ENTRE UTOPIA LIBERTARIA E REALISMO POLÍTICO: GODWIN E SHELLEY DIANTE DA REVOLUÇÃO

Patrizia PIOZZI[1]

   RESUMO : 0 artigo examina as ideias políticas de Godwin e Shelley, tendo como pano de fundo a emergência e crise do radicalismo "jacobino" inglês, durante a década de 1790. A análise busca mostrar 0 desenvolvimento - e impasses - dos ideais libertários destes autores diante das profundas transformações em curso, entre 0 tim do seculo XVIII e 0 começo do século XIX.

    PALAVRAS- CHAVE: Anarquia; revolução ; modernidade; razão ; utopia.

 

And, by the incanta tion this verse, Scatter, as from an unextinguish ed hearth Ashes and sparks, my words among mankind I Be through my lips to unawakened earth

The trumpet of a prophecy! 0, Wind,

If Win ter comes, can Spring be far behind?

Shelley

Ignorada pelos primeiros teóricos e militantes do socialismo libertario no século XIX, posteriormente redescoberta por Kropotkin e, desde então, definitivamente integrada a iconografia do movimento, a extensa e eclética obra de William Godwin tern hoje urn círculo relativamente restrito de leitores, entre estudiosos e simpatizantes do anarquismo[2] e pesquisadores da história e literatura europeias na "era das re­ voluçoes". No entanto, durante a ultima década do século XVIII, Godwin foi, ao lado de Thomas Paine, a figura mais proeminente dentre urn punhado de jovens escritores progressistas que travaram com os conservadores urn acirrado debate em torno de questoes entao candentes : desde a reforma da constituiçao inglesa e, particularmente do voto censitario, ate a redistribuiçao da riqueza social e a legitimidade das re­ voluçoes e das formas institucionais delas emergentes[3]

Embora, ao contrário de Paine, nunca tenha tido participaçao intensa nos acontecimentos políticos de seu tempo, Godwin alcançou fama inesperada ao publicar, em 1793, 0 tratado politico-filosofico Enquiry Concerning Political Justice,[4] recebido, na epoca, como a mais completa e elaborada resposta as Reflections on the Revolution in Fran ce (1790), de Edmund Burke[5] ç interesse suscitado por esse longo estudo, nao so entre a intelectualidade engajada, mas tambem junto as associaçoes operarias[6],ó explica-se pelo vinculo ai estabelecido entre 0 fato revolucionario e a emergencia de uma organizaçao coletivista autogerida. Embora a ideia de uma sociedade sem Es­ tado ja estivesse presente em escritos de outros radicais,[7] sem duvida apenas 0 En­ quiry a desenvolvia sistematicamente, alicerçando-a numa concepçao da natureza humana e da historia, e associando-a ao fim da economia mercantil. Desta forma, vinha ao encontro das esperanças suscitadas pelos " extraordinarios " eventos ameri­ canos e franceses entre os circulos oposicionistas, para os quais a independencia da colonia ultramarina e 0 inicio da Revoluçao no continente anunciavam a nova Idade de çuro do mundo, com 0 triunfo universal de relaçoes livres e igualitarias entre os homens .

No entanto, a interpretaçao do tratado em chave acentuadamente libertaria, per­ petuada pela exegetica anarquista, corre 0 risco de subestimar a tensao nele existente entre 0 projeto da comunidade futura e pontos de vista em torno de temas conjun­ turais, tensao esta ainda mais evidente apos as mudanças introduzidas nas ediç:oes posteriores, respectivamente em 179ó e 1798. Com efeito, no texto originario, Godwin defendia genericamente 0 direito dos povos a autodeterminaçao politica, mostrando grande entusiasmo pela forma incruenta com que este estava sendo conquistado na

provocando uma enxurrada de replicas. Dentre estas, salientam-se: A Vindication of the Rights of Men de Mary Wollstonecraft (1790) ; Rights of Man de Thomas Paine (1791); e Vin diciae Gallicae de James Mackintosh (1791).

America e na França. Sua analise credita a ampla adesao aos ideais renovadores e a consequente inexistencia de guerra civil nesses paises ao esclarecimento alcançado pela opiniao publica a respeito dos verdadeiros problemas da democracia. Assinalando as diferenças entre a sanguinaria luta travada contra 0 absolutismo na Inglaterra do seculo XVII e 0 carater fundamentalmente pacifico das transformaçaes em curso em sua epoca, 0 autor afirma que

no caso da America e da Franr;:a, a filosofia ja tinha desenvoIvido alguns dos grandes principios da verdade politica, e Sydney, Locke, Montesquieu e Rousseau tinham convencido a maioria das caber;:as pensantes e poderosas dos males da usurpar;:ao. Se estas revolur;:óes tivessem acon­ tecido ainda mais tarde, nenhuma gota de sangue de urn cidadao teria sido derramada por obra de outro, nem, talvez, tivesse existido qualquer violencia ou confisco marcando esses eventos . (194ó, v.3, p 28ó)

A critica velada as insurreiçaes, admitidas apenas como momentos supremos, quase imperceptiveis, de urn longo processo educativo, torna-se explicita no texto revisado, sobretudo nas ponderaçaes sobre 0 sufragio universal e os meios legitimos de reforma politica. Embora em principio seja favoravel ao governo democratico, Godwin (v. l, p. 254) opae-se decididamente a universalizaçao imediata do direito de voto, em vista do estado de "infantil ignorancia" em que se encontram as massas populares, incapazes por isso de distinguir entre 0 certo e 0 errado . Apontando para 0 "engano camuflado na palavra maioria", que " consiste nao no problema do numero, mas da qualidade e grau de esclarecimento" (p . 2ó4), 0 filósofo subordina 0 efetivo exercicio das liberdades civis e politicas a urn drastico aprimoramento do nivel intelectual do povo, alertando contra os propulsores da renovaçao a qualquer preço, a seu ver tao nocivos a causa da humanidade quanta os amigos do antigo .

Nesta óptica, a lenta reforma das instituiçaes, resultado da obra pedagógica e ecumenica das luzes, aparece em oposiçao frontal ao movimento abrupto, violento, conflituoso das revoluçoes, em que interesses parciais e sentimentos de vingança acabam prevalecendo sobre as exigencias do bern publico, recriando governos des­ póticos, iguais aos anteriores, ou mesmo piores. InterruPçaes bruscas e perigosas do avanço progressivo dos homens rumo a liberdade, elas "perturbam a harmonia da natureza intelectual. Tern por obj etivo nos dar algo para que nao estamos preparados, e de que nao podemos efetivamente usufruir. Suspendem 0 benefico avanço da cien­ cia, e confundem 0 processo da natureza e da razao " (p .274) .

Diante deste diagnóstico das praticas insurrecionais, a defesa intransigente de seus principios norteadores e a imputaçao de suas consequencias perniciosas ao " excesso de sentimento virtuoso" de seus lideres podem parecer apenas urn artificio retórico . No entanto, 0 ponto de vista contrario as revoluçaes, num texto original­ mente escrito para refutar 0 ataque de Burke ao novo regime, nao soa tao paradoxal se considerarmos que, em meados da decada de 1790, os desdobramentos de 1789, culminados na ditadura jacobina e em seu tragico desfecho, ja colocavam em xeque a fe iluminista no advento indolor de modelos societarios governados pelas leis da razao .

Neste contexto, para quem acompanha a trajetoria intelectual de Godwin e de seu circulo ao longo do ultimo quarto do seculo, 0 Enquiry marca 0 ponto de inflexao entre a defesa irrestrita do evento revolucionano e 0 crescente pessirnismo em tomo de seu efetivo potencial libertador. No entanto, apesar de suas ambigiiidades, 0 tratado per­ manece referencia obrigatoria para aqueles que reconhecem na doutrina godwiniana os fundamentos da filosofia anarquista modema, na medida em que os temores ai manifes­ tados diante dos mmos da Revolw;:ao Francesa nao chegam a abalar a crenya na raciona­ lidade intrinseca dos homens, base imprescindivel a futura comunidade acrata.

Surpreendentemente, a sustentayao logica do modelo anarquico parece sucum­ bir ao realismo politico num libelo publicado no mesmo periodo (1795),[8] em que 0 autor afirma que a democracia direta e viavel apenas em agrupamentos humanos pequenos, enquanto as complexas sociedades modemas exigem sempre leis formais e govemos coercitivos. Seu argumento nao incide sobre a maior facilidade de comu­ nicayao e debate em grupos mais restritos, mas realya a transparencia dos individuos, permanentemente sob 0 controle do conjunto dos membros :

 

num circulo limitado e pequeno, todos exercem uma inspeçao sobre todos. Nao M açoes passiveis de serem escondidas ; a censura geral, ou 0 aplauso, segue imediatamente cada ate realizado. Mas nas naçoes dos homens nao M nenhum olhar suficientemente penetrante para detectar cada rna açao em sua origem; a ast0.cia escapa com sucesso as conseqijencias que a justiça faria seguir ao delito. (1795, p.3)

A transgressao configura-se ai como inerente a vida social - irremediavelmente dividida entre as vontades particulares e as regras gerais -, conferindo legitimidade ao Estado : onde 0 olhar coletivo nao for suficientemente penetrante, as instituiyoes coercitivas tomam-se necessarias, desde que atuem de maneira "mitigada e escla­ recida" . Isto posto, Godwin critica os atos repressivos do govemo, ora em nome da liberdade dos cidadaos, ora em defesa da seguranya estatal, emulando, freqiiente­ mente, os alertas de Maquiavel ao principe. Em varias passagens, manifesta-se contra a proibiyao pura e simples das reunioes publicas, a favor de uma politica altemativa de vigilancia e controle que, mantendo 0 govemo a par dos humores do povo, abra, ao mesmo tempo, urn escoadouro para suas insatisfayoes, afastando 0 perigo da insurreiyao : " quanto mais longamente os descontentamentos forem reprimidos e ocultados, tanto maior sera sua explosao quando vierem a tona" (p .52) . Signifi­ cativamente assinado por urn Godwin "amante da ordem", 0 texto configura uma ruptura teorica decisiva com 0 Enquiry, jogando a "comunidade dos livres e iguais " para alem do alcance dos homens, numa dimensao espayo-temporal indefinida, cer­ tamente incompativel com "as coisas tais quais sao".[9]

A angustiada convivencia entre os principios libertarios e 0 pessimismo em torno de sua concretizaçao no mundo real revela a dificuldade de conciliar 0 modelo abstrato com urn fato novo, trazido a tona pela Revoluçao Francesa: a presença direta das massas no cenario politico . Com efeito, no construto ideal godwiniano, a nova ordem seria produzida pelo avanço e popularizaçao do conhecimento : para os seres racionais gerados ao longo deste processo, a total transparencia de cada urn ao olhar de todos nao constituiria vio18ncia a sua liberdade, na medida em que, esclarecidos a respeito da correta relaçao entre direitos e deveres, em hipotese alguma entrariam em conflito com 0 bern publico . A crença no advento proximo deste "reino da liberdade", parti­ lhada por Godwin e seu grupo, baseava-se, por urn lado, na constataÇão de que as propostas renovadoras estavam se espraiando rapidamente, graças ao aprimoramento intelectual da opinião publica, acelerado apos a invençao da imprensa, e, por outro, no pressuposto da incorruptibilidade dos pobres . Ignorantes, porem inocentes, estes constituiriam urn perfeito receptaculo para as novas ideias, a tabula rasa sobre a qual as luzes operariam, garantindo a " civilidade " do processo. E a partir deste diagnostico que Mackintosh (1791, p.52), por exemplo, defende 0 sufrágio universal em 1791 : a "multidão atingiu conhecimento suficiente para reconhecer a superioridade do ho­ mem esclarecido ".

No entanto, apos 0 choque causado pela experiencia jacobina, a figura idilica do povo ingenuo e de coraçao puro cede lugar a outra, terrificante e sinistra, da canalha rude e vingativa, manipulada pelos "demagogos e agitadores" surgidos no bojo do movimento. A suposta oposição frontal entre estes últimos e os intelectuais, sem­pre figurados como os legítimos representantes do progresso, explica porque Godwin combate decididamente a censura ao escritor político reconhecendo, porem, a necessidade de regulamentar 0 direito de reuniao : enquanto a linguagem das " cabeças pensantes ", por seu carater demonstrativo, e esclarecedora, 0 discurso do lider de massa, voltado a destruiçao de seu adversario, utiliza uma retorica repleta de imagens, buscando, com isso, a uniformizaçao imediata das opinioes dos ouvintes . No Enquiry, o autor ja distingue entre as rumorosas assembleias de rua, lugar proprio a irruPçao descontrolada de sonhos e ressentimentos, e os diminutos " circulos de instruçao ", formados por homens cultos, devotados a estabelecer e a divulgar a verdade pelo debate racional de ideias. Em suas palavras : "arengas e declamaçoes levam a paixao e nao ao conhecimento. A memoria de quem ouve e embutida de pomposas nulidades, de imagens e nao de argumentos" (Godwin, 194ó, v. l, p.290). Este ponto de vista, rei­ terado em outros escritos, radicaliza-se sobremaneira em Though ts Occasioned by th e Perusal of Dr. Parr 's Spital Sermon, ensaio publicado em 1801, que contem uma especie de balanço dos anos "jacobinos ". Ai confessa sua ojeriza a "mob", ate mesmo quando composta por pessoas cultivadas : "nao costumo ser alarmista ; reconheço po­ rem que, no que diz respeito ao que e publico, nao tenho simpatia pela multidao, seja ela vulgar ou educada" (1801, p.20).

A rejeiçao da democracia de massa, apos os eventos inaugurados no ana II, e comum aos radicais ingleses que tinham inicialmente se erguido em defesa da Revolução. Alguns, como Coleridge e Mackintosh, evoluem para posições conserva­ doras, e até mesmo uma libertária convicta como Mary Wollstonecraft revela, em sua crõnica dos acontecimentos franceses, grande perplexidade diante da "insânia" do povo parisiense. Embora formalmente atribua aos crimes e mau exemplo dos pode­ rosos a responsabilidade pelo barbarismo e loucura da multidão, sua interpretação dos acontecimentos, dominada pela imagem da plebe sangüinária, desemboca em concepções reformistas e intelectualistas do processo transformador, similares às de Godwin. Os filósofos, aptos a explicar e a endireitar o curso dos eventos, consti­ tuem a única esperança de redenção da humanidade moderna. Em contraste, os de­ serdados do sistema, frutos de séculos de violência e engano, acabaram reproduzindo, em sua tentativa de construir um mundo novo, as mesmas relações que os tinham gerado:

se olharmos para a história dos homens, dificilmente vamos encontrar uma página que não esteja cheia de atos insanos ou de conflitos sangrentos. Se examinarmos a lista dos vicios humanos no estado selvagem e os compararmos com os dos homens civilizados, constataremos que o bárbaro, considerado como ser moral, é um anjo, se confrontado com o vilão de vida artificial ... apenas o olhar do filósofo que penetra na natureza e avalia as conseqüências das ações humanas poderá discernir a causa que produziu tais horríveis efeitos. (Wollstonecraft, 1794, v.l, p.521-2)

Wollstonecraft morreu antes do melancólico ocaso do "jacobinismo inglês". Godwin, contrariamente a muitos radicais dos anos 90, continuou proclamando seu credo libertário. Em 1801, sintetiza a coerência, e os impasses, de suas concepções, quando, ao criticar os que viraram as costas às idéias progressistas, reafirma que sua obra principal é "filha da Revolução Francesa" (1801, p.2), lembrando ao mesmo tem­ po que, desde então, se declarava "inimigo das revoluções" (p.5).

A passagem do século inaugura nova etapa na vida do pensador inglês. Bem mais afastado do debate público, dedica-se quase integralmente a redigir obras de literatura e livros didáticos de história e gramática inglesa buscando, talvez, realizar a missão educadora por ele atribuída ao homem esclarecido. Os poucos textos polí­ ticos que escreveu nesse período, como, por exemplo, a resposta (1820) ao ensaio sobre a população, de Malthus, revelam uma visão desencantada do seu tempo, anun­ ciando a emergência de traços românticos em sua doutrina, em constraste com o otimismo racionalista predominante nos anos anteriores.

Sem dúvida, seu projeto societário permanece centrado na idéia da total trans­ parência e confiança mútua dos membros. Porém, enquanto na década de 1790 Godwin realçava a compreensão intelectual da verdade, nesta fase acentua os sentimentos naturais de benevolência e solidariedade. O papel primordial atribuído a estes na construção da nova ordem revela-se cristalinamente em suas considerações sobre ensino e linguagem. A proposta de educação escolar redigida em 1783[10]

priorizava 0 estudo das linguas e literaturas modernas, defendendo, contra os adoradores do passado, os resultados do progresso historico, medidos pelo avanc;:o do conhecimento :

e sem duvida possivel levar a paixão pelos antigos a urn extrema ridiculo. Nenhum homem pode razoavelmente negar que apenas nos atingimos 0 verdadeiro conhecimento do universo e que fizemos avanços efetivamente valiosos em muitos campos . (1783, p.9).

Em contraste, ja em 1801, Godwin (1801, p.20) confessa seu pecado racionalista, ad­ mitindo que " ... a mente humana e constituida de tal modo que nossas ac;:oes, na maior parte dos casos, sao muito mais criaturas do sentimento e do afeto que do entendimento ". Numa reminiscencia claramente rousseauniana, reconhece no sen­ timento inato de benevolencia a fonte originaria da sociabilidade, embora continue, como 0 genebrino, atribuindo a razao 0 papel de regula-Io e educa-Io .

A mudanc;:a de suas concepc;:oes se concretiza plenamente na obra de cunho testamentario, Th ough ts on Man (1831), em que, numa guinada de 180 graus em re­ lac;:ao ao projeto de 1783, a virtude dos antigos e elevada a modelo supremo de uma perfeita educac;:ao moral, enquanto os modernos sao associados as ideias de corrup­ c;:ao, vicio, decadencia e, especialmente, ao triunfo do individualismo : enquanto a doutrina da universal filantropia teria florescido nas "melhores epocas da Grecia e de Roma", 0 desprezivel credo do amor proprio teria se originado na "efeminada e cor­ rupta corte de Luis XIV", tornando -se 0 catecismo da humanidade civilizada (p .225). Enfim, "0 homem da razao " - segundo 0 sugestivo epiteto a ele atribuido por Woodcock -, critico feroz, no Enquiry, das insidias ocultadas na fala figurativa, reconhece 0 papel da imaginac;:ao no desenvolvimento dos sentimentos mais gene­ rosos e doces dos homens, alicerces necessarios para tornar 0 "edificio da liberdade politica solido e duradouro " (p .223).

Da mesma forma, enquanto nos escritos juvenis atribuia a linguagem sofisticada da civilizac;:ao 0 poder de transmitir as verdades da ciencia, aqui faz a apologia da fala simples, proxima da natureza, identificando na transparencia, sinceridade e es­ pontaneidade os elementos essenciais do discurso. Para contribuir efetivamente ao progresso moral dos homens, a palavra deve, acima de tudo, expressar "a corres­ pondencia entre 0 corac;:ao e a lingua de forma imediata" (p .3 13). A certeza da supe­ rioridade do natural sobre 0 "policiado ", que percorre toda a obra, e simbolizada na comparac;:ao entre 0 movimento do animal e 0 do danc;:arino : "nossos membros devem se movimentar livremente e espontaneamente - uma condic;:ao do animal que prove uma grac;:a infinitamente maior a do mais habilidoso danc;:arino " (Ibidem) .

o pensamento tardio de William Godwin revela importantes fissuras na crenc;:a no poder libertador da razao, prenunciando um dos impasses teoricos centrais da doutrina anarquista do seculo XIX. As imagens do egoismo caracteristico do espirito moderno comec;:am a se sobrepor ao diagnostico positivo dos novos tempos . Tal so­ breposic;:ao, apenas esboc;:ada, para nao dizer camuflada, na abstrata argumentac;:ao filosofico-moral do ultimo Godwin, tao coerente com sua prosa anti-septica, torna-secentral e adquire tintas dramaticas na obra politica de Shelley, seu genro e mais fa­ moso discipulo .

Em 1811, varios anos após a dispersao dos circulos radicais de 1790, 0 jovem poeta descobriu 0 Enquiry, ja entao relegado ao esquecimento, encontrando nele a maior fonte teórica para numerosos libelos e ensaios politicoS e filosóficos, redigidos entre 1812 e 1822, ana de sua morte . çuem começa a examinar estes textos e sur­ preendido pela impressionante proximidade entre 0 credo social e as propostas dos dois autores. Adepto, como Godwin, de concepçiSes evolucionistas do processo his­ tórico, a ponto de defender a adoçao do sufragio universal "por etapas", corres­ pondentes, em sua óptica, ao grau atingido pelo esclarecimento publico (et. Shelley, 1954c, p. 158-ó2), Shelley tambem manifesta seu espanto diante dos atos arbitrarios e violentos ocorridos na Grande Revoluçao, projetando a imagem da sociedade igua­ litaria ao tim de uma longa e pacifica sucessao de reformas institucionais .

No entanto, apesar da semelhança de pontos de vista, grandes diferenças de estilo, personalidade e maneira de encarar a missao do escritor se revelam em suas prosas, separadas, tambem, pela enorme distancia de Geist entre a era de radicalismo inaugurada no ultimo quarto do seculo XVIII e 0 clima de "compromisso" e "restau­ raçao " trazido pelos primeiros anos do Ottocen to. 0 breve periodo de vida adulta de Shelley transcorreu na segunda decada do seculo, numa quadra de eclipse das pers­ pectivas libertarias e progressistas diante dos devastadores efeitos sociais do capita­ lismo emergente, visiveis no agravamento das condiçiSes de vida das populaçiSes ur­ banas e, em particular, dos trabalhadores fabris. Tais circunstancias influenciaram fortemente seu pensamento, centrado na denuncia das novas formas de exploraçao e dominio geradas na modernidade e seladas pela aliança entre a velha elite e a nova "aristocracia do dinheiro ".

o retrato sombrio das condiçiSes de vida dos pobres, assim como dos "crimes " dos ricas e poderosos na sociedade burguesa, constrói-se em sua prosa pelo entre­ laçamento de argumentos sociopoliticos e imagens de grande impacto emocional, num dramatico contraste com 0 onipresente otimismo racionalista herdado dos ho­ mens das luzes. Urn exemplo deste conflito "interno" ao discurso pode ser encontrado em "A Philosophical Point of View of Reform", longo ensaio escrito em 1817, em que o poeta expiSe os fundamentos teóricos de suas propostas em torno dos meios mais adequados e legitimos de transformaçao social. Após uma breve analise da história europeia, voltada a mostrar 0 avanço irresistivel das forças do conhecimento e da liberdade, culminado nas grandes transformaçiSes economico-politicas da era moder­ na, 0 texto inverte radicalmente seu "rumo ", passando a denunciar os males trazidos por este mesmo movimento para a nova legiao de explorados, excluidos dos beneficios do sistema representativo e do progresso economico .

A sociedade moderna e como uma maquina, supostamente voltada para finalidades liteis, cuja farc;:a e potenciada ao mcixi.mo par urn delicado sistema mecanico, mas que, ao inves de moer grao e bombear agua, atua contra si mesma e esta perpetuamente desgastando ou destru­ indo as rodas que a compóem. (Shelley, 1954b, p. 233).

Apesar das investidas contra a insânia de uma sociedade movida exclusiva­ mente pelas determinações do interesse, neste texto Shelley ainda preserva da crítica o princípio utilitarista subjacente às teorias liberais predominantes no século XVIII, assinalando a defasagem entre os objetivos superiores de seus idealizadores e seu crescimento perverso no mundo moderno. O ataque direto ao racionalismo iluminista é conduzido no famoso estudo escrito em 1820 "Em defesa da poesia", considerada por seu amigo Thomas Peacock a expressão própria ao estágio primitivo da vida, em contraste com as formas mais práticas e úteis de pensamento, características dos povos civilizados[11] Shelley, dando as costas ao Enquiry e aproximando-se das críticas de Rousseau aos philosophes, atribui à razão, reduzida a cálculo egoísta pelas exi­ gências do interesse privado, a responsabilidade pelo desequilíbrio e despotismo im­ perantes na sociedade moderna, "efeitos que brotam necessariamente de um des­ mesurado exercício da faculdade de calcular" (1954a, p.292).

Em oposição ao cultivo das artes mecânicas, que estabeleceu um domínio sem precedentes sobre o mundo, trazendo, porém, escravidão aos homens, as faculdades de sentir e imaginar aparecem ao poeta como as únicas capazes de libertá-los: o amor, essência última da sociabilidade, base de toda ordem moral justa, penetra e se fixa de forma indelével em seus corações por meio da imaginação, revertendo os efeitos maléficos causados pelo sistema mercantil: "a poesia e o princípio egoísta, do qual o dinheiro é a encarnação visível, são o Deus e o Mammon do mundo" (p.293).

No entanto, a valorização do sentimento e da linguagem figurada não se traduz, em momento algum, na apologia do que é simples, popular, primitivo. Nem a crítica ao progresso científico e industrial, nem a extraordinária empatia com o sofrimento e as lutas dos miseráveis, a quem dedica tantas páginas de seus escritos, significam a adesão a uma perspectiva populista. A análise de suas propostas políticas mostra

que o poeta nunca atribuiu às formas de vida e às lutas espontâneas dos deserdados do sistema a missão de gerar a nova ordem. À imagem do burguês filistino, não opõe nem a figura do pobre puro de coração, tão celebrada em certa literatura da época, nem a do proletáriO moderno, que inspirará o movimento socialista. Ao contrário, mostra-se

apreensivo diante da incapacidade do povo de escolher seus representantes e de se governar a si próprio. Basta pensar nas inúmeras referências ao "banho de sangue" e aos regimes despóticos emersos da França revolucionária, sempre atribuídos à ação da "mob" inculta e ressentida, manipulada por "novos" fabricadores de mentiras.

O ponto de vista segundo o qual o novo não pode surgir diretamente das revo­ luções de massa, voltadas a derrubar formas de governo, mas impotentes em extinguir pela raiz "aquelas paixões que são o espírito destas formas" (1954b, p.23ó), parece apenas reafirmar as teses de Godwin sobre a necessidade de democratizar o conhecimento. Na verdade, enquanto neste último a falta de esclarecimento público configura-se como uma insuficiência a ser progressivamente sanada pela obra das luzes, na óptica de Shelley, a ignorância e degradação moral do povo é permanente­ mente reposta pela sucessão dos sistemas de domínio e exploração, agravando-se, sob muitos aspectos, na era industrial.

Ao mostrar o vínculo necessário entre a face "dourada" e a selvagem do mundo moderno, o poeta desvenda a essência autofágica de um processo civilizatório que gera e perpetua seu próprio oposto. No entanto, a desolação e a fúria diante do re­ corrente renascimento do "mesmo" convivem lado a lado com a firme certeza do lento, contínuo, às vezes "silencioso" movimento rumo ao novo, atuante até mesmo nas conjunturas mais adversas. O lugar onde este progresso deita raízes, floresce e adquire visibilidade não se encontra nem no crescimento "desmesurado" da razão utilitária, nem em seu contrário, as formas de vida e cultura elementares, nem também nas explosões repentinas das vítimas do sistema; ele pode ser reconhecido na ação direta, e pacífica, dos povos em prol das reformas, sob inspiração das grandes utopias filo­ sóficas, traduzidas nas imagens "maravilhosas" da linguagem poética. Esta, dom "di­ vino" concedido a poucos eleitos, tem, no entanto, o poder de penetrar no coração de todos os homens, suscitando neles o amor ao bem público e o desejo de agir para efetivá-lo. Ou, segundo as palavras do comentador de Shelley: "A poesia reúne ritual e mito, o primitivo e o civilizado, a rítmica dança e a abstração filosófica. No poema revolucionário, o novo mundo é representado como se fosse real, como permanente possibilidade" (McNiece, 19ó9, p.123).

Ao conferir aos poetas o papel de "guiar" a atividade pública das massas, Shelley parece negar e, ao mesmo tempo, fundir em sua doutrina política as concepções ri­ gidamente racionalistas das luzes, das quais o Enquiry é exemplo clássico, e o po­ pulismo antiintelectualista tão recorrente na crítica de matriz rousseauniana da forma mentis moderna.

Nesta fusão, é possível reconhecer a tentativa de dar resposta ao dilema gerado pelo impacto dos fatos sobre o modelo ideal, elemento nuclear das idéias políticas de Shelley. Efetivamente, o retrato apocalíptico da desumanização ocorrida concomitan­ temente aos grandes avanços da ciência e das "artes mecânicas" torna o problema da emergência do reino da justiça particularmente árduo, na medida em que ela supõe não só o entendimento "claro e distinto" do verdadeiro, mas a redenção moral de um homem corrompido e degradado. Como vimos acima, o velho Godwin já punha em dúvida a onipotência do caminho exclusivamente intelectivo num mundo dominado pela cultura do individualismo e decodificado pela razão utilitária, buscando no sen­ timento e na fantasia as fontes alternativas da transformação social. Enquanto seu sogro, decepcionado pelos contemporâneos, permanece no plano abstrato das con­ siderações filosóficas gerais, Shelley se movimenta até o fim no terreno da política, fazendo de sua arte um instrumento de denúncia e propaganda, e conclamando os poetas a iluminar o movimento das massas com a visão radiosa de um futuro de justiça e solidariedade.

Não cabe aqui questionar o caráter "idealista" destas análises e propostas, sob o risco de plagiar os verbetes das enciclopédias de ciência social, onde se encontram

classificadas entre os exemplos da fase "pre- cientifica" do socialismo . Nao se trata, tambem, de seguir a trilha ja percorrida pelos comentadares "engajados",[12] procurando estabelecer seus aspectos democraticos e revolucionarios contra a hermeneutica voltada a demonstrar seu cerne elitista, ou ate mesmo aristocratico . Talvez, 0 legado mais importante dessas doutrinas nasça precisamente de sua tensao irresolvida entre uto­ pia libertaria e realismo politico, diante do nascimento da democracia moderna : par um lado, ao apontar para os limites das revoluçoes de massa na construçao de relaçoes igualitarias entre os homens, elas antecipam problemas, enfrentados pelas teorias re­ volucionarias em seu confronto com a realidade ; por outro, para alem das diferenças de pontos de vista entre seus adeptos, elas tem em comum a certeza de que a verdade e a beleza, e nao a força e a mentira, podem gerar a nova ordem. Enfim, embora os anseios, duvidas, projetos ai presentes possam soar anacronicos, para nao dizer fantasiosos nos dias de hoje, cabe lembrar que a profecia de um mundo sem proprietários nem governos, povoado par homens livres e cooperativos, esta na gênese da tradiÇão socialista no século XIX, marcando seu período mais promissor, antes da submissão à lógica do possive!" .

PIOZZI, P. Between libertarian utopia and pOlitical realism : Godwin and Shelley on revolution.

TranslFormlA(:ao (Sao Paulo), v.19, p.35-4ó, 199ó .

   ABSTRACT This article investigates Godwin 's and Shelley's political ideas within the broad ba ckdrop established by the emergen ce and crisis of the English "jacobin " radicalism. The following analysis explores the development of and problems fa ced by the libertarian ideals of those thinkers and their reactions to the dramatic social and political changes which took place between the end of the XVIIIth and beginnings of the XlXth centuries.

   KEYWORDS: Anarchy; revolution; modernity; reason; utopia .

 

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[1] Departamento de Ciências Sociais Aplicadas à Educação - Unicamp - 13081-970 - Campinas - SP.

[2]Dentre estes, destacamos George Woodcock que, em seu livro Anarchism , identifica 0 inicio da tradic;:ao acrata moderna no coletivismo antiestatista do mosolo ingles: "Godwin loi dos primeiros a descrever claramente 0 vinculo estreito entre propriedade e poder , pelo qual os anarquistas tornaram-se inirnigos do capitalisrno e do Estado" (1970, cap . III, p.70 ; Cf. também, do mesmo autor, A Biographical Study, 1946).

 

[3]Para uma reconstrução histórica deste debate, cf. Butler, 1984 ; Brailsford, 1913; Thompson, 19ó3.

[4] Esta obra de Godwin foi editada por mais duas vezes, ao Iongo da decada, em 179ó e 1798, com algumas mo­ dificaç:oes substanciais . Por esta razao, adotamos aqUl uma ediç:ao que contem, alem do fac-simile da ultima versao, os textos originais posteriormente revlsados.

[5] 0 ataque de Burke aos principios e metodos revo/ucionarios causou grande Impacto nos c(rcu{os radicais ingleses,

[6] Segundo Butler, quando os intelectuals radicais, reunidos na London Constitutional SocIety, decidlram publicar. em 1790, Rights of Man, de Paine, criaram, sem querer, urn fugidio vinculo com os movimentos de massa, selado pela repercussao do panfieto entre as associaç:oes dos trabalhadores . Dentre estas, destacava-se a London Cor­ respondence Society, dedicada a organizaç:ao permanente de manifestaç:oes publicas. A infiuencia direta das "cabeç:as pensantes" sobre a politica popular teria tornado 0 radicalismo Ingles explosiv, provocando 0 inicio da reaç:ao antijacobina, com a condenação de Paine por atividades subversivas. (CL, 1984, p.7-8). No que diz respeito a penetraç:ao do Enquiry junto as camadas trabalhadoras, as avaliaç:oes dos comentadores divergem. Enquanto Woodcock (1970, p.84J. por exemplo, realç:a a "enorme popularidade" atingida pela obra, Inclusive entre os circulos operarios, Thompson (19ó3, p.98) afirma que 0 "anarquismo filosófico de Godwin só atingiu este publico após as guerras contra a Franç:a revolucionaria, e, sobretudo, bern mais tarde, atraves das notas de Shelley a çueen Mab, nas ediç:oes piratas da peç:a".

[7] Thomas Paine, por exemplo, em seu Common Sense and Crisis, opoe ao Estado, figurado como simbolo da mal­ dade humana, a organizaç:ao social espontanea dos homens, voltada a promover a felicidade de forma positiva (CL, 1953, p.5). Na analise de Woodcock, a visao negativa do Estado, persistente no pensamento de PaIne, cer­ tamente infiuenciou Godwin, sobretudo durante 0 periodo de maior aproximaç:ao entre os dois, entre 1789 e 1792 (1970, p47-8).

[8] Godwin,W. Considerations on Lord GrevilJe's and Mr. Pitt's Bills, Conceming Treasonable and Sedicious Practices and Unlawful Assemblies, libelo escrito durante a discussao de projetos de leis "anti-subversivas" no parlamento ingles.

[9] O mais importante romance de Godwin,Caleb Williams (1794), cujo subtitulo e "Things as they are", narra as desavencas infindáveis do heroi principal,vitima das instituic;:oes e preconceitos imperantes no mundo real.

[10]  Cf. Godwin, 1783. o texto foi originalmente escrito para divulgar as diretrizes pedagógicas da escola que Godwin pretendia abrir em Epson, no Surrey. Embora o projeto não tenha se concretizado, por falta de alunos, a proposta educacional do filósofo teve certa repercussão entre as correntes progressistas atuantes nesta área.

[11] o ensaio intitulado "A defense of poetry" foi redigido por Shelley em 1820, em resposta ao artigo de Thomas Love Peacock, "Four ages of poetry", publicado na revista Literary Miscellany. Na ocasião, Shelley escreveu para o autor, expondo a "fúria sagrada" nele suscitada por seus "anátemas contra a poesia" (Cf. 1954a, p275).

[12] Dentre estes, alem do já citado George Woodcock, destaca-se Paul Foot (984), auto! de livro voltado a recuperar o fundo revolucionário da doutrina política de Shelley.