A ORIGEM DO CONCEITO DE MULTIPLICIDADE SEGUNDO GILLES DELEUZE

 

Helio Rebello CARDOSO JUNIOR[1]

 

   RESUMO : Para que o conceito de multiplicidade se tornasse um elemento central em seu pensamento, Deleuze se lanca a uma intensa pesçuisa, procurando, tanto na teoria da fisica de Riemann çuanta na filosofia de Bergson, o usa que estes autores fazem da multiplicidade. Justamente nesse esforco, pode-se observar nao apenas a alianca que Deleuze estabelece com certos autores, mas o canHer peculiar da criacao deleuzeana de conceitos. Com efeito, a renovacao das noc6es de tempo e de espaco nas noc6es riemanniana e bergsoniana de multiplicidade perfaz a originalidade deste mesmo conceito em sua formulacao deleuzeana, pOis ele adçuire ai um alcance ontol6gico.

   PALAVRAS- CHAVE: Multiplicidade; Deleuze; Bergson; Riemann.

 

Pesçuisas deleuzeanas visando ao conceito de multiplicidade

 

Conceito de m ultiplicidade e o problema do uno e do mtiltiplo

 

A m ultiplicida de e apresentada como conceito no livro dedicado a Bergson de 1966. Ai, Deleuze procura definir tipos de multiplicidade, tendo em vista a teoria fi­ sico-matematica de Riemann e o tratamento filosófico que the confere Bergson. Trata-se,

portanto, de uma alian<;a filos6fica com Bergson, e outra, de fei<;ao interdisciplinar, com a ciencia. Por outro lado , o nascimento do conceito de multiplicidade em sua rela<;ao com a fisica relativista e com a filosofia da dura<;ao de Bergson, nas çuais fica em destaque sua acep<;ao temporal, nao esgota a teoria deleuzeana das multiplici­ dades. Sendo assim, para enterdermos por que a teoria deleuzeana das multiplicida­ des nao fica restrita ao registro da filosofia de Bergson, nem ao da teoria fisico-ma­ tematica de Riemann, e necessario averiguar çuais as linhas de for<;a que Deleuze recolhe dessas tentativas de definir o conceito de multiplicidade , e que, afinal, lhe fornecern urn ponto de partida.

Segundo Deleuze, a primeira regra do metoda filosófico de Bergson seria a de fazer a prova do verdadeiro e do falso nos pr6prios problemas , antes de submeter a mesma prova as solu<; oes desses problemas , assunto que trataremos urn pouco adian­ teo Nao se trata, absolutamente, de çualificar como verdadeiro o problema que oferece uma soluc;ao, e como falso o que nao a oferece. Todo problema merece a soluc;ao que a sua posic;ao proporciona. Assim, os problemas verdadeiros sao aqueles que recon­ ciliam a verdade e a criac;ao em nivel de sua formulac;ao (1966 , p.3). Mas , de que maneira a posic;ao dos problemas atuaria sobre o conceito de multiplicidade?

Justamente, a definição do conceito de multiplicidade foi bloqueada na história da filosofia porque sua formulac;ao se inicia com urn problema mal colocado, Qual sejá, o da relac;ao do par uno-multiplo. Para ser mais preciso, pode-se dizer que o conceito de multiplicidade nao se autonomiza ençuanto as relac;oes entre o uno e o multiplo forem compreendidas como urn misto de suas respectivas determinac;oes, isto e, çuando o multiplo e dito expor o que o uno já contem ou çuando o uno e tornado como o recolhimento do que o multiplo dele expoe.

A tentativa de Bergson, segundo Deleuze (ibidem) , teria sido a de demonstrar que as determinac;oes reciprocas do uno e do multiplo podem misturar indevidamente elementos que diferem em natureza, de modo que seria possivel desfazer esse misto separando os termos que nele aparecem confusos. çuando essa depurac;ao do misto se completasse, as determinac;oes do par uno-multiplo poderiam ser finalmente coloca­ das sob os auspicios de urn problema verdadeiro que explicaria a genese do uno e do multiplo sob o campo de forc;as do conceito de multiplicidade; isto e, os termos do par uno- multiplo, ao contrario de sua vigencia na hist6ria da filosofia, nao seriam considerados de modo que aquele aparecesse como originario, já que principio on­ tol6gico ou essencia do ser, e este, o multiplo , como derivativo, fenomenico, como uma dispersao empirica em que o uno se estilhac;a ou se ofusca, mas para se difundir, para se manter latente, e, enfim, ser recolhido ou reencontrado nos cacos do multiplo. Ou, em outras palavras, pode-se dizer que com o conceito de multiplicidade , o mul­ tiplo deixa de ser o adjetivo que çualifica ou manifesta o substantivo uno , para receber, ele tambem, uma definic;ao substancial.

Desde que o conceito de multiplicidade opera essa reviravolta no par uno-mul­ tiplo, surge nao mais o dualismo substantivo-adjetivo, mas uma tipologia das multipli­ cidades. De fato, Bergson define dois tipos de multiplicidade, a saber, "a de termos justapostos no espac;o e a dos estados que se fundem na durac;ao ", ou sejá, as mul­ tiplicidades numericas ou extensas e as multiplicidades çualitativas ou de durac;ao (p.8). Porem , precisamos perguntar a Deleuze por que esses dois tipos de multi­ plicidade sao definidos exatamente pela determinac; ao justaposir;ao de term os no espar;o e pela determinac;ao fusao de estados na durar;ao e, por que, enfim, tais de­ terminac; oes se confundiram constituindo urn empecilho , na hist6ria da filoso­ fia, para a emergencia do conceito de multiplicidade. Por que o dualismo do uno­ multiplo e uma confusao entre dois tipos de multiplicidade e por que essa confu­ sao e posta em evidencia, desde que D conceito de multiplicidade exerce sua func;ao depuradora?

 

Fragilidade do rnisto de espaço e duração

Ocone que todo o misto mal analisado tem por base a confusao entre espa9o e durac;ao. o espac;o apresenta apenas as diferen c;:as de gra us entre as coisas , ele segmenta a materia segundo o aumento e diminuic;ao de suas partes , por isso e um modo de abstrair a materialidade dos objetos segundo uma "homogeneidade çuan­ titativa". já a durac;ao apresenta a "heterogeneidade çualitativa" da materia, isto e, ela e uma "maneira de estar no tempo" que nao se reduz a çuantidades homogeneas, e par isso destaca a diferen c;:a de natureza entre os objetos e de um objeto consigo mesmo (p.23-24). Assim, por exemplo , sempre que o ac;ucar derrete na agua, certa­ mente , hB. uma diminuic;ao de grau - ele se dilui - relativa a materialidade formal. porem, igualmente, sua natureza se modifica, pois o ac;ucar passa de s6lido a liçuido, ocorrendo uma alterac;ao em sua materialidade substancial ou em sua essencia, que define um estado.

çuando o multiplo tem seu alcance formulado a partir das diferenc; as de grau no espac;o, a durac;ao, por seu tumo, homogeneiza-se, de modo que nao levamos em conta as diferenc;as de natureza ou alterac;oes do estado. Tal superposic;ao na formu­ laC;ao dos problemas e a origem dos mistos, e todo misto gera um dualismo como metoda filosófico. Tal e o caso da oposic;ao uno-multiplo na tradic;ao filos6fica. Neste dualismo , a essencia, que €l una e interior, desconhece as alterac; oes da natureza, e toma-se tao-somente o ponto de referencia do aumento/diminuic;ao de diferenc;as de grau nas partes da materia. Assim, o espac;o em vez de incorporar a variabilidade da essencia na durac;ao, passa a ser um "espac;o auxiliar" que representa exteriormente em suas graduac; oes a impassividade de uma essencia im6vel. Porem, em sentido contrario, no dualismo do uno- multiplo, a durac;ao deixa de apresentar as diferenc;as de natureza de uma essencia, e toma-se o duplo temporal das diferenc;as çuantitativas do espac; o auxiliar, ou sejá, a durac;ao mitiga-se em "tempo homogeneo ". o misto justapoe os graus dos objetos no espac;o, como multiplo, bem como alinha as distin­ c;oes na durac;ao como uno (p.29-3o).

Uma outra maneira de confundir a multiplicidade de espac; o com a multiplici­ dade de durac;ao seria identificar esta ultima com uma temporalidade que nao e ho­ mogenea ou linear, mas relativista, ençuanto o espac;o dependeria dessa relatividade do tempo. Porem, o conceito deleuzeano de multiplicidade nao e tambem um decal­ que do espac; o-tempo da fisica relativista, muito embora o conceito de multiplicidade ai formulado tambem sirva como ponto de partida para Deleuze.

 

 

Critica da noção de rnultiplicidade segundo urn espac;o-ternpo relativista

 

o metodo filosófico dualista, portanto, e originado pOI um problema mal colo­ cado, çual sejá, o das relac;oes entre espac;o e durac;ao, bem como e representado

pelo misto em que uno e multiplo aparecem em um par de opostos. Por isso , segundo Deleuze, o termo m ultiplicida de nao faz parte do vocabulario da filosofia. Foi preciso esperar que a ciencia, particularmente a teoria da relatividade, formulasse seu proprio conceito de multiplicidade para que a filosofia dai derivasse uma nova maneira de pensar e para que a multiplicidade, como conceito filosofico , fosse concebida. A partir dai, Deleuze procurara estabelecer contatos com pensadores, geralmente alheados da historia da filosofia tradicional, e igualmente com problemas de outras areas, dos çuais ele procurara extrair um elemento novo para sua teoria das multiplicidades.

De fato, ao tratar de Bergson, Deleuze (1 966) observa como esse filosofo já teria proposto um remanej amento na mane ira pela çual o fisico e matematico Riemann concebia a multiplicidade. Deleuze esclarece que, justamente nesse interesse de Bergson pela ciencia, a noc;:ao de multiplicidade comec;:a a ser dotada de alcance fi­ losofico, e observa que uma das principais consequencias dessa iniciativa seria que a teoria das multiplicidades alcanc;:a uma autonornia tal que já se tomava apta a fomecer uma critica sobre a formulac;:ao riemanniana que, alias, seria em parte adotada por Eins­ tein çuando da elaborac;:ao de sua Teoria da Relatividade. Vejámos como isso se da.

Para Riemann, as coisas poderiam ser classificadas em dois tipos de multiplici­ dades, a saber, as que sao determinadas em razao de suas dimensoes e as que sao determinadas em razao de variaveis independentes. A primeira delas e a "multiplici­ dade dis creta " , caracterizada pela definic;:ao de um principio metrico entre as partes que a compoem; o segundo tipo de multiplicidade e denominado "multiplicidade continua", pois ela en contra o seu principio metrico nao nas partes de seus elementos, mas em outra coisa, como em fen6menos ou em forc;:as que agem nessas multiplicidades e de­ pendem, portanto, nao do espac;:o, mas do tempo, ou melhor, elas definiriam o espac;:o­ tempo da relatividade. Assim, por um lado, as multiplicidades discretas sao as que podem ser expressas em termos numericos , dada sua caracterizac;:ao çuantitativa; por outro, as multiplicidades continuas sao nao numericas ou indivisiveis, visto que seu principio metrico depende de çualidades ou estados variaveis de seus elementos (p.31- 3).

E justamente çuanta a caracterizac;:ao das multiplicidades continuas que , se­ gundo Deleuze, Bergson pretendia aprofundar a propria teoria riemanniana das mul­ tiplicidades , pois esta ultima visava a reformular, ou precisar, a concepc;:ao cientifica de espac;:o, mas ao faze-lo consegue apenas definir as multiplicidades discretas do ponto de vista negativo, isto e, como uma noc;:ao de espac;:o, que envolve um principio ligado a estados temporais. Para Bergson, esta operac;:ao teria incorrido no eçuivoco de reeditar mais uma vez o misto espac;:o-durac;:ao, ao passo que , se o elemento proprio da multiplicidade fosse a durac;:ao , estaria preservada a distinc;:ao real entre esse tipo de multiplicidade e a multiplicidade discreta ou espacial, bem como a propria defi­ nic;:ao de multiplicidade se revestiria de um carater positivo.

Trocando os termos em miudo, isto quer dizer que, çuando um elemento de uma multiplicidade de durac;:ao (continua) se divide, a multiplicidade muda de natu­ reza, e nao apenas de referencia a um estado temporal como principio metrico. Contudo , mesmo Bergson nao leva a cabo esta critica. Sera Deleuze quem o fara ao restabelecer uma alianc;a da ciencia fisica com a filosotia bergsoniana a tim de ativar sua propria teoria das multiplicidades. Mas, como a critica do conceito de multipli­ cidade no ambito da fisica seria transferida ao campo da filosofia, sem que esta ultima fosse obrigada a se submeter a padriSes epistemologicos que the ditassem, do exterior, a tarefa de criar conceitos?

A critica de Deleuze a Bergson e a Riemann incide sobre o fato de que a sua formulac;ao do conceito de multiplicidade parece se restringir, em graus diferentes , como observamos, a uma tipologia das multiplicidades, nao ticando detinido clara­ mente o envolvimento que h8. entre os dois tipos de multiplicidade. Esta critica incidiria, igualmente, sobre outros momentos em que uma tipologia das multiplicidades faz as vezes de conceito , como , por exemplo , no dualismo entre as multiplicidades definidas por Husser!, entre as "multiplicidades de grandeza ou extensivas " e as " multiplicida­ des de distancia" de Meinong e Russel, e entre as "multiplicidades de massa" e as "multiplicidades de matilha" de Canetti (Deleuze & Guattari, 198o, p.45-6; Deleuze, 1986, p.23, 124 nota 46; 199o, p. 13o). De fato, Deleuze desejá elevar o alcance dessa tipologia a uma ontologia das multiplicidades, a tim de que os tipos ou regimes de multiplicidade nao corram o risco de se submeter a urn principio ontologico que nao estejá de acordo com a sua caracterizac;ao e que, por isso, ponha por terra a distinc;ao do conceito de multiplicidade.

 

 

Critica da definição do ser em termos de uno- multiplo

 

Ora, Bergson teria logrado transformar a tipologia riemanniana da multiplicidade

- discreta e con tin ua - em uma verdeira noc;ao de multiplicidade. Porem, de acordo com Deleuze, a propria tentativa bergsoniana teria abortado , pois ele nao conseguira dar a ela urn alcance ontologico, de modo a esclarecer de que maneira se daria a relac;ao entre multiplicidade de durac;ao e multiplicidade espacial, pois o dualismo ontologico do uno e do multiplo agora poderia retornar establecendo-se entre os dois tipos de multiplicidade e obliterando distinc;ao que o conceito desejáva conferir-lhe (1986, p.22). Porem vejámos , antes de mais nada, como a definic;ao do alcance onto­ logico da teoria deleuzeana das multiplicidades toma impulso a partir do interior da filosotia bergsoniana, pois em Bergson estao presentes todos os elementos para que esse intento sejá logrado.

Para Deleuze, o conceito de multiplicidade e importante, antes de mais nada, porque ele evita o pensamento abstrato , no que ele procura combinar dualmente uno e multiplo. Por exemplo, nao seria suticiente integrar ambos os termos ontologica­ mente, atirmando que o uno j s. e multiplo, que o uno passa no interior do multiplo, pois o uno assim concebido e geral demais. Esta concepc;ao das relac;iSes entre o uno e o multiplo seria insuficiente para compor urn conceito de multiplicidade porque de nada valeria a oposic;ao de urn conceito geral do uno a urn conceito geral de multiplo, se tal oposic;ao resultasse somente em uma unidade do multiplo igualmente abstrata, isto e, uma unidade ontologica que se desviara na fulgurac;ao do empirico para recobrar-se, para achar-se de novo por entre os caminhos do multiplo. Igualar o multiplo ao empirico , estando ele percorrido intrinsecamente pelo uno , e uma maneira de re­ baixa-lo do ponto de vista ontológico.

o que garantiria, entao , que o movimento do real, isto e, neste caso, do multiplo por meio do uno, nao fosse falseado por uma abstrac;ao? Deleuze responde peremp­ toriamente a esta indagac;ao : "nao se reunira jámais o concreto combinando-se a in­ suficiencia de urn conceito com a insuficiencia de seu oposto; nao se reunira o singular corrigindo uma generalidade por outra generalidade " (1966, p.38).

o grande eçuivoco deste "movimento do conceito abstrato" e observar a pro­ duc;ao do real em urn devir muito geral, no çual se perdem os seus matizes; matizes que sao por demais sutis e ariscos para as malhas da abstrac;ao. Entao, Deleuze nos convida a uma nova definic;ao de devir, uma definic; ao que o tome como movimento do real e simultaneamente como movimento do ser. Nao se deve, por urn lado, com­ preender o ser como uma origem (uno em geral) a partir da çual se instauraria o nao-ser como uma serie de gradac;oes ate seu retorno ao estado original; caso em que o devir e o multiplo sao concebidos como urn "intervalo " em que todas as coisas estao com­ preendidas. Nao se deve, por outro lado, opor ser e nao-ser como se fossem forc;as (multiplo em geral) que, ao se combinarem, produziriam todas as coisas; caso em que o devir e o multiplo teriam uma func;ao genetica, mas essa produc;ao das coisas dependeria de oposic;oes radicadas no real. Em ambos os casos, uno e multiplo combi­ nar-se-iam abstrata ou genericamente, porque o movimento do real e do devir estaria

de alguma maneira, fosse por degradac;ao fosse por oposic;ao, marcado por uma nega­ tividade em relac;ao ao ser. It que o negativo , que justamente combina ser e devir como degradac;ao e oposic;ao, como analisa Deleuze, impede que o ser sejá visto em suas "diferenc;as de natureza" e que o devir sejá as variac;oes dessas diferenc;as no

ser (p.41 -2).

Resumidas as criticas de Deleuze acerca do emprego do conceito de multipli­ cidade na ciencia e na filosofia, expliquemos melhor o alcance ontológico que este deve encerrar.

 

Alcance ontologico do conceito de multiplicidade

 

"Multiplicidade virtual " e "multiplicidade atual "

 

De acordo com Deleuze, pensar a multiplicidade da durac;ao e uma das progres­ soes da filosofia bergsoniana. A outra progressao seria redefinir a noc;ao cientifica de espac; o, procurando dar-lhe urn carater ontológico. A teo ria deleuzeana das mul­ tiplicidades, por sua vez , afina-se ao observar a novidade que o conceito filosófico de multiplicidade traria para a ciencia. Essa tentativa de caracterizar o espac; o como multiplicidade emergira novamente em varios pontos de seus trabalhos pos­ teriores , mas aparece enunciado basicamente na definic;ao de uma "geome-

 

tria operatoria ou projetiva" cuj o obj eto seria urn " espaço liso" ou "espaço çualquer" (Deleuze & Guattari, 198o, p.258, 451-2, 484-5, 6o5, 61o -1; Deleuze , 1985, p. 13, 16-7,

26, 167-9; 1993 , p.176-7). Basta , para os obj etivos do presente artigo , que indiquemos a maneira deleuzeana de integrar o espaço e a duraçao por intermedio de urn principio ontologico afeito a teoria das multiplicidades.

Antes de mais nada, e necessario resguardar-se de conceber o espaço apenas como uma desnaturaçao a que estaria sujeita a pureza da duraçao, pois e possivel trata-lo como uma relaçao entre as coisas e entre as duraçoes (Deleuze, 1966, p.25,

44). Abordar a ontologia sob o ponto de vista das diferenças de grau no espaço seria

perpetrar uma ilusao que contamina nao somente a filosofia, como tambem a ciencia; mas , em contrapartida, observar o espaço participando do ser como subproduto de uma atividade essencial, seria duplicar essa ilusao. Deleuze nos convida a compre­ ender o espac;:o e todas as atualizac;:oes da durac;:ao como participantes das virtuali­ dades do ser em suas diferenças de natureza. Evita-se, assim, que a multiplicidade espacial de Bergson recaia em urn dualismo em relac;:ao a multiplicidade de durac;:ao. Para tanto, Deleuze começa por criar uma terminologia propria. Denomina m ul­ tiplicidade virtual aquela marcada pelo tempo universal ou duraçao, e m ultiplicidade atual aquela marcada por uma pluralidade de tempos , cada urn correspondendo a uma linha de atualizaçao , e cada tempo atual e urn grau coexistente na unidade da durac;:ao, sendo o espac;:o, justamente , o elemento que acolhe as variaçoes da durac;:ao (p.l o3- 5). Sendo assim, os dois tipos de multiplicidade, dada a relaçao entre eles, definem urn sistema-m ultiplicidade

Nesse livro (1966) dedicado a Bergson, entao, observamos como o conceito de multiplicidade esta ligado ao problema da durac;:ao, pois e ele que permite nao so definir os dois tipos de multiplicidade, como tambem a relaçao sistemica entre eles. Porem, Deleuze ainda daria u rn passo adiante na definic;:ao do conceito de multipli­ cidade ao procurar esclarecer em minucia a relac;:ao desse conceito com urn problema, dando a este tambem u rn envolvimento direto com conceito de multiplicidade, uma vez que na filosofia de Bergson ele figurava apenas como diretor de urn metoda filo­ sofico para desfazer os mistos de espac;:o e duraçao e, dai, propiciar a formulac;:ao do conceito. Por isso, Diferen c;a e repetic;ao e L6gica do sentido sao livros- chave na teoria deleuzeana das multiplicidades. Neles, vemos a noc;:ao de problema adçuirir urn al­ cance ontologico ao mesmo tempo em que o conceito de multiplicidade ganha uma definic;:ao isenta de dualismos.

 

 

No�ao de problema e conceito de muItiplicidade

 

o alcance da relac;:ao entre o conceito de multiplicidade e o problema pode ser já apreendido no nivel mais geral de sua caracterizac;:ao terminologica, pois se a multi­ plicidade e urn sistema de diferenc;as (virtual e atual), o problema eçuivale ao conjunto de urn sistema de diferenc;:as!singularidades (1968, p. 161-2). Como elementos, pode-se afirmar que as diferenc;as convivem na multiplicidade, mas o problema e o que faz as

diferenc;as coexistirem. Nao basta que as diferenc;as/singularidades aparec;am juntas, e necessario ainda que o unico elo de ligac;ao entre elas sejá a pr6pria diferenc;a. o elo entre as diferenc;as e, por conseguinte, urn problema.

Nesta perspectiva e que Deleuze ira definir sua posic;ao em face da filosofia do cruculo. De fato , ele transforma o cmculo cliferencial em elemento dinfunico de sua filosofia. Isto porque, para ele, o caJ.culo diferencial deve deixar de ser a expressao matematica das soluc;oes para se tomar o elemento do problema por excelencia (p.235).

Como já observaramos , a atribuic;ao de verdade e falsidade nao comec;a com os casos de soluc;ao , mas com a posic;ao do pr6prio problema. Tal afirmac;ao possui dois sentidos importantes. Em primeiro lugar, cada problema tern a soluc;ao que merece de acordo com o carater de sua posic;ao. Em segundo, e a seu tumo, as condic;oes de posic;ao de urn problema nao desaparecem com a sua soluc;ao. Ambas as conse­ quencias daquela afirmac;ao procuram indicar, entao, que os problemas nunca sao dados, sao sim " objetidades ideais", o que lhes confere urn alcance transcendental; isto e, trata-se de urn ato do pensamento pelo çual, nas palavras de Deleuze, "o pro­ blema ou o sentido, e ao mesmo tempo o lugar de uma verdade originaria e a genese de uma verdade derivada" (p.2o7). Convem, portanto, indagar a Deleuze: de que ma­ neira convivem a origem e a derivac;ao da verdade no problema?

 

Problema: universalidade abstrata x singularidade concreta

 

Tal convivencia e possivel desde que o condicionamento de urn problema nao lhe sejá exterior. o rompimento dessa clausula de condicionamento intrinseco ocorre, em primeiro lugar, çuando imaginamos que os casos de soluc;ao de urn problema sao dados nas proposic;oes, de mane ira que se retroage das proposic;oes para perguntas

que lhes correspondem. Assim, haveria tantos problemas çuantos seriam as propo­ sic;oes enunciaveis. Essa exterioridade no condicionamento do problema Deleuze de­

nomina "ilusao 16gica". Nao obstante , essa ilusao 16gica ainda e duplicada por uma " i.lusao tilosofica". Esta ultima 'çerfaz uma exterioridade de condicionamento segundo a çual a forma dos problemas depende da forma da possibilidade das proposic;oes, isto e, os problemas devem ser formulados de acordo com a sua resolubilidade variavel, dependente de urn determinado elemento que pode ter uma feic;ao intrinseca, porem define urn universal, sejá ele a opiniao do senso comum ou uma opiniao cientifica baseada no calculo mate matico de probabilidades (1968 , p.2o7-1o; 1969 , p. 147). Em nenhum desses casos, com efeito, o problema define urn sentido intrinseco que estejá de acordo com a "produc;ao do verdadeiro no pensamento ", pois ambas as ilusoes caracterizam a recognic;ao da verdade, isto e, uma realimentac;ao entre a soluc;ao como possivel e o problema como dado.

Deleuze, justamente, procura reverter essas duas especies de ilusao indicando que, ao se de calcar os problemas dos casos de soluc;ao, o maximo que the pode ser conferido e uma generalidade abstrata correspondente a reuniao das respostas

 

particulares de cada proposiçao. Assim, por exemplo, Kant, se por urn lado, concebe a Ideia como problematica, por outro, descaracteriza o seu alcance ao submeter a serie das hipoteticas (proposiçoes particulares) a serie das categoricas (proposiçoes gerais). A fim de dirimir essa superposiçao entre problema e soluçao, os problemas devem ser entendidos eles proprios como "ideias", dando as soluçoes universalidade (1968, p.21o - 11 ). Mas essa universalidade do problema, como nao e abstrato, e for­ mado por relaçoes que, determinando as condiçoes do problema, transformam-no em uma singularidade con cre ta. o uni versal e a singular encontram -se como um pro­ blema que determina uma multiplicidade, de maneira que as casas de soluçao passam a ser avaliados pela repartiçao das condiçoes do problema, e nao pelo dualismo do falso/verdadeiro, valor de verdade que transfere ao problema a extensao das soluçoes (hipotetico ou categorico) , e nao uma intensidade que Ihe seria intrlnse ca.

Graças a essa caracterizaçao das multiplicidades problematicas, Deleuze pode afirmar que "elas nao sao essencias simples, mas complexas , m ultiplicidades de re­ laçoes e singularidades correspondentes " (p.212, grifo nosso). Reponhamos, portanto , tendo em vista os esclarecimentos precedentes sobre a nOçao de problema, a caracte­ rizaçao do conceito de multiplicidade, observando por via de que procedimentos o en contro entre a singular e a universal define uma tipologia das multiplicidades que esta isenta do dualismo em que incorreram as tentativas de filosofos e cientistas em definir o conceito de multiplicidade , como assinalamos acima.

 

 

Problema: componentes do conceito de multiplicidade

 

A distribuiçao das singularidades ou diferenças que determinam as condiçaes de urn problema nao sao ainda a soluçao, mas a genese dela. Por isso, e necessario distinguir, para a conceito de multiplicidade, tres componentes : "ligaçoes ideais " como condiçoes do problema ou multiplicidade virtual, como determinaçao dessas condiçaes, e "relaçoes atuais " ou multiplicidadade atual, como casos de soluçao

(1969, p. 144- 5). o conceito deleuzeano de multiplicidade somente se estabeleceria,

definitivamente, çuando as multiplicidades virtual e atual fossem imanentes uma a outra, sendo o principio dessa imanencia uma multiplicidade substantiva. A nOç8.o de pro­ blema e de importEmcia fundamantal para esse acabamento do conceito. o importante e, de que forma , no conceito de multiplicidade, esses componentes aparecem juntos. U rn problema e simultaneamente transcendente e imanente em relaçao aos casas de sua soluçao , Transcendente, porque, antes de mais nada, corresponde a urn "sistema de ligaçoes ideais ", que define a "instancia transcendente". Imanente, por­ que essas ligaçaes especificam-se em relaçaes atuais, definindo o "campo de reso­ lubilidade cientifica". Porem, nao existe nenhuma semelhança entre esses dois com­ ponentes, de maneira que a instan cia transcenden te pudesse decalcar suas ligaçoes das relaçaes do campo de resolubilidade, pois o terceiro componente (distribuiçao de singularidades) , que define o " campo simbolico " ou "problematico" , vern estabelecer

a coexistencia entre transcenden cia e imanencia do problema com relayao as suas soluyoes. Com efeito, a distribuiyao das singularidades no campo simb6lico determina as condiyoes (ligayoes ideais) da instancia transcendente, ao mesmo tempo que e a genese das relayoes atuais que definem o simbolismo. Sendo assim, çuais as conse­ quencias da convivencia desses tres fatores do problema como componentes do con­ ceito de multiplicidade?

Problema e soluyao sao univocos, sem que por isso sejám identicos, semelhantes ou analogos e, justamente grayas a esse carater, a sua convivencia corresponde a urn conceito de multiplicidade em que nao h8. oposiyao nem contradiyao entre o uno e o multiplo ou entre os dois tipos de multiplicidades (virtual e atual).

Urn problema, como alerta Deleuze, nao desaparece com as soluyoes. Pelo con­ trario , os problemas "persistem", eles "insistem" nelas (1968 , p.2 12). Nesse momento, a teoria das multiplicidades volta-se para a tarefa de lembrar que toda a soluyao que parece ter apaziguado ou elidido o problema que a gerou e uma soluyao inadeçuada, mas, em contrapartida, nao e tambem uma soluyao falsa, pOis a redistribuiyao dos pontos sin­ gulares de uma multiplicidade pode nao apenas oferecer uma soluyao adeçuada, como tambem reativar urn problema que nunca deixa de insistir. Recolocar a problema significa livrar-se das ilusoes do pensamento e, portanto, como nos diz Deleuze, "reverter as relayoes ou as repartiyoes supostas do empirico e do transcendental" (p.2 16).

Tal reversao e tarefa do conceito de multiplicidade, a comeyar pelo par uno­ multiplo. A definiyao de novas relayoes entre o empirico e o transcendental, entre o atual e o virtual e essencial para a filosofia de Deleuze, pois ela preenche uma questao que caracteriza sua originalidade, a saber, com que finalidade urn ser uno sairia de si mesmo para diferenciar-se como ser-multiplo , se ele vai deparar-se com o que ele já era? Essa finalidade somente pode ser exterior a seu principio ontológico ou ela erige em principio ontológico alguma coisa que esta programada para aparecer em sua exteriorizayao , para que o ser, enfim, se reencontre. Ao contrario, urn ser da mul­ tiplicidade interiorizou a diferenya, a diferenya esta no ser, de modo que, no momenta em que ele se exterioriza, desejá apenas reproduzir a diferenciayao que já produz como principio ontológico. o ser da multiplicidade, de fato , tern urn motivo para sair de si mesmo; e que nao precisa comprovar sua unidade original, pois a unidade da diferenya no ser já implica que ele nao pode permanecer num estado de recolhimento.

 

DOSO JUNIOR. H. R. The origin of the concept of multiplicity in Gilles Deleuze's.

 

 

   ABSTRACT: Deleuze seeks for his own concept of m ultiplicity through the issue of multiplicity both in Riemann 's physical theory and in Bergson 's philosophy. This attempt states for Deleuze 's peculiar creation of concepts. In fa ct, he draws out from riemannian and bergsonian con cepts of m ultipliCity new features for the notions of space and time. Hence, he is able to supply his own concept with an ontological spread.

   KEYWORDS. Multiplicity; Deleuze; Bergson; Riemann.

 

Referências bibliográficas

 

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[1] Departamento de Historia - Centro de Letras e Ciencias Humanas - Universidade Estadual de Londrina - 86o51 -97o Londrina - PR.