MORTE E FILOSOFIA - SOBRE 0 DESEJO DE IMORTALIDADE ENTRE OS GREGOS

 

 

Maria Carolina Alves dos SANTOS[1]

 

RESUMO : Enfoca-se aqui a vinculac;:ao intima entre a exaustiva busca empreendida pelo espirito grego para edificar em terreno solido as colossais fundac;:oes de uma ciencia dos primeiros principios , e 0 que supoe-se ser sua motivac;:ao secreta e ultima, a aspirac;:ao pela eternidade, 0 mais universal e genuino desejo presente em todo ser humano, nao ser obliterado pelo tempo.

PALAVRAS- CHAVE: Marte ; filosofia ; imortalidade; desejo; alma; vida; natureza.

 

Nao compreendemos muito bern como os Antigos sentiam as coisas as mais banais, as mais correntes, por exemplo, 0 dia e 0 despertar: como eles acreditavam no sonho, a vigilia linha para eles uma outra luz. EJa era mesmo 0 essencial da vida, esclarecida por esse creptisculo da marte e de sua signilica(:ao : nossa morte e para nos, sem dtivida, uma outra morte.

(Nietzsche, Le gai savoir)

 

Sopra ali a brisa do oceano E chamejam flares de ouro

Vmas em arvores que cintilam na terra

Outras nutridas pela agua E os bem-aventurados as tecem para coroar-se com elas ..

(Pindaro, 1r .129-30)

 

I

 

o que teria impelido 0 espirito grego na busca de uma visao do mundo circun­ dante sob novas luzes? A subita apreensao do incessante e brutal escoamento da vida? A consciencia do modo fugaz , inconsistente e finito de seu existir? A consta­ tayaO tragica do jogo absurdo em que 0 viver consiste - espetaculo atordoante da morte de uma significayao fundamental - nao e geradora do formidavel path 6s que inspirou urn novo discurso, mais racional e ordenado, sobre os fundamentos da apa­ rentemente caprichosa dimensao do devir? Afirma Rodhe :

Nao ha nada, na imediata experiencia do homem, que exija menos ser demonstrado ou explicado, nada mais evidente por si mesmo que 0 fenomeno da vida, 0 fato da nossa pr6pria vida. A CeSSayaO de uma coisa tao evidente como a existencia, suscita em troca, 0 estupor dos homens, sempre e aonde quer que se apresente. (1973, p. 19)

 

Dominado por forte carencia da presenc;a de algo permanente, seguindo 0 mais genuino impulso da alma grega, 0 fil6sofo converge seu olhar clarividente para as ainda misteriosas instancias situadas nos confins do universo e cria a metafisica. Essa sintese inteligente, espiritual, intuitiva , resulta de uma soberana forc;a motriz da na­ tureza humana, que pode ser nomeada desejo de imortalidade.

Desejo significa, para 0 grego, ardoroso impulso (horrne, orexis), 0 elan que 0 faz tender com impaciencia a urn fim, a satisfac;ao disso que the falta. Essa carencia exemplar, a aspirac;ao pela eternidade, desencadeada pela implacavel fugacidade da vida humana, e a causa secreta que nos prim6rdios da civilizac;ao ocidental alimentou a marcha do filosofar : como discurso originario da indigencia, a filosofia buscou, com paixao, recurso num saber mais s6lido, fundado em principios intemporais e imuta­ veis , que pudesse emprestar urn sentido mais pleno e eternitario a hist6ria do homem.

Nas extraordinarias aventuras que 0 espirito grego empreende entao, valendo-se da elevada capacidade de abstrac;ao que 0 caracteriza, procura explorar 0 real na to­ talidade de seus aspectos . E foi capaz de conceber, no curso de urn breve tempo da hist6ria do Ocidente, a ciencia, a arte , a filosofia . Entre Homero e Arist6teles - periodo em que eclodem as ideias dominantes instituidoras dos generos poeticos, das artes plasticas, da arte dramatica, das matematicas, da astronomia, da hist6ria, da politica, da teoria do conhecimento, da etica, da filosofia politica, da l6gica, da filosofia da linguagem, da estetica - decorreram apenas 400 anos .

A pura essencia desta vasta heranc;a, cujo valor incalculavel nao cessa de evi­ denciar-se para n6s, seus beneficiarios , esta magistralmente expressa em proliferos discursos acerca da substancia primordial e unica, estofo OIiginario de tudo , os logoi peri physeos . Instauram as grandiosas fundac; 6es de uma ciencia dos primeiros prin­ cipios . Na tentativa de converter toda diversidade numa unidade absoluta, denomi­ nador comum de toda pluralidade fenomenica, os primeiros fil6sofos lanc;am as bases de urn modo universal de compreender 0 mundo . "Tales viu a unidade do ser e quando quis exprimi-la falou da agua", afirma Nietzsche (1969, p.1 64) .

A motivac;ao ultima de to do esse esforc; o de legitimac;ao do saber num plano transcendente ao que se processa 0 ciclo da gerac;ao, corrupc;ao e morte, nao e outra senao a de ultrapassar a incompletude inerente a condic;ao humana, marcada pelo eterno fluxo do que e mortal. 0 desej o de perpetuar-se constitui a fonte da aspirac;ao pela sabedoria, porque pOI meio dela triunfa-se sobre os aspectos vaos e transit6rios do mundo das aparencias, perpetuando a vida para alem da morte . 0 homem e urn animal metafisico porque e urn animal mortal, que tern sede de perenidade e fome do absoluto . Observa Godel (1940, p. 36) que, em todos os espiritos contemplativos do seculo V1, revela-se urn mesmo desejo transcendente de elevar-se acima do plano da instabilidade, do movimento, da multiplicidade das formas sensiveis, afim de atigir 0 repouso no reino da imutavel realidade .

Ante a perspectiva melancolica da degradac;ao inexoravel de tudo que e gerado, buscando conferir a propria existencia urn valor mais alto , 0 filosofo assemelha-se aos herois lendarios, em sua aspirac;ao pelos designios que advem dos grandes feitos.

o que define u rn heroi sao os atos que ele ousa realizar e executa com sucesso, con­ densando todas as virtudes e perigos da ac;ao humana. Diz Vernant :

 

Ele figura, de certo modo, 0 ato em estado exemplar, 0 ato que cria, que inaugura, que inicia (her6i civilizador, inventor, fundador de cidades ou linhagens, iniciador) ; ato enfim que transcende a condic;:ii.o humana e, como urn rio que sobe ate a sua fonte, vern juntar-se a forc;:a e vence a morte. (1973a, p 287)

 

Os primeiros pensadores empreendem a conquista dos intrincados dominios do supra-sensivel, e dada a enorme importancia que atribuem ao L6gos, fazem-no de­ positario das vitorias de sua inteligencia sobre a Fatalidade, a Necessidade , 0 Destino e a Morte. Formulados com epitetos que se tornaram paradigmaticos - Indestrutivel, Imperecedouro, Imortal, Eterno - seus 16goi sao instauradores da Ordem, da Harmo­ nia, da Justic;a, do Bern: adquirem, por iSso , urn poder de clarificac;ao que Ihes confere, no quadro conceitual entao nascente, 0 estatuto de verdades essenciais . Porem, mo­ vimentam-se ainda, no ambito das grandes oposic;6es estabelecidas pelo pensamento religioso entre uma serie de termos antinomicos : os deuses - os homens ; 0 invisivel - 0 visivel; os eternos - os mortais ; 0 permanente - 0 mutante ; 0 puro - 0 impuro (Vernant, 1964, p. 323). Eles se apresentam, eles mesmos, como sucessores dos pro­ fetas, adivinhos e poetas, como detentores de segredos magicos, de faculdades ex­ traordinarias, que Ihes propicia urn saber privilegiado, e a permanente convivencia com 0 divino . Consideram-se mestres da Verdade (Detienne, 1988, p.73) 2

 

II

 

Do cerne da prodigiosa indagac;ao sobre a physis empreendida nesses primor­ dios da civilizac;ao ocidental, emerge a nao menos fecunda investigac;ao sobre a na­ tureza do homem, tema tao inquietante quanto aquele, cuja essencia e tambem ve­ dada ao nosso conhecimento sensivel. E entao que se descobre uma dimensao no seu interior, inteiramente nova, identificada a uma forc;a misteriosa, sobrenatural, im­ palpavel, aparentada a estranha forc;a vital que anima e move a totalidade cosmica. Sobre isso, afirma Anaximenes : "Como nossa alma, que e 0 ar, soberanamente nos mantem unidos , assim tambem todo 0 cosmo sopro e ar 0 mantem" (Aecio , 1. 3, 4, in Os fil 6sofos pre-socraticos, 1972).

As enigmaticas sentenc;as de Heraclito, proferidas com fervor profetico de quem quer expressar verdades eternas , sao destinadas a despertar os homens de seu torpor e renovar-lhes a vida. Pois, entre eles, "apenas alguns tern como aspiraQao primeira alcanQar a fama imortal e tudo fazem para obte-la, os 'aristoi' . Os 'polloi' (os nume­ rosos) interessam-se somente pelo sustento cotidiano , deixam-se absorver pelo presente, e tal como os animais nao pensam na morte" : "uma so coisa escolhem os melhores contra todas as outras, um rumor de gloria eterna contra as (coisas) mortais ; mas a maioria esta empanturrada como animais " (fr.29).

Estando entre os aristos, Heraclito traQa solitariamente seu caminho em busca da imortalidade ; "Procurei a mim mesmo" (fr. l0l). Intuitivamente , aprende tudo de si mesmo , inclusive as insondaveis dimensoes do ilimitado Kratos que 0 habita e lhe infunde vida : "Limites de alma nao os encontrarias, todo caminho percorrendo ; tao profundo logos ela tem" (fr.45).

E, se sua sabedoria veio pelo estudo de si mesmo , ela nao consiste em suas opinioes particulares apenas, mas no que e comum a todos, 0 logos, que orienta a totalidade do real. Ele esta entre os poucos que tem acesso ao mundo intemporal e invisivel dos deuses que "possuem 0 conhecimento que tudo dirige atraves de tudo" (fr. 41. p.89), por isso pode assegurar que a inteligencia humana e uma parcela da inteligencia divina : " comum e a todos 0 pensar" (fr.1 13).

A aspiraQao dos filosofos precursores por conquistar pelo pensamento e pela investigaQao novas significaQoes sobre 0 real encontra forte estimulo nas concepQoes de mundo preexistentes, recobertas que estao com 0 veu das representaQoes miticas . Sobretudo quanto a problematica inerente ao vasto material oriundo do passado ar­ caico, relativo a origem e destino da psyche, ser espiritual e imortal, ordenador da esfera interior do homem, a semelhanQa do ser divino que domina dinamicamente 0 cosm0 3 Da imortalidade grandiosa da palavra original sobre essas representaQoes , a nova criaQao retira seu alento vital para uma compreensao mais profunda do signifi­ cado da vida humana. A partir delas, desenvolve-se uma doutrina segundo a qual a alma, sendo imortal, renasce sem cessar transmigrando de um corpo a outro ; e a morte, longe de ser 0 tim de um processo irreversivel, e uma nova etapa em um ciclo que se repete : a vida sucede a morte, assim como 0 sono a Vigilia. 0 que pode libertar a alma dos ciclos consecutivos e a vida virtuosa. A virtude e 0 agente eficaz, cola­ borador para um destino superior aos dos animais , analogo ao dos seres divinos , a imutavel e permanente existencia num cicIo acabado, unico e etern0 4

Pitagoras, tido como uma divindade encarnada por sua excepcional sabedoria e memoria, e capaz de recordar-se de vinte vidas anteriormente vividas . A persistencia de reminiscencias inalteradas de uma incarna9ao para outra ele obtinha pela pra­ tica intensiva de exercicios de memoria que Ihe permitiam rememorar erros antigos, e assim expia-los . Esse esfor90 de recupera9ao retrospectiva da trama de existencia passadas adquire uma fun9ao puriticatoria e tern urn alcance escatologico . Uma vez recobrada a pureza originaria, a alma evade-se, entim, da sucessao dos ciclos de nas­ cimento, elevando-se a uma forma de existencia intemporal e divina : "os homens morrem porque nao sao capazes de juntar 0 come90 ao tim" , dizia Alcmeao de Croton (fr.2). Reunindo-os pela reminiscencia, reconquista-se , segundo essa formula enig­ matica, 0 tempo em sua totalidade e a liberta9ao da morte .

Empedocles tambem e urn theios aner venerado, considerado por todos urn deus entre os mortais , ja liberto da condi9ao humana e de suas inquietudes . Segundo diz , os homens comuns tern urn rapido destino porque, para ele , a vida esta limitada entre o nascimento e a morte ; somente para 0 que possui inteligencia do todo, 0 sabio, nao h8 come90 nem tim, mas 0 ciclo das metamorfoses (Sabre a Natureza , fr.2, 8, 15, 17). E se os homens comuns esquecem seu passado a cada renascimento , aquele que guarda a lembran9a de tudo , das multiplas reencarna90es nos quatro elementos, pelo seu saber e 0 condutor deles . " Ja com efeito eu outrora fui menino, menina, arbusto, passarinho e, do mar saltando, mudo peixe" (Purifica90es, fr .1 17).

A alma, essa for9a misteriosa que esta presente na natureza toda, nos animais, nas plantas, no homem, progride ou regride nos ciclos reencarnatorios, nas diferentes especies de seres , conforme a maneira como viveu. Alguem que em suas experiencias temporais anteriores conseguir transcender a perspectiva das mUltiplas experiencias frag­ mentarias e efemeras , pela pratica de exercicios de reminiscencia e adequar;:ao as regras de vida ascetica, apreendera a unidade da propria historia pela recorda9ao de sua verdadeira identidade.

o esquecimento esta vinculado ao devir humano, que e 0 tempo proprio da mor­ te; e a memoria, pela liga9ao que estabelece entre 0 passado e 0 presente, patrocina a imortalidade . Mnemosyne e uma for9a sobrenatural que ultrapassa 0 homem, a qual se atribui urn estatuto divino. Cultua-la supoe esfor90, exercicio incessante, que lhe franqueie a participa9ao no poder de rememora9ao. 0 individuo que empreende essa conquista conhecera nao somente seu passado particular, mas a ordem geral e cosmica, que e impessoal. Restabelecera, assim, sistematicamente, a liga9ao com a natureza toda, com 0 conjunto dos tempos, com a totalidade do ser : torna-se entao onisciente, une-se com 0 divino, diviniza-se a si proprio (Vernant, 1973b, p.71).

 

 

III

 

A filosofia de Platao amalgama cren9as , doutrinas e vocabularios, pertinentes ao tema do desejo de imortalidade, subjacentes a veneravel tradi9ao (0 palai6s l6gos) e ao pensar originario dos que 0 precederam, transpondo-os aos termos singulares de sua reflexao para perpetua-los sob uma nova optica. No Menon , funde a doutrina da alma imortal com a teoria epistemologica da reminiscencia: a teoria do conheci­ mento vincula-se intimamente a escatologia pela noc;ao da anamnesis. Fundamen­ tando-se na celebre doutrina, ouvida de "homens e mulheres versados em coisas di­ vinas " - de que toda aprendizagem genuina e reminiscencia porque a alma nasceu muitas vezes e nada ha que nao tenha aprendido antes - deduz sua imortalidade (85b) . Na theoria platonica, a Anamnesis nao mais concerne a recuperac;ao do conhe­ cimento do passado primordial ou das vidas pregressas, mas das Ideias , que sao as verdades constitutivas do real. Recordar significa obter sabedoria pela transcendencia do sensivel, pelo contato com 0 mundo das ideias eternas, pela contemplac;ao desses seres imutaveis e divinos .

No Fedon, Platao defende a tese de uma imortalidade pessoal e contemplativa. A alma de Socrates nao e definida como um ser espiritual estranho que atua atraves dele ; identifica-se ao individuo singular que e ele proprio, responsavel pelo rumos de seu destino apos a morte. Ele exorta, longamente, cada um a ocupar-se com afinco da atividade libertadora das vicissitudes da vida terrestre, para garantir a eterna bea­ titude . Situado na confluencia das diversas correntes anteriores , ante a concepc;ao da alma em exilio na esfera corporea ate a total expiac;ao das faltas cometidas em outras existencias, elege a filosofia como veiculo excelente de reminiscencia, purifcac;ao e de salvac;ao : a roda das reencarnac; oes sera definitivamente interrompida por quantos souberem filosofar no sentido correto do termo , segundo a pureza e a justic;a. Bem por isso, Socrates esta alegre e confiante diante da morte ; enquanto viveu, nao cessou de preparar-se para ela, intensamente impelido pelo desejo, 0 mais genuino em todo ser humano, de perdurar na eternidade. Sua grande esperanc; a ( elpis megale) e estar, em breve, junto aos seres bem-aventurados , amos em tudo excelentes, os deuses que habitam a superficie da verdadeira terra (63c-65c, 1 14c) .

A metafisica arquitetada por Platao , nesse dialogo, esta solidamente edificada sobre vigorosos alicerces - a constituic;ao natural da alma, por essencia oposta a ideia da morte - que sustentam a plena certeza da imortalidade da alma.5 De acordo com a bela formula conclusiva da complexa discussao, a natureza da alma tem por atributo essencial a Vida (Fedon, 105d), e porque sua natureza e tal, jamais transmuta-se em seu contrario : ainda que este se aproxime, ela permanece inalteradamente a mesma sempre (102d- l03b) . A morte significa a total separac;ao da alma das coisas corporeas e sensiveis, a cujo processo 0 ato de filosofar identifica-se, reduzindo-se a uma m elete thanatou, um aprendizado do moner . Chegado 0 momento, alc; a seu vao imperturbavel em direc; ao a vida eterna entre as realidades divinas , com as quais possui afinidade (syngenes) natural (80a) o coroamento de todo esfon;o exaustivo , para ascender no rude caminho vertical que conduz gradualmente a imortalidade, e a assimilac;:ao a Deus (omoiosis tMos) . No Tim eu, Platao afirma :

 

Aquele que aplicou-se no amor pelo saber e em pensamentos verdadeiros , e que exerceu, antes de tudo, esta parte de si mesmo, obtera, imagin, com toda necessidade, pensamento imor­ tais e divinos. Ao conseguir entrar em contato com a verdade e, na medida em que a natureza humana pode participar da imortalidade, sera cumulado dela, porque rende culto, sem cessar, a divindade 7

 

Contrariamente ao oraculo de Deltos - que proclama a necessidade do autoco­ nhecimento para 0 homem poder compreender que nao e urn deus, e nem pode pre­ tender tornar-se urn -, 0 pensamento platonico poe como a mais alta aspirac;:ao hu­ mana 0 profundo conhecimento desse ser divino que em cada urn e ele mesmo, ape­ nas saciavel pelo ardoroso empenho em tornar-se, tanto quanto possivel, semelhante a ele . A frequentac;:ao especulativa do que e naturalmente ordenado e divino estimula a dynamis interna do homem a imita-lo, comportando-se tambem de modo ordenado e divino.

Movido pelo infatigavel desejo de perpetuar-se, que constitui a pr6pria subs­ tancia do genero humano, Platao concebeu uma obra magnifica e fecundante. Bus­ cando imortalizar-se pela similitude com 0 pensamento dos deuses , articula dialeti­ camente representac;:oes imaginarias a conceituac;:oes racionais sobre 0 Ser, os dialo­ gos que se legitimam, ao mesmo tempo, na dimensao da Hist6ria, como manifesta­ c;:oes do "desejo de sabedoria": cria, assim, para si mesmo, tambem uma mem6ria entre os homens , para que 0 tempo nao 0 oblitere . Assim, os discursos plaWnicos sao relatos vivos das palpitantes aventuras em que consiste a vita contemplativa , ver­ dadeiros dramas escritos em prosa, sobre as perplexidades e antinomias da psyche percorrendo dominios intrincados do Inteligivel, em busca de Definic;:oes, Imagens, Ciencia e Essencia do que e 0 Real, cujo estatuto e permanente e divino, para assimilar-se a ele B

Ao homem e dado, diz Platao no Ban quete , duas maneiras de imortalizar-se ; uma inferior, comum com os animais, a gerac;:ao humana ; outra superior, que e pro­ priamente humana, "segundo a alma" (Kata ten psycMn) da qual resultam os mais belos filhos espirituais (206c-209b) . Quando esta, pois, fecundada e encontra urn bela corpo e uma bela alma, gera filhos mais imortais que os dos homens, os discursos sobre a Virtude (Ibidem) . Nos vigorosos trac;:os da imortal linhagem de Platao esta presente a intensa luminosidade das Ideias que fermentam em seu espirito, e que forneceram a centelha a partir da qual toda a filosofia do ocidente incandesceu.

Sua concepc;:ao escato16gica da morte , posta em continua interac;:ao com a Vida- uma vida desembarac;:ada de seus entraves mortiferos para a alma - cai sobre nossa civilizac;:ao (que nao e ainda "a" civilizac;:ao) como uma faisca esclarecedora, confe rindo dignidade ontologica a urn fenomeno que, para muitos , reduz-se a mera disso­ lu<; ao biologica, ou e entendido como 0 contrario conflitante da vida. Situado estra­ tegicamente na confiuencia das diversas concep<;oes dos predecessores, a de Platao oferece urn quadro sinoptico dessa questao essencial para os gregos, pelo elevado sentimento que tern da dignidade humana e do sentido nobre da vida, ainda nao explorada 0 suficiente por nos na atualidade . Em nossa cultura crepuscular, na qual quase nao nos ocupamos mais em " aprender a moner", submetendo permanente­ mente os nossos valores a desafiadoras indaga<; oes e reformula<;oes, a morte perma­ nece algo enigmatico ou arbitrario, ou como diz Nietzsche, "uma outra morte, sem duvida" (1950, p.47) .

 

SANTOS, M. C. A. dos. Death and philosophy - the desire for immortality among the Greeks.

TranslFormlAr:,:ao (Sao Paulo), v.19. p. 185- 193, 1996 .

 

ABSTRACT: This paper focuses on the intimate associations between the exhaustive attempt, undertaken by the Greek spirit, to build on solid ground their colossal foundations of a science of first prin ciples, and that which one may suppose to be its a secret and ultima te motivation, namely, the aspiration after eternity, the most universal and genuine desire present in every human being, not to be obliterated by time.

KEYWORDS: Death; philosophy; immortality; desire; soul; life; nature.

 

 

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[1] Departamento de Filosofia - Faculdade de Filosofia e Ciencias - VNESP - 17525- 900 - MarHia - SP.