ALVARES DE AZEVEDO E O DRAMA ROMANTICO

Cilaine ALVES[1]

   RESUMO: Apresentam-se açui as ideias sobre dramaturgia de Alvares de Azevedo expostas de forma direta principalmente em Carta sabre a atualidade da teatro entre nos e no prefacio a Macaria. Em seguida, desenvolve-se uma an3lise de Um cadaver de paeta procurando ilustrar a teoria do genero dramatico defendida por Puff, 0 narrador de Macaria.

    PALAVRAS-CHAVE : Teatro brasileiro ; drama romantico; transcendencia; her6i byroniano; grotesco romantico.

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o prefacio a Macario e Carta sabre a atualidade do teatro en tre nos sao os prin­ cipais textos em çue Alvares de Azevedo manifesta, objetivamente, algumas ideias gerais sobre dramaturgia, estilizando-as, no primeiro deles, em consonE'mcia com sua

poetica e estabelecendo, no segundo, urn vinculo entre elas e as atividades teatrais de sua epoca.

Em Carta sabre a atualidade do tea tro entre nos Alvares de Azevedo discute a çualidade das atividades teatrais desenvolvidas por ocasiao da redaçao desse texto, provavelmente em 1851. Segundo sua opiniao, as representaçoes teatrais da epoca eram deploraveis. Procurando as causas daçuilo çue considerava problematico nos palcos brasileiros, aponta tanto a centralizaçao da atuaçao nas maos de apenas dois bons atores, Joao Caetano e Ludovina, çuanto 0 grande prestigio do melodrama nos palcos brasileiros em detrimento da comedia, çue fora, segundo ele, relegada ao es­ çuecimento.

A predominância da comedia sobre os outros gêneros e uma exigencia, como se sabe, da propria estética romântica. A preocupação de Azevedo para retoma-la nos palcos brasileiros não oferece, neste sentido, maiores dificuldades de interpreta­ çao. Em Schiller, urn dos teoricos do romantismo çue exerceram grande influencia sobre nosso escritor, 0 chiste e a satira, ao visarem a correçao das fraçuezas humanas,

 

tern mais chances de exito do çue a tragedia, pois, escarnecendo e ridicularizando sutilmente a sociedade, ferem mais vivamente os sentidos, sem, com isso, provocar çualçuer reaçao de suscetibilidade no espectador (Cf. Schiller, 1964, p.36).

Ao procurar justiticar suas preocupaçoes com 0 destino do teatro nacional. Al­ vares de Azevedo ap6ia-se na ideia de çue ao drama cabe formar moralmente urn povo, traindo, neste momento, sua filiaçao ao debate estetico alemao, mais especi­ ticamente a Schiller e a seu ideal de teatro como atividade artisticamente elevada, espiritualmente civilizadora.

Schiller (1964), preocupado em formular uma teoria sobre a arte çue se apoiasse em criterios normativos, voltados para a objetividade, assenta sua doutrina nos con­ flitos entre a razao e a experiencia. Nesta versao, 0 tim supremo da arte e 0 livre entretenimento. Compreendido, porem, como distinto do prazer fisico çue nunca pode ser elevado a condiçao de arte, esse entretenimento, denominado, por isso, livre, deve obedecer a uma legislaçao movida por principios morais.

Definindo a moralidade como 0 cultivo da razao na postulaçao de leis regula­ doras do comportamento humano universal, Schiller sustenta çue a arte desperta no homem urn jogo entre 0 impulso sensivel - "urn conceito çue significa todo 0 ser material e toda a presença imediata dos sentidos" - e 0 impulso formal - "urn conceito çue compreende todas as disposiçoes formais dos objetos e todas as suas relaçoes com as faculdades do pensamento" (1991, p.81).

A apreciaçao do objeto estetico, segundo Schiller, não se atem a apenas urn desses impulsos, pois a beleza não e dominio exclusivo nem dos sentidos, nem tampouco da reflexao formal, js. çue não somos nem exclusivamente materia, nem unicamente es­ pirito (p.82). A contemplaçao da arte apresenta-se, entao, como urn jogo llidico çue, compreendido, grosso modo, como urn eçuilibrio entre esses dois impulsos, confere liberdade moral ao homem. Ao despertar a sensibilidade e, ao mesmo tempo, vivificar a imaginaçao, esse jogo nos leva a produzir pensamentos abstratos çue nos enobre­ cern e nos libertam de nossas limitaçoes (p.1 14). Tornando-se, entao, livre pela dis­ posiçao estetica do espirito, a humanidade atingiria uma etapa ideal na cultura, mar­ cada pelo dever e pela verdade (p.1 19).

Neste contexto em çue a arte deve educar nossos impulsos naturais, Schiller dispensa urn papel de destaçue ao teatro. Para ele, na formaçao moral de urn povo, a religiao não alcança açueles çue tomam seus çuadros como "fantasia, enigmas sem soluçao, fantasmagorias e engodos do remoto " (1964, p.32-3). A grande influencia do palco sobre 0 coraçao humano, segundo 0 dramaturgo alemao, reside no completo e poderoso efeito çue ele exerce sobre as pessoas, pois, distintamente "da letra morta e da fria narraçao ", ao mostrar 0 jogo (ou 0 embate, no caso da tragectia) entre os instintos e a transcendencia espiritual de maneira visivel, age diretamente sobre 0 espirito humano, atuando tanto sobre 0 sensivel çuanto sobre a alma (p.34) :

 

A trageclia, portanto, longe de moralizar e dar lic;6es de virtude, proporciona ao espectador a possibilidade de experimentar livremente, luclicamente, 0 cerne de sua existencia moral em todos os seus conflitos, em todas as suas virtualidades negativas e positivas. A tragedia apresenta a vontade humana no seu desafio as far9as do universo e da historia, mostra 0 homem sofrendo, mas resistindo ao sofrimento gra9as a sua dignidade sublime e indestrutivel. Assim, leva 0 es­ pectadar a entrever a possibilidade, por remota çue seja, de urn ultimo sentido, de uma ardem universal transcendente e de uma harmonia absoluta em çue e superado 0 abismo entre os mun­ dos da necessidade e da liberdade moral, entre 0 dever e as inclina90es do impulso. (Rosenfeld, 1977, p 22-3)

 

Em Carta sabre a atualidade do teatro entre nos, a relac;ao do teatro com a transcendencia espiritual de toda uma nac;ao aparece determinada no fato de çue, para Alvares de Azevedo, 0 drama deve possuir, antes de tudo, urn valor estetico, ou meIhor, deve ter por finalidade (mica fazer "0 apostolado do belo" :

 

não: o teatro não deve ser a escola de depravação e de mau gosto. O teatro tem um fim moralizador literário: é um verdadeiro apostolado do belo. Dai devem sair as inspirações para as massas. não basta çue o drama sanguinolento seja capaz de fazer agitarem-se as fibras em peitos de homens-cadáveres. não basta isso: É necessário çue o sonho do poeta deixe impressões ao coração, e agite n'alma sentimentos de homem. (1942a, p.389)

 

A frase "0 teatro não deve ser a escola de depravac;ao e de mau gosto " parece remeter, inicialmente, a ideia classica çue nega a possibilidade de absorc;ao de ele­ mentos imorais e impudicos pela arte, contrariando, num primeiro momento, não ape­ nas a teoria de Schiller, para çuem no ambito da trag8dia recomendam-se herois pou­ co virtuosos, como a propria produc;ao literaria de Azevedo. As frases finais deste fragmento, porem, clarificam, de certa forma, 0 tipo de drama "imoral" a çue 0 autor se refere, afastando, com isso, a contradic;ao acima exposta.

Ao se posicionar contra 0 drama "sanguinolento", Alvares de Azevedo tern a objetar-lhe sua incapacidade de impressionar 0 coraçao e despertar "n' alma senti­ mentos de homem", acrescentando-lhe, com isso, uma nova determinac;ao. Disto se deduz çue, desde çue ele contenha urn imperativo estetico, a possibilidade de intro­ duzir, no drama, cenas de violfmcia não esta descartada, desfazendo, assim, açuela primeira impressao. Dito de outra forma, para 0 autor de Noite na taverna, 0 drama, mesmo 0 "sanguinolento ", deve possuir, antes de tudo, urn valor literario çue seja capaz de despertar a sensibilidade humana.

No prefacio a 0 con de Lopo, defendendo-se de possiveis criticas referentes a absorc;ao de aspectos imorais na obra çue ali se segue, Azevedo escolta-se em autores consagrados çue tambem teriam construido uma literatura dita "imoral". Citando Byron, afirma çue, apesar do teor imoral de suas pec;as literarias, importa no escritor

ingles "apreciar 0 bela da imaginaçao do poeta" (1942c, p.419). Assim, os dois prin­ cipais efeitos çue Alvares de Azevedo procura na arte : sensibilizar e provocar a ima­ ginac;ao atestam ja uma referencia a teoria de Schiller.

Reagindo contra urn tipo de drama çue se ressente, segundo 0 autor de Carta..., de çualidades esteticas, ele propoe çue a oferta de bons espetaculos estimularia os jovens estudantes a fazer traduc;oes de Calderon de La Barca e Lope de Vega, Shakespeare, Moliere entre outros. Melhorando as atividades teatrais, essa mesma mocidade estudaria mais atentamente a historia do teatro e, com isso, estaria apta a desenvolver urn teatro nacional de otima çualidade, num circulo infinito de educayao teatral em çue boas peyas desencadeiam bons profissionais e vice-versa, fundamentando, tal­ vez, assim, bases mais solidas para a formayao do teatro brasileiro.

Se entao, para 0 autor de Ma cana, na natureza do drama deve estar contido urn valor literario, se esse valor se determina por sua capacidade de sensibilizar 0 corayao e despertar a imaginayao e se, ainda, esse e 0 drama çue deve "servir de inspirayao para as massas", isto significa çue ha, entre Schiller e Alvares de Azevedo, urn projeto comum de formar, pela via do teatro, 0 espirito de uma nayao.

2

No prefacio a Macaria, urn narrador autonomeado Puff apresenta suas propostas para urn novo tipo de drama manifestando seu desejo de urn dia poder desenvolve-lo, ressaltando, com isso, çue tais propositos não correspondem ainda ao drama çue ali

se segue, Macaria. Como modelo ideal. essas propostas correspondem, em muitos aspectos, a propria produyao literaria de Alvares de Azevedo, mas, em outros, extra­

polam os limites dessa pratica, levando esse texto a ser uma sintese infiel de seu proprio trabalho. Neste sentido, elas revelam pretensoes literarias extremamente au­ daciosas, frutos talvez mais da corajosa ambiyao poetica do autor do çue da sua pra­ tica artistica. Tal e 0 caso, por exemplo, do fragmento deste texto cujo modelo de drama çue se propoe alcanyar fundamenta-se numa sintese de varios tipos, propondo uma formula çue pudesse conter tanto as paixoes de Shakespeare, de Calderon de La Barca e Lope de Vega, çuanto as simplicidades das trag8dias gregas. Mas, ao mesmo tempo, tais premissas contribuem tambem para trazer a tona indicios de urn genero dramatico proprio, desenvolvido por Alvares de Azevedo no interior de sua obra, esclarecendo, com isso, sua posiyao diante da discussao da epoca sobre çual genero adotar nos palcos brasileiros, se 0 modelo neoclassico, 0 drama burgues, 0 melodrama, ou ainda outra especie nova.

As pistas elucidativas do genero proposto por Puff surgirao çuando ele mani­ festar, abruptamente, sua opiniao sobre 0 disforme. Esçuivando-se de representa-lo de forma gratuita, sem çualçuer objetivo literario, Puff propoe urn novo tipo cuj o tema, tal como a tragedia, fossem as paixoes. Esta representayao deveria, contudo, ser plasmada numa forma çue marcasse urn limite entre a alma e 0 instinto, entre a fera e 0 homem, mas sem 0 reçuinte do horrivel, expressando, antes de tudo, "A vida e so a vida, fervida e anelante, as vezes sanguinolenta - eis 0 drama" (Azevedo, 1942b, p.5).

Ilustrando seu raciocinio, na seçiiencia de seu texto, Puff afirma çue, caso ti­ vesse escrito Otela, ele representaria todo seu "desvario selvagem", argumentando çue "as nodoas do sangue çue caem ao chao não tern a forma geometrica" e çue em090es tais como as agonias da paixao, do chime e do desespero, transportadas para os tr6picos, não devem ser moldadas em versos alexandrinos.

Com a metafora das n6doas de sangue filtradas por maos tropicais de forma irregular, Puff da 0 primeiro passo claro para propor urn rompimento com as conven- 90es classicas do genero. Assim, ao idealizar urn novo tipo çue representasse a vida naçuilo çue ela contem de tumultuosa, fervida e anelante, çue expressasse 0 choçue entre a fera e 0 homem, entre os instintos naturais e 0 espirito, 0 narrador deste pre­ facio procura fazer coincidir uma visao pessimista do mundo com uma forma de cunho grotesco, abrindo, com isso, urn gancho para incorporar urn disforme não mais de natureza gratuita, mas de forma a representar as contradi90es humanas. Com isso, Puff propoe, obviamente, a propalada fusao dos generos idealizada pelos romanticos, mais precisamente, a fusao do estilo elevado, pr6prio da tragectia, com outro de na­ tureza baixa, 0 grotesco.

Em Ma cana, uma passagem em especial define melhor a concep9ao de Alvares de Azevedo sobre 0 modelo ideal de representa9ao literaria. Trata-se de urn dialogo em çue Macario relata a Sata urn epis6dio aterrorizante de sua vida, no çual uma mulher por pouco não morreu em seus bra90s ap6s 0 ato sexual. Ante este espetaculo, Sata reage de forma ainda mais surpreendente :

 

Se ali ficasses mais alguma hora, talvez ela te morresse nos brac;os. Açuela agonia, 0 beijo daçuela moribunda talvez te regenerasse. Da morte nasce muitas vezes a vida. Dizem çue se a rebeca de Paganini dava sons tao humanos, tao melodiosos, e çue ele fizera passar a alma de sua mae, de sua velha mae moribunda, pelas cordas e pela caverna de seu instrumento. (1942b, p.37)

 

Com iSso, Sata lamenta çue a mulher não tenha morrido de fato naçuele instante, pois, para ele, 0 carater macabro da cena teria servido a Macario não apenas como fonte de prazer, mas tambem como materia de inspira9ao poetica.

A ideia de incorporar os elementos macabros da vida a literatura liga-se a uma visao negativa do mundo, segundo a çual a ciencia e impotente para elucidar os mis­ terios da vida, exprimindo uma rea9ao dos romanticos aos principios reguladores da vida, determinados pela nova ordem politica. Pelo grotesco, eles esperam destruir valores social e moralmente estançues do sistema. Encarando 0 mundo como urn uni­ verso alheio ao homem, procuram superar as limita90es de çualçuer visao dogmatica, finita e fechada da existencia humana :

 

Esse caniter infinito e interior do individuo era estranho ao grotesco da Idade Media e do Renascimento, mas a sua descoberta pelos romanticos s6 foi possivel grac;as ao emprego do me­ todo grotesco, da sua forya capaz de superar çualçuer dogmatismo, çualçuer carater acabado e limitado. Num mundo fechado, acabado, estavel, no çual trayam fronteiras nitidas e imutaveis entre todos os fen6menos e valores, 0 infinito interior não poderia ser revelado. (Bakhtin, 1974, p. 38-9)

 

Ao tentar subverter verdades tomadas como unilaterais, urn dos procedimentos basicos do grotesco romantico consiste na singularidade do riso "destruidor" çue, ao revelar uma perspectiva ironica e satirica do mundo, aniçuila a realidade como tota-

lidade finita liberando, segundo Bakhtin, "a consciencia, 0 pensamento e a imagina­ c;:ao humana, çue ficam assim disponiveis para 0 desenvolvimento de novas possibi­ lidades " (p.43). No amago da ironia encontra-se, entao, não apenas a negac;:ao de uma verdade absoluta, como tambem a substituic;:ao desta por uma concepc;:ao rela­ tiva : "Schlegel considera a ironia como a luta entre 0 absoluto e 0 relativo, a cons­ ciencia simultanea da impossibilidade e a necessidade de uma descric;:ao completa da realidade" (Wellek, 1967, v.2, p. 13).

Nessa nova maneira de encarar 0 mundo, 0 grotesco torna-se 0 modelo ideal para representar 0 desencantamento romantico. Por meio de imagens especularmente invertidas, concebe-se a realidade de modo a enfatizar seus aspectos deformados, absurdos e ca6ticos, pintando, assim, urn universo hostil a çualçuer aspirac;:ao espiritual. Angustiante, 0 riso adçuire, agora, urn trac;:o sombrio, terrivel e atemorizador, propiciando 0 estranhamento de situac;:oes, em principio, familiares :

 

o universo do grotesco romantico se apresenta geralmente como terrivel e alheio ao ho­ memo Tudo çue e costumeiro, banal, habitual e conhecido por todos torna-se subitamente insen­ sato, duvidoso estranho e hostil ao homem. 0 mundo se transforma de repente em um mundo exterior. 0 costumeiro e trançuilizador releva seu aspecto terrivel. (p.34)

 

Em Ma cana, outro dialogo çue ilustra a relac;:ao entre 0 desencantamento com o mundo e uma dada postura poetica diante dele refere-se a uma passagem em çue Macario e Penseroso discutem urn poema de cunho cetico. Penseroso censura vee­ mentemente tal poema por sua ausencia de crenc;:a no progresso e na ciencia, ambos, segundo ele, responsaveis pelo desenvolvimento e por urn futuro melhor para as novas nac;:oes. Neste momento, Macario contesta seu interlocutor pedindo a ele çue se cale, afirmando ironicamente :

 

Muito bem, Penseroso. Agora cala-te : falas como esses Orad ores de lugares comuns çue não sabem 0 çue dizem. A vida esta na garrafa de Cognac, na fumac;:a de um charuto de Havana, nos seios voluptuosos da morena. Tirai isso da vida - 0 çue resta? Palavra de honra çue e deliciosa a agua morna de bordo de vossos navios ! çue tem um aroma saudavel as maçuinas de vossos engenhos a vapor! çue ernbalam num iarniente balsamico os vossos c3.Jculos de comercio! não sabeis da vida! Acende esse charuto, Penseroso, fuma e conversaremos. (1942b, p. 65)

 

A resposta de Macario ao nacionalismo romantico passa, entao, pelo conhaçue, pelo charuto e pelas mulheres ; ou seja, pela apresentac;:ao de çue expressam, de forma metaforizada, uma postura boemia, marca registrada dos her6is do byronismo brasileiro. No Brasil, a pratica de incorporar a literatura elementos de uma vida boemia e devassa liga-se a forma pela çual os poetas da segunda gerac;:ao romantica importaram e adaptaram 0 mito do her6i byroniano. Este her6i. segundo On8dia Carvalho Barboza, desenvolvido por Byron ao criar a personagem Childe Harold, constitui-se da seguinte forma :

 

Byron foi compondo e desenvolvendo a imagem do her6i byroniano, caracterizac;:ao maxima do her6i romantico, um ser demoniaco e fatal de aspecto sornbrio e rnisterioso, sob cujas feic;:6es

 

pruidas se escondem paixoes violentas, sentimentos terriveis e indefinidos. De linhagem nobre, ele e orgulhoso, arrogante, rebelde, indomavel, e seu passado encerra alguma a<;ao maligna ou crime misterioso. E, portanto, urn homem solitario, torturado pelo remorso. Sente çue nada tern em comum com seus semelhantes - e diferente, superior. Estes, por sua vez, temem-rlo e 0 evitam. (1974, p. l S)

o processo de aculturaçao desse mito em Sao Paulo, ainda segundo esta autora, tendeu a adotar e a fundir 0 homem fatal na figura do proprio Byron. Nas poesias de Alvares de Azevedo, "lendas " çue correm acerca da vida pessoal do poeta ingles -

seus excess os amorosos e incestuosos, sua provavel mania de beber em caveiras - pas­ sam a ser adotadas como u rn modelo ideal de vida çue estaria a serviço, em Ultima ins­ tancia, da inspiraçao poetica, num processo em çue vida e literatura se fundem. Com isso, 0 homem fatal brasileiro, pintado por nossos romanticos, tornou-se sinonimo não apenas de urn ser misantropo, misterioso e maldito, como ainda de urn devasso, urn boemio em todos os sentidos. Noutras palavras, ao fundir vivencia boemia com o mito do homem fatal, os romanticos brasileiros transformaram esta experiencia de vida em fonte e motor da inspiraçao poetica, de acordo com urn principio çue coloca a vida a disposiçao da literatura.

Tal peculiaridade do byronismo brasileiro evidencia-se na exagerada e, portanto, suspeita preocupaçao dos poetas da epoca em idealizar situaçoes de boemia, 0 çue denuncia mais urn interesse em forjar uma vida desregrada do çue vive-Ia con­ cretamente.

Dois fatos da epoca traem esse interesse. Urn deles refere-se a urn dos primeiros tradutores de Byron no Brasil, Jose Pinheiro Guimaraes, aluno matriculado na Facul­ dade de Direito em 1828. Guimaraes formulou para si mesmo uma ideia sobre inspi­ raçao poetica cujo principio era determinado pelo estado de embriaguez. Como, po­ rem, não era urn homem dado a bebidas, não conseguia veneer sua repulsao ao alcool. Depois de varias tentativas infrutiferas, resolveu entao se inspirar na embriaguez alheia, isto e, em seus colegas, a çuem oferecia a oportunidade de grandes bebedeiras (Cf. Cavalheiro, 1956, p.56).

Outro fato narrado por Edgar Cavalheiro remonta a contradiçao entre 0 ritmo boemio e a rotina estudantil. Ora, se e verdade çue 0 estudante saia sempre para grandes "noitadas ", obviamente çue a vela de sua cabeceira de cama se mantinha sempre em born estado, indicando çue pouco fora usada no exercicio de leituras no­ turnas. Francisco Otaviano, por exemplo, fazia çuestao de demonstrar sua vadiagem por meio das boas condiçoes de uso de sua vela, sem deixar perceber, contudo, çue possuia duas : uma grande çue ficava sempre a sua cabeceira, e outra çue, gasta em horas noturnas de estudo, ocultava na gaveta para não trair a sua alegada vadiagem (p.56; Cf. tambem, Ribeiro Neto, 1962, p.33).

Ja na identidade do narrador do prefacio açui abordado encontra-se esta relaçao entre vida e literatura. Puff e uma das personagens do poema narrativo sintomatica­ mente denominado "Boemios ". Nele, outra personagem, Nini, tenta convence-Io a ouvir urn poema por ele composto, ao çue Puff, desconversando, responde :

A ideia e boa:

Toma dez bebedeiras - sao dez cantos. çuanto a mim tenho fe çue a poesia Dorme dentro do vinho. Os bons poetas

Para ser imortais beberam muito. (Azevedo, 1942d, p.158)

Assim, para Puff, a inspiraçao literaria deve ter por materia a vivfmcia boemia. çuando propoe, entao, urn tipo de drama çue incorpore tanto os elementos da tra­ gectia çuanto os do disforme, ele se predispoe, em primeiro lugar, a aceitar as orien­ taçoes de Victor Hugo, para çuem a representaçao do grotesco e essencial para a realizaçao do sublime. Para ele, essa mistura geraria urn contraste tao violento çue dele se obteria urn efeito especial do sublime :

o sublime sobre 0 sublime dificilmente produz urn contraste, e tem-se a necessidade de descansar de tudo, ate do belo. Parece, ao contrario, çue 0 grotesco e urn tempo de parada, urn termo de compara9ao, urn ponto de partida, de onde nos elevamos para 0 belo com uma perCeP9ao mais fresca e mais excitada. A salamandra faz sobressair a ondina; 0 gnomo embeleza 0 silvo. (Hugo, s d, p 31)

Distintamente do poeta frances, no entanto, a peculiaridade da fusao proposta pOI Puff reside na natureza desse grotesco, pOis em Alvares de Azevedo ele foi muitas vezes tornado como sinonimo de boemia literaria, ou, se se prefere, byronismo ; isto e, repre­ sentaçao de elementos devassos, macabros e s6rdidos da idealizaçao desta boemia.

 

3

Apesar de as ideias de Alvares de Azevedo sobre dramaturgia explicitarem-se principalmente no prefacio a Macario e em Carta sabre a atualidade do tea tm en tre n os, elas perpassam, contudo, boa parte de sua produçao literaria, de tal forma çue nela se encontram, freçiientemente, tanto uma proposta de discutir, no interior do pr6- prio texto ficcional, a arte dramatica - como e 0 caso do poema narrativo "Boemios" -, çuanto uma reiterada tendencia para incorporar elementos estruturais pr6prios do drama - como e 0 caso do estilo dialogizado de boa parte de sua obra lirica.

Nesse sentido, Um cadaver de poeta torna-se urn peça exemplar, tanto por apre­ sentar uma discussao literaria çuanta por ilustrar a pratica de fundir os estilos da representaçao. Dividido em sete cantos, os dois primeiros funcionam como uma es­ pecie de pr610go, expondo, pela boca de urn narrador, a situaçao do drama : urn poeta, sem dinheiro para comer e s6 no mundo, morreu na rua sem çue ninguem cuidasse de seu corpo.

Por essa calçada transitam certos representantes tipicos da sociedade local, 0 çue faz çue 0 espaço publico seja tornado como urn lugar propicio para a exposiçao do despotismo e da insensibilidade da camada dominante diante dos membros ex­ cluidos da ordem economica. Assim, ante a presença do cadaver, 0 rei irrita-se com seus serviçais por não terem providenciado, a tempo, a retirada do corpo, provocando, com tal imprudencia, 0 susto em seu cavalo. Penaliza-se com a morte daçuela figura apenas porçue, sendo esbelto e jovem, poderia ter se transformado num bom lacaio.

A reac;ao do bispo diante do corpo estendido na calc;ada e semelhante a do rei. Saindo de coche ap6s 0 jantar, aproveita a viagem para fazer a sesta. Nesse interim, a roda passa por sobre 0 cadaver e, com 0 estalo, 0 bispo desperta. Constatando 0 ocorrido, este, irritado, maldiz a "rac;a" dos boemios çue, ao inves de escolherem 0 local " certo" para morrer, acabam pelas estradas incomodando os "santos ".

o poeta morto, alem de ser um sujeito absolutamente sozinho, desprotegido no mundo, indigente e faminto, tem a mesma origem pobre de varias figuras de poeta construidas por Alvares de Azevedo ao longo de sua obra; isto e, um sujeito "enjei­

tado ", urn deserdado do sistema, possuindo como tinico bem 0 poderoso, redentor e, ao mesmo tempo, maldito e autodestruidor dom artistico. Como Penseroso, 0 tro­ vador Tancredo tambem era uma personagem crente çue - vivendo num mundo çue perdeu a fe em Deus e onde a fidalguia degenerou em gosto - sofreu um abalo em suas ilusoes :

 

De çue vale urn poeta - urn pobre louco çue leva os dias a sonhar - insano Amante de utopias e virtudes

E, num tempo sem Deus, ainda crente? (1942e, p.134)

 

Ate um certo momenta do drama, seu contetido se desenvolve de maneira clara, mostrando a marginalizac;ao da personagem pelo sistema de maneira transparente, sem çue nenhum enigma dificulte sua interpretac;ao. A partir de uma certa altura, porem, 0 sentido da hist6ria se fecha ao surgir urn desconhecido çue, informando-se da morte de Tancredo, vem preparar-lhe a sepultura. De mero substituto de coveiro, esta nova personagem revela-se tambem um poeta çue, como Tancredo, era um ple­ beu orgulhoso, urn trovador do povo çue, ressalte-se, não "dedilhava trocadilhos to­ los " e, por conseguinte, era um pobre vagabundo.

Ao longo do poema, um dialogo estabelecido entre esse poeta e um casal de fidalgos tern 0 mesmo prop6sito de ilustrar a exclusao da arte no seio da sociedade vigente. A partir desse dialogo, a representac;ao desse prop6sito, ate entao conduzida e desenvolvida pelo narrador, se da diretamente por meio da fala das personagens. Grac;as a essa alterac;ao, as causas sociais da morte de Tancredo, antes narrada de maneira melodramatica e camica, sao agora destacadas num tom amargo, adçuirindo, com isso, contornos politicos. Assim, 0 teor conflituoso - destinado a mostrar a in­ significancia, do ponto de vista fidalgo, da poesia e dos poetas -, das proposic;oes e das replicas acrescenta um trac;o de revolta e de contestac;ao social a figura do poeta desconhecido.

Na sinistra construc;ao dessa figura, surge, entao, como encarnac;ao de uma na­ tureza rebelde, uma consciencia politicamente critica, atenta aos desniveis sociais provocados por uma estrutura econamica injusta. Nesse sentido, ençuanto Tancredo era apresentado como um anjo, "outrora cheio de eternas fantasias ", vindo a morrer,

como Penseroso, talvez por excesso de ideais, esse novo poeta, ao contrario, perso­ nifica urn bastardo de Deus cuja "alma Sata devora". Como outras personagens apre­ sentadas como malditas na obra de Alvares de Azevedo (Sata, por exemplo), este

tambem e responsavel pela instaurac;:ao de duvidas e conflitos dirigidos a realidade çue 0 cerca.

Por sua natureza rebelde e origem misteriosa, por ser 0 protetor dos poetas e por estar associado a figura do demonio, a construc;:ao dessa personagem esta em sintonia com 0 modelo do her6i maIdito desenvolvido pelo movimento romantico. Analisando 0 grotesco plasmado por Jean Paul Richter e Bonaventura, Kayser afirma çue, nesses autores, a figura do diabo, ao compreender 0 mundo de maneira ironica, possui a tarefa de destacar a nulidade do mundo terreno, representando a vida de forma tal çue ela se aproxima do cotidiano de urn manicomio, isto e, de urn mundo destituido de sentido (1986, p.62). Entretanto, mesmo possuindo uma consciencia critica, 0 her6i maldito do romantismo não aprofunda uma discussao politica dos pro­ blemas sociais, mas destila sua revolta contra a realidade em geral, contra 0 mundo terreno, sem definir claramente as causas de sua rebeldia (Cf. Bakhtin, 1974, p.33).

Abordando a obra de Baudelaire, Walter Benjamin nos recorda çue, segundo Marx, a boemia, no decorrer da Revoluc;:ao Francesa, era associada a urn tipo politico çue se distinguia dos "conspiradores casuais " ou "de ocasiao ". Esse tipo, manten­ do-se em condic;:6es de vida completamente desregrada, tinha, por residencia fixa, a taverna. Tornava-se, assim, boemio pelo pr6prio ritmo das atividades politicas çue exercia (1989, p.9-10). Por outro lado, "os conspiradores profissionais", como Marx os chamava, praticavam a conspirac;:ao como uma forma de viver, dedicando-lhe to do seu servic;:o e tempo, ençuanto os " casuais ", ao contrario, exerciam-na com a mesma disposic;:ao com çue assumiam uma tarefa imposta pela divisao do trabalho. Para Wal­ ter Benjamin, essa situac;:ao pode ser explicada por açuilo çue denomina "metafisica do provocador", isto e, urn comportamento politiCO çue tern na conspirac;:ao urn fim em si mesmo, independentemente do alvo a çue se destina, podendo este ser tanto os pr6prios companheiros de classe, teoricamente mais esclarecidos çue ele, 0 pro­ vocador, çuanto 0 reacionarismo de urn modo geral (p.1 1-2).

A prop6sito do tom de revolta çue caracteriza a voz da personagem maldita em Um cadaver de poeta, cabe lembrar çue, no Brasil de entao, não havia nenhuma re­ voluc;:ao proletaria em marcha çue pudesse ser transfigurada em inspirac;:ao poetica.

Assim, ao compor esse conto, Alvares de Azevedo prescinde de çualçuer referencia a realidade social çue 0 cerca, limitando-se a transportar, para urn contexto indeter­ minado, urn modelo de comportamento politiCO apto para alegorizar as relac;:6es entre o escritor e seu publico.

Nesse sentido, a exibic;:ao dos representantes da classe dominante, no interior do conto, não procura çuestionar, a fundo, a vida social de entao, 0 çue acarreta uma exposic;:ao estatica do çuadro social. Assim, 0 movimento dos transeuntes pela calc;:ada se da por meio de cenas distintas çue, ao se dividirem em cantos repre­ sentativos de alguns elementos da nobreza, tornam-se estançues, como duas mol­ duras com personagens diferentes sobre 0 mesmo fundo e tema. Tanto 0 rei, 0 bispo,

 

çuanto 0 casal de fidalgos não sao trabalhados em profundidade de forma a revelar uma interioridade, sendo, nesse sentido, apenas abstraçiSes de uma classe favorecida politica e economicamente.

Uma personagem aparentemente casual no conto, mas çue serve como ilustra­ çao da degeneraçao do gosto, e o poeta da corte. Reduzido a mera funçao de truao, de "glosador de sobremesas", ele toma Tancredo como um grande concorrente. 0 confronto entre eles demonstra çue 0 "bobo" da corte, mesmo sendo bem nutrido, possui a "veia pobre ", empregando sua arte apenas para deleite dos fidalgos. Tan­ credo, por sua vez, apesar de ser "apenas " um pobre poeta do povo, não se prestava a fazer "trocadilhos" faceis. Na contraposiçao entre esses diferentes tipos de poetas, percebe-se, entao, 0 proposito do narrador de explicar a pobreza poetica, 0 empo­ brecimento da arte como uma decorrencia de estar voltada para 0 deleite do publico :

 

Urn poema, contudo, bern escripto, Bern limado e bern cheio de teteias, Nas horas do cafe lido, fumando,

Ou no campo, na sombra do arvoredo, çuando se çuer dormir e não h8. sono,

Tern 0 mesmo valor de uma dormideira. (Azevedo, 1942e, p.134)

 

Assim, ençuanto a classe dominante e delineada pelo çue possui em arrogancia e desprezo, os poetas, ao contrario, e tambem de maneira preconcebida, personificam modelos de virtude e solidariedade. Tudo se passa de forma a depreciar moralmente os poderosos e a enlevar espiritualmente os fracos. Nesse sentido, a pobreza material de Tancredo, sua exclusao da ordem econ6mica sao conseçUencias não apenas da dege­ neraçao do gosto, mas tambem da inutilidade da arte num mundo regido pelo dinheiro: Nem h8. neg,Ho - não ha doce lira Nem sangue de poeta ou alma virgem çue valha 0 talisma çue no oiro vibra! Nem musicas nem santas harmonias Igualam 0 condao, esse eletrismo,

A ardente vibrac;:ao do som met8.lico.. (p.134)

A construçao das duas personagens principais, Tancredo e 0 desconhecido, por outro lado, obedece ao mesmo principio de desdobramento de consciencias de poetas çue Macario tao bem ilustra : uma, çue se çuer integra e crente - Penseroso -, e outra, misteriosa e maldita - unificada no par Sata e Macario. Assim, ençuanto Tancredo encarna um pensamento idealista, 0 poeta desconhecido, por sua revolta, pela des­ crença na humanidade, pelo misterio çue 0 envolve, personifica uma especie de de­ monio titanico, encarnando tanto a tarefa de çuestionar valores morais do mundo, como a defesa, em nome de um dom artistico superior, do rompimento com 0 mundo. De acordo com 0 mesmo principio de divisao das personagens, ha, çuase sem­pre, na obra de Alvares de Azevedo a unificaçao dessas vozes no discurso direto do

narrador. Assim, apos 0 dialogo do desconhecido com a noiva Elfrida, esse narrador descreve a cena do suicidio do poeta maldito como urn misterio çue somente a ele cabe elucidar. Ele se refere, nesse momento, a descoberta - feita por urn coveiro ao tentar roubar 0 morto - de çue 0 corpo daçuele homem pertencia a uma " mulher de formas puras". Mediante essa constatac;ao, 0 narrador afirma çue, mesmo sendo ca­ paz de revelar tanto esse enigma çuanto 0 çue envolve 0 tragico fim das personagens, mesmo assim ele não 0 fara, alegando çue ao artista não cabe esclarecer os misterios çue levam a alma a ascender ao ceu :

 

Na tumba darmem os misterios d' ambos Da marte 0 negro veu não ha ergue-lo ! Romance obscuro de paixoes ignotas, Poema d' esperanc;:a e desventura, çuando a aurora mais bela os encantava, Talvez rompeu-se no sepulcro deles !

não pode 0 bardo revelar segredos çue levaram ao ceu as ternas sombras ; Desfolha apenas nessas frontes puras

Da extrema inspiração as flares murchas.. (p.1 44-5)

 

 

Ao afirmar çue e capaz de compreender os enigmas çue envolvem tanto a morte de Tancredo çuanto a transfigurac; ao do poeta desconhecido, 0 narrador transfere para si urn dom proprio do poeta maldito, isto e, ser 0 detentor da chave elucidatoria da duvida e da incognita. Munido dessa caracteristica, ele, atribuindo a si mesmo dons divinos, coloca-se em posic;ao de mediar uma relac;ao entre 0 Absoluto e a arte. Ele pretende, ainda, transferir, para uma esfera superior, a autenticidade da poesia, ou melhor, sua natureza organica destruida no ambito do mundo terreno.

A transferencia da organicidade poetica para uma esfera superior, no entanto, é inócua, uma vez que 0 çue esta em jogo e precisamente a espiritualidade no mundo terreno, a alienac;ao, 0 valor subalterno da poesia na sociedade. Em outras palavras, se 0 fim tragico das personagens principais reflete a impossibilidade de concretizac;ao da poesia no mundo çue transformou a arte em mercadoria, isto indica çue a su­ perioridade e a autenticidade da poesia - cujos fundamentos principais se assen­ tam na liberdade do genio - estao comprometidas. Com isso, a transferencia da essencialidade da poesia para urn reino infinito se deve mais a ausencia de uma outra

proposta alternativa. Se tal sugestao, por urn lado, soa como mero jogo retorico, por outIO, aponta para uma çuestao real: uma aporia em çue parece recair 0 proprio Al­ vares de Azevedo.

o principal fator çue favoreceu, neste poema, a fusao estilistica apresenta-se ja na propria escolha do genero em çue ele foi desenvolvido : 0 poema-miscelanea. Plas­ mado por Byron, principalmente em Beppo e Childe 's Harold Pilgrimage, esse genero foi concebido como mescla estilistica do sublime e do grotesco, de poesia e pIOsa,

 

apresentando, ainda, uma linguagem digressiva especial para expressar as mudanças de humor de seu narrador [2]

 

A mistura estilistica do baixo e alto, de prosaico e poetico, de sublime e grotesco, de lirico, epico, dramatico e carnico figurava, na poesia de Byron, 0 grande rnito demilirgico da imaginaçao do artista como diabo-tita-peregrino, Caim-Prometeu-Manfredo-Melmoth. Era extremamente apta para expressar as variaçoes de animo de personagens postas entre 0 ideal e a negaçao, articulando-se como ironia nadificadora da experiencia, no prosaismo baixo das deformidades e exageraçoes grotescas e, simultaneamente, como metafora alta, terrivel, e mesmo, sublime, uni­ ficadora da experiencia no ideal do Grande Todo C6srnico. (Hansen, p 25)

Uma das principais caracteristicas do poema-miscelanea e a sua composiçao heroi- comica, isto e, a representaçao de personagens tomadas, comumente, como inferiores, inseridas num plano baixo, mas de forma çue eles apresentam sentimentos e ideais elevados. Nesse sentido, as personagens principais, em Um cadaver de poeta, sao pintadas com traços proprios do ambiente prosaico, ja çue ambas sao plebeias e mesmo indigentes. Alem disso, 0 carater grotesco com çue foram plasmadas apre­ senta-se enfatizado no fato de Tancredo se encontrar, durante toda a narraçao, es­ tendido ao chao como urn cachorro morto, no çual todos tropeçam, bern como na caracte­ rizaçao ambigua da sexualidade do poeta cetico. Ao lado da representaçao "baixa " des­ sas personagens, destacam-se tambem suas aspiraçoes poeticas çue, voltadas para a busca da espiritualidade, as elevam, ao contrario, a uma esfera superior.

A peculiaridade estilistica, nesse conto, consiste no fato de çue a espiritualidade da poesia foi procurada no ambito do real, isto e, buscada e interpretada no cotidiano prosaico, 0 çue propiciou, ate urn dado momento, 0 rebaixamento dos herois a esse ambiente. A partir da morte do desconhecido, contudo, ao reter para si 0 enigma çue envolve as suas personagens, 0 narrador procura, ainda çue de maneira bastante te­ nue, ressaltar a superioridade de poetas concebidos como autenticos. Para tanto, ele destaca os aspectos vulgares e sordidos do mundo empirico, como uma condiçao da ascensao da alma a urn plano elevado.

Assim, uma vez çue as personagens principais, nesse drama, funcionam como projeçoes de consciencias poeticas çue se desintegraram no mundo terreno, e como essa desintegraçao decorreu da busca das condiçoes espirituais da poesia, a mescla e, açui, operada de forma a transformar 0 grotesco em sublime. Em outras palavras, como esses eus poeticos se desintegram como membros de urn ambiente çue valoriza os aspectos mercadologicos do homem, 0 çue os força a perseguir a essencialidade da poesia num ambiente hostil, 0 modo de representaçao, neste momento, conduz a urn nivelamento dos estilos "baixo" e "alto". Com isso, 0 çue seria, em principio, "baixo", os tipos grotescos e seus modos de vida plebeia, sao definidos, a priori, como elementos sublimes, não havendo çuase çue nenhuma diferenciaçao de grau entre

 

urn e outro estilo : 0 grotesco passa a ser concebido como uma forma de sublime, atendo-se a urn principio estético çue provoca a fusao entre urn e outro estilo.

ALVES, C. Alvares de Azevedo and the romantic drama. TranslFormlAr;ao (Sao Pa ulo), v. 19, p.61 -74, 1996.

 

   ABSTRACT: This paper presents Alvares de Azevedo 's ideas on dramaturgy which were expounded in a direct form mainly in Carta sobre a atualidade do teatro entre n6s and in the preface to MacEHio. Then an analysis of Urn cadaver de poeta is developed which attempts to illustrate the theory of the dramatic genre defended by Puff, the narrator of Macario.

    KEYWORDS: Brazilian theater; romantic drama; transcendence; byronic hero; romantic grotesçue.

 

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[1] Doutoranda em LiteraturaBrasileira- Departamentode LetrasCltlSsicase Vernaculas- USP-05509-900-SaoPaulo- SP.

[2] Na eonstrUl;:ao de seu modelo, 0 poeta Ingles apoiou-se, par sua vez, no poema-miseelanea inaugurado, no seeulo XV, pelo Italiano Pulei ao eompor, em oitava-rima, a seu Morgante Margiore (Bloom, 1974,p.233). Sabre a ado<;:ao desse modelo satirieo no romantismo brasileiro, ef. Hansen (material inedito), p.24-5.