Sergio LESSA[1]
•RESUMO: 0 artigo argumenta que urn dos principais momentos de ruptura de Lukacs com as onto logias anteriores reside na sua inovadora distinc;:ao entre essi'mcia e fenomeno, a partir da peculiar relac;:ao de cada urn com a categoria da continuidade. Assim procedendo, Lukacs p6de resgatar a radical historicidade do mundo dos homens .
•PALAVRAS- CHAVE: Ontologia; marxismo; Lukacs.
Em 1996, completam-se 25 anos do falecimento de G. Lukacs . Contudo, seus escritos p6stumos , em especial 0 conjunto que veio a ser conhecido como sua On toiogia , revestem-se de uma impressionante atualidade. Como em nenhum ou tro pensador do seculo XX, em Lukacs a historicidade e elevada a categoria onto16gica universal.
Em que pese 0 fato de seculos terem se passado desde a denocada do mundo antigo e a critica do teocentrismo medieval pelo pensamento moderno, alguns trac;os da velha metafisica continuam a se fazer presentes. Pensamos, em especial, no que ocone com as categorias de essencia e fen6meno. Tal como outrora, salvo raros pensadores e Lukacs e urn deles -, a essencia hoje tambem e concebida a-historicamente.
Certamente, a permanencia de uma concepC;ao "velha e ultrapassada" e, sem pre, urn fen6meno social que lanc;a raizes no presente. Quando isto ocone, por motivos que variam a cada caso, as concepc;oes antigas se revelam como as expressoes mais adequadas , e historicamente disponiveis, das necessidades do presente. Como ex pressoes dessas necessidades, as antigas concepc;oes terminam por adquirir conteudos e significados te6ricos e ideo16gicos distintos - no caso que exarninaremos neste artigo, muito distintos - do seu conteudo e sentido originais . Tal como, ao vestir urn manto romano, Napoleao nao se transformou em Julio Cesar, a sobrevivencia hoje de for mulac;oes metafisicas tradicionais tern urn sentido social em tudo distinto do passado.
Nao examinaremos , aqui, contudo, os fundamentos sociais da atual "sobrevida" de algumas das formulac;oes metafisicas tradicionais, por mais tentador que seja 0 tema. Nosso objetivo sera delinear 0 percurso pelo qual a caracteristica decisiva da concepc;ao metafisica tradicional acerca do complexo essencia-fenomeno (qual seja, a associac;ao absoluta entre essencia, necessidade e ser, e entre fenomeno e histori cidade), nao apenas perpassa 0 periodo moderno e Hegel, como tambem seus ecos podem ser encontrados mesmo em autores contemporaneos como J. Habermas . Ar gumentaremos que, nesse contexto, as obras de maturidade de Lukacs, em especial sua On tologia , oferecern contribuic;oes relevantes e originais. Aqui, mais urn recorte se faz necessario : as considerac;oes de Lukacs tern por escopo 0 mundo dos homens, contudo varias das suas concepc;oes ontologicas se referem tambem a natureza . Examinar a validade e a pertinencia, para a esfera da natureza, da historicidade da essencia tal como posta por Lukacs para 0 ser social extrapolaria em muito 0 espac;o disponivel. Por isso nos limitaremos ao mundo dos homens , sem que isto signifique que as conclusoes de Lukacs, com os devidos cuidados, nao possam ser estendidas tambem para 0 ser natural.
Etienne Gilson, em sua obra L 'etre et l 'essen ce , demonstra como a passagem do mundo grego ao medieval conduziu a cristalizac;ao de uma concepc;ao metafisica, ja germinal na Antiguidade, que articula de modo rigido e exclusivo a essencia a necessidade . 0 contexto religioso em que se deu esta cristalizac;ao (com a qual Gilson, como cristao, compartilha) fez que a identidade entre Ser e Necessidade em Deus conferisse a essencia 0 estatuto de locus exclusivo da absoluta necessidade . Em con trapartida inevitavel, a esfera fenomenica restou 0 papel de explicar a evidente his toricidade do hic et n unc. A essencia, por ser Deus, e Ser e e Eternidade ; 0 fenomeno, por ser criatura, e historico e portador de urn quantum menor de ser. A esfera essencial e, por fe , divina e eterna ; a fenomenica e humana, fugaz, locus do pecado . 0 fato de haver uma sobreposic;ao, ainda que limitadissima, do divino com 0 humano, pela me diac;ao da alma humana e do Espirito Santo, instaura a complexa relac;ao entre espirito e corpo, entre a materialidade da hostia e a sua transubstanciac;ao em Cristo pela eucaristia etc. - dando origem ao nueleo duro das disputas medievais.[2]
Subjacente as disputas escolasticas , e articuladas as contradic;oes peculiares do Renascimento Comercial e Urbano entre os seculo XI e XV, as revoltas camponesas e artesas nao apenas recuperaram 0 igualitarismo dos prim6rdios do cristianismo como instrumento ideol6gico na luta contra a hierarquizaQao da vida e da riqueza do mundo feudal, como ainda elaboraram as formas mais primitivas e germinais do que viria a ser urn dos temas marcantes do periodo moderno : a ideia do contrato social (Kofler, s.d.). Estes primeiros questionamentos da escolastica sao ainda fundamen talmente medievais e sua principal forma de expressao foram as seitas. No que nos interessa, a justificativa da necessidade do contrato social tern por fundamento a con cepQao de que, por serem criaQoes divinas, os homens sao essencialmente iguais ; por serem todos criados a imagem e semelhanQa de Deus, sao tambem iguais nas suas essencias : "da terra a terra, das cinzas as cinzas ". Os pecados da soberbia e do egoismo fazem que os homens ignorem este fato e permaneQam em uma vida de pecados e de maldade, construindo na terra urn reino demoniaco em que a riqueza e posta acima da virtude e da salvaQ8.o .
Houve seitas e seitas ; algumas foram exterminadas ate 0 ultimo fiel como he resias ; outras terminaram por ser absorvidas por uma Igreja que prometia se regenerar (os francis canos, por exemplo); outras foram simplesmente compradas pelos papas.
o que nos interessa, contudo, e que, ja em seu primeiro momento, a necessidade do contrato social e fundamentada a partir da essencialidade humana, ainda que esta seja compreendida no seu sentido escolastico mais puro .
A vertente critica das concepQoes medievais que se inicia com Bacon e Des cartes, e se desdobra por inteiro com Hobbes, Locke e Rousseau - para ficarmos tao somente com seus marcos iniciais e seus momentos mais expressivos -, promove uma ruptura completa com a antiga concepQao de mundo. Tal como 0 trio Galileu Kepler-Newton rompeu 0 " universo fechado" e descortinou 0 espaQo infinito (Koyre, 1986, 1982, 1979 ; Bernal, 1954) , 0 trio Hobbes-Locke-Rousseau assentou em bases humanas a reflexao acerca do mundo dos homens . Nao e necessario que nos alon guemos sobre este aspecto, ja bastante conhecido e explorado (Kofler, s.d. ; MacPherson, 1970 ; Salinas, 1976 ; Laski, 1953) . Contudo, com muito cuidado e precauQao, e possivel distinguir uma fina e sutil linha de continuidade que perpassa da Idade Media aos contratualistas modernos, no que diz respeito a relaQao entre essencia e historicida de.[3] Em poucas palavras , a doutrina do contrato social em Locke, Hobbes e Rousseau tern seu fundamento ultimo nas suas distintas concepQoes de natureza humana. As diferenQas entre cada urn deles, em medida significativa, se expressam nas diferentes formas como concebem a natureza humana, e como esta natureza condiciona 0 carater da vida social e do contrato . Em todos eles, contudo, esta natureza humana e tomada como urn " dado " da natureza e nao como urn produto dos atos humanos. Analogamente ao periodo medieval, aqui tambem M uma determinaQao essencial que nao e fundada pelos atos humanos, mas e dada de uma vez para sempre (Ma cPherson, 1970 ; Salinas , 1976) e possui forte acento a-hist6rico .
Referindo-se a este complexo de problemas, e as antinomias decorrentes da ambiguidade de se conferir urn tratamento hist6rico-social a evoluQao humana, ao mesmo tempo em que 0 conceito de natureza recebe urn acentuado tom de dever-ser, Lukacs assinala como, para 0 iluminismo, a natureza humana possui a mesma marca a-hist6rica de uma " laicizada 'alma individual'" (1981, p.269; 1979a, p. 12 s.). Nos tres pensadores, com as devidas diferenQas, 0 individuo e 0 locus desta natureza, ela e individual por definiQao . Em segundo lugar, esta natureza e a-hist6rica ; nao apenas ela nao e fundada pela hist6ria, como tambem nao pode ser por esta abolida: 0 maximo que a hist6ria pode fazer e se conformar a natureza. Em terceiro lugar, e nela que residem as determinaQiSes essenciais do ser humano, ela e a essencia humana.
Se em Locke, Hobbes e Rousseau esta ausente uma discussao metafisica ex plicita acerca de categorias como essencia, necessidade, fenomeno, continuidade etc.
- tal como 0 estivera tambem em Galileu, Kepler e Newton -, em Hegel esta discussao volta a se por em sua plenitude . No contexto da "Era das RevoluQiSes " , 0 devir (a historicidade) e uma categoria que reentra com uma forQa estupenda no pensamento humano ; e mesmo 0 irracionalismo do romantismo alemao classico tern alguma re laQao com esta reentrada (Lukacs, 1979a, p. l0 s.).
E bastante conhecida a antinomia gerada pela deduQao, por Hegel. do devir a partir da dialetica do Ser e do Nada (Lukacs, 1979a, p.45 s. ; Hartmann, s.d. p.484 s.).
o devir apenas pode se originar de u rn Ser, cuja completa indeterminaQao 0 identifica ao Nada, se este mesmo Ser e este mesmo Nada forem portadores de alguma deter minaQao, a qual, para Hegel. ap6s Espinosa, e negaQao . Este impasse leva Hegel a atenuar 0 conteudo onto16gico da expressao nao-ser, ate converte-la em ser- outro, mera expressao 16gica da diferenQa entre entes, e jamais expressao da inexistencia, da negaQao onto16gica do ser (Lessa, 1989). Uma vez introduzido 0 devir em seu sis tema, a contraditoriedade indispensavel para a trajet6ria do Espirito em direQao ao seu para-si se desdobra, tambem, na dialetica entre fenomeno e essencia. Na Cien cia da L6gica, Hegel observa que "A essencia tern que aparecer" , pois se nao 0 devir seria uma impossibilidade ; e esta aparencia da essencia se realiza ao "se converter em fen6men o" (1968, p.421). Para ele , a "aparencia contem uma pressuposiQao ime diata, urn lado imediato frente a essencia" (p .347), contudo, como "A verda de do ser e a essencia " (p .339), "nao se pode demonstrar" que a aparencia,
pelo fato de se distinguir da essencia se supere a si mesma e retorne a essencia; de fato 0 ser retorna em sua totalidade a essencia, a aparencia e 0 nulo em si. Apenas se pode demonstrar que as determinac;oes , que a distinguem da essencia, sao determinac;oes da pr6pria essen cia e, ademais, que esta determina r;:8o da ess{mcia, que e a aparencia, esta superada na essen cia mes rna. (p. 347-8 - os grifos sao todos do original)
Ao fim e ao cabo, a essencia e 0 verdadeiro ser ; 0 fenomenico nada mais sendo que o indispensavel desdobramento da propria essencia, "a aparencia e 0 nulo ern si" .
Tern toda razao Hartmann, ao argumentar que, diferentemente dos antigos e dos medievais, para Hegel. a essencia aparece como determinar;ao do ser, e nao "se orienta no sentido de sua oposir;ao a temporalidade". Isto corresponde a urn enorme passe para a articular;ao da essencia corn a historicidade . Contudo, este passe nao e levado as ultimas consequencias . As necessidades logicas do sistema fazem Hegel retornar a senda tradicional. "0 termo ' essencia' '' , cito Hartmann, " afirma justamente que, para todo 0 visto existe antes urn nucleo, qualquer coisa por detras, urn algo que ao tratar do ente esta sempre na sua base e ja suposto ; quer dizer, significa aquilo que, no sentido intemporal, tern que ter 'sido' sempre, onde qualquer coisa 'e' ." Isto possibilita a Hegel transitar sem problemas da afirmar;ao "0 Absoluto e 0 ser" para "0 Absoluto e a essencia" (Hartmann, s.d. , p.517).
Continua Hartmann :
[or conceito hegeliano de necessidade aplica-se ... de tal modo que apenas pode realizar-se num mundo teleologicamente ordenado. Alias, visto com rigor, 0 conceito de necessidade, ainda que encoberto, e 0 conceito desta ordem do mundo. Por isso nao e de se estranhar que as chamadas categorias de relar;:ao se exponham, na sua evolur;:ao, como simples veiculos ou como graus de relar;:ao teleologica. Naquilo que Hegel chama "a propria coisa" ja esta a representar;:ao do tim presente na forma de uma disposir;:ao dada de antemao para urn deterrninado desdobramento. (p. 542)
A essencia e a substancia da diversidade.
Etienne Gilson, na obra ja referida, assinala algo semelhante, apesar das suas enormes diferenr;as teoricas corn Hartmann. Citando tanto a Fenomenologia como a Enciclopeclia, Gilson argumenta como "Hegel conservou a nor;ao da essencia tal como uma longa tradir;ao the transmitiu ... A essencia do ser e, corn efeito, sobretudo para ele aquilo que 0 ser tern de 'essencial' , ou seja, aquilo que ele e verdadeiramente ou, ao menos , aquilo que e enquanto ele e verdadeiramente". Claro que Gilson reconhece que Hegel introduz profundas novidades ante a metafisica escolastica, contudo
A essencialidade ( Wesenheit) e precisamente 0 ser enquanto relar;:ao simples a si-proprio ou, como disse Hegel. e 0 ser entanto que, por assim dizer, traspassado em si. E precisamente a este titulo que a essencia conserva sua caracteristica tradicional de conotar 0 "essencial" ... 0 ser imediato e "aquilo que aparece" na essencia, urn "aparecer" (Schein), ao passe que a essencia se coloca como urn absoluto. (1987, p.222)
o fenomeno, 0 imediato, e portanto incluido na essencia, a essencia abarca 0 ines sencial - contem ern si a sua propria negar;ao como fundamento ( Grund) do fenome nico . Por isso, 0 fenomenico apenas pode se realizar - com perdao da expressao - como a essencial realizar;ao da essencia no inessencial. Em ultima analise, portanto, o fenomenico e apenas urn momenta da realizar;ao da essencia, sendo por esta em tudo e pOI tudo determinado. Essencia, ser e necessidade sao categorias coincidentes.
Portanto, apesar das indiscutíveis inovações do pensamento hegeliano, neces sidade, essência e ser continuam nele articulados de forma exclusiva. A essência e o ser correspondem ao Absoluto. Em contrapartida, "a esfera do fenômeno, por causa dessa sua peculiar fisionomia nitidamente distinta da [fisionomia] da essência, exa tamente pela sua variedade, mobilidade, irrepetibilidade, mesmo fugacidade, é o ver dadeiro terreno da historicidade na sua imediaticidade" (Lukács, 1981, p.374). Mutatis mutandis, a concepção metafísica tradicional acerca da essência aqui se faz presente. Certamente sob uma forma original e com um conteúdo e sentido em tudo distintos; trata-se agora de desvendar a realidade de uma sociabilidade capitalista nascente, e não mais o mundo medieval (1963).
Em suma, de Platão a Hegel, a essência foi concebida como portadora de um quantum maior de ser que o mundo fenomênico. A esfera fenomênica seria apenas expressão da essência, não cabendo à primeira qualquer papel na conformação da última. Sendo a essência o ser em sua pureza, em seu estado absoluto, o fe nômeno é o momento de queda do ser, uma sua aparição fugidia, efêmera - e, portanto, parcial, incompleta, restrita etc. Entre essas duas esferas teríamos, sem pre segundo as concepções tradicionais, uma distinção de estatuto ontológico: o quantum de ser que caberia ao fenômeno seria menor que aquele pertencente às de terminações essenciais. Por isso, a essência seria eterna, necessária; e o fenômeno, fugaz, histórico. Entre os pensadores modernos, de Locke a Rousseau, a não historici dade da essência se manifesta, na forma particular do discurso filosófico de então, no conceito de natureza humana.
11 Habermas
Ao adentrarmos o século XX - com todas a inovações e multiplicidade de pres supostos filosóficos que encerra -, parcela significativa da produção teórica reproduz, cada uma a seu modo, a concepção a-histórica da essência. As correntes liberais e neoliberais, com explíCita filiação ao ideário moderno, e o marxismo vulgar, com sua concepção teleológica da história, são as que mais claramente evidenciam este fato. O Dasein heideggeriano (Tertulian, 1993), a razão fenomenológica de Husserl e o Sar tre da primeira fase (Mészáros, 1991) possivelmente contêm elementos que os apro xima da a-historicidade da essência. O marxismo analítico, o individualismo meto dológiCO e a teoria dos jogos (Cohen, 1978, p.22 s.; Elster, 1985, p.5 e 1989, p.37-8; Roemer, 1982) e a escolha racional (Green & Shapiro, 1994) exibem uma inequívoca
proximidade à concepção moderna da "natureza" humana. A lista poderia ser mais longa, se incluíssemos as vertentes de inspiração religiosa. Na impOSSibilidade de urna análise de cada um desses autores e vertentes, optamos por um rápido exame de Habermas. A sua Teoria do agir comunicativo é o esforço mais ambicioso e mais bem-sucedido, nos nossos dias, de encontrar urna alternativa à centralidade do trabalho para a explicaQao da vida social. Sua repercussao no debate contemporaneo e inequivoca. Por isso sua escolha para exemplificar a persistencia, hoje, da concepQao a-historica da essencia.
A pedra de toque do construto categorial habermasiano em Teoria do agir co municativo e 0 " mundo da vida" . Esta categoria vai sendo paulatinamente construida, ao longo dos dois volumes da obra, como uma resultante necessaria dos seus impasses teoricos . Tais impasses tern por fundamento, para sermos breves, a caracteristica ameaQa solipsista de toda concepQao transcendental.[4] Em Habermas, esta ameaQa esta presente desde as primeiras paginas, quando ele, apos definir a racionalidade como uma enunciaQao lingiiistica portadora de confiabilidade e passivel de critica, pergunta pelo fundamento desta mesma confiabilidade . Por mediaQoes que nao seria oportuno descrever aqui,[5] este questionamento leva 0 pensador alemao a analise da pratica da argumentaQao e do entendimento .
Ao atingir 0 entendimento, sua investigaQao nao tern como adiar mais a resposta a questao subjacente : qual e 0 fundamento que possibilita que dois falantes se com preendam? 0 que funda a intersubjetividade que possibilita a linguagem? Sua res posta e a categoria do " mundo da vida" , concebida como " lugar transcendental no qual ouvinte e falante se saem ao encontro " .[6]
Contudo, em que se apoia este " mundo da vida"? Para 0 autor da Teoria do agir com unicativo, 0 seu fundamento ultimo esta na "disposiQao dos sujeitos capazes de linguagem e de aQao " (1987, p.42-3) para se lanQarem a este espaQo transcendental. Esta disposiQao dos sujeitos decorre da propria definiQao habermasiana de racionalidade : por ser inerentemente conMvel e passivel de critica, a racionalidade necessariamente remete a transcendentalidade do " mundo da vida" . Ser racional e participar de uma intersubjetividade assim compreendida.
Giannotti, num artigo instigante, argumenta que
E toda uma concepc;:ao de filos ofia transcendental que esta sendo posta em pratica ... Habermas parte duma opiniao neutra, sem ser asserida, embora pertencendo ao mundo da vida, opiniao que sendo tematizada (isto s6 pode ser feito por urn ate de consciencia) transfere-se para a linguagem das descric;:6es ponentes. Isto grac;:as a diferenc;:as meramente psicol6gicas, tais como clareza e certeza. [Esquece-se, Habermas, que] para seguir uma regra nao e suficiente que os atores fac;:am acordos a respeito das definic;:6es, pois enquanto nao souberem que todos estao entendendo as palavras da mesma maneira, nao sabem ainda se empregarao as definiQoes do mesmo modo. Alem das definiQoes consentidas, ainda e preciso urn acordo sobre seu uso. (1991, p.ZO)
o que nos interessa, desta concepc;:ao habermasiana acerca do mundo dos ho mens, e a importancia decisiva, na sua argumentac;:ao, da " disposic;:ao dos sujeitos capazes de linguagem e de ac;:ao " para a construc;:ao da intersubjetividade (da obje tividade do "mundo") (Habermas, 1987, p.30) . Ser racional, para ele, e desdobrar esta disposic;:ao . Confiabilidade e critica, no contexte habermasiano, sao qualidades ne cessariamente pertencentes a intersubjetividade, referem-se a verdade e a eficacia em relac;:ao ao "mundo". Esta disposic;:ao a intersubjetividade, inerente a racionalidade dos individuos, constitui 0 fundamento de urn " lugar transcendental" , 0 " mundo da vida" , no qual se estabelece, transcendentalmente, a validade intersubjetiva dos pres supostos indispensaveis as ac;:6es comunicativas .
Esta " disposic;:ao dos individuos", sublinhemos, nao e fundada pelos seus atos, ja que e seu pressuposto indispensavel. E essencialmente individual, seu locus e a racionalidade inerente a cada individuo humano . E, por fim, e esta disposic;:ao que possibilita aos individuos, ao fundarem a intersubjetividade, fundarem a vida social. A essencia da vida social, aquilo que a distingue da natureza, e justamente esta in tersubjetividade fundada, com as devidas mediac;:6es, por aquela " disposic;:ao dos su jeitos". Ha aqui urn paralelo evidente com 0 conceito de natureza humana dos con tratualistas modernos - Habermas, explicitamente, se prop6e como urn herdeiro do racionalismo iluminista. Tal como nos seculos XVII e XVIII, h8. uma caracteristica in trinseca aos individuos, anterior a eles e nao fundada por eles, que os determina como individuos humanos e, por esta mediac;:ao, determina a propria vida social.
Habermas , sabemos, rejeitou in limine toda ontologia. Sabemos tambem que, de Hobbes a Rousseau, a investigac;:ao metafisica foi abandonada em nome, para ser breve, da investigac;:ao social. 0 fato de nao se fazer ontologia conscientemente ape nas significa, no estudo do mundo dos homens, que se a faz de modo acritico e im plicito. Toda afirmac;:ao acerca do mundo dos homens e uma afirmac;:ao acerca de uma forma de ser e, portanto, exibe necessariamente uma faceta ontologica. Locke, Hobbes ou Rousseau nao discutiram os fundamentos ontologicos de suas concepc;:6es acerca da natureza humana. Habermas tambem nao 0 fez. Este fato, contudo, nao evitou que implicitamente adotassem, em suas teorizac;:6es, a concepc;:ao a-historica da essencialidade humana. Deste modo, com as devidas e evidentes diferenc;:as entre eles, terminaram devedores, cada urn ao seu modo, da metafisica tradicional.
Segundo Lukacs, Marx teria delineado uma nova ontologia, urn novo conceito de substancia. Pela primeira vez a historicidade da essencia teria sido levada as lil timas consequencias. Se h8. efetivamente uma continuidade entre Marx e Lukacs , tal como quer este ultimo, e urn problema que a incompletude das investigaQoes acerca da relaQao entre os dois pensadores nao permite resolver a contento . Nem as categorias mais decisivas da Onto1ogia lukacsiana foram sistematicamente exploradas ,
nem uma investigaQao de cunho ontologico dos principais textos de Marx avanQou suficientemente . A esta altura das investigaQoes , qualquer afirmaQao taxativa seria prematura. Todavia, pode-se afirmar com seguranQa que, ao menos no filosofo hun garo, h8. uma concepQao radicalmente historica da essencialidade. Para 0 objetivo deste artigo, isto nos e suficiente.
Tendo em vista uma exposiQao preliminar da articulaQao entre historicidade e essencia em Lukacs, urn ponto de partida possivel, entre outros tantos,[7] sao as suas consideraQoes acerca da relaQao entre fenomeno e essencia na esfera economica. Ini cia ele relembrando que "todo objeto e por sua essencia urn complexo processual" ; contudo , frequentemente "no mundo fenomenico " ele se apresenta como "urn objeto estatico, solidamente definitivo ". Quando isso ocone, "0 fenomeno ... se toma feno meno exatamente fazendo desaparecer, na imediaticidade, 0 processo ao qual deve a sua existencia de fenomeno . E e de enorme importancia social esse modo de se apresentar da essencia ... " (1981, p. 357) pois, entre outras coisas, esta na raiz das alie naQoes[8] contemporaneas.
Exemplo tipico deste fenomeno e 0 velamento do trabalho como fonte social de riqueza. Tal velamento constitui "aquele mundo fenomenico capitalista no qual a mais-valia desaparece completamente por tras do lucro e no qual a consequente rei ficaQao, que deforma a essencia do processo, toma-se a solida base real de toda praxis capitalista" (1981, p. 359) . Tambem aqui, nos deparamos " com urn mundo fenomenico criado pela dialetica propria da produQao economica ... que, no seu ser-precisamente assim, e realidade , nao aparencia" (1981, p. 359-60) . A realidade alienada e tao real quanta qualquer outra. Se ela falsifica as determinaQoes essenciais, invertendo a re laQao fundante-fundado, isto ocone porque a praxis socio-generica opera uma inver sao analoga : 0 ser humano, de criador do capital, se transfigura em sua criatura. Por efetuar essa inversao, a cotidianidade alienada nao perde qualquer quan tum de ser, de "realidade" (1981, p. 360). Invertida ou nElO, a dimensao fenomenica e tao real quan to as relac;oes essenciais que estao na sua genese . E, por isso, e capaz de ser "a base" das posic;oes teleo16gicas objetivadas no seu interior.
Temos aqui expressa, com todas as letras, a concepC;ao luka.csiana segundo a qual "0 fenomeno e sempre algo que e, e nao algo contraposto ao ser" (1979a, p.84) . Ela assinala 0 primeiro momenta da superaC;ao da antinomia entre a historicidade do hie et n unc e a nao historicidade da essencia : ao contnirio da metafisica tradicional, em Lukacs essencia e fenomeno tern 0 mesmo estatuto onto16gico . Ambas as esferas, na concepC;ao lukacsiana, sao momentos distintos, porem igualmente reais, do ser precisamente-assim existente .
Tendo essencia e fenomeno a mesma "realidade", Lukacs assinala que, ao lado das determinac;oes da essencia sobre os fenomenos - ja reconhecida tradicionalmente - , M uma outra dos fenomenos sobre 0 desenvolvimento das determinac;oes essenciais. No "ser social, 0 mundo dos fenomenos nao pode de modo algum ser considerado urn simples produto passivo do desenvolvimento da essencia, mas ... , pelo contrario , exa tamente tal inter-relaC;ao entre essencia e fenomeno constitui urn dos mais importan tes fundamentos reais da desigualdade e da contraditoriedade no desenvolvimento social" (1981 , p.472) . Para ele , a relaC;ao essencia-fenomeno exerce urn "influxo deci sivo sobre 0 progresso obj etivamente necessario da essencia" (1979a, p. 124- 5) .
Tal influxo possui dois fundamentos onto16gicos . Em primeiro lugar, e 0 feno menico a "base real" das posic;oes teleo16gicas singulares . Estas sao, sempre, res postas a demandas postas pelo hie et nunc hist6rico-social. A evoluC;ao do mundo imediato exerce, por esta via, uma aC;ao efetiva sobre as objetivac;oes futuras. 0 se gundo fundamento e 0 fato de 0 real ser a sintese do essencial e do fenomenico . Ao agir sobre urn, os atos humanos impulsionam 0 desenvolvimento tambem do outro . Nas palavras de Lukacs, "no plano do ser e da mesma maneira, [essencia e fenomenol sao produtos das mesmas posic;oes teleo16gicas ... A dialetica onto16gica entre es sencia e fenomeno seria impossivel se eles nao surgissem de uma tal genese funda mentalmente unitaria e se esta unitariedade nao fosse dinamicamente conservada" (1981, p. 369) B
Sendo sintetico : a realidade e uma sintese de essencia e fenomeno . Ao agir ten do por horizonte 0 hie et nunc, desdobram-se cadeias causais que reproduzem tanto as determinac;oes essenciais quanto as fenomenicas . A radical historicidade onto16- gica e aqui assumida por Lukacs em sua radicalidade : a genese da essencia sao os mesmos a tos teleo16gieos que fundam 0 fenomenico . Por isso, nao apenas fenomeno e essencia sao igualmente reais, como tambem a 8volU9aO dos fenomenos exerce urn "influxo " sobre a evolU9aO do essencial.
Afirmar serem essencia e fenomeno esferas "igualmente existentes " e indispen savel. porem, para Lukacs, insuficiente para esclarecer as complexas rela90es que se desdobram entre elas . E imprescindivel ao menos esclarecer qual seria, na intera9aO essencia-fenomeno, 0 momenta predominante (1981. p.S7-9, 79-80, 229 S. ; 1990, p.79-
81. 137-8).
Nesse sentido, observa Lukacs que, no processo hist6rico em sua globalidade, "se evidencia como 0 movimento da essencia ... e a base de todo 0 ser social, mas base aqui quer dizer : possibilidade objetiva" . Ou seja, o ambito dos conteudos que os homens nessa pr8xis podem se par como fim e determinado - enquanto horizonte - por tal necessidade do desenvolvimento da essencia, mas exatamente enquanto horizonte, enquanto campo de manobra para as posic;oes teleologicas reais nele pos siveis, nao como determinismo geral, inelutavel de todo conteudo pratico, jamais como "neces sidade fatal, que a tudo determina antecipadamente". (1981. p.475)
Ao conceber a essencia como horizonte hist6rico de possibilidades para 0 agir humano, e evidente a ruptura de Lukacs com as ontologias tradicionais - e nao e necessario insistir sobre esse ponto . Se "a necessidade da essencia assume obriga toriamente, para a praxis dos homens singulares, a forma da possibilidade " (p .47S) , nao e preciso mais palavras para se perceber a radical historicidade dessa COnCeP9aO .
As necessidades essenciais
contribuem a determinar 0 como daquele mundo fenomenico sem cuja encarnac;ao a essencia nao poderia jamais chegar a sua realidade plena, existente-por-si. E ja que, como vimos, esta forma fenomenica e nao apenas realidade geral, mas realidade historica extremamente concreta, as posic;oes teleologicas assim efetuadas agem tambem sobre 0 concreto caminho evolutivo da propria essencia ... elas intervem sobre sua Ida essencia] forma fenomenica concreta, conferindo a esse caminho evolutivo urn carater de desigualdade . . . 0 desenvolvimento da essencia deter mina, portanto, os trac;os fundamentais, ontologicamente decisivos, da historia da humanidade. A forma ontologicamente concreta, ao contrario, ela deriva destas mOdificac;oes do mundo feno menico (economia e superestrutura), que contudo se realizam somente como efeito das posic;oes teleologicas dos homens... (1981, p.475-6)
Nesta exata medida e sentido, em Lukacs "a essencia se apresenta ontologica mente como 0 momenta predominante da intera9aO " com 0 fenomeno (1981, p. 364) : ela consubstancia 0 horizonte hist6rico de possibilidades . Contudo, se as potenciali dades nao forem atualizadas , se elas continuarem meras possibilidades, nao haveria processualidade hist6rica.10 Neste sentido, a essencia tern que traspassar em feno meno , ou nao haveria hist6ria (p .364-S) . Ou, 0 que significa exatamente 0 mesmo , as possibilidades genericas de urn dado momenta hist6rico se particularizam e se concretizam com a efetivaQao de algumas dessas potencialidades , e conseqiiente negaQao de outras . E a mediaQao indispensavel a esta efetivaQao 8 a sintese, que Lukacs denominou reproduQao social (Lessa, 1994c e 1995), dos atos teleologicamente postos dos individuos em tendencias hist6rico- gen8ricas. Exatamente por isso, pode Lukacs afirmar que "8 impossivel que as leis da essencia determinem de modo direto, com causalidade retilinea, os momentos singulares do mundo fenomenico e as suas con catenaQaes causais imanentes . Nas suas interaQaes com 0 mundo fenomenico, a es sencia produz , neste ultimo, campos 'livres ', cuja liberdade 8 possivel apenas no in terior da legalidade do campo" (1981, p. 376) 11
1sto permite ao fil6sofo hlingaro concluir, em evidente critica a metafisica tra dicional, que ,
Em sentido ontologico rigoroso, 0 fenomeno nao e a forma da essencia, assim como esta ultima nao e simplesmente seu conteudo. Quaisquer desses complexos sao, no plano onto16gico, por sua natureza a forma do proprio conteudo e, conseq(.ientemente, a sua ligag8.o e aquela de duas relagoes forma- conteudo homogeneas. (p .365)
Analogamente, duas outras conexaes ontol6gicas sao tratadas por Lukacs . Uma delas, a relaQao do complexo essencia-fenomeno com a categoria da ne
cessidade . Segundo nosso autor, ainda que haja urn quan tum maior de necessidade na essencia que na esfera fenomenica, ambas sao "necessartas". Nao apenas sao fun dadas pelo mesmo por teleol6gico , como ainda se efetivam como nexos causais que se desdobram ao longo da hist6ria. A conexao exclusiva entre essencia e necessidade, tao caracteristica da metafisica tradicional. aqui esta definitivamente superada.
A outra 8 a relaQao do complexo essencia-fenomeno com a generalidade. Sem duvida, reconhece Lukacs, ha na essencia "urn predominio da generalidade, enquanto no fenomeno se verifica urn movimento para a singularidade e a particularidade". Contudo , continua Lukacs, seria "superficial tirar a conclusao que, em tal relaQao, estaria claramente expressa a verdadeira relaQao da essencia com 0 seu fenomeno". "Acima de tudo", porque tambem a generalidade e a singularidade sao determinaQaes reflexivas, 0 que quer dizer que elas comparecem em toda constelaQao concreta de modo simultEmeo e bipolar : todo ente 8 sempre, concomitantemente, urn objeto geral e singular. "Por isso 0 mundo fenomenico ... nao pode deixar de produzir no plano do ser sua pr6pria generalidade, do mesmo modo como a generalidade da essencia se apresenta continuamente tambem enquanto singularidade "(p. 370- 1). Lembremos que, para nosso autor, universalidade, particularidade e singularidade sao momentos da maxima universalidade do ser - e, portanto, sao igualmente existentes Se essen cia e fenomeno formam urn complexo indissoluvel de determinaQoes reflexivas do real, se sao igualmente existentes, se tern suas geneses no mesmo por teleol6gico, se ambos sao necessarios, genericos e se particularizam na processuali dade concreta, se urn nao e a forma do conteudo do outro - 0 que, entao, distinguiria essencia do fenomeno? Para Lukacs , a sua peculiar relaQao com a categoria da con tinuidade. "Aquilo que ontologicamente ... faz de urn a essencia e de outro 0 feno meno, e o modo de se relacionar com 0 processo, por urn lado, na sua continuidade complexiva e, por outro, no seu concreto hic et nunc hist6rico-social" (p .370) . Para sermos breves e diretos, 0 que distingue a essencia do fenomeno e 0 fato de as de terminaQoes essenciais serem os traQos de continuidade que consubstanciam a uni tariedade ultima do processo como tal. Seus traQos fenomenicos sao os responsaveis pela esfera de diferenciaQao que faz de cada momenta no interior do processo urn instante unico, singular. Em outras passagens, Lukacs se refere a essencia como a "duraQao na mudanQa" (p .373), como " continuidade tendencial ultima" (p .375) ; ao se referir a essencia da individualidade , utiliza a expressao "a substancia que se conserva na continuidade do processo" (p .412).
Em suma, a distinQao entre as determinaQoes fenomenicas e as essenciais e dada pela peculiar relaQao de cada uma delas com a totalidade do processo em ques tao . Em sendo processo, este exibe urn inequivoco carater de unitariedade ultima, fundada pelas suas determinaQoes essenciais . Contudo, exatamente por ser urn pro cesso, e composto por distintos momentos que se sucedem no tempo; e a particula rizaQao dos momentos, tornando-os unicos (a hist6ria jamais se repete), e dada pelas determinaQoes fenomenicas . Nesta interaQao, as mediaQoes que promovem esta par ticularizaQao consubstanciam a esfera fenomenica ; e estas mediaQoes, por sua vez, sao atualizaQao das potencialidades inscritas no campo de possibilidades que con substancia a essencia. Neste contexto, na determinaQao reflexiva que articula essen cia e fenomeno, cabe a primeira 0 momenta predominante .
A essencia, portanto, perde 0 seu carater rigidamente a-hist6rico . Ela nao e an terior ao mundo dos homens, nao e 0 locus exclusivo da necessidade nem da univer salidade, ela nao exibe urn estatuto ontol6gico superior ao da esfera fenomenica. Como portadora dos elementos de continuidade que fundam a unidade ultima dos processos, a essencia apenas pode existir em indissoluvel articulaQao ontol6gica com os momentos particulares dos processos dos quais e a essencia. Em poucas palavras, a existencia concreta das determinaQoes essenciais assume, sempre, a particularida de concreta do hic et nunc hist6rico-social do qual e essencia e, por isso, na sua imediaticidade, 0 real e sempre a sintese das suas " multiplas determinaQoes " essen ciais e fenomenicas.
Nao ta, portanto, segundo Lukacs , nenhuma essencialidade, nenhuma natureza humana, nenhuma " disposi9aO dos individuos", que funde 0 mundo dos homens e que nao seja construto da praxis humano social. Nenhuma categoria social e anterior a sociabilidade .13 0 homem e demiurgo de sua propria essencia, e os seus horizontes de possibilidade em cada momenta historico sao resultados exclusivos de seu proprio passado e presente. Nao ta nenhuma natureza humana, destino ou fatalidade que imponha a humanidade limites a sua propria autoconstru9ao, nem esta autoconstru- 9aO e expressao de qualquer necessidade ou essencia nao-sociais (Lessa, 1994c) . 1sto permite a Lukacs defender a validade, tanto no plano da vida socio- coletiva, quanto para as individualidades, da "tese geral do marxismo segundo a qual os homens, ainda que em circunstancias nao escolhidas por eles, seja como for fazem por si a propria historia" (1981, p.412).
Recuperar 0 carater do homem como demiurgo de sua propria historia, levando avante uma originalissima investiga9ao ontologica do mundo dos homens, e 0 que particulariza Lukacs no debate contemporaneo .
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•ABSTRACT: The article argues that one of the maim moments of L ukacs' rupture with the preceding ontologies is his original distinction between essence and phenomenon from the peculiar relation of each one with the category of continuity. Doing so, Lukacs could recover the radical historicity of the h uman realm.
• KEYWORDS: Ontology; marxism; Lukacs.
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[1] Departamento de FiIosofia - Universidade Federal de Alagoas - UFAL - 57072-970 - Maceio - AL.
[2] Sobre estas disputas, de uma perspectiva partidariamente tomista, h8 duas outras obras de E. Gilson da maior importElncia. A primeira, Le Thomisme -introduction a la philosophie de Saint Thomas D'Aquin (1 972) e A exis ten cia na filosofia de S. Tomas (1962). A relac;:ao entre continuidade, essen cia e feniimeno em Santo Agostinho encontra urn tratamento original em Pelikan, 1986. Sobre os estertores do debate da transubstanciac;:ao, cf. Re dondi, 1991.
[3] A ruptura entre 0 medieval e 0 moderno e urn lato historico inquestiomivel. Isto,contudo,nao impossibilita trac;:os de continuidade entre os dois periodos. Cassirer (1986,v.I,p.178 ss.) e Gilson (s .d.) estudaram momentos em que estes trac;:os nao sao despreziveis . Tanto 0 conceito de natureza renascentista,que influenciou Galileu,como tambem a matriz cartesiana do racionalismo moderno dialogaram com a escolastica. Estes sao momentos da genese do periodo moderno em que 0 passado oprimiu "como urn pesadelo 0 cerebra dos vivos". Kofler (s.d.,1" parte) demonstra como nas cidades italianas, no periodo entre a revolta dos Ciompi em Florenc;:a e Maquiavel, a reflexao acerca da hist6ria e da politica evoluiu,a partir da peculiar cultura medieval do norte italiano, para a explicitac;:ao do antrapocentrismo humanista.
4 [4] J. McCarney (1990, p.43) desenvolve considerac;:oes interessantes a este respeito. Fundamentalmente, que a mi grac;:ao de Habermas para urn campo mais propriamente neokantiano se deu nao pela mudanc;:a dos pressupostos da critica, tal como delineados pela Escola de Frankfurt no seu inicio, mas sim pela radical alterac;:ao da concepc;:ao do objeto da critica. Enquanto nos anos 20, 0 objeto era nitidamente hegelo-marxista, em Teoria do agir comu nica tivo seria ele de corte kantiano. Cf., tambem, Lessa 1994a, em especial cap.vII, e 1994b.
[5] Cf. sobre estas, Lessa, 1994a, em especial cap. VII, e 1994b.
4 [6] "A categoria do mundo da vida tern ... urn status distinto dos conceitos formais de mundo que falamos ate aqui. .. . 0 mundo da vida e, por assim dizer, 0 lugar transcendental em que 0 falante e 0 ouvinte se saem ao encontro, em que podem colocar-se reciprocamente a pretensao de que suas emissoes concordem com 0 mundo ... e que podem criticar e exibir os fundamentos dessas pretensoes de validade, resolver seus desentendimentos e chegar a urn acordo" (Habermas, 1987, p.178-9).
7 No "Simposio Lukacs - a proposito de 70 anos de Historia e Consciencia de Classe", Unicamp, 1993,apresentamos urn trabalho inedito que examina esta mesma questao a partir de outras passagens da Ontologia de Lukacs - em especial 0 capitulo "0 trabalho". Uma outra possibilidade seria enfrenta-Ia a partir das consideral{oes do filosofo hungaro acerca da reprodw;:ao social das individualidades e da totalidade social no capitulo " A reprodu I{ao" (ambos os capitulos ja traduzidos para 0 portugues e disponiveis no Centro de Documental{ao Lukacs, Bi blioteca Central da Universidade Federal de Alagoas, Campus A. C. Simoes, Maceio, Alagoas, Brasil). Uma quarta
possibilidade seria explorar as considerar;:oes de Lukacs acerca da inerente contraditoriedade do desenvolvimento humano-generico no capitulo de sua Ontologia dedicado a Marx (e tambem ja traduzido para 0 portugues). Alem disso, nos Prolegomenos.. . , diversas passagens tamMm poderiam servir de referencia a esta investigal{ao. Assinalamos este fato para salientar que nossas consideral{oes, ainda que Iancern raizes em uma passagem restrita do texto lukacsiano, se referem a estrutura mais intima de toda a obra.
[8] Nao M uma uniformidade em nosso pais na tradur;:ao de Entausserung e Entfremdung, especialmente entre os estudiosos de Lukacs. Numa tentativa de ser menos obscuro, optamos por traduzir 0 primeiro por "exteriorizal{ao" e 0 segundo por "alienar;:ao", mas M quem prefira "alienal{ao" e "estranhamento", respectivamente.