A INTERPRETAÇÃO DO PROSLOGIONPOR KARL BARTH

 

Paulo Ricardo MARTINES[1]

 

    RESUMO : 0 objetivo principal deste texto e apresentar alguns elementos essenciais da interpretação do Proslogion feita par Karl Barth em seu livro S. Anselme, Fides Quaerens Intellectum.La preuve de l'existence de Dieu (trad. franc.). Com Base no "programa teológico de Anselmo, Barth identifica as linhas fundamentais para a leitura dos capitulos 2 a 4 do Proslogion. Tentaremos mostrar a significac;:ao e 0 alcance dessa interpretac;:ao para a historiografia do pensamento anselmiano.

    PALAVRAS- CHAVE: Anselmo; argumento ontológico;existencia;essencia.

 

o objetivo principal deste trabalho[2] e apresentar alguns elementos essenciais da interpreta<;8,odo Proslogion feita por Karl Barth.0 teólogo protestante publica no inicio da decada de 1930 uma obra intitulada S. Anseirne, Fides Quaerens Intellectum. La preuve de l' existence de Dieu[3] A analise minuciosa de Barth limita-se aos peque­ nos capitulos 2 a 4, nos quais Anselmo procurou desenvolver a sua argumenta<;8,o acerca do problema da existencia de Deus.

Esse pequeno conjunto de capitulos do Proslogion passou para a história da filosofia como possuindo a forma e 0 conteudo de urn argumento onto1ógico, denomina­

<;8,0 esta dada por Kant (alias, seu adversario) na Critica da raz8.o pura[4] Esse argu­ mento fez fortuna na história da filosofia. Hegel procura identificar a prova anselmiana com a ideia do perfeito :

 

ela constitui 0 fundamento abstrato, metafisico desse grau (isto e, 0 puro conceito); ela foi des­ coberta em primeiro lugar no cristianismo par Anselmo de Cantuaria. Ela e exposta em seguida

 

por todos os filosófos posteriores, Descartes, Leibniz, Wolff, entretanto, sempre ao lado de outras provas,se bern que ela seja a unica prova verdadeira. (1947, p. 242)

Em linhas gerais, a prova ontologica pressupae a ideia de Deus presente no intelecto, e dai afirma necessariamente a existencia como uma perfeiQao do ser supremo.

Entretanto, devemos fazer duas observaQaes quanta a utilizaQao dessa deno­ minaQao para 0texto do Proslogion.Em primeiro lugar,nao podemos atribuir a An­ selmo nenhum quadro ou esquema conceitual que nao pertenQa ao universo de sua analise. Anselmo e urn pensador do seculo XI, que pertence inteiramente ao universo agostiniano;em termoshistoricos,estamosnosprimordiosdaEscolastica.Emse­ gundo, 0 epiteto prova ou argum en to onto1ógico e empregado com mais rigor quando referido a Descartes, principalmente as suas terceira e quinta Meditaçoes, ao conceber a ideia do perfeito. Exemplo mais evidente ainda pode ser extraido do texto das Pre­ mieres reponses:

 

Mais mon argum ent a ete tel: ce que nous concevons clairement et distin ctement appartenir a 1a nature,ou a J'essence,ou a la forme immuable et vraie de quelquechose,cela peut etre dit ouaffirme a vec verite de cettechose; mais aprBs que nous avons assez soigneusement recherche ce que c'est que Dieu, nous concevons clairement et distin ctement qu 'il appartient a la vraie et immuable naturequ 'il existe;donc alors nous pouvons affiImer avec veritequ 'ilexiste.Oudu m oins laconclusionest legitime.(1967, t. Il, p 534-5)

 

Assim, Descartes afirma que a necessidade da ideia de Deus nao e dada por nenhuma medida subj etiva.

Devemos destacar que 0 estudo de Barth foi 0 primeiro a considerar 0 proprio texto de Anselmo. Todos aqueles que faziam referencia ao argumento, faziam-no por outras vias que as do "Doutor Magnifico".

Devemos ressaltar, ainda, que 0 interesse pela obra de Barth se da, em primeiro lugar,pela importancia que assume na historiografia anselmiana;em segundo,pelo rigor de analise e pelo horizonte de informaQaes que nos fornece. Isso, entretanto, nao nos autoriza a compartilhar todas as conclusaes a que chega 0 insigne critico.

Antes de considerarmos os principais elementos da analise de Barth, convern apresentarmos sucintamente 0 horizonte intelectual de seu pensamento.

o teologo suiQo insere-se numa orientaQao intelectual (religiosa) de uma fe que busca a compreensao : 0 crer individual subjetivo supae 0 credo objetivo. A proposta de Barth e procurar,em todos assuntos relacionados a fe,uma necessidade interior tal como manifestada na revelaQao, ou seja, procurar uma objetividade estritamente teologica.Sua Dogma tica,a grandeobra que empreendeu durante anos,e,nas pa­ lavras de Vignaux:" un essai de tMologie radicalement pure de tout jugem en t philo­ sophique" (1973, p.88). Sua posiQao sobre 0 problema do conhecimento de Deus ma­ nifesta-sede uma forma radical:so temos,diz,uma (mica fonte:a revelaQao judaico­ crista.Esta excluida,portanto,toda e qualquer tentativa de teodiceia.Barth tinha 0

 

interesse de arrancar 0 argumen to onto1ógico do monopolio da filosofia e restitui-lo ao seu verdadeiro lugar: a teologia. A rela<;ao entre razao e fe nao se torna pro­ priamenteurn problema dentro das teologias protestantes. Nestesentido,afirma Gilson : "jJ s 'agit evidemment de soumettre la raison a la [oi ou, plus exactemen t en­ core, d 'interdire a 1a raison de parler d'au tre 1angage que ce1ui de 1a [of' (1949, p.44).

Para Barth,0argumentoontologicoevalidasomentena teologia.0teologo protestante rejeita qualquer prova acerca da existencia de Deus; considera ilegitimas todas as tentativas. 0 que sustenta tal pressuposto de Barth? A tese de que 0 homem e incapaz de alcan<;ar 0 conhecimento de Deus,do verdadeiro Deus.0 homem nao prova Deus. Na sua tentativa de possuir determinado conhecimento especulativo so­ bre Deus,0 homem nao produziria maisdo que faIsos idolos,proje<;oesdoespirito humane que nao teriam nada de comum com 0 Deus que se manifesta na tradi<;ao judaico- crista.Barth (1985)tern presente,nessemomento,parece-nos,uma passa­ gem de Sao Paulo (Romanos 1, 22) sobre os homens que nao souberam homar 0 Deus criador :"Jactando-sede possuir a sabedoria,tornaram-se tolos e trocaram a gloria do Deus incorruptivel por imagens do homem corruptivel".

ParaBarth,aunicaprova humana possivelea provateologica.Dopontode vista da palavra de Deus,ela e legitima, porque nao se distingue da prova que Deus da de si mesmo na revela<;ao. Desse modo, a prova teologica limita-se a repetir so­

letrando essa autodemonstIaQ3.o de Deus (cf. Delhougne, 1979, p.49). Nesse sentido, a unica prova do pensamento ocidental seguidora desse modele e a prova desen­ volvida por Anselmo.

Das considera<;oes feitas ate 0 momento, podemos afirmar que 0 estudo de Barth e importante por urn triplo ponto de vista:

1  Expoe a concep<;ao barthiana do problema da existencia de Deus.

2   Renova a interpreta<;ao do argumento de Anselmo.

3   Constitui,como disse Bouillard (1957,t.I,p. 145),0" discursodo metodo"de Barth.

Destes tres aspectos, interessa-nos apenas e tao-somente °segundo, que apre­ senta as considera<;oes sobre 0 argumento de Anselmo, ficando os demais para 0 interesse dos teólogos. 0 texto de Barth divide-se em duas partes :

a)  a exposi<;ao do programa teologico de Anselmo e

b)  a exposi<;ao da prova da exist encia de Deus.

o nosso objetivo basico limita-se a definir 0 a to do intelligere, pois este e a pe<;a central de toda a interpreta<;ao barthiana. Vamos considerar 0 programa teologico de Anselmo tal como entende Barth, e verificar como 0 argumento unico insere-se neste programa.

Barth esta convencido de que os tres pequenos capitulos do Pros1ogion tern por finalidade provar a existencia de Deus. Cita em sua defesa uma passagem da resposta de Anselmo a Gaunilo : "Julgo ter mostrado que, no livro acima [Proslogion],

eu provei por uma argumentaQao nao infirme, mas suficientemente necessaria, que existe na propria coisa algo tal que nada de maior pode ser pensado "[5] Devemos sub­ linhar a palavra provar (probare),pois, na interpretaQao que Barth faz do vocabulario anselmiano,esteverbapossuira urn sentidomuitoespecifico,distantedequalquer conotaQao logica. 0 provar so podera ser entendido dentro de urn movimento proprio queeaqueledo intelligere (Barth traduz por compreender),que,por suavez,se da no interior da fe.

o desej o de compreender aquilo que se cre nasce do proprio dominio da fe : a procura do conhecimento e imanente a fe. 0 credo ut intelligam, de origem agosti­ niana, foi assim traduzido por Barth : "minha fe, ela mesma enquanto tal, e urn apelo aoconhecimento"(1985,p. 16).A fe,para Anselmo,so pode ser entendida como tal sefor uma feviva(fides viva).Essafecaracteriza-seessencialmente pela presenQa do amoreconsisteemcrer naquiloem que sedevecrer.EmcontraposiQaoa esse tipodefe,existeafemorta(fides m ortua)quenao possui a presenQa doamor,e inoperante, caracterizando-se pela falta de interesse. A fe como condiQao previa a to do estudo teologico parece ser 0 ponto central da primeira parte do livrode Barth.

Quatro aspectos caracterizam a exigencia da anterioridade da fe que se traduz no ato do intelligere : 1) Deus nao e apenas a verdade soberana, mas causa da verdade ( ca usa veritatis), nas palavras de Anselmo "Cremos que Deus e a verdade"[6] 2) a fe e urn movimento da vontade : 0 tendere in deum e uma decisao livre para se harmo­ nizar com 0 criador; 3) 0 homem e imago dei: graQas a isso e capaz de : lembrar, conhecer e amar;e 4) a forma escatologica : 0 conhecimento que adquirimos nesta vida e algo de intermediario entre a fe e a visao beatifica (definiQao de Anselmo pre­ sente na Epistola In carnatione Verbi). Para Barth (1985, p. 18), e precisamente na pro­ cura (quaerere) e na consequente descoberta (in venire) que a inteligencia se ve nos limites inexoraveis da humanidade. Dessa forma, 0 cristao deve distinguir,com uma dolorosa clareza, aquilo que e inteligivel para ele, daquilo que e do proprio Deus.

A fe exige e torna possivel 0 conhecimento que 0 cristao busca. Desse postulado, podemos tirar algumas consequencias para 0 exercicio do trabalho teologico que se­ rao fundamentais para Barth justificar sua interpretaQao.

A fe refere-se de inicio ao credo; dai 0 conhecimento da fe ser continuaQao e explicaQao (nao justificaQao) do credo. 0 cristao que procura a inteligencia da fe nao coloca em duvida qualquer proposiQao referente ao credo;apresenta, por outro lado, a questaodo" como"pode ocorrer,por exemplo,a negaQaodedeterminada propo­ siQao do credo. E tarefa do teologo, diz Barth (p.25), procurar humildemente, enquanto puder, a razao do " como " determinado artigo de fe apresenta-se com tal ordem de inteligibilidade, pois "toda continuaQao, toda explicaQao, toda meditaQao do credo afirmada pela fe nao pode ser mais do que urn comentario do credo". Essa procura da inteligencia da fe aponta urn limite : a possibilidade de compreender racionalmente que a substancia suprema e incompreensivel; ultrapassar esse limite e tarefa apenas do insensato.

Aspecto fundamental nas reflexoes de Barth sobre 0 intellectus fidei (inteligencia da fe) e 0 papel assumido pela graya divina : 0 homem na sua condiyao atual (de miseravel e pecador) nao pode alcanyar a ratio veritatis (razao da verdade). Essa e muitoampla para ele,pois,pormaisqueseesforce,seu pensamento(comofala)e insuficiente para atingir a perfeiyao divina; por isso "0 senhor dispensara os dons de sua graya"(p.28).0 homem pode atingir urn certo progresso teologico,determinado pela sabedoria de Deus.Para Anselmo,0 verdadeiroconhecimento,diz Barth,e al­ canyado pela graya proveniente de Deus. E neste sentido que deve ser entendido 0 papel da prece do Proslogion : uma invocayaO a Deus.

Nessa prece, Anselmo procura caracterizar (numa linguagem de rara beleza poe­ tical 0 estado do homem que cre e deseja ver 0 Deus de sua Fe, mas esta distanciado deste pelo pecado. 0 homem pertencente a humanidade adamica faz urn apelo para Deusensinarao seucorayaocomoeonde procura-lo.DizBarth:"Toda verdadeira procura de Deus (e isto tambem e uma graya) nao serviria para nada se Deus nao se mostrasse,ou,emoutras palavras,0verdadeiroconhecimentonaosetornariaurn acontecimento " (p.35).

Definida a natureza da fe e,em certa medida,os limites do trabalho teologico, podemos apresentar uma primeira definiyao do ato do in telligere : "a capacidade de repensar aquilo que ja foi dito no credo " (p.36). 0 intelligere deve ser entendido no seu sentido etimologico :0 de in tus + legere:ler dentro. Diante das Escrituras,deve­ mos "penetrar humanamente naquilo que nos foi dado divinamente" (p.37). 0 teologo suiyo sugere que tal movimento nao deve invocar urn artigo de fe - alcanyado pela simples leitura - mas ultrapassar essa leitura, reconstruir "tabula rasa 0 credo, com elementosnovos"(p.39), que, na perspectivadeAnselmo,esolaratione(somente com a razao). Essa perspectiva de analise, se assim podemos chamar,e utilizada ate para as questoes da Trindade,EncarnayaO e da Redenyao;0 que,a partir do seculo XIII, certamente seria impossivel para urn teologo.

A expressao sola ratione notabilizou Anselmo,fazendo muitos 0considerarem urn racionalista.Masnaoe neste sentidoquedevemosentende-lo.Uma passagem muito esclarecedora do Monologion[7] da a medida exata do conceito : ratio e aquilo que pertence ao proprio homem, da mesma forma que afirmamos que 0 homem e urn ser racional :e,com mais precisao,a faculdade de formar julgamentos,de distin­ guir 0 verdadeiro do falso (de afirmar que aquilo que e, e; e aquilo que nao e, nao e). A ratio não pretende deduzir verdades reveladas de premissas humanas. Toda ratio pressupõe autoridade. Barth ainda identifica em Anselmo (embora reconheça que

 

o "Doutor Magnifico " nunca utilizou tais termos) tres tipos de "razao" : a razBo noetica, que e a faculdade humana do conhecimento,como vimos acima; a raZBO onto1ógica, que e a ratio interior ao objetode fe;e a raZBO daverdade,quee identica ao verba divino. Esta e pressuposta para a existencia das duas primeiras.

Admitindo os elementos fornecidos ate aqui por Barth - a ideia de uma fe viva, os limites do trabalho teologico e 0 uso da expressao sola ratione -, podemos per­ guntar em que medida a inteligencia da fe e verdadeiramente progressao do menos conhecido para 0 mais conhecido. Para 0 teologo suiQo, nao h8. dlivida de que a re­ flexao teologica instaura urn acrescimo aquilo ja admitido pela fe, principalmente ao fazer aparecer (pelo do movimento do in telligere) a necessidade das razoes dos artigos de fe. Trata-se, isto sim, de encontrar a necessidade que e inerente a fe. Este movi­ mento do in telligere assemelha-se a resoluQao de uma equaQao (que e urn artigo de fe) a partir de outros artigos de fe. Podemos exemplificar esquematicamente : para equacionarurncertoartigodefex(negadooucolocadoemdlivida),recorre-sea outros artigos de fe (a, b, c, d... ). 0 exemplo de Barth e aquele do Cur Deus Homo.

o objetivo dessa obra e mostrar a necessidade interna da encarnaQao e da morte redentora do Cristo ( nosso x a equacionar) a partir de outros artigos de fe : a existencia de urn plano divino para 0genero humano,0 pecado, a incapacidade do homem sal­ var-se por si mesmo. Esses elementos (a, b, c) perrnitem deduzir 0 x, que e a encarnaQao redentora. 0 objetivo, assim, e apresentar certa inteligibilidade que e propria do artigo de fe, a principio questionado.

Esse esquema do Cur Deus Hom o sera aplicado na analise que Barth fara do argumento anselmiano : 0que se procura nos capitulos iniciais do Proslogion e mostrar a necessidade interna de urn artigo de fe : a existencia de Deus a partir de outros artigos.

A passagem do Proslogion em que Anselmo apresenta 0 argumento linico e esta:

 

 

Portanto Senhor, tu que concedes a inteligencia da fe, conceda-me entender, na medida

em que julgues conveniente, que es como cremos e que es 0que cremos. Ora, cremos que tu es algo tal que nao pode pensar-se nada de maior. (Prosiogion,cap.2)[8]

 

Apenas para mencionar as articulaQoes logicas que se seguem a apariQao da figura do insensato (que nega a existencia de Deus), apresentamos resumidamente o raciocinio de Anselmo que conclui pela necessidade da existencia de Deus fora da inteligencia, isto e, na realidade :

1 0 insensato tern na inteligencia a expressao "Algo tal que nao pode pensar-se nada de maior".

 

 

2   Este "Algo tal que nao pode pensar-se nada de maior" nao pode existir so­ mente na inteligencia.Se isso ocorresse,seria possivel pensar-se tambem na coisa, o que e maior.

3  A negação do insensato e absurda e contraditória.

4   Portanto, Deus existe na inteligência e na coisa.

 

Ora, podemos perguntar com quais artigos de fe Anselmo procurara constituir a inteligibilidade da equação da qual resulta verdadeira a afirmac;ao"Deusexiste". Em primeiro lugar, 0 nome de Deu,"Algo tal que não pode pensar-se nada de maior", e urn artigo de fe, revelado, mesmo que nao se encontre nas Escrituras. Trata-se me­ nos de urn nome do que uma designação, uma definição puramente conceitual, nao exprimindo a essencia de Deus. E uma designação puramente negativa; nas palavras de Barth,"urnconceito puramente noetico".Essa designação faz referencia apenas a certa regra de pensamento para alem da qual 0 homem nao pode aventurar-se. Se­ gundo 0 esquema barthiano, chamemos essa primeira grandeza de a.

Ao lado dessa grandeza fundamental M outra : a essen cia de Deus (chamemos de b), que e indispensavel para determinar a existencia de Deus. E com 0 auxilio de tal grandeza,diz Barth,que Anselmo podera afirmar que a existencia em questao (x) nao e urn caso particular da existencia em geral (como compreendeu Gaunilo,0 seu primeiro contraditor), mas a existencia por excelencia. Sao palavras de Barth:"a exis­ tencia de Deus e, propriamente falando, a existencia unica e primeira, sobre a qual sao fundadas todas as outras existencias " (1985, p.45). Temos ate aqui que as gran­ dezasae bsaofundamentaisparaaafirmac;aodaexistencia necessariadeDeus. Masexist em outras grandezas (c,d,e...) emprestadas tambem do credo,mas Barth nao as indica,deixando assimseu raciocinio inconcluso neste aspecto.

Esse movimento da inteligencia que percorre os divers os artigos do credo, con­ frontando-os para tomar inteligivel outro artigo de fe, e, para Barth, 0 sinal conclusivo deque0argumentoanselmianomove-sedentrodoterrenoda teologia.0teólogo protestante identificou 0 intellectus fidei como 0 metoda de Anselmo.

oato de provar,ja mencionando,pode ser definido com mais precisao agora: provar nao significa colocar em questao deterrninado artigo do credo, mas apresenta-lo relacionado com outros artigos, mostrando argumentativamente aquilo que pela falta de fe e negado. A prova nao mostra que tal artigo e verdadeiro, mas sim, como ele 0 e.

Para Barth,Anselmo nao escreveu como u rn insensato,mas como u rn católico falandopara urn insensato :"everdadeiroque Deus existe,que Murn serem tres pessoas... 0 que Anselmo discute e a questao de saber como isso e verdadeiro. E quandoapresenta a questaodocomo,queseda porurn artigodefe,eleresponde apoiando -se na verdade,admitida a priori,de todososoutrosartigos"(p.55).Barth acrescenta ainda que Anselmo nao saiu de seu " campo", nao utilizou as armas do insensato. No De Casu Diaboli,obra que pertence a urn conjunto de tratados relacio­ nados ao estudo da Sagrada Escritura, 0 "Doutor Magnifico " comenta :"Nem sempre

e facil responder com sabedoria aquele que procura com incipiencia"[9] A oposi9ao apresentada nesta passageme sabedoria/in cipien cia :Anselmo procura trazer0 in­ sensato para 0 campo da sabedoria e da racionalidade; seu esforço e aquele de urn cristao que procura compreender aquilo que ja esta afirmado pela fe.

Como conclusao, gostariamos de fazer duas observaçoes a essa leitura de Barth e,posteriormente,uma obje9ao em formade pergunta.

A primeira e mais significativa contribui9ao de Barth esta na identifica9ao e natureza do "nome " que aparece no inicio do capitulo 2. 0 "nome" de Deus ("Algo tal que nao pode pensar-se nada de maior" ) e de conteudo puramente noetico e ne­ gativo; nao diz nada sobre a essencia de Deus; mas, antes, assinala uma regra de pensamento para alem da qual nao podemos formular abolutamente nada,uma hi­ pótese sequer. 0 que temos e urn problema apresentado em novas bases, como diz Paliard :"Dieu ne ressemble a rien, n 'appartien t a aucun classem en t intellectuel.C'est tout au trem en t qu 'il fa ut enten dre l 'idee de Dieu: non l'essence s 'offrant au regard de l 'h omm e m ais la designa tion de l 'essence: aliquid quo nihil maius cogitari non potest" (1946, p.55). Se nao for muito arriscado, podemos afirmar que Barth foi 0 primeiro a romper com a tradi9ao de outorgar ao argumento de Anselmo 0 epiteto de onto1ógico. Essa concep9ao distancia-se da tese essencialista de Gilson (1949), segundo a qual o nome revelado de Deus exprime uma essencia, urn conteudo de pensamento; e a analise desse conteudo basta por si própria para demonstrar a existencia de Deus.

A segunda observa9ao e quanta a explicita9ao do raciocinio per absurdum de Anselmo, enfatizando que nao estamos diante de urn raciocinio analitico ou sintetico. Nao existe 0 menor traço de dedu9ao. Pela analise dos capitulos 2-4, Barth deixa claro que 0"metodo"de Anselmo,amparado no intellectus fidei,e apenas 0 de for­ necer uma releitura dos artigos desconhecidos pelos artigos conhecidos. Em momen­ to algum Barth deixou ressaltar: a orienta9ao do pensamento de Anselmo e puramente teo1ógica; do começo ao fim, a analise do Proslogion se da no interior da fe. Sofia Vanni-Rovighi (1947, p.49) acredita que essa perspectiva de Barth limita-se mais aqui- 10 que 0 teólogo protestante considera ser próprio do trabalho teo1ógico do que a própria inten9ao de Anselmo. 0 "Doutor Magnifico ", segundo a interprete italiana, ultrapassa a leitura e a simples considera9ao de relacionar os artigos de fe : procura entende-los num movimento que e especulativo.

A obje9ao aponta para a atitude de Anselmo diante da nega9ao do insensato. Como este esta desprovido de qualquer elemento de fe, e tarefa va utilizar a Sagrada Escritura para apontar a nao-validade da sua afirma9ao. A argumenta9ao de Anselmo pauta-se,entao,por uma estrutura9ao que tenha pressupostos minimos de raciona­ lidade, que tenha urn sentido independente da presen9a ou ausencia da fe. Anselmo procura trazer (nunca abandonando 0 terreno da fe) 0 insensato para 0 terreno da racionalidade e da sabedoria,que,neste caso,nada.mais e do que aceitar a impos­ sibilidade da nega9ao da existencia de Deus. Se este pressuposto fosse legitimo, nao teriamosalemdo sentido teo1ógico um sentido filosófico,quesecaracterizaria pela forma de apresentar e resolver os problemas? Para Henri Bouillard (1 959, p.200),a prova anselmiana, na medida em que pertence ao projeto Fides Quaerens In tellectum, naosevolta apenas para 0 interiorda fe,mas tambem para 0exterior.0quepo de ser verificado pelo fato de ela possuir uma estrutura lógica,e dai ser inteligivel para

o insensato. A intenQao de Anselmo, segundo 0 prólogo do Proslogion, e provar que Deus existe, e nao apenas mostrar como isso e verdadeiro.

 

MARTINES, P. R. Karl Barth's interpretation of the Proslogion. TransiFormlA9ao (Sao Pa ulo),

v. 19, p.231 -239, 1996.

 

    ABSTRACT:Thechief aimof this paper isto present someessentialelements ofthe interpretationto the Proslogion carried out by Karl Bathrin his book S. Anselme, Fides Quaerens Intellectum. La preuve de J 'existence de Dieu (French transl.). Taking Anselm 's "theological programme" as a point of depar­ ture, Barth indentifies the centrallines for the reading of the chapters 2 - 4 of the Proslogion. We shall attempt to pointout boththe significanceandthe a chievement of that interpretationas acontribution tothe historiografy of the anselmianthought.

 

    KEYWORDS: Anselm; the ontological argument; existence; essence.

 

Referencias bibliogrcificas

 

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DELHOUGNE, H. L' argument ontologique est-il philosophique ou tMologique? Examen cri­ tique de la position de Barth. Revue des Sciences Religieuses, p.42-63, 1979.

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SANCTUS ANSELMI Cantuariensis Archiepiscopi. Opera Omnia ad fidem codicum recensuit

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VANNI-ROVIGHI,S.S. Anselmo e la filosofia del sec. XI.Milano :FratelliBocca,1947. VIGNAUX,P.Saint Anselme,Barthetau-dela.In :Les qua tres fleuves. Paris :Seuil,1973.



[1]

Mestre em Filosofia - Pontificia Universidade Cat6lica - Sao Paulo - SP.

[2] Comunicaao apresentada na VI Anpof (Aguas de Lind6ia - 1994).

 

[3] Utilizamos a edic;:ao francesa publicada pela editora Labor et Fides,1985 - traduc;:ao de Jean Correze.Como nao foi possivel obter 0 original alemao,conferimos sempre essa traduc;:ao com a inglesa,de 1. W. Robertson,Cleve­ land, The World Publishing, 1960.

 

[4] "Dialetica transcendental,cap. III, 4' sec;:ao,da obra Critica da raziio pura,de 1.Kant.

 

[5] "Puto quia mostra ui me non infirma sed sa tis necessaria argumentatione probasse in praefa to libello re ipsa existere aliquid quo maius cogitari non possit". "Contra Gaunilonem", in S. Anselmi Cantuariensis Archiepiscopi, 1946- 1951, cap.l0, p. 138, 28-30. (doravante SA).

[6] "De Veritate", in SA, 1946-1951, cap.I, p. 176, 1.

 

[7] "Monologion", in : S. A.,1946- 1951, cap.68, p.78, 21-3

 

[8]"Ergo,domine,qui das fidei intellectum,da mihiut quantum scis expedire in telligam,quia es sicut credim us,et hoc es quod credim us. Et quidem credim us te esse aliquid quo nihil maius cogitari possit", na obra Opera Omnia (SA, 1946- 1951, p.l0l, 1- 3).

 

[9] "Quippe non semper facile est insipien ter quaeren ti sapienter respondere" ("De Casu Diaboli", in : SA, 1946-1951, cap.2B, p.275, 4-5).