua vez, campos cultivados por populações móveis e dispersas atestam o exemplo inverso. É mister, então, reorganizar as cartas conceituais do jogo e repensar os significados e as ligações dos termos nomadismo, sedentarismo, regime de caça-coleta e agricultura.
A sedentarização é apenas uma estratégia entre outras, não a única, tampouco a melhor, portanto, não é possível considerá-la como uma aspiração essencial da natureza humana. Assim, é falsa a suposição de que as pessoas tenderiam a abandonar a vida nômade em prol de uma estabilidade, como se houvesse um inevitável fascínio atrativo ao regime sedentário e como se os povos incontornavelmente deixassem de praticar a caça e a coleta, em prol da agricultura. Scott rebate a suposta superioridade da agricultura e a imagem de que a existência sedentária seria mais atraente do que as formas de subsistência fundadas sobre a mobilidade.
Em termos assombrosamente rousseaunianos, particularmente no que diz respeito à comparação entre estado selvagem e estado doméstico – lembremos, para Rousseau, a domesticação representa uma perda do vigor natural humano, pois enfraquece o corpo e o espírito –, Scott considera que, ao contrário da opinião quase universalmente partilhada pelo ideário popular, os caçadores-coletores não têm nada de populações desamparadas e malnutridas. Diferentemente do imaginado, o caráter penoso e fatigante da vida recai justamente sobre os agrupamentos humanos e sobre as sociedades agrárias nascentes, afligidos constantemente por epidemias. A sedentarização e a domesticação de humanos, animais e plantas criam as condições de concentração demográfica que são verdadeiros parques de confinamentos para agentes patógenos.
Dessa maneira, ligadas à concentração de populações humanas, animais e plantas em um mesmo ambiente, as doenças infecciosas exercem um papel decisivo sobre a fragilidade e o colapso dos primeiros Estados, o que sugere a ideia de involuções e recuos. Inúmeros indícios apontam que os sítios antes fortemente povoados foram abruptamente abandonados, e, segundo Scott, não existe outra explicação válida que não as epidemias. Conforme Scott, os avanços e os retornos são determinados sobretudo por questões físicas, isto é, as epidemias. Paralelamente a isso, recuos e dissidências são vislumbrados em razão da vontade humana de povos que buscam estratégias para escapar das complicações da vida social, os quais resistem ou fogem, de forma consciente, da opressão estatal, criando seus refúgios e seus quilombos.
Os riscos epidemiológicos fazem, pois, com que o estado de dispersão seja mais seguro e saudável do que o agrupamento social e a hierarquia estatal.[3] Excelentes razões levam Scott a pensar que, do ponto de vista material, a existência fora da esfera do Estado – bárbara ou selvagem – foi, sem dúvida, mais fácil, mais livre e mais saudável que a dos membros das sociedades civilizadas. Digamos que, por razões sanitárias, o nomadismo prevalece ou ressurge frente aos agrupamentos sedentários. Scott, por conseguinte, alude a “primitivismo secundário”, “bárbaros voluntários” (SCOTT, 2019, p. 245) ou, ainda, “autobarbarização” (SCOTT, 2009, p. X, 173), já que não é por desconhecimento, mas por escolha e ação direta frente às condições sanitárias de existência, que os povos civilizados retornam à barbárie. Esse fenômeno é frequente e sugere idas e vindas, não a ideia evolutiva de história marcada por etapas. Segue-se disso tudo que a sedentarização não pode ser encarada como uma aquisição irreversível, todavia, como algo que existiu por milênios, de maneira esporádica: sítios eram ocupados, abandonados, eventualmente reocupados e assim por diante.
Da mesma forma que as epidemias atingem os humanos agrupados e os animais confinados, as espécies vegetais também sofrem inúmeras ameaças, quando plantadas em grande escala. Surgem duas consequências: i) aumento da insegurança alimentar, em razão de pragas e parasitas, as quais, porventura, venham a abater-se sobre as culturas, tornando o resultado da agricultura questionável e colocando todo o trabalho a perder; ii) exigência de atenção e cuidados constantes, que não fazem senão aumentar a intensidade de trabalho. A implementação da agricultura, portanto, a passagem de uma vida calcada em recursos naturais e selvagens para uma vida baseada exclusivamente na produção de alimentos, às vezes, falhava em razão das pragas, levando ao colapso demográfico dos agricultores e não dos caçadores-coletores.
Por tudo isso, Scott ressalta que a agricultura neolítica era mais frágil do que a caça e a coleta ou mesmo do que a agricultura itinerante, a qual aliava mobilidade e diversidade de alimentos. Isso corrobora a hipótese segundo a qual a economia primitiva dos povos caçadores-coletores atendia melhor e mais facilmente às necessidades vitais do que o árduo trabalho em campos agrícolas – o que ecoa as conclusões de Sahlins sobre as sociedades afluentes originais (SAHLINS, 1976), já que caçadores e coletores trabalham menos para a obtenção de alimentos do que os agricultores.
Nessa perspectiva, os primeiros grandes estabelecimentos sedentários se localizam, não em zonas áridas, tampouco no seio de agricultores, mas nas regiões úmidas que formavam um meio quase ideal para caçadores-coletores-criadores, com recursos selvagens diversos, abundantes e estáveis. Os grupos humanos localizados nessas regiões não tinham necessidade de se locomoverem tanto, o que os torna particularmente propícios para a emergência precoce de comunidades sedentárias, em uma economia de aldeamento, chamadas por Scott de domus – o que explica o título da tradução francesa de Against the grain, a saber, Homo domesticus. Localizar-se-ia aqui, em meio a toda essa abundância natural, a idade das cabanas de Rousseau, sendo o domus o equivalente da primeira revolução descrita no Discurso?
Face a essa situação vivenciada por sociedades em um estado de economia de aldeamento, o enigma sobre a origem da agricultura (exclusiva e cerealista) não faz senão se acentuar. Ao se comparar o mundo do agricultor exclusivista com o do caçador-coletor, percebe-se que a gama de experiências que caracteriza a existência do primeiro é mais estreita e que sua vida é mais empobrecida do que a do segundo. As provas da contração e do empobrecimento relativos ao regime alimentar dos primeiros agricultores provêm em parte da comparação feita dos esqueletos de cultivadores e de caçadores-coletores que viviam próximos e na mesma época (SCOTT, 2019, p. 121).
Os caçadores-coletores da antiguidade eram generalistas e oportunistas, sempre prontos a tirar o máximo proveito das oportunidades aleatórias e episódicas que a generosidade da natureza poderia lhes oferecer, sendo incluídas dentre essas oportunidades a horticultura ou a agricultura itinerante. Eles diversificavam e testavam muitos modos de subsistência e, com isso, vivenciavam modos de vida mais ricos, com diversas estratégias, já que caçadores-coletores eram também horticultores e criadores. A agricultura se dava a partir da inundação e recessão dos rios, que, além de limpar o terreno, deixavam em suas margens nutrientes favoráveis à germinação.
Tal prática agrícola envolvia um mínimo de trabalho e nenhuma atenção: algumas pequenas brechas ou perfurações nos diques naturais poderiam ser utilizadas pelos seres humanos para irrigar um terreno e assim torná-lo apto para a agricultura. “Eis uma forma de agricultura suscetível de seduzir um caçador-coletor ao mesmo tempo inteligente e econômico de seus esforços.” (Scott, 2019, p. 82). Ao passo que “[...] os agricultores, em particular os cultivadores de cereais sedentários, estavam em grande parte confinados a uma só rede de recursos alimentares e suas práticas obedeciam ao ritmo específico desta rede” (Scott, 2019, p. 104), subordinados ao “[...] metrônomo das colheitas” (Scott, 2019, p. 106) e à “[...] uniformidade das paisagens marcadas pelo arado.” (Scott, 2019, p. 144). A mudança de um modo de vida baseado em uma enorme variedade de flora e de fauna selvagem para um outro sustentado por um punhado de cereais e de espécies de rebanho reflete um empobrecimento das relações com a natureza e aparece aos olhos de Scott como um verdadeiro enigma, o que torna inimaginável a passagem contínua rumo à prática dominante da agricultura de cereais.
Além de representar uma facilidade em atender às necessidades vitais, a diversificação dos modos de ser impedia quaisquer tipos de cristalização e de estabilidade adequadas, senão indispensáveis, ao surgimento do Estado. O aparecimento da máquina estatal nas regiões úmidas ecologicamente diversificadas era improvável, já que ele exige um meio de subsistência mais simples, para explorar e controlar. Donde se seguem as indagações: como a agricultura cerealista se impôs sobre a agricultura itinerante e sobre a imensa variedade de opções de subsistência não agrícola? Como as regiões quentes e úmidas, favoráveis à dispersão e à facilidade de satisfazer as necessidades humanas, por conta da diversidade dos modos de vida, se tornaram o berço dos Estados e de um modo de vida mais fixo, homogêneo e empobrecido? Como o Estado pôde fazer sua aparição e como, uma vez emergido, conseguiu dominar e controlar os módulos população-cereais?
2 A HIPÓTESE DA MUDANÇA CLIMÁTICA
Uma explicação mobilizada por Scott sobre essa mudança – que guarda certa proximidade com as conjecturas de Rousseau acerca das catástrofes (o leve movimento de dedo que tudo alterou), no Ensaio sobre a origem das línguas – é a hipótese científica de Hans Nissen (The early history of the ancient Near East, 9.000-2.000 BC, de 1988) sobre as mudanças climáticas entre 3500 e 2500 a.C. e seus efeitos sobre a baixa Mesopotâmia, particularmente sobre a região de Uruk, provocando uma forte baixa do nível do mar e uma diminuição do volume aquático do Eufrates.
Tal situação foi agravada pela diminuição das terras cultiváveis, em decorrência da salinização dos solos não irrigados. A hipótese levantada diz respeito a um período de aridez e suas consequências, em termos de concentração demográfica. Houve a necessidade vital de água, em um período de seca, o que levou à concentração demográfica próximo a locais de abundância hídrica, impedindo a dispersão e a variação sazonal dos modos de existência, promovendo a construção de sistemas de irrigação e de canais artificiais, bem como à protourbanização, o que acabou por exigir um trabalho mais intenso.
As considerações de Rousseau são aqui pertinentes por um sem-número de razões. O autor considera que as regiões áridas – ou tornadas áridas, em virtude de catástrofes e acidentes naturais – só vieram a ser “[...] habitáveis graças às represas e aos canais” que os seres humanos construíram, a partir dos rios (ROUSSEAU, 2020, p. 326). Além disso, os mesmos exemplos são mobilizados por Rousseau, no século XVIII, e por Scott, no século XXI, a saber, a Pérsia, o Egito e a China. O paralelo entre os dois se acentua, na medida em que Rousseau acredita que a aridez provocada pela mudança climática estimula uma concentração demográfica, ao longo dos pontos de água, eliminando de maneira preliminar as zonas pródigas dotadas de uma fertilidade atenuante desfavoráveis ao aparecimento dos laços sociais, dos agrupamentos humanos e, por conseguinte, do Estado.
Ambos os autores consideram que a dispersão da população, ao longo de regiões férteis, contribui para tornar a formação do Estado improvável ou, até mesmo, impossível. Rousseau diz isso explicitamente: “os climas amenos” e “as regiões abundantes e férteis” foram os últimos “em que se formaram nações” – quase diria Estados –, porque neles os seres humanos podiam com maior facilidade passar uns sem os outros, e porque as necessidades, que fazem nascer a sociedade, neles fizeram-se sentir apenas mais tarde (ROUSSEAU, 2020, p. 320). Para Rousseau, assim como para Scott, a facilidade ao acesso da água “[...] pode retardar a sociedade dos habitantes em lugares bem irrigados. Pelo contrário, em locais áridos foi necessário unir-se para cavar poços” e “abrir canais.” (ROUSSEAU, 2020, p. 324).
Scott defende que a mudança climática (a aridez e a seca) estimulou os módulos de produção mais adaptados ao surgimento do Estado, a saber, um tipo de protourbanização de alta concentração demográfica – portanto, uma abundância de mão de obra – em que se cultivavam cereais. A mudança climática auxiliou o aparecimento do Estado, ao dispor em um mesmo espaço uma densidade demográfica considerável e uma concentração de culturas cerealistas. Se, por um lado, os seres humanos são atraídos para os pontos de água, por outro, os cereais se adaptam melhor à emergência do Estado, pois possuem em geral um valor mais elevado de calorias por unidade de volume ou de peso, em relação a quase todos os demais alimentos, sendo mais adequados para a alimentação de uma grande população, sobretudo uma população de não produtores, como supõe a divisão social do trabalho, em um Estado. Em suas palavras, os cereais apareceriam como a solução mais adequada, simplesmente, porque “[...] a penúria da água confinava a população sobre os sítios mais bem irrigados e eliminava ou marginalizava a maior parte das outras formas de subsistência, tal como a caça e a coleta.” (SCOTT, 2019, p. 137).
Os dois autores recorrem à hipótese de uma mudança climática ou de acidentes naturais responsáveis por provocar uma grande concentração humana. Rousseau estabelece conjecturas (acidentes naturais e catástrofes), para explicar o inexplicável, a saber, o estreitamento social. Sem isso, a origem da sociedade seria inimaginável e misteriosa. Enfatiza o autor, nas páginas do Ensaio sobre a origem das línguas:
[...] suponde uma primavera perpétua na Terra; suponde por toda parte água, gado, pastagens; suponde os homens ao saírem das mãos da natureza, e já espalhados por essas regiões: não posso imaginar como teriam alguma vez renunciado à sua liberdade primitiva e abandonado a vida isolada e pastoril que tão bem convém à sua indolência natural, para desnecessariamente impor-se a escravidão, os trabalhos e as misérias inseparáveis do estado social. (Rousseau, 2020, p. 320-321).
Para o autor, a homogeneidade do paraíso terrestre, que reteve o ser humano em sua indolência originária e fora da zona de influência e do jugo estatal, findou apenas com uma espécie de piparote demiúrgico catastrófico: um leve movimento de dedo. Aquele que inclinou com o dedo o eixo do globo foi o responsável pela catástrofe e pelo estreitamento dos laços sociais (Rousseau, 2020, p. 321).[4] Por uma catástrofe circunstancial e contingente – que poderia nunca ter ocorrido –, alterou-se a própria dinâmica do globo terrestre, fazendo emergir as condições raras de possibilidade para a instituição do Estado.
Por seu turno, Scott recorre a trabalhos científicos, tendo em vista compreender a mudança que vai da variedade ao empobrecimento dos modos de vida dos seres humanos, da dispersão à concentração. A presença de água é, em todos os aspectos, vital para promover a concentração humana. De acordo com o autor, apenas os solos aluviais regularmente regados autorizam a alta concentração humana e uma economia agrícola em espaços limitados, no entanto, para isso, é necessário considerar que tenha havido um empobrecimento prévio dos modos de vida e da produção doméstica, em virtude de uma mudança climático-ambiental.
Como já anunciado, em si mesmas, as regiões úmidas engendravam uma riqueza nos modos de relação com o ambiente e inúmeras opções de subsistência que não eram favoráveis ao surgimento do Estado. A abundância excessiva e os lugares mais ricos em recursos naturais podem propiciar a sedentarização, contudo, não levam necessariamente à agricultura exclusivista. Era exatamente isso o que se passava na Mesopotâmia, a saber, uma gama de modos de subsistência que interditava classificar sua população como essencialmente agrícola. A mudança climática entre 3500 e 2500 a.C., então, alterou essa situação, ao concentrar a população em torno dos pontos de águas e dos solos aluviais. Em virtude do espaço diminuto, essa mesma população concentrada começou a praticar a agricultura cerealista. As condições ecológicas que favorecem a criação dos primeiros Estados são, portanto, tanto para Scott como para Rousseau, as regiões férteis e úmidas tornadas áridas, em razão da degradação climática.
Eis as condições ecológicas especialíssimas e raras necessárias à emergência do Estado, quais sejam, solos aluviais propícios ao plantio regular, bem regados pelas precipitações ou por um sistema de irrigação fácil, a manobrar em um território compacto e em uma região de alta concentração populacional, sem contar a presença de vias navegáveis para o comércio, igualmente indispensável à formação estatal – donde a importância de um rio ou de um litoral navegável – ou, ainda, de obstáculos naturais em seu entorno (posteriormente, com o Estado, de obstáculos artificiais, tais como muralhas), os quais interditam ou dificultam a fuga de membros de populações concentradas. De acordo com Scott, as muralhas são construídas não tanto para preservar o território do ataque inimigo, porém, para manter uma população sedentária e cultivadora que pagava impostos dentro do âmbito do poder estatal.
Os primeiros Estados centralizados surgiram em tais contextos ecológicos específicos. As ecologias não aluviais, as longas margens de rios turbulentos e não navegáveis ou, ainda, as regiões montanhosas e acidentadas não eram favoráveis à emergência estatal, na medida em que elas dificultam ou interditam o plantio e exigiam estratégias variadas de subsistência. Por isso, predominavam a caça, a coleta, o pastoreio e a agricultura itinerante, fora dos raros sítios propícios para a emergência estatal e, por conseguinte, o Estado não encontrava espaço adequado para seu surgimento e desenvolvimento.
3 O ESTADO E OS CEREAIS
Manuela Carneiro da Cunha (2019, p. 130) nos conta sobre um tratado a respeito da Amazônia, intitulado Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas, escrito na reclusão do cárcere de Lisboa pelo padre jesuíta português João Daniel, entre os anos de 1757 e 1776, que havia passado cerca de dezesseis anos na região amazônica (1741-1757).[5] O texto em questão recomenda inúmeras medidas coloniais e governamentais para o melhor desenvolvimento da região, oferecendo “[...] um método de cultivar aquelas terras o mais fácil e útil” para aos colonos, bem como “para todo o estado” (DANIEL, 2004, p. 175). Compartilhada pelas autoridades coloniais do século XVIII, sua recomendação era que os colonos amazônicos deveriam ser proibidos de plantar e cultivar mandioca e, em vez disso, se voltassem para os cereais, sobretudo o trigo, celebrado como o melhor de todos os grãos.
Ora, o título do capítulo oitavo da quinta parte da obra (II volume) é sugestivo: “Para bem dos moradores, e aumento do estado, se deve introduzir o uso do grão”. Nele, o autor sustenta que se deve introduzir em terras amazônicas “[...] a agricultura da Europa, e uso dos trigos, milhos e mais grãos, de que usam as mais regiões do mundo, por que se cultivam com facilidade, dão mais breve os seus frutos, e têm mais copiosas colheitas, quanto o permitirem aquelas matas.” (Daniel, 2004, p. 171). O cultivo da mandioca implica a prática de uma agricultura itinerante e, por conseguinte, propicia a mobilidade ou não fixa as pessoas num território e, por isso, não acarreta uma relação proprietária com a terra.
Nesse sentido, os cereais eram muito mais desejáveis do ponto de vista do governo colonial, uma vez que deveriam fixar as pessoas em suas terras, tornando-as – de acordo com as reflexões de Scott – mais fáceis de governar e controlar. Se os colonos tivessem logo no início cultivado “[...] as searas da Europa teriam já hoje muita fartura de pão para suas casas, e famílias, sem necessidade de escravos, teriam terras estáveis, sem precisão de novas terras todos os anos, e teriam herdades firmes para o estabelecimento de suas casas, e famílias.” Sem isso, nunca poderão “[...] medrar, nunca fartar as suas casas, e nunca ter bens de raiz.” (Daniel, 2004, p. 175).
A narrativa de Daniel, analisada por Cunha, não é trivial e revela um laço profundo entre grãos e Estado, tal como imaginado por Rousseau, mais ou menos na mesma época, e analisado por Scott, no século XXI. Para Rousseau, foram “o ferro e o trigo” – segundo ele, ambos abundantes na Europa – “que civilizaram os homens”. As regiões dotadas desses dois elementos (ao mesmo tempo, as mais abundantes em ferro e as mais férteis em trigo) são, digamos, pré-adaptadas à formação estatal e à civilização. A metalurgia e a agricultura intensiva levaram progressivamente ao aparecimento da ideia de propriedade privada, à divisão do trabalho, à desigualdade social e, logo, ao estabelecimento do Estado. A condição para tanto foi a prática de um tipo específico de agricultura de alta intensidade, a saber, o cultivo de grãos em larga escala, mais precisamente, “o uso do trigo”.
Por sua vez, Scott considera que os embriões do Estado emergiram explorando o módulo neolítico fundado sobre cereais. Da mesma maneira, ele também menciona uma pré-adaptação do Velho Mundo à formação estatal. Como sublinha o autor, o agrocomplexo neolítico é necessário, mas está longe de ser suficiente, para a emergência do Estado. Se não há uma ligação mecânica entre o desenvolvimento da agricultura e o nascimento de um Estado, Scott deixa claro que o Estado nunca aparece onde falta agricultura. O Estado emerge somente se baseado em uma economia agrocerealista, no entanto, nem toda economia agrocerealista propicia o nascimento do Estado. O agrocomplexo neolítico tornou a emergência do Estado “possível, mas não inelutável”:
Em termos weberianos, poderíamos falar aqui mais em “afinidades eletivas” do que em causa e efeito. Assim, era relativamente frequente à época observar populações agrícolas sedentárias instaladas sobre solos aluviais e praticando a irrigação, sem, no entanto, o aparecimento de algum Estado. Em contrapartida, não existiu nenhum Estado que não se apoiasse sobre uma população praticando uma agricultura aluviaria e cerealista. (Scott, 2019, p. 132-133).
Nascidos e tendo prosperados sobre uma economia agrocerealista e com a dominação de um modo de existência apto à apropriação, os Estados, mesmo os embrionários, encorajam ou impõem a cultura cereal – tal como recomenda vivamente o jesuíta João Daniel –, interditando ou reprimindo outras práticas e modos de subsistência. Assim, interditam as atividades de subsistência não taxáveis, bem como contêm a fuga de seus membros. A definição de Estado esboçada por Scott indica o caminho para melhor entender essa relação da máquina estatal com o cereal. Estado é “[...] uma instituição dotada de uma camada de funcionários especializados no cálculo e a coleta de impostos – seja sobre a forma de cereais, de trabalho ou em espécie.” (SCOTT, 2019, p. 133).
A passagem de Proudhon, figurada como epígrafe de uma das seções do capítulo IV, dá o tom da argumentação. Segundo ela, “[...] ser governado é ser, a cada operação, a cada transação, a cada movimento, notado, registrado, recenseado, tarifado, carimbado, medido, avaliado, cotizado, patenteado, licenciado, autorizado, apostilado, admoestado, impedido, reformado, retificado, corrigido.” (apud SCOTT, 2019, p. 156). Por meio dos impostos, dos recenseamentos e cadastros, o Estado visa a tornar os agrupamentos humanos legíveis, mensuráveis e governáveis. Nesses termos, o aparelho estatal necessita de um modo de produção que possa ser facilmente controlado e apropriável. Donde se segue a importância dos cereais, pois são dotados de características únicas que fazem deles, praticamente em todos os lugares, o principal recurso fiscal indispensável à emergência inicial do Estado.
A história dos povos autogovernados não se restringe ao passado arqueológico. O que vale para a história antiga vale com, ao menos, tanta razão para a história recente de inúmeras regiões do mundo. Em um de seus trabalhos anteriores, The art of not being governed, de 2009, Scott mostra como grupos étnicos nômades das terras altas do Sudeste Asiático – uma região denominada Zomia[6] e que engloba territórios da Birmânia, Vietnã, Laos, Camboja, Tailândia, China – resistiram, de forma constante, às investidas estatais de controle. O termo “zomia” foi cunhado por Willem van Schendel (SCOTT, 2009, p. XIV), que assim designa a enorme área de fronteira montanhosa que se estende do Oeste até a Índia (e muito além, na sua opinião, até o Afeganistão).
Com esse termo, é criado um novo campo de pesquisa: os Zomia studies. Esse recorte metodológico questiona as formas de pensar e refletir sobre uma área ou região. Não é a unidade política que torna Zomia uma região específica, mas um mesmo padrão agrícola, mobilidade e dispersão, o igualitarismo, autonomia, isolamento geográfico, em suma, a ausência de Estado. Houve alguns Estados na região, contudo, esses foram breves e passaram por períodos de crise. Para citar alguns: Nan Chao, Kengtung, Nan e Lan-na (Scott, 2009, p. 19). De forma geral, Zomia escapou dos Estados clássicos, dos Estados coloniais e do Estado-nação independente. Zomia tornou-se o local dos movimentos secessionistas, das lutas dos direitos indígenas, das rebeliões milenares, da agitação regionalista e da oposição armada aos Estados das planícies. Como sustenta Scott, “[...] um dos maiores espaços não estatais remanescentes no mundo, senão o maior, é a vasta extensão de terras altas, variadamente denominada maciço do sudeste asiático e, mais recentemente, Zomia.” (Scott, 2009, p. 13).
A tese de Scott é eminentemente clastreana, confessada desde a epígrafe do livro retirada do final do texto “A sociedade contra o Estado”: “[...] diz-se que a história dos povos que têm uma história é a história da luta de classes. Pode-se dizer com pelo menos a mesma veracidade, que a história dos povos sem história é a história de sua luta contra o Estado.” (Clastres, 2003, p. 234). Com isso, Scott almeja efetivamente compreender essa história de lutas de povos e sociedades contra o Estado, não sob a perspectiva deste – tal como corriqueiramente acontece –, mas dos que resistem a ele. E essa história passa pelas alianças com os vegetais.
As populações dessa área montanhosa não são remanescentes esquecidos pelo bonde civilizacional, pessoas que foram deixadas para trás, que não alcançaram ou não foram alcançadas pelo desenvolvimento. Ao contrário, essas são áreas de refúgio de povos que resistem ou fogem, de forma consciente, da opressão estatal, regiões remanescentes cujos povos ainda não foram totalmente incorporados aos Estados-nação. Essas populações são mais bem vistas como quem promoveu adaptações destinadas a escapar tanto da captura do Estado quanto da formação do Estado. Em outras palavras, são adaptações políticas de povos não estatais, gravitando em torno de um mundo de Estados, ao mesmo tempo, atraente e ameaçador.
Se os dias de Zomia “estão contados”, os povos autogovernados eram até bem recentemente a grande maioria da humanidade. Longe de serem vistos, de acordo com a perspectiva estatal, como “nossos ancestrais vivos”, “como éramos antes de descobrir o cultivo do arroz úmido, o budismo e a civilização”, os povos das montanhas são entendidos como comunidades desgarradas, fugitivas e “quilombolas”, as quais, ao longo de dois milênios, têm fugido das opressões dos projetos estatais nos vales – escravidão, recrutamento, impostos, trabalho de corveia, epidemias e guerra. A maioria das áreas em que residem podem ser chamadas apropriadamente de zonas de ruptura ou zonas de refúgio (SCOTT, 2009, p. IX-X).
O modo de vida desses grupos minoritários das montanhas, enquanto escolha política, é central para a esquiva, suas técnicas de moradia e cultivo propiciam a evasão, com a dispersão física em terrenos acidentados, a alta mobilidade e as práticas de cultivo itinerante associadas a uma economia não especializada. A diversidade linguística e a oralidade não deixam de ser igualmente um ato de recusa relevante. Na resistência cotidiana, os povos dessa região praticam uma agricultura que evita a monocultura cerealista, mais fácil de controlar e de recensear pelo fisco, em proveito da caça, da coleta, da cultura de tubérculos, do cultivo de alimentos de ciclo curto, de amadurecimento irregular e nos quais se despendem cuidados pontuais, tais como a mandioca, a batata-doce, o inhame, a papoula etc. Em vez de sociedades dos cereais, são sociedades dos tubérculos e das leguminosas. Em Zomia, o que prosperou foram formas de cultivo que frustram a apropriação estatal. De um lado, portanto, estariam as culturas político-estatais, tais como o arroz, o trigo, a cevada, o milho e, de outro, culturas políticas contra o Estado, como a mandioca e a batata-doce. Assim, não se trata tanto de mostrar como nasce o Estado, mas de como é possível recusar o Estado, a coerção, a subordinação, como é possível conjurar o Estado – não apenas por sociedades que expurgaram o Estado, todavia, por aquelas que convivem com ele, que resistem a ele de maneiras criativas.
Against the grain pode perfeitamente ser considerado uma continuação das reflexões presentes em The art of not being governed, inserindo-as doravante na história e pré-história dos primeiros Estados, abordando-as a partir dos dados arqueológicos. Trata-se de uma mesma história narrada por duas perspectivas complementares: uma antiga, que nos conta como o Estado surge, em função da exploração de uma economia cerealista e, em contrapartida, como muitos povos vistos como indomáveis e indomesticáveis permaneceram ou voltaram a ser selvagens e bárbaros, isto é, à margem do aparelho de captura estatal, pois recusavam o grão; outra recente, a qual relata como povos do Sudeste Asiático resistiram e escaparam até bem pouco tempo atrás às investidas estatais, ao preferirem adotar cultivos não cereais, o que de certa forma ilumina o caminho inverso feito por todas aquelas sociedades que vivem sob a sombra estatal. Em A arte de não ser governado, as sociedades estatais são entendidas a partir da imagem inversa delas, qual seja, a imagem das sociedades que o evitam e o contornam; por sua vez, em Contra o grão, para melhor iluminar a riqueza da vida fora das malhas estatais, Scott nos oferece o conjunto raro e especialíssimo de condições de possibilidade para a formação estatal, o que atesta que o Estado é apenas uma variável ou, como sugere Rousseau, uma contingência histórica e um acidente.
Em Against the grain, o autor sustenta que a história não registrou nenhum Estado da lentilha, do grão de bico, do taro, do sagu, da fruta-pão, do inhame, da mandioca, da batata, do amendoim ou da banana. A economia de praticamente todos os Estados antigos repousava sobre o cultivo dos cereais: a cultura do trigo e da cevada foi tão essencial para a formação inicial dos Estados mesopotâmicos quanto do painço para a formação do Estado, na China. A base de subsistência de todos os primeiros grandes Estados agrários da antiguidade era basicamente a mesma: eram “[...] todos Estados cerealistas repousando sobre o trigo, a cevada e, no caso do Rio Amarelo, sobre o painço.” Os Estados que sucederam no tempo os primeiros “repetiram o mesmo esquema”, mesmo se a lista dos cultivares de base passou também a abarcar o arroz irrigado e, no caso do novo mundo, o milho (SCOTT, 2019, p. 145).[7]
Em uma nota de seu livro, Scott reivindica – arriscando parecer mesquinho – a paternidade da tese que envolve tipos de cultivares e o Estado (SCOTT, 2019, 147-148, nota a); não obstante, tal aspecto reverbera o discurso de Rousseau, de acordo com o qual a agricultura cerealista está na base da emergência do Estado. Rousseau e Scott discorrem sobre agriculturas contra o Estado, agriculturas não cerealistas, de baixa intensidade ou itinerante, desenvolvidas e praticadas por povos nômades ou sedentários de caçadores-coletores, antigos ou modernos, calcadas no modo de produção doméstico. Sociedades dos tubérculos e sociedades das leguminosas são fundamentalmente sociedades contra o Estado, pois praticam uma agricultura contra o grão, uma agricultura na qual as plantas cultivadas não se prestam a servir de base à construção estatal.
Para Rousseau, caça, pesca e coleta representaram a economia doméstica dos humanos, durante muito tempo, no estado de natureza. Esse modo de existência selvagem ou bárbaro não excluía o pastoreio e a horticultura, ao menos em uma situação de sedentarização proporcionada pela primeira revolução. Assim, “[...] com pedras agudas e bastões pontudos começaram a cultivar alguns legumes ou raízes em torno de suas cabanas”, sem que isso implique propriedade privada. Rousseau alude a legumes e raízes, isto é, a sociedades dos legumes e das raízes. A exclusão dos grãos é aqui significativa, sendo a prática da horticultura realizada muito antes de se conhecer e de se saber preparar “[...] o trigo e ter os instrumentos necessários para o cultivo em grande escala.” (Rousseau, 2020, p. 217). Embora Rousseau assevere que a agricultura não se fazia presente, nos povos ditos selvagens ou bárbaros, é necessário precisar que essa ausência se refere a certo tipo de agricultura de alta intensidade, a saber, o cultivo de grãos. Na ausência desse tipo específico de agricultura, inexistia a ideia de propriedade e, por conseguinte, não espanta que esses povos também não possuam Estado.
Por que o excepcionalismo dos grãos? Numerosos cultivares fornecem mais calorias por unidade de terra do que o trigo e a cevada; alguns deles necessitam de menos esforços e, sozinhos ou em combinação, poderiam representar uma base nutritiva comparável aos cereais. Se inúmeros deles satisfazem tão bem quanto os cereais os requisitos agrodemográficos de densidade da população e de valor nutritivo, nenhum deles, todavia, se presta ao cálculo fiscal do Estado. Somente os cereais “[...] podem servir de base ao imposto, por sua visibilidade, sua divisibilidade, sua avaliabilidade, sua estocabilidade, sua transportabilidade e sua racionabilidade.” (SCOTT, 2019, p. 146). Culturas como as leguminosas e os tubérculos possuem algumas dessas qualidades, mas não possuem todas as qualidades presentes nos cereais.
Ora, a fim de apreciar as vantagens únicas dos cereais, é preciso colocar-se no lugar de um coletor de impostos da antiguidade, o qual privilegiava antes de tudo a facilidade e a eficácia da apropriação do excedente. O fato de i) os cereais crescerem acima do solo e ii) amadurecerem todos aproximadamente no mesmo momento facilita, de forma inconteste, a arrecadação fiscal. Soma-se a isso iii) o fato de os cereais se prestarem mais ao transporte do que outros produtos alimentares.
Os tubérculos não são convenientes ao Estado, pois, como a batata e a mandioca, crescem sob a superfície do solo, exigem poucos cuidados, são fáceis de dissimular, podendo ser desenterrados em função das necessidades, enquanto uma parte pode ainda permanecer estocada sob a terra, conservando-se comestível durante algum tempo suplementar. Assim,
[...] se os soldados ou os coletores de imposto quiserem recuperar os tubérculos, eles deveriam desenterrá-los um a um, como fazia o agricultor, e obteriam então uma carga de batatas [ou de mandioca] de menor valor (tanto ao nível calórico quanto em termos de comércio) do que uma charrete de trigo e, além disso, mais suscetível de apodrecer rapidamente. (Scott, 2019, p. 147).
A maturação simultânea fora do solo dos grãos de cereais apresenta a vantagem inestimável de ser perfeitamente legível e avaliável pelo fisco.
Por sua vez, o grão de bico ou a lentilha são plantas nutritivas que podem ser cultivadas de maneira intensiva e que produzem pequenos grãos, podendo ser secados, conservados e facilmente divisíveis e mensuráveis, em pequena quantidade, de modo análogo aos cereais. Assim, seria possível supor que as antigas leguminosas domesticadas – ervilha, soja, amendoim ou lentilhas, alimentos suficientemente nutritivos e podendo ser secados para a estocagem – teriam podido exercer o papel de recurso fiscal, protagonizado pelos cerais. No entanto, as leguminosas são contra a emergência do Estado, na medida em que são, em geral, espécies de crescimento indeterminado que podem ser colhidas a qualquer momento. O coletor de impostos necessita conhecer a data precisa das colheitas, não obstante, as leguminosas se furtam a essa precisão. A vantagem decisiva dos cereais em relação às leguminosas
[...] é seu crescimento determinado e, portanto, maturação quase simultânea. Do ponto de vista de um coletor de impostos, o problema da maioria das leguminosas é que elas amadurecem de maneira contínua sobre um longo período. Como os feijões e as pequenas ervilhas, elas podem ser colhidas na medida em que derem frutos: se o coletor chega muito cedo, uma boa parte da colheita não teria ainda amadurecido, e se ele chega muito tarde, o contribuinte provavelmente já teria consumido, dissimulado ou vendido uma boa parte. O tipo de intervenção pontual praticado pelos coletores de impostos funciona melhor com as culturas de maturação determinada. Neste ponto de vista, as culturas cerealistas do Velho Mundo eram de alguma maneira pré-adaptadas à formação do Estado. No novo mundo – com exceção do caso híbrido do milho, que pode ser ou colhido de maneira contínua ou deixado amadurecer e secar nos campos –, se encontra pouca ou nenhuma cultura determinada e de maturação simultânea em campos homogêneos e não se conhece, portanto, nenhuma das tradições de festas de colheita que dominam o calendário agrícola do Antigo mundo. (Scott, 2019, p. 150).[8]
Legibilidade, crescimento determinado, facilidade de estocagem e de transporte são, portanto, “[...] as características que fizeram do trigo, da cevada, do arroz, do painço e do milho culturas políticas por excelência” (Scott, 2019, p. 148), mais precisamente, político-estatais, já que outros vegetais se mostram também políticos, mas, diferentemente dos cereais, uma política contra o Estado.
Donde se segue que a emergência do Estado se torna possível apenas quando existe um regime dominado por cereais domesticados. O Estado não pôde aparecer senão em regiões ecologicamente ricas, todavia, essas riquezas significam, não uma abundante variedade de modos de vida, mas necessariamente uma cultura cerealista dominante mensurável e apropriável, bem como uma população de cultivadores suscetível de ser facilmente administrada e mobilizada. Assim,
[...] somente os cereais são verdadeiramente adaptados à concentração da produção, à coleta fiscal, à apropriação, aos regimes cadastrais, à estocagem e ao racionamento. Quando a qualidade dos solos se presta a isso, o trigo oferece um meio agroecológico propício a uma forte concentração demográfica. (Scott, 2019, p. 37).
De modo análogo a Rousseau, Scott afirma que, enquanto a subsistência depender de fontes nutricionais diversificadas, como no caso da caça e da coleta, da horticultura, da agricultura itinerante, da pesca e da exploração dos recursos marinhos, da criação especializada etc., a emergência do Estado se torna impossível, posto que não existe alimento facilmente acessível capaz de servir de base contábil para a apropriação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se que a emergência dos Estados agrários foi um evento contingente que criou a distinção ou a fronteira entre povos governados e povos autônomos. As condições raras e especiais para o aparecimento do Estado sugerem que ele não pode ser considerado um dado irredutível, sendo a quase totalidade da história humana sobre a terra transcorrida numa existência sem Estado ou, mesmo quando ele se fez presente, fora do Estado, já que o modo de vida bárbaro ou selvagem era melhor do que o existente nos Estados.
Ao menos até aproximadamente o ano de 1600 de nossa era, a maior parte da população mundial permaneceu constituída, em sua grande maioria, de povos sem Estado (SCOTT, 2019, p. 233), período denominado por Scott de “idade de ouro dos bárbaros” ou, nos termos de Rousseau, “juventude do mundo”. Dentre tantas possíveis fontes clássicas, talvez a inspiração para essa definição de Scott esteja, mesmo que inconfessa, em Rousseau. No capítulo IX do Ensaio sobre a origem das línguas, Rousseau diz explicitamente que a barbárie representa a idade de ouro da humanidade: “[...] esses tempos de barbárie foram a idade de ouro, não porque os homens estivessem reunidos, mas porque estavam separados.” (ROUSSEAU, 2020, p. 316).
Nas palavras de Scott, seria possível
[...] definir um longo período cobrindo não séculos, mas milênios – entre a aparição dos primeiros Estados, e provavelmente, o arvorecer do século XVII – como a “idade de ouro dos bárbaros” e dos povos sem Estado no geral. Durante a maior parte deste longo período, o movimento de “enclausuramento político” representado pelo Estado-Nação moderno ainda não existia. O que prevalecia era a fluidez das circulações físicas, a permeabilidade das fronteiras e estratégias de subsistência mistas. (Scott, 2019, p. 265).
Uma estimativa é de que, até 400 anos atrás, um terço dos seres humanos era composto por caçadores-coletores, cultivadores itinerantes, povos pastorais e horticultores independentes, enquanto o Estado, essencialmente agrário, era largamente confinado à pequena porção de terras propícias à agricultura. Ou seja, a maioria da população mundial viveu sua história talvez sem nunca ter-se deparado com um coletor de impostos. Portanto, Scott entende que o Estado não é uma necessidade nem uma constante, mas uma contingência, uma variável e, mais do que isso, uma variável menor.
JAMES SCOTT AND THE AGRARIAN ORIGIN OF THE STATE: AN UNCONFESSED ROUSSEAUISM
Abstract: Rousseau’s narrative about the origin of the State was recovered in the last centuries by several traditions, being noticed in the heart of the Scottish Enlightenment and in the works of Engels. James Scott, in his recent book Against the Grain of 2017, echoes some of Rousseau’s theses. Among many points of convergence, three stand out and will be analyzed in the course of this article: i) on the one hand, the variety of ways of being and relating to the nature of stateless peoples, the golden age of the barbarians; on the other, the stratification of peoples under the State, the impoverishment of cereal farmers; ii) the rare and very special ecological conditions favorable to the emergence of the State apparatus, as opposed to the difficulties of forming a State in regions of natural abundance, which imposes the necessity to establish the hypothesis of climate changes that alters the conditions of existence; iii) and, finally, the importance of grains for the civilizing process, that is, the affinity between the agrarian economy of cereals and the State.
Keywords: James Scott. Rousseau. Grain. State.
REFERÊNCIAS
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Recebido: 08/10/2021
Aceito:
18/11/2021
[1] Professor de Filosofia da Universidade Federal do Acre (UFAC), Rio Branco, AC – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9672-2483. E-mail: maurodelabandera@yahoo.com.br.
[2] Adotamos como referência a tradução francesa da obra Against the Grain, publicada em 2019 pela editora La Découverte, Homo domesticus: une histoire profonde des premiers États.
[3] Poderíamos supor aqui que Scott tenha levado a sério o convite investigativo de Rousseau, feito em seu Discurso sobre a desigualdade, sobre a origem social das doenças e sobre as “doenças epidêmicas causadas pela má qualidade do ar entre multidões de homens reunidos” (Rousseau, 2020, p. 258). Rousseau considera que as doenças pertencem sobretudo “ao homem que vive em sociedade” e que as condições sociais exercem um papel crucial na determinação das enfermidades. O mal seria evitado se os seres humanos conservassem “a maneira simples de viver, uniforme e solitária” que a natureza lhes prescreveu. Com tão poucas fontes de males e vivendo de forma dispersa e independente no estado de natureza, o ser humano não tem “nenhuma necessidade de remédio, e menos ainda de médicos”. Doença e estrutura social são tão intimamente relacionadas que Rousseau chega a propor o seguinte programa investigativo: fazer a história das doenças seguindo a história das sociedades civis (Rousseau, 2020, p. 178-179).
[4] Rousseau insiste nessa mesma imagem, no fragmento sobre os climas: “[...] inclinar com o dedo o eixo do mundo ou dizer ao homem: cobre a Terra e sê sociável, isso foi a mesma coisa para Aquele que não tem necessidade nem de mão para agir nem de voz para falar.” (Rousseau, OC III, 1964, p. 531). Segundo Charles Porset, a fonte dessas passagens é o livro de 1733 de Noël-Antoine Pluche, Le spectacle de la nature: “[...] uma linha deslocada da natureza bastou para Deus mudar sua face. Ele tomou o eixo da Terra e o inclinou um pouco em relação às estrelas do Norte.” (PORSET, in: ROUSSEAU, 1969, p. 108, nota). Todavia, pensamos que não se pode desconsiderar aqui a influência do livro A new theory of the Earth, de William Whiston (1667-1752), publicado em 1696, que pretende dar conta da narrativa bíblica, apoiando-se na mecânica newtoniana, numa espécie de fusão entre discurso religioso e científico. Para Whiston, “[...] a Terra era originalmente desprovida de montanhas, sua órbita era circular e seu eixo não era inclinado, de sorte que a humanidade primitiva desfrutaria de uma eterna primavera.” Mas veio o dilúvio perturbar esse quadro idílico, um dilúvio provocado por um objeto celeste: “[...] a passagem de um cometa provocou uma catástrofe planetária, inclinando o eixo dos polos, alongando a órbita e derramando torrentes de chuvas provenientes supostamente da água contida na cauda do cometa e atraída pela gravidade terrestre.” (SCHMITT, “Introduction”, in: BUFFON, 2007a, p. 78-79; SCHMITT, in: BUFFON, 2007b, p. 1408-1409, nota 3). De certa maneira, os dois aspectos do texto de Whiston estão presentes no texto de Rousseau: providência e história natural. Pode-se pensar o movimento de dedo como o resultado da vontade divina, no entanto, Rousseau constrói sua argumentação a partir da necessidade de elaborar uma explicação natural, isto é, não teológica da origem e dos desenvolvimentos da sociedade. Donde a importância dos acidentes naturais, apresentados no Discurso, como as “grandes inundações ou tremores de terra” que “cercaram de água ou de precipícios regiões habitadas”, e as “revoluções do globo” que “separaram e cortaram porções do continente em ilhas”. A mesma imagem dos “acidentes da natureza” (dilúvios, erupções vulcânicas, terremotos, incêndios etc.) aparece tanto no Ensaio – a “tradição das desgraças da terra” – quanto no texto A influência dos climas sobre a civilização (ROUSSEAU, OC III, 1964, p. 533). É preciso considerar também, no Discurso, o aumento demográfico como causa disruptiva, perturbando e abalando – não dissemos destruindo – o estado de natureza. Rousseau sustenta que, no estado de natureza, a população teria se tornado excessiva em relação ao espaço disponível. Na nota XVII do Discurso, o estado de natureza é caracterizado por tender a aumentar a população indefinidamente, o que acaba por saturar o espaço físico: “[...] caso se pense na excessiva população que resulta do estado de natureza, concluir-se-á que a Terra, nesse estado, não tardaria a cobrir-se de homens assim forçados a se manterem reunidos.” (ROUSSEAU, 2020, p. 282-283). O estado de natureza, se se perpetuasse, teria conduzido à sua própria destruição, sem que fosse necessário, para isso, invocar a catástrofe ou os grandes acidentes da natureza.
[5] Sobre a biografia de João Daniel e as condições históricas da redação da obra, ver a apresentação de Vicente Salles, “Rapsódia amazônica de João Daniel” (DANIEL, 2004, p. 11-35).
[6] Tal como explica Scott, Zomia é um termo utilizado para highlander, comum a vários idiomas relacionados ao tibeto-burman falado na área de fronteira Índia-Bangladesh-Burma. Mais precisamente, Zo é um termo relacional que significa “remoto” e, portanto, carrega a conotação de viver nas montanhas, nas colinas, por sua vez, Mi significa “povo”. Assim, Mi-zo ou Zo-mi designa um povo remoto das colinas ou das montanhas (SCOTT, 2009, p. 14-16).
[7] Uma exceção poderia desmontar a base indutiva do raciocínio de Scott: um estado que tenha emergido sobre bases não cereais. Nas terras altas do Peru Central, em direção à Bolívia, desde pelo menos 6000 a.C., já havia sido domesticada a batata e a quinoa. É inequívoca a centralidade das batatas e da quinoa como base da dieta das populações do Altiplano no Peru, a partir de 2000 a.C. Embora o milho já esteja presente nessa região nessa mesma época, ele apenas alcançou o status de base alimentar, nos Andes, por volta do primeiro milênio da era cristã, sendo ao que parece utilizado para a produção da cerveja de milho. Scott tem consciência disso e, desse modo, tenta deslegitimar, de maneira rápida e sem maiores explicações, o contra-argumento que poderia ser direcionado à sua teoria. Segundo ele, mesmo se outros alimentos existiam e dominavam, a base fiscal recaía sobre os cereais. Acerca da batata, o autor diz o seguinte: “[...] pode-se considerar que o império Inca constitui uma exceção parcial a essa regra, posto que ele dependia tanto do milho quanto da batata, no entanto, o milho parece ter dominado enquanto base fiscal.” (SCOTT, 2019, p. 145). Em nota, ele trata da quinoa e do amaranto: “[...] da mesma família de ‘pseudocereais’, plantas andinas como o amaranto e a quinoa dificilmente se prestavam à taxação, na medida em que seus grãos amadurecem de maneira irregular e sobre um longo período.” (SCOTT, 2019, 145, nota a).
[8] Como enfatizamos anteriormente, Rousseau trata também de uma pré-adaptação que o Velho Mundo – no caso, a Europa – possui, com respeito à formação estatal.