Juliano Cordeiro da Costa Oliveira[1]
Resumo: Este artigo discute como Charles Taylor reconstrói a era secular. A tese de Taylor é que a era secular não pode estar restrita à ideia da saída da religião do espaço público (secularidade 1), nem apenas pode significar a diminuição de crenças e práticas religiosas (secularidade 2). Taylor propõe uma nova leitura da era secular (secularidade 3), segundo a qual o pluralismo de crentes e não crentes seria a melhor descrição para um mundo que se seculariza, mas que, ao mesmo tempo, as doutrinas de fé ainda continuam influenciado o modo de vida das pessoas. Taylor enfatiza que a religião ainda se relaciona com a formação das diversas identidades, à medida que exerce, ao mesmo tempo, uma perspectiva de reconhecimento dos sujeitos, mesmo em sociedades modernas. Na parte final do artigo, são discutidas críticas à filosofia de Taylor, a partir das propostas teóricas de Jürgen Habermas e Nancy Fraser. A metodologia consistiu em análises das obras de Taylor (principalmente Uma Era Secular, como obra-chave deste artigo), bem como de seus intérpretes e estudiosos.
Palavras-chave: Charles Taylor. Era secular. Religião. Habermas. Nancy Fraser.
Introdução
John Rawls (2011) argumenta que uma das características do tempo atual é o fato do pluralismo. Vivemos num contexto em que várias doutrinas abrangentes, ou seja, diversas concepções de bem e orientações morais, reivindicam um lugar de pertencimento e reconhecimento no mundo, como as religiões. Para Peter Berger (2017), as religiões, mesmo com a secularização, continuam tendo relevância como fonte de sentido de vida para vários sujeitos, tal qual uma instância fundamental para a constituição de suas identidades. Berger (2018) destaca a redescoberta do sobrenatural, na contemporaneidade. Segundo ele (2017), se, por um lado, não podemos simplesmente constatar a volta da religião, na atualidade, como nos tempos pré-modernos, haja vista o pluralismo entre crentes e não crentes, característico das sociedades contemporâneas, também não podemos falar de uma secularização no sentido de que as religiões estariam apenas reduzidas ao espaço privado, como se defendeu no passado, ou mesmo que, com a secularização, haveria uma diminuição de crenças e práticas religiosas.
Há, por isso, uma rearticulação por parte de vários teóricos, como Charles Taylor, acerca da perspectiva clássica da secularização. Taylor enfatiza que a religião ainda se relaciona com a formação das diversas identidades, uma vez que exerce, ao mesmo tempo, uma perspectiva de reconhecimento dos sujeitos, mesmo em sociedades modernas. A temática da religião sempre esteve presente na obra de Taylor. Contudo, apenas a partir do fim da década de 1990, a religião passou a ser uma discussão central no pensamento do filósofo canadense (GARCÍA, 2020).
Taylor, com a obra Uma Era Secular, reconstrói, a partir de uma releitura própria da secularização, uma noção mais abrangente da era secular que não exclui as religiões da modernidade, tentando estabelecer um diálogo entre crentes e não crentes, à luz do pluralismo contemporâneo. A tese de Taylor é que a era secular não pode estar restrita à ideia da saída da religião do espaço público (secularidade 1), nem apenas pode significar a diminuição de crenças e práticas religiosas (secularidade 2). Não que as secularidades 1 e 2 estejam completamente erradas, em suas descrições. A questão, para Taylor, é que elas não podem ser as únicas perspectivas possíveis para a era secular. Em realidade, Taylor propõe uma nova leitura da era secular (secularidade 3), segundo a qual o pluralismo de crentes e não crentes seria a melhor descrição para um mundo que se seculariza, mas que, ao mesmo tempo, as doutrinas de fé ainda continuam influenciando o modo de vida dos sujeitos, bem como atuando, inclusive, na esfera pública.
Taylor é um dos nomes fundamentais do chamado comunitarismo, que defende o papel determinante que a comunidade exerce no reconhecimento, aspecto este fundamental para o entendimento da secularidade 3 proposta por Taylor. Não seríamos um self desengajado, e sim fruto de nossas relações com os outros, nossa cultura, linguagem e comunidade. Tais instâncias nos fornecem os elementos essenciais, as fontes morais, que orientam nossas vidas, constituindo nossas subjetividades, como as tradições religiosas.
Então, torna-se crucial, na investigação de Taylor, repensar a era secular, numa nova perspectiva (secularidade 3), tendo como fio condutor a hipótese de que as religiões representam referências fundamentais para a constituição das identidades, pensando uma modernidade mais abrangente e múltipla, a qual inclua, ao mesmo tempo, as religiões, mesmo em sociedades secularizadas. O presente artigo investiga, portanto, como Taylor reflete e propõe um novo significado para a era secular, constituindo o problema fundamental deste artigo. Já no último tópico, apresentaremos algumas abordagens críticas ao pensamento de Taylor, a partir de Jürgen Habermas e Nancy Fraser. A metodologia consistiu em análises das obras de Taylor (principalmente Uma Era Secular, como obra-chave deste artigo), bem como de seus intérpretes e estudiosos.
1 A Era Secular e seus desdobramentos
Tal qual contextualiza Charles Taylor (2010a), Deus, no passado, estava presente nas mais diversas práticas sociais e níveis da sociedade. As pessoas não podiam engajar-se em nenhuma atividade pública sem “encontrar Deus” (TAYLOR, 2010a, p. 14). Nas sociedades antigas, a religião estava, por assim dizer, em toda parte. Conforme Mircea Eliade (2001, p. 18), a era pré-moderna, ao contrário da secular, tinha o sagrado como uma realidade por excelência: “O sagrado está saturado de ser.” Segundo ele, a manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo, revelando a realidade absoluta. Já para Berger, “[...] a religião supõe que a ordem humana é projetada na totalidade do ser.” (BERGER, 1985, p. 49). A religião, no âmbito do sagrado, legitima as instituições, infundindo-lhes um status ontológico de validade suprema, isto é, situando-as num quadro de referência sagrado e cósmico.
Nas sociedades antigas, a religião estava em toda parte; já no mundo secular, a fé em Deus é apenas uma opção entre outras (TAYLOR, 2010a). Ou, como defende Terry Eagleton (2016, p.11), “[...] as sociedades não se tornam seculares quando descartam totalmente a religião, mas quando já não são particularmente mobilizadas por ela.”
Na era secular, a fé passa a ser relegada à esfera privada, havendo, de acordo com a visão secular de mundo, uma moral independente de qualquer referência transcendente, bem como a defesa de uma razão sem auxílio a fontes transcendentes, derivadas da Revelação. Outrora, segundo Taylor, Deus estava ligado às únicas fontes morais que os homens podiam conceber. “Uma ‘era de crença’ é uma era em que todas as fontes morais dignas de confiança envolvem Deus.” (TAYLOR, 2013, p.402). Na pré-modernidade, relacionávamo-nos com Deus, portanto, “enquanto sociedade” (TAYLOR, 2010b, p. 60). Assim, o cosmos totalmente dessacralizado, diz Eliade (2001), seria uma descoberta recente na história do espírito humano, como igualmente sustenta Taylor.
O filósofo canadense denomina secularidade 1 o entendimento de que a secularidade se deu em termos de espaços públicos. Estes, de acordo com o primeiro significado da era secular, teriam sido esvaziados pela fé em Deus. Na secularidade 1, as normas e os princípios que seguimos, as deliberações nas quais nos envolvemos não nos reportariam mais a Deus ou a quaisquer crenças religiosas. Estas se retiraram do espaço público. Com a modernidade, houve uma saída da religião do espaço público, estando ela restrita ao âmbito individual. Tal perspectiva constitui aquilo que Taylor chama de secularidade 1, sendo uma das leituras mais usuais para se definir a secularização.
Já em seu segundo sentido (secularidade 2), a era secular consistiria no abandono de convicções e práticas religiosas, em pessoas se afastando de Deus e não mais frequentando rituais religiosos. Aqui, assinala Taylor (2010a), os países da Europa ocidental se tornaram majoritariamente seculares – até mesmo aqueles que mantêm vestígios de referência a Deus, no espaço público. Nesse segundo sentido de secularidade, a ênfase é dada ao declínio da fé, uma vez que, com a modernidade, menos pessoas acreditariam nas doutrinas de fé.
Taylor, por sua vez, acredita que um exame da era secular seja pertinente num terceiro sentido: a secularidade 3. Nesta, Taylor enfatiza a passagem de uma sociedade na qual era praticamente impossível não acreditar em Deus, para uma na qual a fé representa apenas uma possibilidade humana, entre outras. Assim, poderíamos dizer “[...] que se trata de maneiras alternativas de viver nossa vida moral ou espiritual, em um sentido mais amplo.” (TAYLOR, 2010a, p.17). A secularidade 3, ao contrário das anteriores, consiste em explicitar novas condições de crenças, à luz de um pluralismo, sem reduzir a fé a seu espaço privado (secularidade 1) ou tematizar a secularização apenas enquanto diminuição da crença em Deus (secularidade 2).
Essa mudança representa a área central e a origem da “secularização” moderna, no terceiro sentido em que tenho empregado este termo, ou seja, das novas condições nas quais crenças e descrenças coexistem de forma conturbada e geralmente entram em conflito uma com a outra na sociedade contemporânea. (TAYLOR, 2010a, p. 354).
Em crítica às noções tradicionais de secularismo (secularidades 1 e 2), Taylor defende que o fato de uma atividade, numa dada esfera, seguir sua própria racionalidade inerente, tal qual Max Weber outrora diagnosticou, não permitindo o tipo mais antigo de normatividade baseado na fé, não significa que ela não possa ainda ser moldada pela própria fé:
Assim, um empresário atuante na moderna economia não poderia conciliar sua atividade com a interdição da usura pela igreja medieval, mas um calvinista devoto não se veria impedido de realizar seu negócio para a glória de Deus, dando boa parte dos lucros para a caridade etc. De modo similar, uma médica moderna não terá o hábito de mandar seu paciente tocar uma relíquia, mas sua vocação para a medicina pode estar profundamente fundada em sua fé. (TAYLOR, 2010a, p. 498).
Seria um equívoco, argumenta Taylor, identificar a secularização apenas com o desencantamento do mundo, como podemos perceber nas secularidades 1 e 2. Mesmo em Max Weber, como sustenta Taylor, tanto o judaísmo como o cristianismo, principalmente com o protestantismo, promoveram, em diferentes épocas, o desencantamento do mundo, o que nunca significou o desaparecimento da religião em si ou seu confinamento à esfera privada (secularidades 1 e 2). Weber (2004), em A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo, destaca o caráter predominantemente protestante dos proprietários do capital e empresários, bem como o das camadas superiores da mão de obra qualificada nas empresas modernas.
Taylor, citando José Casanova, ressalta, é verdade, que ocorreu, com a modernidade, uma separação e emancipação de esferas seculares, como as do Estado, da economia e da ciência em relação à religião. Porém, isso não significa que o processo de secularização traria na sua esteira a privatização e a marginalização da religião, no mundo moderno, ou o pleno declínio das doutrinas de fé, em todos os contextos:
Pelo contrário, alega Casanova, hoje estamos testemunhando a “desprivatização” da religião... Tradições religiosas mundo afora têm-se recusado a aceitar o papel marginal e privatizado que as teorias da modernidade assim como as teorias da secularização têm reservado para elas. (TAYLOR, 2010a, p. 499).
De acordo com Taylor, a era secular seria mais bem caracterizada pelo seu terceiro sentido, “[...] marcado por um inaudito pluralismo de pontos de vista, religiosos, irreligiosos e antirreligiosos, no qual o número de posições possíveis parece estar crescendo sem fim.” (TAYLOR, 2010a, p. 513). A era secular, em Taylor, é marcada por um amplo leque de opções espirituais, religiosas e irreligiosas. “Essa nova localização tornou-se uma oportunidade para recomposição da vida espiritual em novas formas, e para modos de existência tanto na relação com Deus quanto fora dela.” (TAYLOR, 2010a, p. 513). Não se trata, em Taylor, de uma volta ao mundo pré-moderno religioso nem de um triunfo das teorias tradicionais da secularização.
A era secular, para o filósofo canadense, caracteriza-se, sobretudo, pelo pluralismo entre crentes e não crentes, bem como uma tentativa de diálogo entre tais tradições. “Agora vivemos numa supernova espiritual, uma espécie de pluralismo galopante no plano espiritual.” (TAYLOR, 2010a, p. 358). A crítica de Taylor às secularidades 1 e 2 é que elas não podem ser generalizadas para todos os contextos modernos. Afinal, as religiões são instâncias que nos fornecem os elementos essenciais, as fontes morais, os quais orientam diversas vidas, constituindo as subjetividades, como as tradições religiosas, conforme aponta Taylor, na secularidade 3.
Por isso, a era secular, em Taylor, não pode ser reduzida à ideia de redução da religiosidade à esfera privada (secularidade 1), nem à perspectiva de perda da fé com a secularização (secularidade 2). As religiões seriam, portanto, uma das fontes morais que alimentariam e formariam as identidades.
As fontes morais podem ser encontradas nas mais diversas noções de bem, como as religiões. Porém, Taylor (2011) destaca uma perda do significado dos horizontes morais com a noção de sujeito atomizado, sem vínculos comunitários, que marca fortemente a modernidade. Isso ocorreu, sobretudo, com a virada para a subjetividade moderna, inaugurando uma nova maneira de interioridade, na qual chegamos a pensar em nós mesmos como seres com profundidade interior. Taylor, entretanto, defende um ideal da autenticidade moderna que dialogue com as fontes morais que nos formam profundamente, como as religiões, ao contrário da perspectiva atomista e solipsista de parte da modernidade e das teorias clássicas da secularização.
As religiões significam, em realidade, mundos de articulações morais de suas identidades, tais quais uma comunidade de pertencimento e de reconhecimento. Nas palavras de Taylor, a crença em Deus significa uma articulação daquilo que é essencial para a forma do mundo moral na melhor descrição de alguém. “Ela apresenta uma razão antes como eu faço quando descrevo minhas preocupações mais básicas a fim de fazer os outros entenderem o sentido que tem minha vida.” (TAYLOR, 2013, p. 106). A secularidade 3 entende, por isso, um novo lugar para as religiões na era secular:
De facto, excluir a dimensão religiosa não é uma condição necessária do meu conceito de secular, nem mesmo suficiente. Uma associação secular baseia-se tão-só na acção comum, que exclui qualquer fundação divina para essa associação, mas nada impede as pessoas assim associadas de prosseguirem a sua forma religiosa de vida. (TAYLOR, 2010b, p. 100).
Taylor propõe um novo entendimento da era secular que abra espaço para um maior diálogo com as religiões, a partir da existência de múltiplas modernidades e imaginários sociais, à luz daquilo que denomina secularidade 3. As religiões podem, por exemplo, figurar nas identidades políticas da modernidade, como no caso da democracia americana, a qual, embora moderna e secular, nunca excluiu a religião como parte de seu próprio ethos, como exemplifica Taylor: “Deus ou a religião não estão precisamente ausentes do espaço público, mas são essenciais às identidades pessoais dos indivíduos ou grupos e, por isso, são sempre uma possível componente definidora de identidades políticas.” (TAYLOR, 2010b, p. 185).
Como enfatiza Sonia E. Rodríguez García (2020), a secularização, em Taylor, não pode ser tida como uma consequência lógica da modernização. A religião e suas temáticas inspiram diversos sujeitos, na esfera pública (GARCÍA, 2020). Para Taylor, é possível propor uma secularidade em que a religião pode ocupar um determinado lugar, compatível com o tempo profano das democracias:
Quer isto dizer que, finalmente, estamos a ultrapassar a visão da modernidade como um processo único e singular de que a Europa é o paradigma; que compreendemos o modelo europeu como o primeiro, decerto, como o objeto de alguma imitação criativa, naturalmente, mas também como, no final do dia, um modelo entre muitos. (TAYLOR, 2010b, p. 188).
As religiões constituem uma noção de self mais profunda e fundamental, para além do indivíduo atomizado das concepções modernas e liberais. Assim, a religião aponta também para uma dimensão comunitária que fornece sentido para a construção das subjetividades. Nas palavras de Taylor, “[...] o erro dos modernos consiste em tomar esta compreensão de indivíduo como de tal modo garantida que, “naturalmente”, se encara como a nossa primeiríssima autocompreensão.” (TAYLOR, 2010b, p. 70).
Então, não seria possível, para Taylor, uma separação rigorosa no mesmo sujeito entre uma identidade privada (de um crente), de uma pública (não religiosa), como deseja o liberalismo político de Rawls (2011). Taylor (2010a) assinala que as identidades políticas podem ser tecidas em torno de definições religiosas ou confessionais. Segundo ele, nem todas as sociedades passaram por processos de secularização, em que as identidades não foram formadas apenas a partir de uma visão de mundo secular. Em sua crítica a Rawls, Taylor argumenta que não se pode exigir que todos deliberem numa linguagem secular, deixando suas visões religiosas de fora, tal qual Rawls explicita, ao propor a separação entre identidades religiosas das não religiosas, na razão pública.
Não se trata, em Taylor, de negar a modernidade e a era secular, e sim de construir um maior diálogo com as religiões, haja vista a relevância essencial que elas possuem, na construção das identidades e do reconhecimento. “Porém, a história que nos interessa não é simplesmente uma história de declínio, mas também de uma nova determinação do lugar do sagrado ou espiritual na vida individual e social.” (TAYLOR, 2010a, p. 513). A crença numa religião significa, em outros termos, uma articulação essencial para uma determinada forma de um mundo moral, no sentido de uma descrição de um modo de vida.
Como explica Joel Decothé Junior (2018), a posição de Taylor, em face da insistência da presença das religiões, na esfera pública, não indica a intencionalidade de se objetivar um retorno à distinção anterior entre Estado e Igreja. Taylor reconhece que, em determinadas esferas, a neutralidade estatal precisa manter uma linguagem laica:
Quando trata disto o filósofo canadense indica que a linguagem legislativa e judiciaria têm de ser mantida neste patamar isenta de influência direta de uma linguagem religiosa no que concerne a tomada de posições deliberativas. (DECOTHÉ JUNIOR, 2018, p. 227).
Nenhuma doutrina abrangente, seja religiosa, seja laica, pode ser oficializada em termos estatais, porque é a igualdade entre pessoas livres e cidadãs que deve ser garantida. O poder estatal tem de assegurar a oportunidade de participação nos processos deliberativos, tanto para religiosos como para não religiosos, sem nenhum tipo de privilégio para ambos. Em Taylor, portanto, é fundamental a manutenção da separação entre Igreja e Estado, como uma garantia do pluralismo na democracia moderna, o que não significa que a era secular não deva estabelecer um diálogo com as diversas tradições e doutrinas de fé, como Taylor propõe, ao longo da secularidade 3. “Pensamos que o secularismo (ou laïcité) tem a ver com a relação entre o Estado e a religião, quando na realidade tem a ver com a resposta (correta) do Estado democrático à diversidade.” (TAYLOR, 2012, p. 169).
De acordo com Taylor, é preciso evitar favorecer ou desfavorecer não apenas orientações religiosas, mas qualquer posição básica, religiosa ou não, à luz do pluralismo e da diversidade cultural e dos modos de vida. O Estado, diz Taylor, não pode conceber um reconhecimento especial em detrimento de outras formas de vida:
Isso não é fácil fazer; as linhas são difíceis de traçar, e devem ser traçadas sempre de novo. Mas tal é a natureza do empreendimento que é o Estado secular moderno. E que melhor alternativa existe para democracias diversas? (TAYLOR, 2012, p. 186).
Se, por um lado, Taylor, com razão, conceitua como as religiões, mesmo em sociedades modernas e secularizadas, ainda possuem uma relevância determinante na constituições das identidades e na esfera do reconhecimento, em sua crítica às secularidades 1 e 2, por outro lado, cabe interrogar a Taylor como, mesmo considerando o pluralismo dos modos de vida, seria possível fundamentar princípios normativos num mundo marcado por várias concepções de bem, e não apenas um bem ou doutrina abrangente, em particular.
A nosso ver, Taylor, a despeito de apontar para uma dimensão determinante, a saber, os contextos intersubjetivos e culturais formadores das identidades coletivas, não consegue propor uma saída para os impasses do relativismo cultural, como mostra Habermas (2002), ao criticar o filósofo canadense. Como avaliar, por exemplo, se uma determinada tradição é benéfica ou não? Nancy Fraser, por sua vez, articula igualmente uma crítica às éticas do bem, as quais se guiam, sobretudo, pela ideia do reconhecimento, como em Taylor, e não pela redistribuição. Segundo Fraser, o reconhecimento, categoria central no pensamento de Taylor, deveria ser acompanhado pelas demandas por redistribuição, algo não tematizado pelo filósofo canadense, como veremos a seguir.
2 Algumas considerações críticas ao pensamento de Taylor
A crítica de Habermas (2002) a Taylor insere-se na polêmica do justo versus o bem, na filosofia. Enquanto a chamada prioridade do bem sobre o justo é característica das éticas clássicas de orientações teleológicas, como há em Taylor, a do justo em relação ao bem é uma marca das éticas modernas de orientação deontológica, com referência em Kant, como encontramos em Habermas, em sua versão intersubjetiva, que prioriza o justo sobre o bem. Isso significa vincular os discursos de fundamentação das normas a procedimentos de justificação que não dependam de um conjunto preestabelecido de valores éticos representativos de uma forma de vida particular. Afinal, em Habermas, o critério de validade normativa é o da justificação, e não os valores de uma determinada comunidade ética, como em Taylor.
Para Habermas (2002), Taylor não consegue solucionar as demandas normativas de uma sociedade pluralista. Ao trabalhar com uma noção de reconhecimento enquanto preservação cultural de um povo, Taylor perde de vista que caberia aos próprios sujeitos a escolha ou não de continuarem mantendo uma tradição, e não a defesa de uma determinada concepção de bem a priori:
Pois a defesa de formas de vida e tradições geradoras de identidade deve servir, em última instância, ao reconhecimento de seus membros; ela não tem de forma alguma o sentido de uma preservação administrativa das espécies. O ponto de vista ecológico da conservação das espécies não pode ser transportado às culturas. Normalmente, as tradições culturais e as formas de vida que aí se articulam reproduzem-se ao convencer do valor de si mesmas os que as assumem e as internalizam em suas estruturas de personalidade. [...] uma garantia de sobrevivência iria justamente privar os integrantes da liberdade de dizer sim ou não, hoje tão necessária à apropriação e manutenção de uma herança cultural. (HABERMAS, 2002, p. 250).
Para Habermas, em sociedades multiculturais, não se trata do que é bom para nós, como membros de uma coletividade (caracterizada por um ethos próprio), mas sim do que é correto e justo para todos, seculares e religiosos. Taylor não deixa claro como, numa sociedade multicultural, escolher os critérios normativos à luz de um pluralismo razoável, haja vista que o paradigma da vida boa é o que orienta seu comunitarismo:
Em oposição à proposta comunitarista de Charles Taylor, sustento que uma “política do reconhecimento” – à qual cabe garantir, com igualdade de direitos, a coexistência de diferentes subculturas e formas de vida dentro de uma só comunidade republicana – tem de cumprir seu papel sem direitos coletivos nem garantias de sobrevivência. (HABERMAS, 2002, p. 9).
As éticas deontológicas, como a de Habermas, defendem a necessidade de critérios de avaliação moral que independam dos contextos específicos; já os comunitaristas, como Taylor, consideram inviável a formulação de critérios isentos da marca da sociedade em que foram pensados, como as tradições religiosas. O que está em jogo, contudo, segundo Habermas, é a questão de como justificar normas, a partir do fato do pluralismo moderno e simbólico. Por isso, segundo Rainer Forst, “[…] a teoria de Taylor parece colocar exigências muito elevadas sobre a homogeneidade de uma população política, que, no entanto, são muito difíceis de conciliar com o ‘fato’ de sociedades ética, étnica e culturalmente pluralistas.” (FORST, 2010, p. 135).
Já para Seyla Benhabib (2006), há, em Taylor, uma ideia de cultura como algo fixo e homogeneizado, em função da perspectiva de uma unidade no interior das culturas. E Rainer Forst, seguindo Habermas, sustenta que não “[...] seria adequada uma filosofia social que se apoiasse em conceitos éticos de vida boa, sem expô-los mais uma vez à autoridade de justificação dos concernidos.” (FORST, 2018, p. 20). Taylor, portanto, segundo Forst, sobrecarregaria eticamente a ideia da cidadania. Uma comunidade não pode afirmar sua história, sem questioná-la, pois ela é também a história da exclusão, com base em critérios sociais, de condição de classe e de especificidade de gênero. Em Taylor, mais do que a perspectiva da deliberação dos sujeitos e suas justificações, seria a própria orientação da vida boa, do ethos, cultura e tradição de um povo, o fundamental de sua teoria.
Nancy Fraser, por sua vez, enfatiza que os defensores das políticas de reconhecimento, como Taylor, rejeitariam as políticas redistributivas, por identificarem que outras esferas são fundamentais para a formação das identidades dos sujeitos, como a eticidade, não podendo ser reduzidas às demandas por redistribuição. “Nesses casos, realmente estamos diante de uma escolha: redistribuição ou reconhecimento? Política de classe ou política de identidade? Multiculturalismo ou igualdade social”? (FRASER, 2007, p. 103). Todavia, segundo Fraser, essas são falsas antíteses. A justiça, hoje, requer tanto redistribuição quanto reconhecimento; nenhum deles, sozinho, é suficiente.
A questão, para Fraser, é como combinar ambas as perspectivas. Ela sustenta que os aspectos emancipatórios das duas problemáticas precisam ser integrados em um modelo abrangente e singular, a saber: um projeto capaz de acomodar tanto as reivindicações por igualdade social quanto as de reconhecimento. Daí, Fraser entra na disputa entre as chamadas éticas do bem (Taylor) e as do justo, ou seja, entre a eticidade hegeliana e a moralidade kantiana. Segundo ela, a maioria dos filósofos partidários da redistribuição alinha-se com o campo conceitual da moralidade kantiana; já os do reconhecimento com a eticidade hegeliana, como Taylor. “Esse contraste é, em parte, uma questão de perspectiva.” (FRASER, 2007, p. 104). Pensadores de matriz kantiana insistem que o justo deve ter prioridade sobre o bem. Para eles, as demandas por justiça estão acima das reivindicações por reconhecimento.
Já para Taylor, a noção de uma moralidade, independentemente de qualquer ideia do bem, seria incoerente. A ética, para comunitaristas como Taylor, seria uma questão relacionada à vida boa e à eticidade. “Por detrás do problema da desigualdade e da justiça reside algo de mais profundo, que diz respeito ao que hoje chamaríamos de “identidade” dos seres humanos naquelas sociedades mais antigas.” (TAYLOR, 2010b, p. 61).
No entanto, a perspectiva de Taylor, segundo Fraser, complica o problema de integrar redistribuição com reconhecimento. A redistribuição pertenceria ao campo da moralidade deontológica, enquanto o reconhecimento à eticidade hegeliana. Não por acaso, muitos teóricos deontológicos rejeitam as reivindicações por reconhecimento como violações à neutralidade liberal, por defenderem que a justiça distributiva esgota a moralidade política; enquanto isso, os partidários do reconhecimento concluem que as demandas morais vindas das comunidades intersubjetivas excedem as capacidades dos modelos distributivos. Para Fraser, porém, é possível integrar os dois lados. Ela articula uma política do reconhecimento que não se vincule prematuramente à eticidade.
Fraser entende que as lutas por reconhecimento são reivindicações por justiça, a partir de uma noção ampla de justiça. O reconhecimento não poderia ser sinônimo apenas de identidade cultural específica de um grupo. O modelo do reconhecimento pautado pela identidade seria, para Fraser, problemático, pois ele destaca a estrutura psíquica em detrimento das instituições sociais e da interação social. Segundo Fraser, reparar a injustiça certamente requer uma política de reconhecimento, mas isso não significa uma política de identidade.
Geralmente, o reconhecimento é entendido como um problema da boa vida. Essa é a perspectiva tanto de Charles Taylor quanto de Axel Honneth, os dois teóricos contemporâneos mais proeminentes do reconhecimento. Para ambos, ser reconhecido por um outro sujeito é uma condição necessária para a formação de uma subjetividade integral e não distorcida. Negar a alguém o reconhecimento é privá-lo dos pré-requisitos fundamentais para o pleno desenvolvimento humano. (FRASER, 2007, p. 111).
Em suma, o reconhecimento não pode se prender a um vínculo identitário específico de uma comunidade ou religião, e sim à perspectiva de ser um parceiro na interação social, como igual aos demais. O sujeito, antes de tudo, é um parceiro integral na vida social, capaz de interagir com os outros como um par. O modelo proposto por Fraser evita, por exemplo, que possamos entender a identidade cultural como uma essência, valorizando a interação entre grupos, em oposição a um enclausuramento.
Fraser argumenta que a questão do reconhecimento não pode se restringir à eticidade, como parece ser o caso de Taylor. Ela questiona que, em Taylor, o reconhecimento se reduz a um problema de reconhecimento das identidades culturais. Ela defende que sua teoria, por se filiar a um padrão deontológico, permite que as reivindicações por reconhecimento se justifiquem como moralmente vinculantes, sob condições modernas do pluralismo valorativo. Uma teoria da justiça deveria ir além dos padrões de valorização cultural, examinando a estrutura do capitalismo. Ela deve considerar se os mecanismos econômicos impedem a paridade de participação na vida social.
É preciso que uma teoria do reconhecimento não assuma apenas a defesa de uma política cultural das identidades pertencentes a uma comunidade, haja vista que uma luta por reconhecimento mais ampla deve incluir, como vimos, uma “política social da igualdade” (FRASER, 2006, p. 231). Somente integrando reconhecimento com redistribuição é que podemos chegar a um quadro conceitual adequado às demandas de nossa época. A redistribuição e o reconhecimento seriam duas dimensões mutuamente irredutíveis, algo não explicitado por Taylor.
Considerações finais
A tese de Taylor, como vimos, é que a era secular não pode estar restrita à ideia da saída da religião do espaço público (secularidade 1), nem apenas pode significar a diminuição de crenças e práticas religiosas (secularidade 2). Taylor propõe uma nova leitura da era secular (secularidade 3), na qual o pluralismo de crentes e não crentes seria a melhor descrição para um mundo que se seculariza, mas que, ao mesmo tempo, as doutrinas de fé ainda continuam influenciando o modo de vida dos sujeitos, bem como atuando, inclusive, na esfera pública. A secularidade 3 consiste em explicitar novas condições de crenças à luz de um pluralismo, sem reduzir a fé a seu espaço privado (secularidade 1) ou tematizar a secularização apenas enquanto diminuição da crença em Deus (secularidade 2). As religiões significam, em Taylor, mundos de articulações morais de suas identidades, tais quais uma comunidade de pertencimento e de reconhecimento, porque a crença em Deus significa uma articulação daquilo que é essencial para a forma do mundo moral, na melhor descrição de alguém. Para Taylor, portanto, à luz da secularidade 3, é possível propor uma secularidade em que a religião pode ocupar um determinado lugar, compatível com o tempo profano das democracias.
Taylor, apesar de apontar para uma dimensão determinante na secularidade 3, qual seja, os contextos intersubjetivos formadores das identidades coletivas (as religiões, inclusive), não consegue propor uma saída para os dilemas do relativismo cultural, isto é, como fundamentar normas num mundo plural, como Habermas critica. Taylor não explica como seria o procedimento de definição da concepção de bem mais valiosa para uma sociedade caracterizada pelo pluralismo de valores e crenças. A nosso ver, não há, em Taylor, uma resposta satisfatória que mostre como uma determinada visão de bem seria capaz de abrigar o pluralismo de nosso tempo. Como explicita Sonia E. Rodríguez García (2020), Taylor não realiza, nesse sentido, uma exposição detalhada acerca de uma democracia capaz de propor condições de legitimidade, à luz de um pluralismo, no seu conceito de secularidade 3.
A crítica a posturas como a de Taylor é a de que esta legitima a ideia de que todas as nossas valorações são fundamentalmente dependentes de uma tradição cultural determinada. Como, então, estabelecer critérios de julgamento para sociedades pluralistas e diferenciadas, na perspectiva de Taylor? Ou como comparar as diferentes tradições culturais? São indagações a que Taylor não responde, no seu conceito de secularidade 3. Outra crítica que vimos, a partir de Nancy Fraser, é que Taylor, como um teórico essencialmente do reconhecimento, ignora as questões da redistribuição, justamente por centrar suas reflexões no paradigma da vida boa, da eticidade e tradição de um povo. Fraser defende que as teorias do reconhecimento deveriam, ao mesmo tempo, trazer, em seu bojo, a problemática da redistribuição.
A despeito das críticas fundamentais a Taylor, ele abre, entretanto, um campo de possibilidades no que diz respeito a um novo entendimento da era secular, para além das secularidades 1 e 2, como vimos, ao longo deste artigo. Isto é essencial para a investigação da era secular em vários contextos mundiais, como na América Latina, uma vez que as religiões fazem parte das identidades culturais das diversas modernidades.
Reconstructing the Secular Age in Charles Taylor
Abstract: This paper discusses how Charles Taylor reconstructs the secular age. Taylor's thesis is that the secular age can not be restricted to the idea of the exit of religion from the public sphere (secularity 1), nor can it only means the reduction of religious beliefs and practices (secularity 2). Taylor proposes a new reading of the secular age (secularity 3), in which the pluralism of believers and non-believers would be the best description for a world that is secularizing, but at the same time, the doctrines of faith continue to influence people’s lifestyles. Taylor emphasizes that religion is still related to the formation of different identities, as it exercises, at the same time, a perspective of recognition of subjects, even in modern societies. In the final part of the paper, criticisms on Taylor's philosophy are discussed, based on the theoretical proposals of Jürgen Habermas and Nancy Fraser. The methodology consisted of some of Taylor's works (mainly A Secular Age, as the key work of this article), as well as of its interpreters and scholars.
Keywords: Charles Taylor. Secular Age. Religion. Habermas. Nancy Fraser.
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Recebido: 03/05/2021
Aceito: 31/01/2022
[1] Professor Adjunto de Filosofia na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, PB – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0844-6731. Email: julianocordeiro81@gmail.com; julianopesquisa81@gmail.com.