PENSAMENTO E AÇÃO EM HANNAH ARENDT

 

Maria de Fatima Simoes FRANCISCO[1]

 

RESUMO : Este artigo trata do relacionamento entre pensamento e aQao na obra final de Hannah Arendt, A vida do espirito, que se encontra, segundo ela, na origem do conflito entre filosofia e politica e teve influencia sobre toda a tradiQao filos6fica. Arendt pretende mostrar que essas duas atividades nao sao por si pr6prias incompativeis entre si, como a tradiQao se esforQou por fazer crer, mas apenas assim se tornaram pelo usa "profissional" que 0 fil6sofo faz do pensamento.

PALAVRAS- CHAVE: Pensamento ; aQao ; tradiQao filos6fica.

 

o texto de Hannah Arendt que aborda diretamente 0 relacionamento entre pensamento e aQ 8.o e 0 ultimo na serie de seus escritos , tendo sido publicado postumamente e intitulado pelo editor Th e life of the mind [A vida do espiritoj . Fato curiosa acerca desse texto e que trate exaustivamente das atividades da vida do espirito, numa obra devotada essencialmente as atividades da vita activa, em geral, e a aQ8.o, em particular. Curioso, enfim, que a filosofia de Hannah Arendt, sempre preocupada com a vida politica, se volte no texto final para urn tema, no seu pr6prio entender, nada "politico", e sim, antes, "metafisico " -  0 da vida do espirito em suas tres manifestaQoes , 0 pensamento, a vontade e 0 juizo . Poder-se-ia pensar num radical desvio de percurso e preocupaQoes . 0 que chama atenQ8.o nessa mudanQa tematica e que parece romper com as convicQoes, sempre reafirmadas, acerca de qual deve ser 0 objeto legitimo de uma autentica filosofia politica. E parece ainda contradizer a critica que dirige a tradiQ8.o de filosofia politica, relacionada precisamente a escolha de seu objeto . De fato, Hannah Arendt reafirma, ao Iongo de seus escritos, a posiQ8.o basica de que os aspectos mais legitimos e relevantes da vida politica nunca foram adequadamente tratados pela filosofia no decorrer de sua hist6ria. De onde a necessidade de se proceder urgentemente a tal tarefa, que tomaria 0 sentido de fundaQ8.o de uma nova tradi<;:ao filosofica e em cuja dire<;:ao a propria Hannah Arendt considerava ja estar despendendo os primeiros esfor<;:os . Nao e por isso sem razao que se estranhe ao ve-Ia abandonar sua tematica tradicional para dedicar-se longamente, no texto final, ao objeto ilegitimo da tradi<;:ao filosofica . 0 estranhamento, contudo, se esvanece ao nos darmos conta da razao mais profunda desse aparente desvio. A visita<;:ao final prolongada da seara propria da tradi<;:ao filosofica, a metafisica, em A vida do espirito, assume urn sentido particular : 0 de investiga<;:ao dos motivos do interesse maior do filosofo, durante a vigencia dessa tradi<;:ao , pelas atividades da vida do espirito e, particularmente , pelo pensamento . 0 perscrutar as causas da fidelidade a esse obj eto revela sua verdadeira face : e parte essencial do projeto de funda<;:ao da nova tradi<;:ao filosofica. Agora que so restam escombros da velha tradi<;:ao , fa<;:amo-nos arqueologos e descubramos as razoes da fascina<;:ao do filosofo pelo pensamento . Pois tal investiga<;:ao tera talvez a utilidade de por a claro 0 porque do abandono desse outro objeto, a vita aetiva e a a<;:ao.

No ultimo de seus escritos, em vez de ruptura com posi<;:oes anteriormente firmadas , e 0 mesmo proj eto que sempre orientou sua reflexao que prevalece . 0 que nos interessa aqui e seguir Hannah Arendt nessa busca arqueologica atraves dos escombros da tradi<;:ao, a fim de melhor compreender dois aspectos. Por urn lado, 0 relacionamento entre pensamento e a<;:ao tal como proposto pela tradi<;:ao e, por outro, aquele preconizado por sua propria filosofia.

Por crer Hannah Arendt que a historia da filosofia reveste a forma particular de uma tradir;80, isto e, da transmissao , plena de reverencia, do tesouro do passado ao futuro ,2 as primeiras avalia<;:oes, depreciativas , da filosofia grega classica, acerca da vita a etiva , serao dotadas de autoridade e se tornarao paradigmaticas para as gera<;:oes seguintes de filosofos . As analises arendtianas acerca das posi<;:oes doutrinarias assumidas na origem da historia da filosofia encontram-se sobretudo em dois de seus textos : En tre 0 passado e 0 futuro e A eondir;8o h umana. As consequencias dessa autoridade para a a<;:ao e a vida politica - que compoem juntamente com 0 trabalho e 0 labor 0 que a tradi<;:ao filosofica denominou vita aetiva - serao das mais funestas . A principal delas sera 0 fato de que as mais importantes e autenticas experiencias com a esfera politica atraves da historia, pouco ou nenhum tratamento conceitual mereceram de parte da filosofia. 0 flagelo do esquecimento se abateu entao sobre elas tao logo chegaram a seu fim, pois 0 que nao passa pelo processo de conceitua<;:ao e ordena<;:ao pelo pensamento nao pode ser acolhido e preservado na memoria. Essas experiencias nao constam do tesouro do passado , 0 conjunto de estorias que articulam as experiencias mais preciosas do passado e se transmitem de gera<;:ao a gera<;:ao .

Nessa exclusao, a filosofia teve papel crucial, pois Ihe competia criar categorias conceituais para a elabOIaQao de tais experiencias em estorias, 0 modo humano de dar inteligibilidade aos eventos . Aquilo para 0 que nao se tern categorias conceituais que 0 tornem compreensivel nao pode ser compreendido, nao reveste a forma de estoria, e esquecido e, mais grave , e como se nao tivesse chegado a ter qualquer existencia . Para Hannah Arendt, tal ocorreu com nada menos que a parte rnais relevante e autentica da historia da vida politica. Que pOI essa razao jaz num subterraneo da historia, ao largo do tesouro do passado transmitido pela tradiQao. Alem do esquecimento, as avaliaQoes depreciativas da tradiQao filosofica acerca da aQao tiveram outra grave consequencia. Elas influenciaram 0 conceito que 0 homem comum, 0 nao-filosofo, fez da aQao ao longo da historia. E, indiretamente, acabaram influindo na compreensao do que seja vida politica e, por conseguinte, na propria ocorrencia de experiencias politicas autenticas atraves dos tempos . A esfera politica perdeu 0 sentido primordial que tinha para os gregos - de dominio que permitia a revelaQao da identidade singular do agente , seu aparecimento e imOItalizaQao pOI atos e palavras grandiosos - e passou simplesmente a coincidir com a esfera do governo e da administraQao da vida comum.

Vemos que nao e de pouca monta 0 papel que Hannah Arendt confere a tradiQao filosofica na historia dos descaminhos da aQao . A tal ponto julga determinante a autoridade dessa tradiQao, que somente cre possivel 0 cumprimento de tres tarefas urgentes - 0 resgate das experiencias politicas que jazem esquecidas , a compreensao de seus mais relevantes aspectos e a reconstituiQao do verdadeiro valor da politica na vida do homem - quando essa tradiQao chegar a seu fim. E precisamente num tal momenta que ela entende viver, momenta privilegiado, como 0 estima, por permitir tanto que nos liberemos da autoridade dos pressupostos dessa tradiQao, quanto os primeiros passos na realizaQao daquelas tres tarefas, que tern afinal 0 sentido de fundaQao de uma nova, e desta feita autentica, filosofia da vida politica. Entretanto, parece a ela que tal funda<;:ao s6 sera possivel se preliminarmente se percorrerem as 

 

entr e a hlosoha e a aQao c1mante a \Ji"genc\:a. Qo. tmQi"c;ao . Esso. In\J estlQo.c;aa se to.7. indispensavel porque so ela permitira responder a uma inquietaQao basica, consequencia natural da experiencia de uma longa tradiQao de filosofia antipolitica, vale dizer : se uma tal empreitada, uma filosofia pro-politica, e possive!.

A historia do relacionamen to en tre a fj]oso!ia e a a930, afirma Hannah Arendt, e a de urn conflito, nao tanto da parte dos h om ens de a r;ao para com os h om ens de pensam en to, quanto do oposto . Sao raros na historia os fatos que comprovam a hostilidade dos primeiros em relaQao aos ultimos, mas do inverso encontramos varios indicios.3 Essa constataQao conduz a uma duvida primordial : por que, na tradiQao ocidental, 0 filosofo, cuja vida 8 integralmente dedicada ao pensamento, sempre suspeitou, mal entendeu e se voltou contra a vida politica, cujo centro 8 a ac;:ao? Tal pergunta remeteria a outras duas. 0 conflito entre a filosofia e a politica 8 reflexo de uma oposic;:ao radical entre pensar e agir, decorrencia da diversidade de natureza dessas duas atividades, e portanto incontomavel? Ou, nao obstante as diferenc;:as de natureza entre as duas atividades, elas nao sao incompativeis , mas uma conciliac;:ao e possivel? Pelo que , nesta ultima hipotese, 0 conflito entre a filosofia e a politica talvez seja apenas resultado do modo particular, profissional, com que 0 filosofo vive a atividade de pensar.

E para responder a essas questoes que Hannah Arendt empreende uma inflexao em sua trajetoria e procede a incursao pelo tema classico da tradic;:ao filosofica, a vida do espirito. A visitac;:ao dos temas mais caros a metafisica, de suas falacias e conceitos, assume dessa forma 0 sentido de busca de resposta a propria questao da possibilidade de uma autentica filosofia politica. Faz-se necessario percorrer as experiencias do ego pensante, a fim de poder decidir se, ao se falar em filosofia politica, se esta enunciando ou nao uma contradic;:ao nos proprios termos . E a conclusao de Hannah Arendt 8 que, nao obstante pensamento e ac;:ao tenham naturezas bastante diversas e ate mesmo , pode-se dizer , opostas ponto a ponto , tal diversidade e oposic;:ao nao sao suficientes para se estar impedido de conceber qualquer conciliac;:ao entre as duas atividades. Deve ser possivel sim e, mais do que isso, 8 imprescindivel - em vista das fun c;:oes insubstituiveis que 0 pensar des dobra nas diversas esferas da vida pratica do homem - resgatar e revalorizar, para a18m de todas as diferenc;:as, as estreitas conexoes entre pensar e agir. Tais conexoes deveriam ser buscadas, por sua vez , nao no uso teorico, cientifico, ou profissional que 0 filosofo faz do pensamento, mas antes no usa pratico que 0 homem comum faz dele . Pois neste usa, a contradic;:ao, que assume fortes tintas e se radicaliza na experiencia do filosofo , se atenua e, par assim dizer, desaparece.

As analises dos dois volumes de A vida do espirito, devotadas as atividades mentais do pensamento, da vontade e do juizo, revestem explicitamente a forma de uma visitac;:ao dos fragmentos de uma tradic;:ao filosofica ja desmantelada e sem autoridade.4 Tendo por finalidade trazer a luz, a superficie 0 que se encontra at8 entao encoberto, nao explicitado , qual seja : as experiencias vividas pelo filosofo, subjacentes a sua concepQao dessas tres atividades mentais . 0 ponto de mira da autora e precisamente a conexao entre a conceitualizaQao de cada atividade e a vivencia que 0 filosofo teve dela. Urn pressuposto da analise e 0 de que a maneira pela qual certa atividade mental e compreendida pelo filosofo e decorrencia direta das experiencias por ele vividas no exercicio dessa atividade . Alguns conceitos centrais da metafisica grega serao compreendidos como "falacias" elaboradas em decorrencia de vivencias do filosofo com a atividade de pensar .5 A investigaQao das experiencias do ego pensante nao e, contudo , tarefa facilmente realizavel, pois , avalia Hannah Arendt, embora encontremos na historia da filosofia muito sobre os obj etos do pensamento, pouco encontramos sobre 0 proprio processo de pensar e as experiencias do ego pensante 6

A arqueologia das experiencias do filosofo com 0 pensamento levou Hannah Arendt a descoberta de tres pressupostos caros a tradiQao filosofica, relacionados respectivamente a tres pontos : a quem compete exercer 0 pensamento, qual deve ser seu objeto e em que condiQoes ele deve ser exercido. Em primeiro lugar, esta sempre presumiu ser 0 pensar, em sentido estrito, prerrogativa de alguns poucos, os pensadores profissionais , os proprios filosofos. Entendendo que somente os que muito esforQo tivessem despendido na aquisiQao de refinadas tecnicas de raciocinio poderiam, rigorosamente falando, exercer 0 pensamento . Tal fazia que os m uitos, h oi polloi, os homens comuns, em sua vida quotidiana, nao exercessem, estritamente falando, 0 pensamento . Aquilo que estes faziam nao se podia chamar em sentido proprio "pensar" . Alem disso, a tradiQao filosofica sempre afirmou a convicQao de que 0 verdadeiro legitimo usa do pensamento ocorre apenas na busca de conhecimento .7 A atividade de pensar se exerce stricto sensu quando se move por uma finalidade cientifica, por uma sede de conhecim en to. 0 pensamento , quando se poe a serviQo do conhecimento, se transforma na busca de resposta a uma questao dada. Ora, em contraste com essa definiQao de uso verdadeiro e legitimo do pensamento, aquele que 0 homem comum em sua vida quotidiana faz dele, eminentemente pratico, p6de ser considerado pela filosofia inapropriado , deslocado e propriamente exterior as mais autenticas potencialidades dessa atividade . Tal significa, numa palavra, que a filosofia sempre acreditou ser a verdadeira vocaQao do pensamento teorica e nao pratica.

o terceiro pressuposto da tradiQao filosofica fora que a solidao e a quietude absolutas sao condiQoes necessarias ao estrito exercicio do pensamento . Pensar, tal como entendido pelos que a mais justo titulo julgavam exerce-Io, exigia uma dupla abstenQao , cujo sentido e de uma radical retira da do mun do: abstenQao da companhia dos homens, que permitiria 0 recolhimento a solidao da contemplaQao , e abstenQao das ocupaQoes da vida quotidiana, a tim de alcanQar a quietude, imprescindivel ao desdobramento de refinados encadeamentos de raciocinio. Mais uma vez, 0 pensamento em sentido estrito e atividade estranha ao homem comum em sua vida pratica no mundo. Posto que nesta ele se encontra a todo momenta na companhia de outros e ativamente envolvido com as tarefas necessarias a sua existencia, que sao tres diferentes formas de fazer: urn destinado a perpetuar a vida biologica, 0 labor ; outro, a erigir 0 conjunto de artefatos que compoe 0 mundo e 0 faz duradouro para alem das gerac; oes humanas, 0 trabalho ; e, por fim, aquele destinado a prover 0 homem com uma existencia politica, a ac;ao . Faltam- lhe , assim, precisamente, as condic;oes previas ao que se julga ser 0 unico legitimo uso dessa atividade .8

Esses tres pressupostos desempenharam 0 papel de axiomas , de verdades necessarias, e desfrutaram autoridade por toda a durac;ao da tradic;ao filosofica. E tinham por ponto consensual a ideia de que 0 pensamento em sentido forte nao encontrava nenhum espac; o na vida do homem comum, e nenhuma semelhanc;a guardava com o que este denominava pensar . A consequencia principal desses pressupostos fora a introduc;ao pela filosofia da ideia de duas formas de vida radicalmente opostas : a vita con tempiativa do filosofo, centrada no pensar, e a vita activa do homem comum, centrada no fazer. Dois estilos profundamente diversos e cuidadosamente excludentes ponto a ponto eram desenhados pelo filosofo em cada uma dessas duas formas de vida. Alguem que se dedicasse a uma, estava automaticamente excluido da outra, por serem elas incomunicaveis entre si, uma vez que pensar e fazer eram, por definic;ao, incompativeis . Hannah Arendt pensa que a separac;ao forjada pelo filosofo entre as duas formas de vida pode explicar muito do fracasso da tradic;ao em elaborar uma autentica filosofia politica, uma filosofia que desse conta de apreender e conceituar os mais legitimos aspectos da vida politica.

A principal preocupac;ao de Hannah Arendt e por em suspeic;ao essa oposic;ao radical e sistematica entre pensar e fazer, pretendida pelo filosofo . Ela reconhece sim a profunda contradic;ao entre a vida do filosofo e a vida do homem de ac;ao , que a tradic;ao obteve , afinal, sucesso em instaurar. Mas nega que a partir disso se possa postular, deduzir ou justificar qualquer incompatibilidade estrutural entre pensar e fazer, ou entre 0 pensamento e a vida pratica do homem. E poe em questao 0 carater de verdade evidente, de axioma, de cada urn dos tres pressupostos da tradic;ao, relativamente ao lugar natural do pensamento, a seu objeto proprio, e as condic; oes necessarias a seu desdobramento . Lanc;a duvidas sobre estar 0 pensamento mal abrigado, mal situado, e propriamente out of order, na vida pratica do homem. Deseja, portanto, em aberta contradic;ao com a tradic;ao filosofica, refutar cada urn desses tres pressupostos e demonstrar que 0 pensamento tern sim urn lugar proprio na vida do ho- mem comum, e mais, que e sobretudo il que pode te-lo . Pretende negar que pensar seja percorrer refinadas cadeias de raciocinio, segundo regras logicas estritas, tendo por finalidade a busca de conhecimento e dando origem a respostas de admissao compuls6ria. Pensar, numa palavra, nao e a atividade que se tornou com a filosofia : 0 monop6lio de poucos e a serva da ciencia. Se veio a se transformar nisso, foi antes pOI uma especie de deforma9ao e de desvirtuamento, do que por voca9ao mais natural. Alem disso, embora a solidao e a absten9ao de Ocupa90es sejam de fato dois requisitos do pensar, de forma alguma essa atividade se confunde com 0 absoluto isolamento e a absoluta inatividade, como pretendia a tradi9ao. Descoberta que tern ja 0 poder de diminuir 0 fossa entre essa atividade mental e a vida do homem comum, plena de companhia e Ocupa90es . Acerca desse ousado projeto de subversao radical da concep9ao tradicional de pensamento, podem se levantar duas ordens de questoes . A primeira delas diz respeito a necessidade de urn tal projeto, ainda nao esta integralmente explicitada. Sabemos que a demonstra9ao da compatibilidade entre pensar e agir e importante para tomar possivel uma filosofia da politica ; entretanto, por que Hannah Arendt vai mais alem e julga necessario tambem negar que 0 lugar natural do pensamento seja a vida filos6fica e afirmar justamente 0 oposto, isto e, que 0 lugar natural dessa atividade mental e a vida pratica do homem comum no mundo? A que necessidade atende a restitui98.0 do pensamento a vida do homem de a9ao, de onde, segundo Hannah Arendt, ele foi usurpado pelo fil6sofo, que dele fez seu monop6lio, sem que entretanto dispusesse de direito para isso? A segunda ordem de questoes diz respeito a viabilidade de urn tal projeto . Ate onde podem ser superadas as divergencias, reconhecidas pela pr6pria Hannah Arendt, entre pensar e fazer, de modo a poderem coexistir e encontrar a igual titulo lugar pr6prio na vida do homem comum? E ainda, ate onde e possivel resgatar 0 pensamento do monop6lio filos6fico, e nesse movimento negar os usos te6rico e cientifico a que ele sempre se prestou?

Quanto a primeira ordem de questoes, encontramo-la claramente tratada por Hannah Arendt. Do pensamento depende a ativa9ao de duas fun90es preventivas CIuciais a vida pratica do homem: uma, etica, e outra, politica. Para nossa autora, 0 pensamento tern nada menos que 0 poder de regula9ao etica da conduta, de preven9ao do mal na esfera dos assuntos humanos. A segunda fun9ao e igualmente preventiva, trata-se agora de prevenir a possibilidade de regimes politicos capazes de subverter radicalmente e de urn momenta a outro os mais caros valores e principios conquistados pelos homens em sua vida comum no decorrer da hist6ria. Vejamos melhor 0 significado de cada funQao .

o pensamento nao pode ser usurpado, como foi, da vida pratica e transformado em monopolio de poucos , porque a ele cabe desempenhar papel fundamental na esfera dos assuntos humanos . It prerrogativa dele, e nao do Mbito ou 0 costume, como muitos acreditaram, a regula9ao etica da conduta 9 Ao afirmar essa estreita vinculaQao entre pensamento e conduta moral, Hannah Arendt esta retomando 0 intelectualismo-moral de Socrates. Os dialogos socraticos serao, e preciso acrescentar, a mais importante fonte de inspiraQao para sua concepQao de pensamento . Socrates estava certo ao convidar seus concidadaos para a investigaQao da natureza da justiQa, da coragem, da pie dade e demais virtudes, acreditando que tal discussao teria 0 poder de trazer modificaQiSes a suas condutas . Entretanto, a eficacia dessa investigaQao na prevenQao da rna conduta adviria, cre ela, nao propriamente dos resultados positivos eventualmente obtidos, ou seja, das definiQiSes encontradas, que, pensariamos, funcionariam como regras morais praticas, e sim, antes, do proprio exercicio de pensar que 0 processo de investigaQao pressupiSe, independentemente de gerar ou nao respostas finais as questiSes levantadas . 0 simples pensar tern por si urn efeito de regulaQao moral, forneQa ele ou nao resultados positivos aplicaveis a conduta. Seria precisamente esse efeito, provocar a reflexao, a que Socrates visava ao convidar os interlocutores a pesquisa das virtudes .

Mas por quais mecanismos 0 mero pensar produz 0 efeito de prevenQao do mal? Na investigaQao das experiencias do ego pensante, Hannah Arendt descobriu que 0 pensamento nada tern de absoluta quietude e solidao, como pensara a tradiQao, mas e pleno de atividade e companhia. Ele possui duas qualidades intimamente conectadas, a reflexividade e a dualidade . Pela primeira, consiste no dobrar-se sobre si mesmo do eu; pela segunda, na atualizaQao da fissao do eu nos dois interlocutores que compiSem a consciencia.10 Pensar nada mais e que 0 dialogo interior entre os dois parceiros que surgem quando alguem se retira do mundo presentemente dado aos sentidos e passa a contemplar 0 invisivel. Eis que, afinal, Hannah Arendt comeQa a nos dar pistas do que entende por pensar. Na medida em que e reflexivo, 0 dobrar-se sobre si proprio, e pleno de atividade, porque e urn agir sobre si mesmo, apesar de se tratar de uma atividade interna a mente e retirada do mundo . Na medida em que e dual, a atualizaQao da divisao do eu nos dois parceiros, e pleno de companhia. Ora, o efeito de prevenQao do mal se produz no mero exercicio de pensar, ainda que nao de surgimento a resultados positivos, porque a amizade entre os parceiros que surgem da instauraQao da consciencia e condiQao sine qua n on desse exercicio. A pratica do mal afasta qualquer possibilidade de amizade entre os parceiros, porque urn, tendo testemunhado 0 mal praticado pelo outro, nao suportaria ter urn malfeitor por companhia. Em nome da possibilidade de instauraQao desse espaQo interno do pensamento, a consciencia, e do dialogo entre os parceiros que dela surgem, a pratica do mal podera ser evitada. ll Destaca, contudo , Hannah Arendt, de modo curioso, que tal efeito de prevenQao do mal, malgrado a importancia que tenha para os assuntos humanos, e apenas urn by product do pensamento, e nao sua finalidade pr6pria 12 Ele 0 produz nao como urn efeito intentado, mas como algo que circunstancialmente e produzido no decorrer do processo de pensamento . Nossa autora repete incansavelmente que estariamos equivocados quanto as finalidades do pensamento, se 0 concebessemos voltado pOI natureza a produQao de urn efeito moral. Nao deixa, sem dlivida, de causar estranheza ve-Ia conferir ao que nao passa de simples by product funQao tao vital para os assuntos humanos : a de alicerce mais firme da moral.

Da mesma forma que em sua funQao etica 0 pensamento se desdobra nao propriamente fornecendo regras praticas de conduta - a maneira dos dialogos socraticos, sempre aporeticos - mas preventivamente , indicando 0 que nao se deve fazer, como o daimon socratico, tambem em sua funQao politica 0 pensamento agira antes para prevenir situaQoes politicas de emergencia que propriamente para fornecer soluQoes aos problemas politicos . E 0 que entende Hannah Arendt por em ergencia politica? E preciso ter presente que boa parte de seus textos preocupa-se em dar inteligibilidade a determinado fen6meno politico contemporaneo : os regimes totalitarios. Para ela, esses regimes tern 0 sentido de situaQoes de emergencia politica por modificarem a deformaQao a esfera dos assuntos human os, introduzindo nela ideias e praticas sem precedentes em nossa hist6ria e fazendo cair pOI terra os mais s6lidos e fundamentais valores politicos e eticos . Valores estes que, testados a exaustao por varias geraQoes, conferiam a essa esfera estabilidade e confiabilidade . Ora, de que maneira pode 0 pensamento estar a serviQo da prevenQao de tais situaQoes de emergencia politica?

A atividade de pensar, tal como concebida pOI Hannah Arendt, encontra, ja 0 dissemos, seu paradigma maximo nos dialogos socraticos . 0 que fazia S6crates era convidar seus concidadaos a pensar sobre os valores liltimos que guiam sua conduta, a justiQa, a coragem, a piedade , a beleza etc. 0 pensar em geral tern por objeto 0 invisivel, 0 ausente aos sentidos, tal como 0 sao os conceitos, as ideias, as categorias etc. 0 pensar, tal como proposto pOI S6crates , em sua vocaQao pratica, toma por objeto os invisiveis da esfera dos assuntos humanos , isto e, os valores ou as medidas invisiveis. E 0 que faz 0 pensar com tais valores e particularmente importante : pergunta por seu significado. Que nao sera, contudo, jamais encontrado, uma vez que pensar e pura en ergeia, atividade que, no sentido aristotelico do termo, nao deixa nenhum produto atras de si . Entretanto, os efeitos do pensar nao se esgotam nessa ausencia de resultados positivos, de regras que , decifrando 0 valor em questao , pudessem orientar a conduta. Ele acarreta ainda resultados propriamente negativos, ao fazer que 0 valor investigado se tome, ap6s suas investiduras criticas, mais esvaziado e menos convincente aquele que deseja leva-lo a pratica. Desse modo, 0 pensamento nao apenas nao constitui novos valores ou reconstitui os velhos, como tambem significa seria amea9a a manuten9ao destes ultimos . 1 3 0 perigo permanente do pensar, adverte Hannah Arendt, e 0 niilismo , a recusa absoluta de qualquer valor. Resta saber como pode ainda, neste quadro, visualizar uma func;ao politica positiva para 0 pensamento. Essa func;ao , cre Arendt, se mostra de modo claro em presenc;a de situac;aes de emergencia politica, possiveis precisamente grac;as a ausencia de pensamento . Quando, em certa sociedade, os homens, desabituados do exercicio de pensar, obedecem maquinalmente aos costumes e regras de conduta, qualquer urn, bastando que 0 deseje, pode alterar radicalmente 0 conteudo de tais regras . Se estes nao tern 0 Mbito de pensar, de se perguntar pelo sentido de tais regras, qualquer aventureiro pode alterar a deforrna<;:ao a esfera dos assuntos hurnanos. Foi precisamente isso , aos olhos de Hannah Arendt, que ocorrera na sociedade alema durante 0 nazismo . A ausencia do exercicio saneador do pensamento tomara possiveis, e mesmo assimilaveis e rotineiras, praticas consideradas inconcebiveis e inadmissiveis por toda a historia ocidental.14 A razao pela qual 0 pensamento deve ser recuperado da vida filos6fica e devolvido a vida pratica do homem e que ele reveste ai , vimos, a func;ao de alicerce mais firme da moral, mas ao lado desta reveste tambem a func;ao de alicerce mais firme da politica.

Passemos agora a segunda ordem de questaes, relacionada a viabilidade da conciliac;ao entre pensamento e ac;ao, em vista da diversidade de natureza existente entre essas atividades .

A diferenc;a primordial entre essas duas atividades reside no fato de ser a ac;ao uma atividade sediada e pertencente ao mundo de aparencias e 0 pensamento proceder justamente a uma retirada radical desse mundo . Tal diferenc;a mostra ainda mais sua profundidade na medida em que a ac;ao, das atividades desdobradas no mundo , a vita activa, e a que mais se enraiza e pertence a ele . 0 pensamento, por sua vez, e das atividades mentais a que na maior intensidade 0 abandona e se retira dele . Temos , assim, diante de n6s, nao uma oposi9ao parcial, mas uma oposi9ao total entre as duas atividades .

Sendo este urn m undo de aparen cias, tudo 0 que nele existe ai esta como algo a ser visto por alguem. Existir nesse mundo significa dispor de qualidades que permitam tanto aparecer aos demais como ser espectador de seu aparecimento . Tal mundo tern, como 0 caracteriza Hannah Arendt, a fei9ao de urn teatro , com atores, espectadores e performan ces. Se 0 aparecimento e a visibilidade sao atributos definidares desse mundo de aparencias, a a9ao e, por sua vez , a atividade da vita a ctiva que mais the e pr6pria e congenere . Pois, sendo a finalidade do labor e do trabalho respectivamente a reprodu9ao da vida e a produ9ao do artefato humano, em nada dependem da visibilidade ou do aparecimento nesse mundo . Sendo, por sua vez, a finalidade da a9ao a revela9ao da identidade singular do agente, ela e inteiramente dependente da presen9a de urn publico que acolha tal revela9ao e a mantenha na mem6ria, unica maneira pela qual os atos humanos, fugazes que sao, podem ter alguma existencia para alem do instante de sua performan ce.

o pensamento e, dissemos, das tres atividades mentais a que mais se retira do mundo. Todas estas operam num certo grau uma retirada do mundo, pOis nelas a mente sempre realiza 0 mesmo movimento de cessa9ao da percep9ao do mundo presentemente dado aos sentidos e volta-se para 0 que esta ausente nele . 0 eu, enquanto quer ou enquanto julga, abandona esse mundo para contemplar 0 que esta ausente nele, 0 futuro, objeto da vontade, e o passado, objeto do juizo. Mas nessas duas atividades, tal abandono e somente temporario, uma vez que 0 retorno ao mundo faz igualmente parte de seu desdobramento, que guardam, por esse meio, la90s com ele .

o pensamento , por sua vez, dele se retira sem retornar, pois essa atividade nao possui, como 0 juizo e a vontade, uma continua9ao de seu desdobramento no mundo . Outra diferen9a fundamental entre 0 pensamento e as duas outras atividades esta no tipo de ausente com que lida. 0 objeto do pensamento esta ausente desse mundo num sentido mais forte do que os objetos das outras atividades . 0 ausente do pensamento nao e urn ausente qualquer, como urn determinado objeto do mundo de que posso fazer a imagem mental quando nao esta presente a meus sentidos. Para Hannah Arendt, 0 ausente, verdadeiro objeto do pensamento , sao os conceitos, as categorias, as ideias etc. ; isto e, entidades que nao pertencem ao mundo dado aos sentidos, mas que foram construidas por meio de urn trabalho - a abstra9ao - da pr6pria mente. Nesse sentido, 0 pensar tern objetos muito parecidos com os da metafisica. De maneira curiosa, Hannah Arendt parece estar de acordo com a tradi9ao filos6fica quanto ao que vern a ser pensar e quais sao seus objetos pr6prios. Resta saber como mostrara ser 0 pensamento assim entendido , como atividade cujo objeto e urn ausente construido pela mente e que realiza uma retirada ra dical do mundo, compativel com a vida pratica do homem no mundo de aparencias .

Na verdade, Hannah Arendt parece nao ver ai , propriamente, obstacu10 a concilia9ao entre 0 pensamento e a vida pratica do homem. Diz-nos e1a, inicialmente, que nao e de forma alguma estranha para 0 homem comum essa atividade que tern por obj eto certo tipo de ausente do mundo . Por exemplo, quando esse homem elabora em est6ria urn acontecimento que presenciou ou quando escreve urn poema, ocone uma certa conceituaQao . Mas , mais do que isso, Hannah Arendt cre mesmo que antes de ter-se tornado monop6lio da filosofia , 0 pensamento estava integrado , e bern, a vida do homem comum, e, alem disso, que as questoes metafisicas com que a filosofia sempre se debateu sao originarias na verdade das experiencias do homem comum. 15 Prova de que essa atividade e perfeitamente compativel com a vida de ocupa­

Qoes do homem comum e nada menos que a vida do pr6prio S6crates, que se movia da esfera do pensamento para a da aQao, e vice-versa, sem qualquer embaraQo. 16 A oposiQao extrema entre pensamento e aQao, embora inecusavel, nao chega, esforQase por mostrar Hannah Arendt, a impossibilitar a conciliaQao entre ambos na vida do homem comum. E, ao contrario, apenas quando 0 pensamento se torna atividade exclusiva do fi16sofo, urn pensador profissional, que a oposiQao entre pensamento e aQao se faz intransponiveP7 No mais , 0 pensamento indica mesmo potencialidades para a conciliaQao com a aQao . Na medida em que e 0 dialogo interior entre os dois parceiros que surgem da divisao do eu, manifesta duas potencialidades propriamente politicas e mundanas : a pluralidade, lei da terra , e 0 consenso, principio de geraQao do poder na esfera publica. Alem disso, na medida em que instala urn espaQo de nao-tempo no coraQao do tempo, onde vern se apresentar 0 passado e o futuro, exibe uma outra potencialidade politica: a de permitir a comunicaQao entre as geraQoes humanas na Terra. Numa situaQao de emergencia politica, vimos, 0 pensamento tern 0 poder saneador de prevenir falsos valores e crenQas e, por conseguinte, 0 poder de nos preparar para a faculdade do juizo, a mais politica das atividades mentais (Ibidem, p. 144). Por essas razoes, as quais se soma a funQao etica, que referimos, vemos que 0 pensamento guarda importantes afinidades com a aQao , a politica e 0 mundo de aparencias . Hannah Arendt, embora descubra, em sua visitaQao dos escombros da tradiQao filos6fica, as razoes por que a filosofia sempre se voltou contra a aQao e a politica , 18 recusa-se a acreditar que essa atividade do pensamento nao tenha urn lugar pr6prio na vida do homem comum, que nunca possa " encontrar urn lar adequado no mundo" (p .20).

 

FRANCISCO, M. de F. S. Thinking and action in Hannah Arendt. TranslFormlAr;ao (Sao Pa ulo),

v. 19, p. 163- 175, 1996.

 

ABSTRACT: This paper intends to investigate in Hannah Arendt's last work The Life of the Mind the relationship between thinking and action, which is in the origin of the conflict between philosophy and politics and has influenced the whole philosophical tradition. Arendt aims to show that these two a ctivities are not by themselves incompatible with each other, as this tradition made efforts to establish. but they have become so through the "professional" philosophical use of thinking.

KEYWORDS: Action; thinking; philosophical tradition.

 

 

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[1] Departamento de Filosofia da Educac;ao e Ciencias da Educac;ao - Faculdade de Educac;ao - USP - 05508-900 - Sao Paulo - SP. Doutoranda no Depto. de Filosofia - FFLCH - USP.