SOBRE 0 DE MAGISTRO DE SANTO AGOSTINHO

 

Joao Azevedo ABREU[1]

 

         RESUMO:Este artigo esta dividido em duas partes.Primeiro,mostramos osdiferentes papeis das citac;:oes presentes no De Magistro, de Santo Agostinho. Depois,comparamos a estrutura em que 0 texto esta disposto com a teoria que e ai desenvolvida. A partir de tal comparac;:ao, podemos ver que, nesse texto, uma teoria da linguagem nao e filosoficamente fundamental e que 0 diaIogo nao e a melhor forma de alcanc;:ar a verdade.

    PALAVRAS- CHAVE: Filosofia medieval; filosofia da linguagem; dialogo; aprendizado ; ensinamento.

o texto De Magistro, obra agostiniana de 389, e constituido basicamente por urn dialogo cujos "personagens " sao Agostinho e Adeodato. Pretendemos apresentar neste trabalho algumas observac;oes sobre as citac;oes presentes nesse texto e uma pequena analise de como 0 conteudo e a forma do dialogo estao relacionados. Urn entendimento mais preciso desta proposta talvez seja possivel apenas na medida em que estiver sendo levada a cabo. Por isso, trataremos logo de colocar 0 leitor diante do trabalho propriamente dito.

 

1

 

Mas, antes, vejamos qual e a teoria geral apresentada ao longo dos capitulos do De Magistro,segundo urn arrolamentodos principais topicosque,grossa modo, constituem 0 conteudo do dialogo.

NoCapitulo I[2]Adeodato e Agostinho concordarn que,quando se fala, preten­ de-se ensinar ou recordar.

 

Enquanto pensamos as palavras, tambem estamos falando mentalmente.

Alem disso, a mem6ria, ao agitar as palavras, traz a mente as coisas das quais as palavras sao sinais.

Palavras sao sempre sinais e, conforme 0 Capitulo II, urn sinal nao pode ser sinal sem significar algo. Por isso, suspende-se a questao do significado da palavra nihil (" nada", em latim) em vista de sua dificuldade.

E js. neste capitulo que Agostinho pede a Adeodato que nao explique uma pa­ lavra por meio de outras,mas que mostre as coisas das quais as palavras sao sinais.

Porem e no Capitulo III que se afirma que uma palavra s6 pode ser explicada por outras palavras, mas aquilo de que uma palavra e sinal pode ser demonstrado pOI meio de sinais que nao sao palavras. Se alguem nos pergunta 0 que e uma coisa e se j s. estamos fazendo essa coisa, e preciso que utilizemos urn sinal para que a pessoa saiba que the estamos respondendo. Mas se nao estamos fazendo ainda essa coisa, s6 e preciso faze-Ia para mostrar 0 que ela seja.

Aceitando 0 ultimo t6pico do Capitulo III,temos, no IV:as coisas que sao sinais podem ser mostradas por meio de outros sinais. Mas as coisas que nao sao sinais podem se mostrar ou com gestos ou com algum sinal.

Uma vez que palavra e tudo aquilo que e proferido com a voz e que tern algum significado,0nometambem e palavra.

Quando dizemos " verbum" (palavra), queremos tambem significar urn nome.

Portanto, a palavra e urn sinal do nome.

Todo nome e palavra,mas nem toda palavra e nome.

Hs. sinais que significam nao s6 outras coisas mas tambem a si mesmos. Por exemplo,as palavras" verbum "(palavra) e"nome".

De acordo com os capitulos V e VI, "nome" e "palavra" sao sinais reciprocos, pois quando dizemos"nome "e"palavra",estamos dizendo dois nomes,mas,tam­ bern,duas palavras.

Naos6 os nomes sao nomes mas tambem quaisquer outras palavras 0 sao, por­ que mesmo as conjunQoes e os verbos sao nomes na medida em que nomeiam algo. Assim,to donome e palavra e,toda palavra,nome.

No resumode Adeodato,que forma 0 Capitulo VII,sistematizando que,dos si­ nais que se significam reciprocamente, alguns nao tern 0 mesmo valor (como sinal e palavra - aquele abarca maiscoisasdoqueesta),outros tern 0mesmo valor (nome e palavra) e outros sao identicos (0 termo grego " 6noma" e o latino "nomen").

Deacordocom0CapituloVIII, "homem",comosigno,enome ;comocoisa significada,animal racional, mortal. Urn homem qualquer,entao, nao e "homem", se por esta palavra entendemos meramente 0 signo.

Vemos no Capitulo IX que, embora as coisas que existem graQas a outras coisas sejam necessariamente de valor menor que as coisas pelas quais outras existem, nem sempre urn sinal e de valor menor que 0 da coisa significada, por exemplo," coen um " (lamaQal). Mas, conforme a regra, 0 conhecimento do lamaQal, pelo qual 0 signo existe, e superior ao pr6prio signo.

 

Adeodato volta aWls, no Capitulo X, acerca do mostrar coisas com sinais. Depois de uma contestac;ao de Agostinho, conclui-se que nada se pode ensinar sem sinais. Em tal momento, encerra-se 0 dialogo propriamente dito e Agostinho passa a dis­ correr sozinho.

Depois de constatar que a inteligencia do interlocutor po de ser suficiente para que Ihe mostremos sem sinal algumas coisas, Agostinho afirma que Ihe "vern a mente " que M muitas coisas que podem ser mostradas sem sinal - por exemplo, Deus e todas as coisas da natureza, que se mostram por si mesmas.

Aprende-se nao pela palavra, mas pelo significado, que se da apenas depois que se tern a percepC;ao da coisa. A palavra, por si s6, apenas nos desperta para que procuremos as coisas.

No Capitulo XI,podemos ver que, se sabemos 0 significado de uma palavra, nao e porque ela no-lo ensinou, ela apenas 0 recorda a n6s. Se nao 0 sabemos, apenas somos incitados pela palavra a procura-lo.

Se Isaias disse "se nao crerdes, nao entendereis", e porque M uma diferenc;a entre crer e entender.

Quando compreendemos uma coisa, nao e por meio das palavras que 0 fazemos, maspelaverdadeensinada porCristo,aqualserevelamaisoumenosaohomem conforme a sua boa ou rna vontade.

Agostinho continua, no Capitulo XII : "Cristo e a verdade que ensina interior­ mente ".

Nao e a palavra que nos ensina algo, mas os sentidos do corpo (quanto as coisas sensiveis) ou a mente (quanto as coisas inteligiveis).

Quem,a respeitodascoisas inteligiveis,mudadeopiniaoa medida queein­ terrogado e arguido, fa-lo porque "nao pode consultar sobre todas as coisas a sua luz interior".

NoCapitulo XIII,le-se que,aindacom respeito ascoisas inteligiveis,nao cabe aspalavrasnemsequermanifestar0pensamentodequemfala,hajavistaqueas palavras de quem fala a verdade que conhece podem ser iguais as daquele que fala algo do que nao sabe se e ou nao verdade ou tambem as daquele que mente.

Tambemcom respeitoascoisas inteligiveis,0Capitulo XIVmostraqueainda que possa ocorrer que aquele que ouve,ao conhecer ja as coisas que ouve,pense que aquele que fala tenha pensado no seu significado,nem por isso se tera obtido a ver­ dade por aprendizado.

o discipulo aprende quando reflete, segundo sua vontade interior, sobre as pa­ lavras do mestre,e nao assim que 0mestre professa sua disciplina.

QuandoessareflexaoesimultaneaaexposiC;aodomestre,pensa-sequese aprendeu pelo mestre.Mas 0mestre e urn mero admoestador.

S6 M urn Mestre : 0 que esta no ceu.

A vida bem-aventurada e amar e conhecer a Deus, e isto nao e possivel pelo mundo exterior.

2

 

Ainda antes de analisarmos a estrutura do dialogo,cabem aqui algumas obser­ vaQoes acerca da utilizaQao que Agostinho faz das citaQoes de alguns autores e, prin­ cipalmente, de passagens da Biblia. A nossa ideia e a de que as citaQoes nem sempre sao meramente ilustrativas - elas tern urn papel por vezes fundamental para 0 enca­ deamento argumentativo do debate.

Na passagem em que,no Capitulo V,0 apostolo Paulo e citado (trecho extraido de II Corintios 1, 19), "Nao havia em Cristo 0 sim e 0 nao, mas somente havia nele 0 sim",h8 apenas a utilizaQaode urn recurso,por parte de Agostinho,para mostrar a Adeodato que tanto os "nomes " gramaticais quanto as conjunQoes e os verbos (como o" est",traduzido do latim por"sim") sao todos nomes, na medida em que nomeiam algo. No caso, 0 recurso e tao persuasivo que Adeodato acaba nao so aceitando 0 argumento de apelo aautoridade de Sao Paulo, mas tambem acaba pedindo mais auto­ ridades : "rogo-te que procures algum daqueles em quem se reconhece maxima au­ toridade na arte da palavra, para demonstrar 0 que desejas" (Capitulo V, p.303).

Ha,no Capitulo IX,uma citaQao de Persio :"Sed stupet hie vitia"("Mas este se admira do vicio ") (a partir da Sa tira, III, 32), a qual, depois de utilizada por Agostinho na explicaQao de que 0 conhecimento do nome do vicio e muito inferior ao conheci­ mentodo vicio,serve para queAdeodato,reutilizando0nomede Persio,atirme,a tim de conte star 0 que 0 interlocutor acabara de dizer:

 

o proprio Persio, pois a todas as penas que a crueldade dos tiranos excogitou ou a cabec;:a fez sofrer, antep6e unicamente aquela com que sao atormentados os homens, quando obrigados a reconhecerem os vicios que nao conseguem evitar. (Capitulo IX, p.3 14)

 

A citaQao (Capitulo XI,p.319) de Isaias,que se faz presente tambem no famoso Sermao 43, do proprio Agostinho,funciona aqui como argumento.Assim,segundo Agostinho,se nao houvesse diferenQa entre crenQa e conhecimento, Isaias nao teria dito "Se nao crerdes, nao entendereis" (Isaias 7, 9).

Por fim,h8 aquela que talvez seja a citaQao mais importante do De Magistro,a que fecha a ultima e longa fala de Agostinho, e que,como veremos a serguir, explica muito da estrutura do dialogo como urn todo. Diz Agostinho :

 

nao lhes atribuas [as paJavras] importancia maior do que e necessario, para que nao apenas se creia, mas tambem se comece a compreender com quanta verdade esta escrito nos livros sagrados que nao se chame a ninguem de mestre na terra, pois 0 verdadeiro e linico Mestre de todos esta no ceu.

 

A referencia, implicita ai no Capitulo XIV, e a Mateus 23, 8- 10.

Outro recurso discursivo de que Agostinho lanQa mao e 0 uso das palavras pre­ sentes na linguagem comum. Se e que se pode falar num esboQode filosotia da lin­ guagem nos primeiros capitulos doDe Magistro(naverdade,entreoutrascoisas, Agostinhodira,no ultimocapitulo,que"sobre a utilidadedas palavras...falaremos ... em outra parte" (Capitulo XIV), e nao no presente dialogo), 0 tipo de recurso ao discurso comum nos "remete" a filosofia da linguagem dos ultimos seculos e, a partir disso, note-se que, ao menos desde a semiotica de Peirce (1839- 1914), nao so palavras e gestos sao tornados como signos, como tamMm 0 devem ser as aQoes, como 0 caminhar,0escrever etc.,as quais Adeodato e Agostinho consideram nao sendo si­ nais (no inicio - capitulos II e IV do De Magistro - tal distinQao chega a constituir prova de que ha coisas que podem ser mostradas sem signos, ponto de vista que vai ser alterado no decorrer do dialogo).

A linguagem,em seu sentido corriqueiro,e utilizada para exemplificar a teoria, como quando Agostinho, dizendo que a palavra se refere a percussao do ouvido, en­ quanto 0 nome remete ao conhe cim ento do espiri to, complementa :"por isso dizemos muito bern,quando falamos qual e 0'nome 'desta coisa desejando grava-la na me­ moria e nao dizemos, ao contrario, 'palavra' " (Capitulo VIII, p.308).

E,tal como alguns filosofos analiticos do seculo XX,0 senso comum,por outro lado,e,em Agostinho, alvo dos ataques da teoria :argumentando que tanto 0 ate de apontar 0 dedo quanta 0 de dizer "ecce" (eis) nada rnais sao do que 0 ate de indicar as coisas, Agostinho critica:"e costumamos acompanhar este adverbio tambem com o dedo apontado,como se nao bastasse urn sodessesdois sinais para indicaI"(Ca­ pitulo X, p.318).

 

3

 

Vejamos agora como se estrutura 0 dialogo De Magistro.Sao duas grandes par­ tes. A primeira, que constitui urn dialogo propriamente dito, se estende do inicio do texto ate a metade do Capitulo X. A segunda, que compreende desde a segunda metade do Capitulo X ate 0 final do dialogo, e praticamente urn monologo de Agostinho.

Ha, na primeira parte, uma coincidencia entre a forma do texto e a teoria que ai se procura desenvolver. Mais exatamente,0fato de esta primeira parte constituir urn dialogo tern sua razao de ser ate mesmo na concepQao que os dois "personagens " em questao tern da funQao da fala. Ja no primeiro capitulo,0quese destaca eque 0 falarterncomo finalidade ensinar ou recordar.

Quanto a finalidade de ensinar, as falas da primeira parte VaG levando-a mesmo a cabo. Pode-se dizer que tanto Agostinho quanto Adeodato procuram ensinar e aprender ao longo do mutuo inquirir. De fato, Agostinho pode ser considerado 0" con­ dutor" do dialogo. Sao quase sempre suas as hipoteses que VaG orientando 0 debate. Mas nao se pode negar que ele tambem "aprenda" algo. Pode-se perceber isto logo no inicio do Capitulo VIII,quando Agostinho " confessa" que a organizaQao e sintese que Adeodato executara no capitulo anterior fez que as ideias que haviam sido de­ batidas ficassem mais claras para ele, Agostinho. Mais urn exemplodissoaparece na segunda fala de Agostinho no Capitulo IX, quando extrai a conclusao de que nem todas as coisas tern valor superior aos seus sinais a partir de uma reflexao de Adeo­ dato, a qual consistiu em mostrar que nao se atribui a palavra " coenum" (lamac;al) 0 mesmo6dioquea coisaqueeladesigna.Essa reflexaode Adeodatoseantepunha por sua vez a primeira fala de Agostinho no capitulo em questao.

Ja 0 cumprimento, por parte das falas do dialogo, da finalidade de recordar pode ser visto em dois exemplos. 0 primeiro e constituido pelas passagens biblicas as quais ja nos referimos.Correspondendo ao segundo exemplo, ha urn capitulo inteiro,0 VII, que e uma sintese feita por Adeodato dos seis capitulos anteriores. Em ambos os casos, temos nao meras recordac;oes mas, como ja vimos, passagens muito impor­ tantes para 0 desenrolar do dialogo. De urn lado, as passagens (da Biblia e de outros autores) que servem ate mesmo como recursos argumentativos. De outro, a recapi­ tulac;ao do Capitulo VII,responsavel por urn dos momentos em que 0 pr6prio Agos­ tinho se confessa mais bern esclarecido.

o carater dial6gico dessa primeira parte nao compreende uma exposic;ao, vamos dizer assim,doutrinaria,por parte de urn dos debatedores ao outro.E isto se da nao s6porquecada urn dosdois personagens tern papel ativo naconstruc;aoda teoria, como vimos ha dois paragrafos, mas tambem exatamente porque 0 que ha ai e uma tal constru<;:aode teoria.Hacomoque uma"ordem das razoes ",em razaoda qual, por exemplo, algumas questoes duvidosas vaG sendo deixadas de lado em certos mo­ mentos do debate, por nao serem passiveis de resoluc;ao de acordo com os dados ja entao assegurados.Tal e0caso da palavra nihil,presente numa citac;ao da Eneida, de Virgilio,no inicio doCapitulo II.Ainda neste mesmo capitulo,0 problema da de­ finic; ao do significado dessa palavra,por sua grande dificuldade,e deixado de lado e vaipermanecersemsoluc;aonodialogocomourn todo,mesmoporquea segunda parte do texto muda em muito,comoveremos, 0rumoda discussao.Isto tambem acontecera com 0 que se diz no Capitulo IX, quando se deixa em suspenso se 0 conhe­ cimentodo sinal e superior ao conhecimento da coisa,uma vez que,por urn lado,0 conhecimentodosinal"vicio "emelhor doqueconhecer0vicio,mas,poroutro,0 conhecimento do sinal "virtude " nao pode ser tornado como melhor do que conhecer a virtude.

Outro aspecto que ressalta 0 carater dial6gico dessa parte do texto e que chega aacontecerde urn ponto,queeduvidoso para urn dosdebatedores,seraceitopor este mesmo debatedor, a fim de que a discussao possa prosseguir. Urn exemplo disso setern noCapitulo IX,quando Adeodato,mesmoduvidandoque tudo 0queexiste grac; as a uma outra coisa seja inferior aquilo pelo qual existe,"suspende " a duvida e permite que Agostinho continue construindo a sua analise.

Mas ha uma demonstrac;ao ainda maior do fato de essa parte do texto ser for­ mada essencialmente por urn dialogo - 0 que sera importante para a compreensao do lugar que esta mesma parte ocupa no texto como urn todo. E tal demonstrac;ao se tern quando os personagens chegam a mudar uma opiniao que ate entao ambos os debated ores haviam tornadocomo certa. Pr6ximo a metade do Capitulo X,quando o dialogo propriamente dito esta quase por terminar, Agostinho conclui, com 0 mesmo endossode Adeodato,e depois de alguma reflexao,que nada se pode ensinar sem sinais. Ate entao, era de opiniao comum que havia urn certo tipo de a9ao que poderia ser mostrado sem sinais.

Ha,alem daquela,uma nova mudan9a dessa opiniao sobre a possibilidadeou nao da demonstra9ao de algo sem 0 usa de sinais, mudan9a que marca a transi9ao desse dialogo de fato para a parte mais mono16gica.E a partir da afirma9aode que

omostraralgonaodependetantodecomosequermostraressealgo,quantoda inteligencia daquele a quem se mostra a coisa, afirma9ao presente nos ultimos mo­ mentos em que se intercalam as falas de Agostinho e Adeodato ; e a partir disso, diziamos,queAgostinhoexpoe toda uma teoriaemqueopoe0conhecimentopor palavras ao conhecimento por intermedio do mestre interior ; teoria essa que nao s6 altera a maneira como se pode ver a primeira parte do texto,como tambem, de certo modo,poeem questao a propria razao de ser daquele dialogo inicial.

osaldofinalqueessa parte monologica do texto nos deixa,maisdoqueuma reformula9ao de uma teoria dos sinais cuja tentativa inicial acabara se revelando urn tanto inconsequente, e uma posi9ao critica em rela9ao ao papel da palavra ou, melhor dizendo, uma teoria da impotencia da palavra. Mesmo reconhecendo que a palavra tern sua importancia, 0 De Magistro nao e 0 espa90 para se tratar disso. Ao assim afirmarnofinaldesuaexposi9ao,janoCapituloXIV,Agostinhoacabamostrando que uma teoria propriamente dita da linguagem nao e 0 que se tern no saldo final.

o texto culmina na afirma9ao da linguagem como insuficiente para expressar as verdadesdascoisas,uma vezque,segundosobretudoosCapitulos XIIIe XIV,a respeito das coisas inteligiveis, sempre que se pensa que se esta aprendendo algo por interm8dio das palavras de urn outro, na verdade 0 que se esta fazendo e analisar coma sua verdadeinterior e reconhecendo em si a opiniaoem questao,para a for­ ma9aodaqualaverdadenaofoiaprendida,masjaestava presenteinteriormente naquele que se acha " aprendendo" e foi, no maximo, suscitada pelas palavras daquele que se acha "ensinando".

Diante disso tudo,com que olhos se pode ler aquela primeira parte do texto ou, colocando a questao de maneira mais brusca, para que serviu toda aquela tentativa de formula9ao de uma teoria dos sinais?

Nao e dificil ver,em algumas das falas de Agostinho,alguns indicios de como interpretar aquele dialogo. E esses indicios acabam,diretamente ou nao,corroboran­ do a ideia de impossibilidade de fazer-se urn dialogo propriamente dito, como se que­ ria no inicio,sobre as coisas inteligiveis.

No Capitulo x, pouco antes de iniciar a sua longa exposiQao, Agostinho ja lembra o pouco rendimento que obtiveram ele e Adeodato depois da longa discussao anterior sobre os sinais. Ate entao, apenas tres questoes haviam sido resolvidas. Aqui, trata-se de uma critica, ainda nao de todo contundente, em dire9ao a esse dialogo em particular. Ja em meados do Capitulo XII, Agostinho diz que aquele que vai mudando de opiniao e aceitando as alheias, a medida que e questionado e arguido num dialogo como

aquele,na verdadenEwesta consultando a sua verdade interior sobre ascoisas.Ai, a critica se estende a uma forma como se podem comportar os debatedores num dialogo, como tal havia sido 0 comportamento de Agostinho e Adeodato ao longo da discussao sobre os sinais. A critica atinge 0 pr6prio dialogo por eles ate entao efetuado.

Por fim, ha a critica aos dialogos em gera!, presente numa das principais teses do ultimo discurso de Agostinho : nao e num dialogo que se pode aprender algo sobre as coisas inteligiveis,dado que estas nao se aprendem mesmo em lugar nenhum.

Ou seja, nessa " critica ao dialogo ", pode-se ver que a funQao da parte dial6gica inicial seriaa demostrar,pormeiode urn dialogo mesmo sobre coisasinteligiveis, osproblemasdeurn tal dialogo.Alias,Adeodato e Agostinho,como ja vimos,mais de uma vez se queixam da inseguranQa com que conduzem a discussao. E que 0 dialogo,como tambem vimos ha pouco,nao leva necessariamente a busca, pOI parte da verdade interior, do que sejam as coisas.

Mas,alemdoproblema da razaode serdodialogo inicial,apareceumaoutra questao : qual a importancia de a forma daquele mesmo dialogo estar tao relacionada com 0 seu conteudo, como procuramos demonstrar neste nosso trabalho?

A resposta pode ser extraida de urn confronto entre as conclus6es do Capitulo XIVe as do dialogo inicial. No ultimo capitulo, podem-se entender, tambem,a razao do titulo do dialogo, De Magistro,e a razao da divisao do texto nesses dois grandes blocos.

Comonaoseensina por palavrassobreascoisasinteligiveis,naoexistemos chamados mestres, a nao ser 0 Mestre do ceu, que ensina interiormente. Nao ha entao como ir muito longe se se pretende, como naquele dialogo do inicio, ensinar algo sobre ascoisasinteligiveis,a naoser nosentido deque as palavrasde urn dosde­ batedores podem servir para despertar 0 outro para que busque em si mesmo uma verdade interior.

Nao para isto que acabamos de dizer,mas apenas para suscitar esta verdade, bastaria, como Agostinho parece esperar (ao final do Capitulo XIV), uma exposiQao nao dial6gica como a que faz ao final do texto. 0 que acontece entre os dois blocos equeAgostinho"derepente "interrompe0dialogo,comoqueapercebendo-sede que urn discurso seria mais eficiente para falar daquilo que possa ser ensinar algo. E como se ele pr6prio tivesse tido sua verdade interior desperta (como vimos na analise da forma do dialogo inicial, Agostinho tambem estava na condiQao de aprendiz) pelas palavras do dialogo e resolvido fazer, da maneira menos desgastante, que Adeodato compartilhasse desse despertar.

Em virtude do ultimo capitulo do De Magistro, tambem fica estabelecido, a pro­ p6sito da primeira parte do texto, que ja estava errado 0 pr6prio ponto de partida daquele dialogo inicial,ou seja,0dequea funQao do falar e 0ensinar.Como se ve ao final do texto, palavras nao ensinam. Mas talvez se pudesse pensar que Agostinho deu sequencia ao tal dialogo apenas em razao da primeira resposta de Adeodato (de certomodo,edointerlocutordeAgostinho0pontode partida te6ricoda primeira etapa... ) e levou em frente 0 debate a fim de mostrar, mesmo num dialogo, que aquela

resposta estava errada. Mas por que faria isso, sabendo que as palavras de urn dialogo nE.lO levariam Adeodato a aprender alguma coisa? Talvez Agostinho esperasse que as palavras do dialogo suscitassem a verdade interior em Adeodato, mas tenha visto que, em razao do pouco sucesso do dialogo, seria melhor fazer, como de fato fez, urn longo discurso sobre a "inutilidade das palavras".Ou, talvez,0 proprio Agostinho so tivesse despertado a sua verdade interior no meio do Capitulo Xe,ai,resolvido mo­ nologar. Mas tudo isso nao passa de suposi90es...

o que h8. para enfatizar ainda e que a ultima fala de Agostinho nao poderia mesmo ser urn dialogo,em coerencia com 0 que diz a teoria presente nessa fala.Se nao se pode esperar que 0 ouvinte de uma exposi9aO tenha aprendido algo a partir dela,mas sim que tenha sidomotivado por ela a pensarpor si sosobreos mesmos assuntos, por que Agostinho esperaria urn dialogo filosofico acerca disso com Adeo­ dato? Agostinho,de fato,ainda inquire Adeodato ao final de sua fala,mas ia nao 0 fazfilosoficamente,pois,comoseveaimesmo,iaatesabeexplicara respostade Adeodato, qualquer que ela venha a ser: se Adeodato concordar com 0 que ia foi dito,nao 0 fara porque Agostinho the ensinou ;se naoconcordar,sera porque ainda nao tern a possibilidade de aprender.

 

ABREU,J.A.Concerning Saint Augustine's De Magistro.TranslFormlAr;:ao (Sao Paulo),v.19, p.211- 219, 1996.

 

   ABSTRACT: This paper is divided in two parts. At first, we show the different roles played by quotations all throughSaint Augustin 'sDe Magistro.Wecomparethenthe structure inwhichthe text is established to the theory that is developed over there. From suchacomparison,we can see that in the mentioned text atheory of language isn 't philosophically fundamental and that adialogue isn 't the best way to reachthe truth.

   KEYWORDS: Medieval philosophy; philosophy oflanguage; dialogue; learning;teaching.

 

Referencias bibliográficas

 

SANTO AGOSTINHO. De Magistro. In : . Confissões; De magistro. Trad. A. Ricci.

Sao Paulo '. Nova Cultural, 1987.



[1] Bacharel em Filosofia pela Unicamp.

 

[2] As referencias ao texto serão feitas pela numero dos capítulos, a fim de que a leitor que não disponha da edição em que nos baseamos possa acompanhar a discussão.