A RUPTURA DA EPISTEMOLOGIA HISTÓRICA FRANCESA COM O NEOKANTISMO: BACHELARD E CANGUILHEM

 

Caio Souto[1]

 

Resumo: Assim como o neokantismo, a fenomenologia e a filosofia analítica, também a epistemologia histórica francesa teve sua emergência no contexto da crise das ciências, na virada para o século XX. Por seus desdobramentos particulares, as obras de Gaston Bachelard e de Georges Canguilhem romperam, cada uma a seu modo, respectivamente com o neokantismo representado por Brunschvicg (no caso de Bachelard) e por Alain (no caso de Canguilhem). Neste artigo, propõe-se retirar algumas consequências epistemológicas, éticas e políticas dessas duas rupturas, analisando brevemente as particularidades de cada um dos dois casos.

 

Palavras-chave: Neokantismo. Epistemologia. Bachelard. Brunschvicg. Canguilhem. Alain.

 

Introdução[2]

É sabido que o neokantismo influenciou o pensamento francês, na virada do século XIX para o século XX, de diversas maneiras. Figuras como Brunschvicg, Lagneau, Alain (pseudônimo de Émile Chartier), por exemplo, foram proeminentes no cenário entre o pré-guerra e o entre-guerras, e sua presença se fez notar nas publicações e nos círculos intelectuais e filosóficos da época. Por mais que tais obras sejam, sob muitos aspectos, distintas, elas guardam em comum a postulação de uma necessária coordenação das condições do conhecimento numa unidade da experiência, diferindo quanto aos domínios da experiência analisados e quanto aos modos de pensar a coordenação de tal unidade. Com propostas também elas distintas, alguns autores comumente considerados como praticantes da assim chamada epistemologia histórica francesa provocaram uma ruptura com relação ao neokantismo de seus mestres.

Neste artigo, abordaremos brevemente dois desses casos, com suas diferenças específicas, os quais ofereceram uma alternativa ao neokantismo, que rivaliza com outra vertente do pensamento contemporâneo, a fenomenologia. Em todo caso, assim como o neokantismo, a fenomenologia e a filosofia analítica, também a epistemologia histórica francesa teve sua emergência no contexto da crise das ciências, na virada para o século XX. Este artigo pretende apenas atestar que, quando lidas juntas, as obras de Gaston Bachelard e Georges Canguilhem[3], cada uma das quais investigando domínios específicos da experiência racional (as ciências da natureza e as ciências da vida), constituem um campo de saber que possui propostas filosóficas originais, tanto no âmbito epistemológico quanto no âmbito moral e político.

 

1 Bachelard para além do neokantismo de Brunschvicg

O primeiro dos dois autores aqui escolhidos para ilustrar como se deu a ruptura com o neokantismo pela epistemologia histórica francesa é Bachelard. Em 1927, Bachelard defendeu suas duas teses de Doutorado, uma delas orientada por Abel Rey, a outra por Léon Brunschvicg. Muito embora o pensamento de Bachelard tenha amadurecido, conforme ao seu autodidatismo, um tanto quanto longe dos modelos universitários, é possível encontrar muitos pontos de contato com a filosofia de alguns de seus predecessores, e notadamente de Léon Brunschvicg. Com efeito, como afirma Jean Wahl, é possível considerar Bachelard “[...] como aquele que continuou, ainda que renovando em muitos pontos, o ensino de Léon Brunschvicg.” (WAHL, 1962, p. 164).

As assimilações que sua epistemologia realiza com relação à de seu antecessor se dão sobretudo em três pontos: 1) na valorização do progresso interno à racionalidade científica; 2) na caracterização da radicalidade da diferença entre a experiência comum e a experiência científica; 3) no papel atribuído à matematização, no âmbito da experiência científica. Contudo, enquanto, para Brunschvicg, as transformações históricas pelas quais passa a racionalidade nunca afetariam a sua fundamentação última, para Bachelard, tais transformações passarão a ser concebidas como constitutivas da própria capacidade cognitiva humana.

Assim, Bachelard herdará de Brunschvicg a atenção minuciosa à experiência de progressão interna à razão científica, a partir dos problemas que ela própria se colocara, no curso de sua história, reconhecido o papel fundamental por ela desempenhado de correção dos dados imediatos necessariamente “incompletos” ou “ilusórios”.[4] Mas a despeito de acompanhar as nuances dos exemplos extraídos à história das ciências, Brunschvicg se detinha ante a trilha que ele mesmo entrevira, como anedotiza Lebrun, bem ao seu estilo mordaz:

Consideremos Brunschvicg. Quem ainda poderia sonhar, ele insiste, em prescrever às ciências de hoje suas categorias e seus métodos? A lida do filósofo é mais modesta. Ela consistirá em analisar – por exemplo, tomando a “física” como amostra – “o funcionamento das condições humanas do conhecimento”. E, sendo assim, não é preciso temer nenhuma usurpação do território do cientista. “Não se deve esperar encontrar aqui nada que diga respeito diretamente à história propriamente dita ou ao conteúdo das ciências físicas. Nossa tarefa não é a de saber como é feita a natureza das coisas, mas dizer como é feito o espírito do homem”. Louvável resignação… (LEBRUN, 1977, p. 132 - 133).

 

Logo, reconhecendo a limitação do pensamento filosófico em adentrar o domínio próprio à regionalidade científica, um epistemólogo neokantiano como Brunschvicg seguiria a lição do próprio Kant, em Os progressos da metafísica, que já aconselhara ao filósofo reconhecer que o cientista passa muito bem sem ele (apud LEBRUN, 1977, p. 136n). No entanto, embora tal se trate aparentemente de uma confissão de modéstia por parte do filósofo, ao “resignar-se” em “dizer como é feito o espírito do homem” é que ele restitui insidiosamente sua pretensão fundacionista, podendo fazê-lo de duas formas: deduzindo a priori as condições de possibilidade de todo conhecimento possível, o que denominaríamos como um kantismo de estrita obediência, impraticável após os múltiplos desenvolvimentos das ciências contemporâneas; ou reconhecendo na pluralidade de formas construídas – sejam elas científicas, sejam artísticas, mitológicas ou linguísticas.

Todas essas são figuras que outro epistemólogo neokantiano contemporâneo de Brunschvicg – desta vez, Ernst Cassirer – definiria como “formas simbólicas” – a expressão de uma unidade do espírito humano, sem abrir mão, assim, de uma certa concepção de filosofia como vocação, igualmente enraizada no espírito, em elevá-lo ao universal.[5] Esta última posição é a que caracteriza o “neokantismo”, o qual terá como expoentes, no campo da epistemologia na primeira metade do século XX, Brunschvicg, na França, e Cassirer, na Alemanha.

Cassirer, desde o ensaio Substanzbegriff und Funktionsbegriff (1910), atacava as pretensões positivistas, tomando como alvo o conceito naturalista de “substância”, argumentando como a ciência moderna só pôde se desenvolver, quando passou a estabelecer uma correlação funcional entre a simbolização científica e os objetos empíricos. A história do pensamento científico ocidental teria conhecido uma ruptura entre a concepção substancial do conceito científico, desenvolvida inicialmente por Aristóteles, e a concepção funcional do conhecimento, desenvolvida pela ciência, desde o início da era moderna, radicalizando-se a partir de Leibniz. Tendo defendido desde então que a axiomatização científica é um modo de “enformação simbólica” (symbolische Formung), e admitindo como inevitável que a era das grandes filosofias que sistematizavam todo o conhecimento já havia ficado para trás, Cassirer não considerava nem por isso superada a necessidade humana por um pensamento que sintetizasse todas as produções simbólicas: a linguagem, as artes, os mitos, as religiões e também as ciências.

Para isso, estenderá a aplicabilidade do conceito kantiano de símbolo, extraído ao §59 da Crítica do juízo, para o conhecimento científico, tornando-o um operador universal apto a dar forma a toda objetivação possível.[6] Cassirer tomará posteriormente, em sua Filosofia das formas simbólicas, a ciência contemporânea como um caso especial da objetivação em geral, e mais especificamente como um caso que apareceu numa data tardia na história da humanidade. E tal como nos demais casos, ela seguirá o caminho progressivo que parte da esfera de expressão rumo à esfera de representação. Observa-se, assim, uma similaridade com Brunschvicg, como também notou Seidengart (1995, p. 768 - 769):

Cassirer e Brunschvicg permanecem seguramente como os últimos representantes do otimismo (herdeiro das Luzes), no curso do primeiro terço do século XX, na medida em que eles defendem expressamente a ideia de que existe um “progresso da consciência”, não apenas nas ciências, mas também nas diversas formas da cultura ocidental.

 

Será Bachelard aquele que irá até o fim na via em que seu mestre Brunschvicg ainda se deteve. Dagognet interpreta a diferença entre os dois epistemólogos como concernindo a uma nuance, mas reconhece que o grau de diferença por ela atingido conduziu a um inevitável rompimento. Brunschvicg soube o que seria preciso fazer da epistemologia, e até o teria anunciado, mas apenas Bachelard é quem o teria efetivamente realizado, entrando “incontestavelmente no vivo da demonstração”, forçando “a porta do laboratório”, adentrando o domínio da ciência experimental em exercício e, consequentemente, tornando o racionalismo algo “regionalizado e sedimentado”, perdendo os traços ainda perceptíveis, em Brunschvicg, de sua universalidade (DAGOGNET, 1965, p. 50).

É que lá onde o neokantismo de Cassirer e de Brunschvicg via uma pluralidade dos níveis de expressão do espírito, embora essas funções não se concebessem em ruptura umas com as outras; lá onde as formas simbólicas se explicariam por uma força originária do espírito que conferiria aos dados sensíveis um valor de significação; lá onde se reconhecia, enfim, apenas uma projeção da razão[7], Bachelard reconhecerá uma experiência de aproximação. Contudo, para além de recusar simplesmente o neokantismo, Bachelard dirá: “Deveremos, então, aceder a um kantismo aberto, a um kantismo funcional, a um não-kantismo, no estilo mesmo em que se fala de uma geometria não-euclidiana. Esta é, creio eu, a mais bela homenagem que se possa fazer à filosofia kantiana.” (BACHELARD, 1972a [1938 - 1939], p. 27 - 28).[8]

 

2 Canguilhem para além do neokantismo de Alain

Nosso segundo exemplo é Georges Canguilhem. Autor de percurso intelectual singular, e que só foi ao encontro da obra epistemológica de Bachelard um pouco tardiamente[9], Canguilhem iniciou sua trajetória intelectual sob forte influência de outra vertente do neokantismo, a assim chamada “Escola da atividade” (Lagneau, Lachelier, Hamelin, Le Senne, Reininger, Boutroux e sobretudo Alain, seu primeiro mestre), ligada aos desenvolvimentos da Wertphilosophie formulada pelos neokantianos de Baden e Heidelberg (Windelband e Rickert). Haverá, assim, uma diferença fundamental entre a ruptura de Bachelard com Brunschvicg e esta outra que irá ocorrer, segundo nosso entendimento, entre Canguilhem e o neokantismo próprio a Alain.

No primeiro caso, a refutação dos postulados neokantianos, por Bachelard, correspondia sobretudo a critérios epistemológicos: o que Bachelard refutava em Brunschvicg era que a ampliação do entendimento, realizada a fim de dar conta dos desenvolvimentos recentes da ciência, preservava consigo o sentido de um progresso da razão, restituindo assim o primado da filosofia sobre a ciência, que Bachelard propunha inverter. A instauração do “não kantismo” por Bachelard iria propor uma coordenação da epistemologia brunschvicguiana sob uma nova epistemologia, buscando continuar atenta aos desenvolvimentos das ciências da natureza e avaliando as consequências de seus efeitos para a teoria do conhecimento. Quanto ao segundo caso, estando Canguilhem sob a influência inicial de Alain e da “Escola da atividade francesa”, que buscavam estabelecer uma unidade da experiência nos termos da filosofia moral da Segunda crítica kantiana, a mutação que Canguilhem produzirá em sua filosofia advirá de uma inquietação precipuamente política, a qual não será desprovida, contudo, de consequências epistemológicas.

Eis como resume José Resende a principal característica dessa vertente do neokantismo desenvolvido em Baden e Heidelberg:

Para o neokantismo de Baden, diferentemente de Marburgo, a verdade é um valor, o que implica uma concepção prática do juízo, de modo que o ponto de partida da investigação é simplesmente a ‘pretensão’ de verdade do juízo. A verdade não é algo que possa ser constatado, mas apenas o fim último de validade universal postulado em toda atividade judicativa. Todo juízo teórico, inclusive aqueles que compõem as teorias céticas, implicam e orientam-se em função de tal pretensão. Portanto, o ponto de partida da epistemologia rickertiana é a pretensão de verdade, e o que se busca, o objeto do conhecimento, é o fundamento dessa pretensão. (RESENDE, 2013, p. 46).

 

Com efeito, dentre todos os neokantianos dessa geração, Rickert foi quem estabeleceu uma primazia da razão prática na constituição do objeto de conhecimento. Tal proposta tem raiz em Fichte, que, em sua reformulação da filosofia transcendental, já argumentava pela existência, mesmo no domínio teórico da razão, de uma dimensão prática, alegando que isso não seria incompatível com a filosofia de Kant. Mas Rickert (1929) vai além de Fichte, ao sustentar que não apenas existe uma dimensão prática na razão teórica, mas que há uma primazia da razão prática sobre a razão teórica, mesmo no que concerne ao domínio teórico ele mesmo. Para Rickert, por mais que haja independência quanto à determinação dos conteúdos do conhecimento, no âmbito do entendimento, a convicção (Überzeugung)[10] invocada por tais conteúdos é sempre da esfera prática da razão. Trata-se de tornar a moral o problema central da constituição do conhecimento, o que culminará numa precedência da axiologia sobre a ontologia ou a epistemologia.

Na França, essa vertente do neokantismo foi assimilada pela Escola da Atividade, tendo em Alain um de seus principais representantes. Alain foi o animador de toda uma geração de jovens intelectuais, dentre os quais Georges Canguilhem.[11] Ele mantinha um periódico com boa circulação, os Libres propos[12], do qual Canguilhem foi um dos colaboradores mais assíduos, tendo trabalhado desde 1930 em sua redação.[13] Alguns dos textos veiculados nos Libres propos tinham intenções panfletárias e militavam, de maneira até bastante inflamada, em favor do pacifismo político, que Alain continuou a defender mesmo após a Ocupação, em 1940. Seu “pacifismo integral”, como o denominaria Raymond Aron (1933), criticando-o por sua postura servil, ancorava-se em sua teoria das paixões relativa à filosofia moral, que ele desenvolveu na linha da Wertphilosophie. Grosso modo, o que Alain defendeu no livro Mars ou la guerre jugée (1921), no qual fez um balanço crítico dos resultados da Primeira Guerra Mundial, é que as guerras seriam como que irritações do corpo social, as quais suscitariam paixões que desviariam o espírito humano de sua natureza racional.

Canguilhem, que, durante a década de 1920 e até meados da década de 1930, havia aderido a tal tese, passará a se distanciar dela, na medida em que percebe a ascensão do fascismo em todo o continente europeu. Entre 1934 e1936, momento em que Canguilhem esteve bastante próximo do marxismo, o autor realizou uma investigação empírica publicada anonimamente a respeito das condições da ascensão do fascismo entre os camponeses franceses (1935)[14], na qual se dá conta das necessidades efetivas de uma ação de resistência política contra o fascismo. Em 1936, resenhou a obra de René Maublanc, Le pacifisme et les intellectuels, que pode ter auxiliado em sua reconsideração sobre o pacifismo de seu mestre Alain. Maublanc argumentava que os pacifistas pretendiam combater Hitler, cedendo a ele, menosprezando o nazismo, como se fosse apenas um mero nacionalismo, dentre outros: “Antifascistas em política interior, eles acabaram por se tornar pró-fascistas em política exterior.” (MAUBLANC, 1936, p. 6).

É difícil precisar com exatidão qual foi o momento em que teria ocorrido a ruptura com Alain, por parte de Canguilhem, ruptura esta que não fez apagar certos traços de herança que permanecerão por toda a sua obra.[15] Mas há pelo menos dois níveis nos quais uma transformação em curso é nitidamente perceptível. No nível político, houve uma ruptura manifesta com relação ao pacifismo; e, no nível filosófico, haverá uma recusa da possibilidade de unificação da experiência. Quanto aos dois níveis, a obra Traité de logique et de morale, publicada em 1939, em coautoria com Camille Planet[16], já oferece o testemunho de uma nova posição consolidada. No capítulo VIII da primeira parte, quando os autores abordam o tema da “sistematização teórica”, há uma clara relativização de tais sistematizações, no sentido de uma abertura ilimitada à força de novos “dispositivos técnicos” ou novos fenômenos, os quais exigirão também novos dispositivos de experimentação, de ação e, por conseguinte, novas posturas epistemológicas. E, quanto ao plano político, isto é, prático, e ao seu necessário primado, o Traité de logique et de morale culmina com uma seção justamente dedicada ao tema do pacifismo, onde a posição defendida por Alain é severamente criticada, quando os autores enfatizam que o pacifismo pode acabar sendo apenas uma contestação verbal da guerra.

Essa obra, que se insere numa tradição de materiais escritos por professores para serem adotados por seus próprios alunos como método, buscava constituir um exemplo do que os autores gostariam que fossem os livros utilizados em sala de aula, no ensino secundário.[17] Compartilhando da censura de Alain aos “Manuais”, por “asfixiar” a compreensão do aluno[18], a opção pelo título “Tratado” era condizente com a proposta de apresentar, não uma compilação recortada dos filósofos do passado, mas um texto coeso, no qual a relação entre as partes e com o todo fora pensada em todos os capítulos e em todos os temas, havendo um notável esforço de sistematicidade. E, de fato, esse livro, a despeito de ter sido concebido como material didático para ser usado em liceus, lança-se para muito além das comuns descrições ou apresentações de teses de filósofos, apresentando verdadeiras tomadas de posição que denotam uma escrita reflexiva e consciente de seus objetivos didáticos, epistemológicos e políticos.

Dividindo-se em duas partes, o Traité de logique et de morale inicia-se por uma análise das diferentes lógicas presentes nos sistemas filosóficos, encaminhando-se, em seguida, para um exame a respeito do conhecimento científico que parte das matemáticas, passa pelas ciências da natureza, até culminar nas ciências morais. Insistindo numa diferença qualitativa entre as ciências da vida e as ciências matemáticas ou matematizáveis, Canguilhem e Planet encontram os exemplos de uma tal postura filosófica, com relação à especificidade das ciências da vida, em Bergson e Claude Bernard, este último saudado por suas contribuições no campo da experimentação em biologia (Comte aparecerá também, mas sobretudo na segunda metade, referente às ciências morais e sociais). Ao final da primeira metade da obra, há um capítulo sobre a “sistematização teórica” e, em seguida, outro sobre o “valor da ciência”, onde se atribui à filosofia a tarefa de valoração das pesquisas científicas.

Nessa primeira parte, os autores criticam as filosofias que tendem a julgar pejorativamente o valor das ciências, ou que acabam por reduzi-las a um mero valor entre outros, não reconhecendo a originalidade do valor da ciência dentre os demais valores. Os coautores qualificam a verdade científica como um valor, e não como um fato; por outro lado, não é um valor qualquer, pois a ciência é o único discurso comprometido com o juízo de veridicção, o que não faz dela superiora aos demais juízos, mas a torna inegavelmente distinta, e é segundo essa distinção que a ciência deve ser julgada em meio aos demais valores. Tomando o caso do pragmatismo de William James, por exemplo, Canguilhem e Planet (2011 [1939], p. 798) lhe reconhecem o mérito em ter revertido a ordem clássica entre ontologia e axiologia, o que teria permitido dois avanços importantes, na teoria das ciências: 1) uma recolocação do problema da verdade científica, a partir do seu sentido e do seu valor com relação à vida, e não aos meros critérios epistemológicos de uma lógica universalmente válida; 2) uma modificação da submissão da ciência aos juízos de existência para os juízos de valor.

Contudo, como bem observa Jacques Bouveresse, em comentário a essa passagem do Traité, o que Canguilhem e Planet censuravam no pragmatismo é que, ao estabelecer como critério de avaliação da verdade o uso, o interesse ou a utilidade, teria deixado escapar o que há de distinto na racionalidade científica, perdendo-se assim qualquer condição para se realizar um juízo adequado a respeito do seu valor em meio aos demais valores.[19] E é apenas assegurando à ciência seu papel irredutível de construção da verdade que a filosofia poderá também reconhecer para si um outro papel, igualmente irredutível: o de uma síntese ou de um juízo normativo com relação à pluralidade de valores. Ademais, sendo a utilidade, a existência e a verdade científica valores entre valores, os autores reconhecem a necessidade de uma disciplina reflexiva capaz de cuidar para estabelecer um juízo a respeito desses valores, papel que será atribuído justamente à filosofia, essa “reflexão sobre matérias estrangeiras”, como realçará Canguilhem, em Le normal et le pathologique. Com efeito, o tema dos valores permeia todo o texto, e a oposição entre fato e valor constitui o leimotiv desse tratado:

Se a palavra valor tem um sentido, é enquanto designa o contrário do fato. Ao confessar a impossibilidade de fixar de uma vez por todas o que é, de fato, o Bem e qual é, de fato, a destinação humana, vemos nessa impossibilidade mesma a essência do valor moral. O valor moral é de criar unidade, lá onde ela não existe. (CANGUILHEM; PLANET, 2011 [1939], p. 922).

 

Na segunda metade da obra, o problema moral será amplamente analisado, encerrando-se o texto com questionamentos políticos que nos remetem diretamente à exterioridade dos acontecimentos de então e às relações entre racionalidade e história efetiva. Seguimos o instigante comentário de Xavier Roth, quando ele afirma que a inversão entre intuição e entendimento, a qual Canguilhem empresta a Bergson, mas reconfigura, de maneira original (aproximando Bergson, assim, da filosofia axiológica de Alain), permite que não se abandone a tarefa reflexiva da filosofia perante a ciência.

Roth busca demonstrar, a partir disso, como Canguilhem, após as transformações sofridas na segunda metade da década de 1930, formula uma filosofia cuja originalidade residiria numa abertura ao externo (o campo político, a medicina, o devir histórico) que conservaria, contudo, as disposições teóricas herdadas do neokantismo de Alain e Lagneau e da assim chamada “Escola francesa da atividade”. Desse modo, sendo essa abertura ao externo guiada por um projeto filosófico pré-concebido, ela não passaria, como assevera o comentador, de um “[...] meio de validar, pela experiência, certas intuições filosóficas.” (ROTH, 2010, p. 40). Roth é levado a concluir que “Canguilhem nunca renunciou ao projeto transcendental” e “[...] que sua filosofia da vida se aparenta a um tratamento original do ‘projeto transcendental conservado’.” (ROTH, 2010, p. 218).

Nesse sentido, esse comentador – que tem o mérito de ter esclarecido pontos muito reveladores da filosofia das duas primeiras décadas e Georges Canguilhem – pretende refutar a famosa apropriação foucaultiana de Canguilhem e da epistemologia histórica francesa, feita em seu texto derradeiro, “La vie: la science et l´expérience” (1985). Ele censura a Foucault o fato de não levar em conta as especificidades de cada autor, os quais teriam sido ilegitimamente vinculados a uma mesma filiação (Canguilhem, Koyré, Cavaillès, Bachelard, todos na filiação ao positivismo de A. Comte)[20] e por considerar como predominante o aspecto da racionalidade, não atentando para o fato de que o conceito, em Canguilhem, estaria sempre a ser retrabalhado, através da experiência de uma subjetividade. Todavia, é como se a originalidade de Canguilhem se restringisse a coordenar a posteriori as representações e acidentes vividos subjetivamente, o que aproximaria Canguilhem de um pragmatismo transcendental. A ruptura com o pacifismo de Alain, como já frisamos, não se limitou ao nível político. Com efeito, leiamos com atenção a injunção com a qual Canguilhem e Planet (1939, p. 922) encerram esse Tratado:

O que resta, nestas condições, a escolher para hoje? Resta que os conflitos que tendem a tomar uma amplitude quase-universal, contêm por isto mesmo o princípio de sua própria resolução. Pois se as guerras se fazem doravante entre um pequeno número de grupos de nações, e não mais de uma nação contra outra, é porque uma forma nova de associação humana está em gestação, da qual parece difícil aliás evitar que ela seja violenta e provavelmente longa. No fundo, se confrontarmos os dados do problema internacional com os dados do problema social em geral, veremos que os dois problemas não se separam; a guerra se torna o que ela era naturalmente, uma luta de forças entre regimes humanos diferentes. Apesar da enorme complexidade e do entrelaçamento dos problemas históricos, são tipos de organização política e social, conformes a um sentido geral e a um valor dado à vida humana, que se afrontam. A depender se adotarmos uma moral idealista ou realista, optaremos pelos agrupamentos que consideramos defender de perto ou de longe esta ou aquela concepção de vida. Não há mais política interior ou política exterior, a guerra é feita em vista da organização da sociedade humana. Uma moral idealista impele a optar pelos grupos que representam um ideal progressivo. Aqui, como o Hamlet de Shakespeare, é preciso escolher.

 

Vemos, pois, como a experiência histórica da ascensão do fascismo pôde transformar sensivelmente a percepção de Canguilhem sobre o fenômeno da guerra, levando-o a romper com o pacifismo de Alain. Mais do que isso, tal transformação se perfez no nível de sua filosofia moral e epistemológica, porque atingiu o cerne da concepção da unicidade do valor, agora percebida como impossível, como assevera Braunstein: “Desde Nietzsche, ao menos, e também desde o ‘politeísmo dos valores’ de Max Weber, que Canguilhem conhece por intermédio de Raymond Aron, não é mais possível considerar unicidade do valor.” (BRAUNSTEIN, 2011a, p. 134). Doravante, o que mais Canguilhem rejeitará em Alain será a subordinação da pluralidade dos valores à unidade da experiência, o que está vinculado a certa concepção da história como Eterna História.[21] Além disso, também rejeitará a opinião de que a filosofia já estivesse de uma vez para sempre realizada na obra dos grandes pensadores, o que Canguilhem substituirá pela ideia de que é necessário, para forçar o pensamento a pensar, frequentar “matérias estrangeiras”, consideradas menores ou mesmo desprezadas pelo saber filosófico.

Todavia, Canguilhem reterá de Alain alguns traços, ainda que reconfigurados nos termos de sua própria filosofia. O mais importante de tudo será a primazia conferida à razão prática, isto é, a primazia do juízo ou do valor sobre o ser. A isto estará atrelada certa concepção da criação estética, uma total repulsa aos meros fatos (e, consequentemente, a certo modo de praticar a história, a economia, a sociologia ou a psicologia), uma crítica severa do militarismo e de quaisquer sistemas de obediência ou de impedimento da reflexão ou do juízo humanos, e também uma atenção dedicada especialmente à educação e ao cuidado, que culminarão, no caso da educação, na forma como Canguilhem exerceu seu ofício de professor, de presidente de júri de Agrégation, de inspetor geral e outros correlatos, e, no caso da medicina, numa proposta filosófica de uma pedagogia da cura como deontologia médica.

Dessa maneira, mesmo após seu posterior encontro com Bachelard, na década de 1950[22], a epistemologia histórica desenvolvida por Canguilhem reservará para si a tarefa reflexiva e judicativa própria à filosofia moral, mesmo que inteiramente reconfigurada, enquanto a epistemologia bachelardiana não deixou de submeter a filosofia ao juízo próprio da ciência. A nosso ver, as consequências da ruptura de Canguilhem com o neokantismo culminam em resultados diferentes daqueles promovidos pela epistemologia bachelardiana, embora seja possível pensá-los em sua coordenação. Canguilhem irá se dirigir cada vez mais a um pluralismo axiológico (conforme o tópico nietzschiano da transvaloração de todos os valores), substituindo o sujeito transcendental pela aventura do vivente. O “projeto transcendental conservado”, a que aludirá Canguilhem, já é o resultado de uma total reconfiguração da filosofia kantiana, quando Canguilhem reconhecer que a Revolução Copernicana só foi completada, quando ela se tornou fisiológica (tarefa cumprida por Auguste Comte e Claude Bernard). A transformação da posição do sujeito nos lança inevitavelmente para além de todo neokantismo possível, o que não significa uma extirpação absoluta das heranças kantiana, neokantiana ou da filosofia moral da Escola da Atividade francesa.

 

Considerações finais

Neste artigo, apresentamos dois exemplos de autores que, cada um à sua maneira, e a partir de domínios específicos da racionalidade científica e filosófica, assimilaram certos pressupostos de vertentes distintas do neokantismo, rompendo com eles em alguma medida. Bachelard, no campo das ciências da natureza, inicia sua obra desdobrando certos postulados do neokantismo de Brunschvicg (de certo modo, próximo ao de Cassirer), mas recoloca de um modo original o problema da historicidade da racionalidade; já Canguilhem, o qual inicia sua trajetória intelectual sob a influência de Alain e da Escola da Atividade, por sua vez influenciada pela Wertphilosophie desenvolvida pela Escola de Baden (Windelband e, sobretudo, Rickert), ao romper politicamente com o pacifismo de seu mestre, reformula também alguns pressupostos morais e epistemológicos que estavam implícitos a tal postura política. Como vimos, a motivação filosófica que separou Canguilhem de Alain se deve à falta de sentido histórico deste último, o que se expressa nos termos do próprio autor: “Histórico, isto é, não dedutível apenas de suas condições objetivas.” (CANGUILHEM, 2018 [1988], p. 1137).

As consequências epistemológicas da ruptura de Bachelard para com seu mestre Brunschvicg possuem um caráter similar. Quando chegada para Canguilhem a velhice, numa das muitas homenagens que foram prestadas a sua obra e a sua pessoa, por ocasião do recebimento de uma medalha no prestigiado “Centre National de la Recherche Scientifique” (CNRS), em 1987, o autor não se esqueceu de evocar os acontecimentos políticos que calaram Cavaillès, Lautman, Paul Reiss e tantos outros, à contingência dos quais também ele se viu submetido. Não restam dúvidas sobre a relação que ele quis suscitar entre o conhecimento da vida e as condições instáveis sobre as quais esse conhecimento pode se instaurar, ou mesmo deve, caso se queira que a vida (nesse vivente particular que é o homem) seja conduzida às suas próprias condições de possibilidade.

 

The rupture of French historical epistemology with neo-Kantianism:
Bachelard and Canguilhem

 

Abstract: As well as neo-Kantianism, phenomenology and analytical philosophy, French historical epistemology also had its emergence in the context of the crisis of the sciences at the turn of the 20th century. Due to their own developments, the works of Gaston Bachelard and Georges Canguilhem broke, each in its path, respectively with the neo-Kantianism represented by Brunschvicg (in Bachelard's case) and by Alain (in Canguilhem's case). In this article, we propose to draw some epistemological, ethical, and political consequences of these two ruptures, briefly analyzing the particularities of each of the two cases.

 

Keywords: Neo-Kantianism. Epistemology. Bachelard. Brunschvicg. Canguilhem. Alain.

 

Referências

ALAIN (Émille Chartier) [1921] Mars ou la guerre jugée: de quelques-unes des causes réelles de la guerre entre nations civilisées. Paris: Gallimard, 1921.

ARON, Raymond [1933] Réflexions sur le pacifisme intégral. In: CANGUILHEM, Georges [2011] œuvres Complètes, v. I: écrits philosophiques et politiques (1926 - 1939). Paris: Vrin, 2011. p. 999 - 1005.

BACHELARD, Gaston [1938 - 1939] La psychologie de la raison. In: BACHELARD, Gaston. L´engagement rationaliste. Paris: PUF, 1972a.

BACHELARD, Gaston [1945] La philosophie scientifique de Léon Brunschvicg. In: BACHELARD, Gaston. L´engagement rationaliste. Paris: PUF, 1972b.

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Recebido: 28/9/2021

Aprovado: 16/11/2021


 



[1] Professor de Filosofia do Instituto Federal do Amazonas (IFAM), Presidente Figueiredo, AM – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5736-2262. E-mail: caiosouto@gmail.com.

[2] Este texto reformula trechos de minha Tese de Doutorado defendida junto à Universidade Federal de São Carlos, em 2019, orientada pela Prof.ª Dr.ª Thelma Lessa da Fonseca, que contou com financiamento da CAPES e teve como título Georges Canguilhem: o devir de um pensamento.

[3] Muito embora a expressão “epistemologia histórica” já estivesse presente em Abel Rey (antecessor de Bachelard, na direção do Institut da Rue de Four e orientador de uma de suas teses de Doutorado), e o “estilo francês” em história das ciências possa ser reportado a Auguste Comte, preferimos nos concentrar aqui apenas em Bachelard e Canguilhem, indicando nesta nota a possibilidade da extensão deste estudo em outra ocasião.

[4] Ressalta Brunschvicg: “O progresso consistiria apenas em corrigir o que os dados imediatos tinham de inconscientemente incompleto e ilusório.” (BRUNSCHVICG, 1922, p. 604).

[5] “Sob uma ‘forma simbólica’ deve ser entendida toda a energia do espírito através da qual um conceito mental de significado é conectado a um signo concreto, sensório e adere internamente a ele.” (CASSIRER, 1998 [1923], p. 163).

[6] Em tese recente, Adriano Mergulhão (2018) logra afastar Cassirer das críticas que Heidegger lhe dirige, demonstrando como ambos compartilham de um mesmo solo comum, uma vez que a noção de todo, contida em Cassirer, não seria um mero prolongamento das teses epistemológicas da Escola de Marburg (presentes em Cohen e Natorp, os quais seriam os verdadeiros alvos de Heidegger), para quem a objetividade matemática teria um primado quase absoluto sobre as demais formas de conhecimento científico. Ao contrário, seria o caso, em Cassirer, da efetivação de uma função fundamental, a função simbólica enquanto tal, conceito inexistente em seus antecessores. De fato, Cassirer parece estar nesse ponto, e sobretudo com a formulação da sua Filosofia das formas simbólicas, mais próximo da ontologia fundamental de Heidegger do que da Escola de Marburg. Além disso, no que concerne às ciências naturais contemporâneas, Heidegger as compreendia também com base em sua regionalização, postulando a necessidade de uma procura por sua unidade na ontologia fundamental. Ver, quanto a isso, também: RHEINBERGER (2015).

[7] “Assim, do eu intelectual ao não-eu que interessa a inteligência, não há apenas uma projeção, há reciprocidade ativa.” (BACHELARD, 1972b [1945], p. 175-176).

[8] Para um comentário dessa passagem, bem como dos principais aspectos desse “não kantismo” de Bachelard, ver: BARSOTTI (2003).

[9] Apenas a partir do final da década de 1930 é que as referências à obra de Bachelard passam a ser mais constantes, nos textos de Canguilhem, e somente na década de 1950 é que este passará a reivindicar explicitamente os conceitos epistemológicos de seu antecessor, submetendo-os a reexame, na abordagem dos temas em história das ciências biológicas.

[10] “A lei moral não é uma faculdade do conhecimento, ela não pode estabelecer a sua essência, a convicção, por si mesma, mas esta precisa ser encontrada e determinada pelas faculdades do conhecimento. Em outras palavras: a faculdade teórica segue o seu caminho até encontrar por si mesma aquilo que deve ser aprovado, o que, entretanto, não contém em si seu critério de correção, pois este se encontra no âmbito prático, o qual é o primeiro e mais alto no homem, a sua verdadeira essência.” (RICKERT, 1899, p. 8 apud RESENDE, 2013).

[11] Sobre a geração do “jovem Canguilhem” e o papel exercido por Alain em sua formação, ver, sobretudo: SIRINELLI (1994).

[12] Sobre a atuação de Canguilhem junto aos Libres propos, ver, principalmente: BRAUNSTEIN, 2011b, p. 142-144.

[13] Para uma melhor caracterização da influência exercida por Alain sobre Canguilhem especificamente neste período, ver, sobretudo: BIANCO (2012).

[14] Sobre as condições em que tal investigação foi concebida, ver: CAMMELLI (2011).

[15] Ver o balanço fornecido por: BRAUNSTEIN (2011a).

[16] Sob a orientação de René Le Senne, Camille Planet, professor de filosofia em liceu, escreveu suas duas teses para o doutoramento, nas quais defendia uma filosofia dos valores pluralista. Ambas as teses foram rejeitadas pela banca, o que contribuiu para que ele deixasse a filosofia e passasse a se dedicar às atividades de pintor e pianista. De vocação mais especulativa do que Canguilhem, no entanto, foi Planet quem influenciou este último a renunciar a seu posto em Toulouse, para não servir ao Marechal Pétain. Admirador da Wertphilosophie, Planet também constituiu uma das fontes de inspiração de Canguilhem, no campo moral. Para uma apresentação do Traité de logique et de morale, assim como um detalhamento sobre a relação entre os dois coautores, ver: ROTH (2011).

[17] Não se pode deixar de mencionar aqui o papel que Canguilhem exerceria, durante quase toda a sua vida, em instituições de ensino, como professor, como presidente do júri da Agrégation, como inspetor geral da Filosofia na França e, a partir de 1955, como presidente do Institut da Rue de Four, sucedendo Bachelard, além de ter dirigido dezenas de teses e trabalhos acadêmicos. Para algumas intervenções nesse sentido, ver: CANGUILHEM (2015 [1952], 2015 [1953] e 2015 [1991]), e o texto de Patrice Vermeren (2020). Quanto a esse período na formação do pensamento de Canguilhem e de seus contemporâneos, ver, principalmente: FERTÉ; JACQUARD; VERMEREN (2013) e SIIRINELLI (1994).

[18] A influência de Alain como educador, defensor de certo modelo de ensino que visa a “[...] elevar o homem acima de qualquer instituição, preparar o homem para julgar todos os valores” (CANGUILHEM, 1933, p. 296), e que rivaliza termo a termo com o modelo militar da obediência e do dogmatismo, constitui um dos traços de herança para com seu mestre, que nunca se extirpará do pensamento de Canguilhem.

[19] “Segundo eles [Canguilhem e Planet], o pragmatismo não reconheceu verdadeiramente, mas apenas entreviu, que o verdadeiro problema dos valores ultrapassa aquele da verdade científica e o que podemos lhe reprovar não é não ter concluído pela obrigação de restabelecer o direito das ‘experiências’ mais diversas (metafísicas ou religiosas) a se considerar como igualmente válidas, mas de ter concluído apenas isso e de ter assim autorizado toda crença que satisfaz aquele que julga, num dado momento e durante um tempo útil, a adotar como tendo um valor igual ao de crenças que, como aquelas da ciência, podem pretender a uma forma de verdade que não se reduz justamente à utilidade.” (Bouveresse, 2011, p. 45n).

[20] Nesse ponto, sua tese se apoia também nas intervenções de Michel Fichant e de Yves Schwartz, no “Colóquio Canguilhem” de 1990, organizado por Étienne Balibar, publicadas posteriormente, em 1993.

[21] Mesmo na homenagem póstuma que Canguilhem dedicará a Alain (1952a), na qual recupera diversos temas relativos à estética que lhe permanecerão caros, tal censura persistirá.

[22] Em 1955, sob a orientação de Bachelard, Canguilhem defendeu sua tese principal de Doutorado em Filosofia, sob o título La formation du concept de réflexe aux XVIIème et XVIIIème siècles, assumindo no mesmo ano a direção do Institut da Rue de Four, que estivera a cargo de Bachelard desde 1940. A partir de então, ocorrerá uma grande profusão de estudos histórico-epistemológicos em sua obra, além do empréstimo de conceitos operativos, como os de “ruptura epistemológica”, “fenomenotécnica”, “experiência epistemológica” (para diferenciar-se da “experiência comum”), “psicanálise do conhecimento objetivo”, todos de herança bachelardiana.