DISCURSOS NUS, DISCURSOS VAZIOS[1]

 

Paulo Francisco Butti de LIMA[2]

 

RESUMO : Na diaietiea soeratieo-piatoniea, eonsiderac;:oes reiativas ao estilo e a forma dos diseursos assumem papei paradigmatieo, nao so na eritiea a sofistiea e a retoriea, mas tambem na earaeterizac;:ao do proprio diseurso filosofieo, e permitem situar 0 iugar da filosofia em reiac;:ao a diversas pratieas soeiais .

PALAVRAS- CHAVE: Piatao ; retoriea; estilo; ornamento; prepon ; ado]escma; filosofia.

 

o superfluo e 0 excessivo ; 0 afetamento, 0 adorno, os refinamentos ; a banali­ dade, a bobagem; a parolagem ; a baixeza, a vulgaridade ; a minucia, a meticulosidade. Sao tantos os modos para indicar, caracterizar ou classificar negativamente as formas de linguagem ou os tipos de discurso, sejam publicos, sejam privados - no centro da polis ou as suas margens. A retorica apresenta modelos para urn estilo "adequado", a moral, normas para a "adequac;ao" do comportamento. A atenc;ao a linguagem po de ser vista seja em relac;ao a boa ordem do discurso - 0 kosmos - seja como futilidade

-                                                                                                                                                          o lems. 0 discurso "vazio" e urn discurso nao pertinente[3] considerado na sua propria

inconsistencia. E curiosa que a prosa possa chamar-se " discurso nu", psilos logos, e que 0 vocabulario do ornamento possa ser relacionado ao vestir-se, ou em geral ao cobrir

o corpo.[4] Usar a prosa para exaltar os feitos passados pode ser expresso como "omar com urn discurso nu" (Platao, Menexeno, 239b-c), 0 que indica imediatamente 0 ca­ rater secundario da tarefa. Uma teoria do discurso aparece assim tambem como teoria do estilo ; as formas do estilo nao se separam dos "generos" de discurso. Toda critica a lexis trara consigo a contraposi<;:ao a forma correta do logos, 0 que mostra a impor­ tancia da caracteriza<;:ao negativa da linguagem, em particular, do "falar em excesso": este e 0 tema platOnico que pretendemos levantar neste artigo .

De qual discurso deve-se sentir vergonha? A pergunta pode ser invertida: qual o discurso sujeito a irrisao? A vergonha (aischyne) e a irrisao (katageloslkatagelasthaj) sao frequentemente relacionadas nos dialogos plat6nicos, indicando valores possiveis do logos. Ha uma continua transferencia do lugar do "ridiculo ", entre 0 filosofo, 0 sofista, 0 orador, a cada momenta sugerindo 0 modo adequado - to prepon - da pa­ lavra e do comportamento (ct. G6rgias, 484d-e). Eulogia e eueth eia sao intimamente ligadas (Republica, III, 400d-e), e este peso moral das palavras incide tambem na caracteriza<;:ao do estilo . E, portanto, necessario "interiorizar" a vergonha, ou seja, torna-Ia independente de qualquer apari<;:ao publica. Mas se ser adequado diz respeito a aparencia, e nao constitui uma defini<;:ao valida do bela (Hipias Maior, 291e ss .), h8. na realidade lugar para uma teoria platOnica do estilo?

E, com certeza, dificil afirmar a independencia ou dignidade em Platao de ques­ toes que poderiamos chamar de estilisticas em senso geral. As observa<;: oes platOnicas sobre 0 "estilo " consistem principalmente em criticas a oratoria e a poesia, e na critica da disposi<;:ao do orador ou poeta para com as palavras. Mas 0 carater secundario da lexis frente ao logos nao nos deve levar a esquecer a aten<;:ao dada aquela, e sua impor­ tan cia para a caracteriza<;:ao, em termos gerais, dos varios tipos de discurso. Da ex­ terioridade do adorno a vacuidade do falar em excesso, atribui-se a cada maneira de elocu<;:ao uma densidade propria aos elementos de diferen<;:a, os quais permitem indivi­ duar 0 modo correto da fala (seja a nudez do discurso, seja a sua medida ou adequa<;:ao).

Socrates envergonha-se de seu primeiro discurso no Fedro, em que se contrapoe ao discurso de Lisias, lido anteriormente por Fedro. Em presen<;:a somente deste seu amigo, Socrates cobre a cabe<;:a e se propoe a falar, com urn discurso continuo, no modo mais breve possivel (Fedro, 237a) . E urn Socrates excepcional 0 que assim se exprime, tornado pelo delirio divino, como ele mesmo afirma (238c) . Mas a vergonha de Socrates deriva tambem do fato de ele se colocar no mesmo plano do discurso de Lisias, como se assumissem urn significado real os efeitos de beleza, de bela apresenta<;:ao, pro­ curados pelo orador. Que sejam estes efeitos coisas de crian<;:as, jogos, como veremos : sao da mesma maneira introduzidos nos debates publicos e nas discussoes sofistas, possuindo relevancia tambem para a caracteriza<;:ao do discurso filosofico .

 

De fato, mesmo que Socrates repita que nao cuidara da propria linguagem, fa­ lando de modo casual. mesmo que atribua a outros urn maior conhecimento da tecnica relativa a composiQao oratoria, a insistencia com a qual apresenta as proprias consi­ deraQaes a respeito indica uma consciencia incomum dos procedimentos criticados. Escutando 0 discurso de Lisias, Socrates tinha prestado atenQao somente no aspecto formal das palavras, na "retorica do discurso" (Fedro, 235a) . Mesmo se havia ante­ riormente indicado Fedro como mais capaz neste genero de argumentos, e ele mesmo, e nao seu amigo, quem analisa a obra oratoria. 0 discurso de Lisias parecia-Ihe urn discurso bern cuidado, com cada palavra bern torneada (234e) ; no entanto, 0 que 0 orador tinha feito era somente repetir de modo variado 0 mesmo tema, procurando apresenta-lo de forma cada vez melhor : uma imperfeiQao do orador, urn procedimento imaturo (235a) . A habilidade de Socrates leva-o a distinguir retoricamente entre in­ venQao e disposiQao (he uresis e dia th esis) e a avaliar 0 discurso segundo a variedade, poikilia (236a-b) .

Mas nao e so 0 estratagema de Lisias, a repetiQao, que e recurso de quem e ainda jovem e inexperiente. 0 cuidado mesmo com os discursos e qualificado como atividade juvenil. Socrates em seu julgamento nao tentara embelezar a propria argu­ mentaQao, mas falara de modo casual, com palavras nao elaboradas (Apologia, 17b-c). Nao e adequado ao ambiente do tribunal "modelar" os discursos, como fazem os ra­ pazes (17c). As palavras de Socrates sao apresentadas " casualmente", sem qualquer cuidado com a lexis, nao porque falte espaQo para a ideia de "adequaQao" do discurso, mas exatamente porque este cuidado nao e "adequado " ao lugar (mas h8. na ver­ dade lugar para estes discursos elaborados?[5] A ligaQao entre kosmos, ornamento, e paignion, jogo, aparece no dialogo 0 Politico (288c), e tambem neste caso nao se recusa a "conveniencia" (to prepon) do discurso, mas procura-se distingui-la da forma, em particular do comprimento ou brevidade da elocuQao, ligados ao prazer (286c-d) .

Como se apresentara entao 0 filosofo, qual a expressao da qual nao se deve envergonhar, sem os adornos e cuidados da oratoria? Qual a possibilidade de urn discurso sem retorica? 0 discurso "nu" e a propria prosa, como vimos, em geral con­ cebida como urn discurso continuo : 0 que dizer entao da "forma" da filosofia, ou da elocuQao socratico-platonica, 0 dialogo? A filosofia deve ser urn discurso livre das coerQaes de tempo e argumento, segundo 0 Teeteto (172d-e), e tambem livre dos li­ mites de comprimento : deve seguir 0 que e apropriado, to prepon, que pertence a arte da medida, a metretike, e que justifica nao a forma definida, mas a extensao varia vel e ate mesmo a circularidade (Politico, 286c- 87a) . Mas a filosofia nao e so negaQao das normas impostas pela "retorica", ela e tambem "forma", mesmo se 0 contrario da "bela forma" oratoria: a apresentaQao de Socrates pode assumir os contornos de urn discurso "baixo". Assim ele se refere no tribunal a quanto deve dizer sobre 0 periodo dos Trinta Tiranos : palavras ph ortika kai dikanika, mas verdadeiras (Apologia, 32a) ; e assim Calicles caracteriza os proprios temas socraticos : phortika kai demegorika

 

( G6rgias, 482e) . Mas trata-se tambem de urn discurso que descuida das argumenta­ c;iSes sutis (kompseiai) (Fedon, 101c), as quais concernem (prepei) as discussiSes so­ fistas, como afirma Laques (Laques, 197d-e) : trata-se de sutilidades relativas as dis­ tinc;iSes de palavras e que indicam uma capacidade pr6xima a de Lisias na preparac;ao de seu discurso (Feciro, 227c: kek6mpseutai) . Incapaz dos requintes sofistas, com urn raciocinio "pesado " (pa cheos), S6crates nao pode evitar de se dirigir a seu interlocutor de modo "rude" (phortik6teron ) (Eutidemo, 286e) .

Apesar destas criticas, nao e porem a ausencia de ornamento, a nudez, e tam­ pouco a baixeza ou 0 carater pouco sutil da linguagem a fornecer a imagem mais recorrente da filosofia. Nao a nudez do discurso, mas 0 seu esvaziamento. Falar sem dizer nada: adoleschein, lerein, phlyarein, lalein . Disto e preciso se envergonhar, estao de acordo S6crates e seus criticos (Hipias e Calicles) . Estes referem-se a vergonha de uma atividade que nao homa as praticas comuns, publicas . S6crates, ao inves, considera a vergonha em face de si mesmo, ator e publico : assim no Hipias Maior (2 18b), a respeito de uma das definic;iSes de bela dadas por Hipias. Para 0 sofista, ao inves, a natureza da atividade critica socratica e 0 tagarelar coincidem. Hipias recusa a forma breve da elocuc;ao socratica: as coisas pequenas, as minucias, os "pedacinhos de discursos" (304a), que ele confronta com 0 discurso publico no tribunal, na assembleia, frente aos magistrados. As formas de apresentac;ao pUblica, que podem ter por conse­ quencia a salvac;ao pessoal do orador, fazem aparecer os temas socraticos como su­ tilidades sem sentido (e Hipiasfala de smikrologiai, leroi, phlyariai: 304b). Na sua resposta, S6crates retoma esta caracterizac;ao da dialetica filos6fica - coisas pequenas e de nenhum valor -, mas afirma sua vergonha ante 0 discurso publico (304c-d) . Mesmo se ao "aves­ so" do discurso de Hipias, a conclusao socratica mantem 0 quadro distintivo gera!, entre discurso longo e breve, func;ao publica e privada, conversac;ao seria e vanil6quio.

S6crates recusa assim a definic;ao de bela dada por Hipias, com medo de falar sem dizer nada (lerein); mas tambem para Hipias 0 procedimento de S6crates consiste em tagarelice e bobagens (leroi kai phlyariai) . A critica socratica responde a uma pre­ cisa caracterizac;ao do discurso filos6fico, como veremos, mas por sua vez indica cada aspecto e cada lugar da comunicac;ao na cidade. Os cidadaos mesmos, os atenienses, ocupados em suas atividades publicas, tornaram-se laloi, tagarelas, grac;as a Pericles ( G6rgias 515e), e nisso podem-se confrontar com eles os lacedemonios, de fala breve e sabia (Protagoras, 342e ; cf. Leis, I. 64 1e). As reuniiSes concorridas nas quais se viam " fil6sofos " que discursavam sobre politica (mas, precisa S6crates, nao exatamente fil6sofos, e sim pessoas que se colocam no meio, entre a filosofia e a politica, que cuidam mais da aparencia do que da verdade) sao descritas por Critao no Eutidemo (304d ss) . Quantos ai se apresentavam "discorriam sobre nada", sobre argumentos "sem nenhum valor" (304e) : pareciam gente ordinaria (pha uloi) e ridicula (katagelastoi) (305a) . Por outro lado, ja Ctesipo, no mesmo dialogo, tinha caracterizado a discussao desses estrangeiros como devaneio (paralerein) (288b) . Nao s6, porem, nas discuss6es publicas, nem somente nas apresentac;iSes dos sofistas, mas tambem nos piores banque­ tes fala-se sem dizer nada. Recusando que Protagoras continue a comentar poesias, S6- crates refere a imagem das reuniiSes nas quais pessoas vulgares, incapazes de manter

 

pOI si mesmas a conversaC;ao, convidam outros, musicos e danc;arinas, a se apresentar enquanto bebem: ele e seu interlocutor, ao inves, sem contar com estas tagarelices e infantilidades (leroi e paidiai), deveriam conduzir "com a pr6pria voz" 0 dialogo (Pro­ tagoras, 347c-e). S6crates identifica assim a audiC;ao e visao de cantos e danc;as ao comentario poetico, que seria como urn falar por meio de outros .

Mas 0 pr6prio dialogo socratico pode aparecer em modo semelhante a este cons­ tante lerein na cidade . Como vimos, 0 fi16sofo fala " casualmente" tambem no tribunal, porque recusa a bela disposiC;ao das palavras (Apologia, 17b-c). Por outro lado, esta e a caracteristica do discurso filos6fico, "livre", sem limites externos, nao se apresen­ tando em lugares publicos como os tribunais ( Teeteto, 172d ss ; Hipias Maior, 304c-d), exposto ao perigo de repetic;oes e digressoes ( Teeteto, loc. cit.), sem necessidade de uma adequaC;ao " exterior" do logos, pOis nao submetido ao prazer (Politico, 286d ; Sofista, 225d) . Assim 0 risco de aporia na investigaC;ao filos6fica pode ser visto exa­ tamente como parolagem, adoleschia, como 0 "conduzir para cima e para baixo 0 discurso, sem ficar convencido e sem se livrar de cada argumento", segundo a defi­ niC;ao dada no Teeteto (195c) .

Diante do recrudescer das perguntas de S6crates, e esta, com efeito, a reaC;ao dos sofistas : coisas "vas e superfluas" (Jeroi e phlyariai), segundo Hipias (304b); "ta­ garelas" (Jaleis), responde Dionisodoro ao fil6sofo (Eutidem 0, 287d), e mais tarde re­ pete : " dizes bobagens" (phlyareis) (295c) ; "bobagem" (phlyaria), retoma Trasimaco na RepUblica (1, 336c) e 0 reitera varias vezes Calicles, no GOfgias (490c; 490e; cf 497a) . 0 mesmo Calicles, alem do mais, oferece a descric;ao geral da atividade filo­ s6fica, da qual e preciso en vergonhar-se, se nao se limita a urn interesse juvenil e transit6rio (G6rgias, 484a ss .). 0 politico e 0 fil6sofo tornam-se ridiculos quando in­ vertem seus papeis (484d-e), mas e a atividade publica que da dignidade aos cidadaos. Cc!llicles arremata com a imagem de urn S6crates que foge do centro da cidade, poe-se nos cantos, sussurrando, com tres ou quatro jovens : nao uma fala livre, grande e digna (485d-e), como diante dos tribunais . It a figura social do fil6sofo que se afirma pela ideia do logos inutil, da irrelevEmcia presumida de sua fala para a cidade . 0 homem que deseja somente homas, 0 phil6timos, considera "bobagem" 0 aprendizado de uma ciencia que nao contribua a sua reputac;ao (Republica, IX, 581d). A maior parte das pessoas, afirma Parmenides, diz ser esta " ginastica" dos discursos adoleschia, tagarelice (Parm enides, 135c), uma ginastica que distancia das percepc;oes sensiveis para indagar sobre as " formas " e na qual incentiva 0 jovem S6crates a prosseguir. E com 0 mesmo termo 0 jovem S6crates vai ser considerado pOI seus criticos, a comec;ar por Arist6fanes, que 0 acusa de "tagarelar" (adoleschein ) (Fedon, 70b) e de dizer "bo­ bagens" (phlyaria), " caminhando no ar" (Apologia, 19c) . E assim a imagem se com­ pleta: 0 fil6sofo nao s6 nao ocupa os lugares sociais "dignos ", como os tribunais, nao s6 fala de coisas sem valor : mas fala de coisas "distantes" dos homens, sem se ocupar do que interessa a maioria. Dado seu desprezo pelas preocupac;oes co­ muns - os elogios e as vang16rias dos homens -, das quais ri, e visto pelos outros como urn estulto (Jerodes) ( Teeteto, 174d) . Adoleschia e meteorologia, uma fala vazia

e distante, caracterizam assim 0 discurso socratico, mas tambem 0 do born coman­ dante do nq.vio, deixado as margens pela multidao, que adula ao inves 0 capitao cego e surdo, para poder governar em seu lugar (RepUblica, VI, 488a-489a ; 489c) . Na cidade que tentasse determinar as competencias pOI meio da politica, quem procurasse ser comandante ou medico alem da lei seria considerado urn sofista meteorologos e ado­ lesches (Politico, 299b), como de fato foi chamado Socrates. E, de fato, assume 0 fi­ losofo, adoleschia e meteorologia sobre a natureza sao necessarios para elevar a mente e para atingir a perfeic;:ao da obra (Fedro, 26ge-70a) . Com efeito, 0 procedimento so­ cratico parece identificar-se com 0 adoleschikon, que na definic;:ao dada no Sofista (225a ss.) se opoe aos longos dis curs os juridicos e a eristica sofista.

o conselho de Parmenides ao jovem Socrates poderia nos levar a considerar estas imagens na sua diacronia: assim, em sequencia, a imagem do filosofo com a cabec;:a no ar (como Tales), a critica efetiva de Aristofanes, e enfim a elaborac;:ao da figura do filosofo marginalizado como vemos na Republica[6] Com efeito, nao e so­ mente nas opinioes atribuidas aos sofistas pelo proprio Platao que constatamos a ex­ terioridade dos termos a argumentac;:ao socratica. Nas Nuvens, Aristofanes tinha se referido a adoleschia (v .1480) ; Isocrates falava do desprezo pelos argumentos dos " eristicos", considerados adoleschia e mikrologia (Contra as sofistas, 8)[7] Mas, na so­ breposic;:ao das imagens, 0 texto platonico nao oferece somente uma "resposta" as criticas ou uma "defesa" de Socrates. Pelos trac;:os e palavras comuns, pela aceitac;:ao ironica da caracterizac;:ao critica, delimitam-se lugar e forma do discurso/dialogo fi­ losofico, na cidade e diante dos outros logoi. Palavras vazias, palavras das quais se envergonhar: verno-las em toda parte nos dialogos, atribuidas a todos por todos, me­ dida comum de diferenciac;:ao. Como se, mesmo com a inversao ou ambiguidade das atribuic;:oes, fossem no entanto estes os parametros que permitem dar ordem ao logos e indicar a sua cliferem ;a .

Assim, ao lado de toda forma de linguagem " excessiva" - que deriva do orna­ mento, dos refinamentos, das repetic;:oes por amor a bela elocuc;:ao, das mirrucias[8] - deve-se tambem considerar a adoleschia, parolagem, em Platao : repetir 0 mesmo, ou ir para cima e para baixo com as palavras sem atingir 0 fim proposto. A critica da filosofia como tagarelice traz, porem, urn sentido novo : uma fala diferente, distante dos lugares civicos, distante do sensivel - uma fala nao com um . Platao retoma e in­ verte a critica, ou pela aceitac;:ao ironica do atributo, ou aplicando-o a seus criticos : quem fala sem dizer nada sao nao somente os sofistas, mas os proprios atenienses,

nas suas atividades publicas : tribunais, assembleias, teatros ; e privadas : as discus­ soes sofistas, os simp6sios.

o que se delineia na sequencia de imagens platonicas e ao mesmo tempo uma critica de elementos estilisticos e a afirmac;:ao do logos filos6fico diante dos demais logoi: a ineren cia do discUIso pela sua estranheza . Constituir, conformar a pr6pria elocuc;:ao pOI meio de confrontos com as varias formas - em particular as formas co­ muns, koina. - do falar (e do agir pela palavra) . Neste contexto, 0 modo apropriado do discUIso - como afirma 0 Teeteto e 0 Politico - nao possui os 1imites exteriores da

orat6ria "publica" : continuidade, dUIac;:ao, prazer. E, assim, tambem pela conside­

rac;:ao do "estilo " que se apresenta a critica da ret6rica e da politica: fundamental, pois, para a "localizac;:ao" de urn discUIso filos6fico .

 

LIMA, P. F. B. de. Nude discourses, empty discourses. TranslFormlAr;ao (Sao Pa ulo), v. 19, p. 177- 183, 1996 .

 

ABSTRACT: In the Socratic-Platonic dialectic, considerations about style and form of discourses have a paradigmatic rule, not only for the critic of sophistry and rhetoric, but also for the characterization of the philosophical discourse. So they allow to establish the place ofphilosophy in relation to social practices.

KEYWORDS: Plato; rhetoric; style; ornament; prepon; adoJeschia; philosophy.



[1] Este artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla sobre a apresenta<;ao de "tipos", ou "generos" de discurso em Platao e Arist6teles (aqui referimo-nos somente a Platao). Como leitura transversal dos dialogos plat6nicos, mostra-se fundamental acampanhar a utiliza<;ao recorrente do mesmo lexica. Todavia, limitando, para uma melhor leitura do texta, a cita<;ao de palavras gregas, traduzidas ou mesmo transliteradas, perdemas em parte a possibilidade de acompanhar 0 usa lexical comum aos varias dialogos. (Note-se que a acento nas palavras gregas tanshteradas serve somente como auxilio a leitura.)

[2] Scuola Superiore di Studi Storici - Universita di San Marino - 47031 - Repubbhca di San Marino.

[3] A nao-pertinencia do discurso e freqiientemente indicada como " falar exo tou pragmatos", que e uma expressao tecnica da pratica juridica ateniense e serve tambem para caracterizar os tratados de ret6rica criticados por Arist6teles (ct., par exemplo, Ret6rica, I, 1354b17 ss ).

[4] A relac;:ao e clara em kosmoslkosm ein . Vela-se a ligac;:ao intima entre adorno feminino e ornamento lingiiistico em Euripedes, Androma ca, v.955-6 (com uso do verba kosmein), e Medeia, v. 576 (referido as palavras de Jasao sobre as mulheres). Pode-se talvez relacionar ieros, 0 falar a toa, a futilidade, ao seu hom6nimo que indica urn ornamento em ouro do vestiario feminino. Sobre a relac;:ao entre cosmetica e ret6nca, cf., naturalmente, G6rgias, 465b-c.

[5] Com efeito, dificilmente a teoria aristotelica do prepon, como exposta ao longo do terceiro livro da Ret6rica, encontraria espac;:o na filosofia platonica.

[6] Nao se deve em todo caso ver 0 meteorologein exclusivamente em relac;:ao a um interesse pela cosmogonia, como recusa 0 proprio Socrates na Apologia (1 9c). mas tambem em relac;:ao a reflexao de Parmi'mides, com 0 seu carater "abstrato". Em urn contexto dlferente, no Cra tilo (401b), a expressao meteorologoi kai adoleschai tines nao se liga ao discurso sobre os astros, sucessivo (408d ss), mas aos individuos que nomearam em primeiro lugar os deuses .

[7] Veja-se, tambem, Eupolis, fr . 352 (Kock) (de Olimpiodoro), 0 qual se refere a Socrates como ptochos adolesches.

[8] Sobre a minucia em Platao, cf. Leis, ], 642a ; V, 746e. Sobre a "precisao" vista como aspecto negativo, ver Teeteto, 184e.