ROMANTISMO COMO VISÃO FEMINISTA: A BUSCA DE CHRISTINA WOLF[1]

 

Robert Sayre[2]

Michael Löwy[3]

 

  RESUMO: Poucos autores modernos deram tanta força de expressão a "afinidade eletiva"[4] entre o romantismo e o feminismo quanto o fez Christa Wolf. Quando nos referimos a ela como escritora romântica, não só levamos em consideração seu interesse explícito pelas escritoras romanticas do inicio do seculo XIX, como Caroline von Giinderrode e Bettina von Arnim, mas também, e acima de tudo, sua própria visão de mundo romântica, e a relação desta com o marxismo e com o feminismo.

  Palavras-Chave: Romantismo ; feminismo; marxismo; República Democrática Alemã; civilização industrial.

 

Poucos autores modernos deram tanta força de expressão a "afinidade eletiva" entre o romantismo e o feminismo quanta o fez Christa Wolf. Quando nos referimos a ela como escritora romântica, levamos em consideração tanto seu notável interesse pela tradição romântica alemã de inícios do século XIX, como também, e principalmente, sua visão de mundo romântica individual. Nossa interpretação da obra de Wolf baseia-se em uma concepção de romantismo que reconhece que ele não é apenas uma escola literária do passado, mas sim uma Weltanschauung que se espalha por todas as esferas da cultura, desde a poesia e a arte até a teologia, a filosofia e o pensamento político. Reconhecemos também que o romantismo tem sido uma importante força cultural desde a última metade do século XVIII até os dias de hoje.

Como visão de mundo, o romantismo pode ser definido como um tipo de crítica cultural da "modernidade" (isto é, a civilização capitalista industrial tecnológica, que teve início no século XVIII e que predomina até hoje) inspirada por valores pre-modernistas.0desencanto do mundo, a quantificação e reificadas relações sociais, a força destrutiva da mecanização, o reinado da racionalidade abstrata e a dissolução dos laços comunitários da civilização são alguns dos aspectos criticados ou rejeitados pelos românticos, em nome de uma infinidade de valores que incluem imaginação, experiência subjetiva, fantasia, comunidade e reintegração com a natureza. Esse protesto impetuoso contra certas características fundamentais da modernidade faz alusao a valores sociais ou culturais atribuidos ao passado, masnão e, necessa­ riamente,regressivo ;0 romantismo pode assumir formas revolucionarias ou conser­ vadoras,utopicas ou restauradoras.5[5]0 romantismodeChrista Wolf pertence acor­ rente utopico-revolucionaria, mas reinterpretado sob formas feministas.

Nem sempre 0 romantismo e 0 feminismo foram relacionados na mesma confi­ gurayaointelectual.Muitosautoresromanticos,voltandoaurnpassadopatriarcal, celebraram os papeis fernininos tradicionais,colocando em oposiyao 0 feminismo e a emancipayao feminina (Proudhon, Ruskin e muitos outros). Por outro lado, as feminis­ tas sempre foram atraidas pela interpretayao igualitaria e modernista do liberalismo e ate mesmo do utilitarismo,principalmente grayas ao fato de alguns de seus expo­ entes apoiarem abertamente a luta pelos direitos das mulheres (John Stuart Mill). En­ tretanto, desde 0 inicio existia urn romantismo" filoginico" (Charles Fourier), assim como determinadas escritoras que estavam ao mesmo tempo preocupadas com a emancipayao das mulheres e atraidas pelo romantismo (Elizabeth Barrett Browning, Georges Sand, as irmas Bronte). Christa Wolf pertence a esta ultima tradiyao, embora seu estilo de pensamento e escrita tenha muito pouco em comum com as grandes romancistasdo seculo XIX.

Apesar de sua diversidade e inegavel evoluyao,a obra de Wolf como urn todo e, na verdade, caracterizada de diversas maneiras e em diferentes medidas por essa dupla perspectiva:0 feminismo e 0 romantismo na dimensao utopico-revolucionaria (no caso de Wolf, ele toma a forma de urn humanismo marxista, mais especificamente). Sua carreira Iiteraria, ate 0 presente, se estende por mais de tres decadas (tendo inicio em 1960),e inclui muitas formasdistintas de expressao:romances,contos,esboyos auto­ biogr8.ficos,ensaios,entrevistas e ainda obras que extrapolam esses generos e quenão se encaixam perfeitamente em nenhuma categoria preestabelecida. Se olharmos para essas obras em sequencia cronologica, imediatamente perceberemos determinados avanyos que levaram os criticos a falar, por exemplo, de uma passagem do realismo para o modernismo em estilo Iiterario, e de uma posiyao relativamentenão critica quanta a RDA para uma atitude intensamente critica,entre outras coisas. Da mesma maneira, no que diz respeito a visao e ao quadro de referencias de Wolf, Anna Kuhn (autora do primeiro estudo integral da obra de Wolf a aparecer em ingles) indicou uma evoluyao tanto" do marxismo para 0 feminismo" quanto do"iluminismo para 0 romantismo".[6]        Seria absurdo dizer que as obras de Wolfnão mudaram com 0 tempo, e sobre isso, 0 estudo de Kuhn sobre 0 desenvolvimento da carreira de Wolf, incluindo analises detalhadas de suas obras, e muito esclarecedor. Mas as afirma90es de Kuhn parecem sugerir uma dicotomia alternativa, com 0 feminismo e 0 romantismo substituindo 0 marxismoe 0iluminismo,ao passoqueafirmariamosqueexisteumacontinuidade subjacente a obra de Wolf (com a qual Kuhn esta em freqtiente sintonia). Afirmariamos ainda que, a esse respeito, podemos encontrar,cada vez mais desenvolvidas, a cons­ ciencia e a elabora9ao de uma problematica romantica e feminista, as quais estavam presentesdesde0inicio,em forma de sementes.Por outro lado,0amadurecimento da percep9ao feminista e romanticanão anulou as perspectivas marxistas/iluministas, mas sim as reinterpretou e as integrou em urn contexto no qual foi alterada a enfase ou 0 centro de gravidade.

Em uma das palestras sobre seu romance Kassandra (em 1983), Wolf compara sua recente abertura a consciencia feminista com sua inicia9ao no marxismo:

 

Com a ampliac;:ao de meu angulo visual e 0 reajuste de minha profundidade de foco, minhas lentes... passaram por uma mudanc;:a decisiva, que e companivel aquela que aconteceu h8. mais de 30 anos, quando tive meu primeiro contato com as posturas e a teoria marxistas, uma expe­ rienciaesclarecedora e libertadora que mudou meu modo de pensar,de ver,e tambem meus sentimentos e exigencias para comigo mesma. (1984, p.2 [7]

 

omaisimportante aqui equeWolf fala, por meio da metatora de uma camera, sobre a segunda percep9ao, a feminista,como uma amplia r;ao e urn aprofun damento defoco,emvezdesera substitui9aodeumalenteporoutra totalmentediferente. Emoutras palavras,elanaodiz,de maneira alguma,que0feminismo toma 0lugar domarxismoemseuuniversomental.Damesmaforma,quandoaquestionaram, durante urn debate nessa mesma epoca (1983), sobre a critica de alguns segmentos que diziam que ela estaria fazendo urn"retorno" antiiluminista ao romantismo, ela respondeu que essa era uma"visao pouco dialetica", e negou que ela, naquele mo­ mento, e ate mesmo 0 movimento hist6rico dos romanticos anteriores (e 0 Sturm und Drang) foss em basicamente antiiluministas (1988b, p.111 ).

Seu contato com tendencias romanticas hist6ricas - pelo menos na forma do Sturm und Drang - data de sua epoca de estudante (fim da decada de 1940 e inicio da de 1950) ; segundo Wolf, foi 0 ultimo movimento (e especialmente 0 jovem Goethe) considerado politicamente progressista que p6de ler na epoca e que se tornou urn"modelo". Foi somente bern mais tarde que conheceu os romanticos alemaes do inicio do seculo XIX (p. 11 2).

Ainda como estudante, na Universidade de Leipzig, sofreu a infiuencia de dois professores marxistas heterodoxos, Hans Mayer e Ernst Bloch, que tambem podiam ser caracterizados como romanticos ut6pico-revolucionarios.Em1987, referindo-se a Hans Mayer, Wolf delineou seu relacionamento com ele iniciado por estudos sob 1 sua orientaQao e seguindo com a publicaQao de Aussenseiter (1975), de Mayer, muito admiradopor ela.Ainda nessa fala,afirma que,assimcomo Mayer,foi puxada para o movimento comunista pelo"desejo" (Sehnsuch t) de pertencer a uma" comunidade" ( Gemeinschaft) (1988a, p. 42). Quanto a Ernst Bloch, a incidencia crucial de sua filosofia sobre as obras de Wolf tern sido muito ressaltada, principalmente por Jack Zipes e AndreasHuyssens.Emparticular,osconceitos interligadosdeBloch sobre Heimat (terra natal) e anão ainda alcanQada a ufrechter Gang (postura ereta) da humanidade, que juntas formam uma configuraQao ut6pico-romantica quintessencial,sao tambem parte integrante da visao de mundo de Christa Wolf.[8]

Apoiando-se na tradiQao romantica em seus estagios inicial e final, Wolf desen­ volve sua pr6pria visao por meio de urn processo de reapropriaQao e reinterpretaQao feminista.Aseguir,tentaremosexplorarmelhor0processocontinuo(cronologica­ mente partindo de seus trabalhos iniciais ate os mais recentes) dessa dupla elaboraQao entrelaQada de feminismo e romantismo ut6pico-revolucionario.

No primeiro texto criativo publicado por Wolf,"Terça-feira,27de setembro",e espantoso que ja se encontrem indicações de sensibilidade romantica e tambem fe­ minista.Nessaobra,quefezpartedeurnconcursoliterariopromovidopelojornal sovietico Izvestia sobre 0 tema"Sua rotina no dia 27 de setembro de 1960", a narradora comenta que, em uma reuniao da direQao do Partido Comunista na fabrica onde tra­ balha,alguem levanta a hipótese de convidar mulheres para uma importante reuniao da brigada, mas apenas porque"esta na moda". Publicamente ninguem poderia con­ testar isso ;contudo, fica claro que a sugestaonão encontra nenhum defensor fervo­ roso."As mulheres janão tern bastante trabalho com as crianQas?" diz urn deles (Wolf, 1993, p.35). No final do texto, a narradora fala da dificuldade em escrever urn texto muito longo (0 que mais tarde vira a ser Der geteilte Himmel), pois e incapaz de dar vida abanalidade da rotina da fabrica,que eseu assunto.Essa banalidade opressiva desua realidadediaria e contrastada,no ultimo paragrafo,com aquiloque ela fica a imaginar pouco antes de adormecer:

 

aparece uma rua que leva aquela paisagem que conhet;:o tao bern sem nunca ter estado la: a colina com a velha arvore, 0 declive que se inclina levemente para 0 riacho, 0 prado e a floresta no horizonte... Sempre you achar tristenão podermos vivenciar de verdade esses momentos antes de adormecer - se isso acontecesse,não adormeceriamos. (p. 39)

 

Essa busca de comunh8.o com a natureza, visao ut6pica de integraQao com 0

mundo natural,estara presenteem toda a obra posterior de Wolf.

oprimeiro romance, Moska uer Novelle (1961), celebra, na verdade, a feliz uniao de sua heroinacom aquele mundo ecom uma comunidade humana solidaria. Vera, uma pediatra da Alemanha Ocidental que visita a Russia sovietica com urn grupo de compatriotas,seenvolve nessa ocasiaocomPawel,urn russoqueconhecera ainda

menina, e se apaixona pela zona rural russa e tamMm por Pawel. A natureza ao redor se identifica com as pessoas, vistas como urn todo lirico:"Isto aqui e a vida, pensou Vera nostalgicamente (sehnsuch tig). Este sol, esta terra e estas pessoas" (p.21). Quan­ do 0grupo visita urn colc6s e muito bern recebido e festejado,e Vera sente ser parte daquilo que parece ser uma comunidade alegre, e une-se mais intensamente aos ou­ tros membros do grupo por fortes la <;:os de amizade.Diferente de"Ter<;:a-feira,27 de setembro", Moska uer Novellenão problematiza a realidade do"socialismo real", e e, em muitos pontos,uma glorifica<;:ao deste como urn campo para a realiza<;:ao da as­ pira<;:ao romEmtica.

Ainda assim, quadro que nosemostradonoromancenaoeentretantotao simples. Em uma passagem central. os personagens discutem as qualidades que ima­ ginam que os seres humanos socialistas futuros apresentarao. Pawel afirma, usando o jargao de Bloch, que 0 Homem finalmente" andara ereto (a u[rech t) sobre a terra" (p. 54); e acrescenta que a caracteristica mais importante do novo ser humano sera a"irmandade" (Bruderlichkeit). As rela<;:iSes humanasnão serao competitivas e duvido­ sas. A ideia de urn futuro de comunica<;:ao aberta e afetiva sugere implicitamente urn contraste com 0 presente ; em Moska uer Novelle a liberdade permanece ut6pica, isto e, 0 ainda-não-alcançando segundo Bloch[9] 0 caso de amor entre Vera e Pawel mostra osprincipaistra<;:osdessautopia,masapenascomoumapremoni<;:aofugitiva,ou Vorschein.Marca uma interrup<;:ao em suas vidas normais,sobre as quais pouco sa­ bemos,e para as quais retornam voluntariamente no final.

Com Der geteilte Himmel (1963), separado de Moska uer Novelle pela constru<;:ao doMurodeBerlim,0tomsetornamaisabertamentecritico ;agora,0centrodas aten<;:iSescome<;:aa ser a vida" comum"no"socialismo real".A aprecia<;:aoda vida pr6xima anatureza do romance anterior torna-se,aqui,uma consciencia infeliz das aliena<;:iSesda vidanacidadeedasincursiSesda industria poluenteatemesmono campo. A heroina Rita, vinda de uma cidadezinha que ama, com"a quantidade exata de florestas, campos, prados e ceu limpido" (Wolf, 1976, p.l l), e confrontada com a solidao ao mudar-se para a cidade, e tamMm com a feiura das visiSes e odores in­ dustriais,tanto dentrocomo fora da cidade.

Divided Heavenebastanteambiguoemsuapercep<;:aoda sociedadeda Ale­ manha Ocidental em rela<;:ao aodesejoromanticoetambem aoimpulsofeminista. Por urn lado, coloca-se uma oposi<;:ao entre os trabalhadores e 0 ambiente profissional burgues. Os trabalhadores mostram devo<;:ao e desprendimento idealista num esfor<;:o herculeo para construir uma nova sociedade (Meternagel e comparado a urn"her6i de uma lenda antiga,designado para uma tarefa aparentemente impossivel") (p.75), enquantoosprofessores sao futeis,egotistas eoportunistas.Ostrabalhadoressao, em principio, igualitarios no que diz respeito aos generos - Rita se impressiona com

Trans!Form!A9aO, Sao Paulo,19: 9-33, 1996 13a divisao paritaria das tarefas domesticas pelo casal Schwarzenbach - enquanto as esposas dos professores sao objetos de dominaQao. Os professores sao identificados com 0 Ocidente capitalista, para 0 qual Rita se recusa emigrar em virtude de este representar a ganEmcia e a total falta de comunidade, ideal e esperanQa (assim como a alienaQao da natureza: significativamente, ela tern 0 triste e acabado jardim na Ale­ manha Ocidental,noqualdizadeus a Manfred,como simbolodoOcidente).

Por outro lado,h8.uma inegavel tendencia oculta e rn se questionar 0fato de a Alemanha Oriental poder ounão poder ser realmente uma altemativa viavel para sua contraparteocidental.Alemda poluiQaoquemaltrata 0meio ambiente,predomina a mentalidade produtivista,tecnocratica,provenientedoOcidente(afinal,e apenas para aumentar a produQao industrial que os trabalhadores se sacrificam). 0 ponto de vista de Manfred (0 que as pessoas realrnente desejam e"uma casa que funcione tao bern quanto uma rnaquina lubrificada") e hegemonico ; ele emigra para 0 Ocidente apenas porque la eles fazem a m esma caisa, mas melbar. Ate mesmo Schwarzenbach admite,nofimdoromance,que"asvezespensamosqueestamosmudandoalgo, quando0queestamosfazendoe,naverdade,trocandoosnomes"(p.106,203).A conclusao poe ern questao tambem as relaQoes homem-mulher entre os tra­ balhadores,quando Rita visita aesposadeMetemageledescobre0quanto custa para ela essa devoQao monomaniaca ao aumento de produtividade (p.216-7)[10]

Embora corn isso Divided Heaven realrnente de urn passo a frente de seu pre­ decessor,quantoa analisarcriticamente"0socialismo real",continua,pelomenos

ern parte,dentro do quadro do Bildun gsroman social-realista,corn uma Rita amadu­ recida voltando a executar sua funQao socialista no final da obra. A critica romEmtica e feminista da urn outro saIto crucial no romance seguinte de Wolf, Nachdenken iiber ChristaT.(1968),noqual,pela prime ira vez,a heroina e uma"marginal"(como sera' nos pr6ximos romances), uma"deslocada" que e incapaz de se integrar na sociedade, mas que e mostrada como a encamaQao de valores que poderiam ajudar aquela so­ ciedade a se tomar aquilo que realmente deveria ser.

Christa T. mostra muitos traQos romEmticos caracteristicos, alguns dos quais ja haviam aparecido ern heroinas anteriores (amor pela natureza, atraQao por simples camponeses, empatia com crianQas proveniente do contato corn a crianQa presente nela mesma etc.). Algumas caracteristicas, principalmente a busca de expressao pr6- pria e autoconhecimento, uma abertura do eu para a experiencia, estao muito mais marcadas em Christa T.do que nas heroinas anteriores.Mas,com ela,tambem vern a tona uma area quase que completamente nova: a fantasia, a arte, 0 poder transfor­ mador da imaginaQao. 0 novo interesse no jogo livre da imaginaQao, na verdade, ja havia sido mostrado de forma marcante ern"Juninachmittag" (1965), quando a familia do narrador participa de urn jogo de palavras (semelhante aqueles feitos pelos sur­ realistas),no qual recombinam os elementos de expressoes fixas,estereotipadas,de

                                                                                 forma a produzir absurdos sugestivos e admiraveis ; quando 0 jogo se volta para os clicMs e para a terminologia politica, logo se transforma em satira. [11]

Em Christa T. a imaginaQao envolve um movimento duplo: de um lado, saudade nostalgica (escolhe estudar Theodor Storm, pois sua obra e uma"paisagem de desejo [Sehnsuch t]" lirica, e perto do fim de sua vida ela mesma escreve hist6rias sobre co­ munidades tradicionais de camponeses pr6ximas de seu novo lar) (Wolf, 1988c, p.97- 171),e,deoutro,a abertura de possibilidades.Ela se recusaaaceitarlimitesese entrega a sonhos infinitos sobre coisas que poderiam e deveriam acontecer (para ela a imaginaQao tambem apresenta uma dimensao moral) (p.1 14), uma atividade que Bloch denomina"orientada para 0 futuro": sonhar"para a frente" (na ch Varwarts). E nesse sentido quesua vida e sensibilidade romantica (claramentenão politicas,em­ bora seja adepta do socialismo e fuj a do Ocidente capitalista) apresentam influencia politica.Elaeuma reprovaQao viva asociedadealema-oriental porencarnara luta pela liberaQao humana que essa sociedade afirma estar construindo, e ser,ao mesmo tempo, incapaz de viver nessa sociedade como realmente e.

Muitas criticas feministas tem sugerido que sua consciencia tambem apresenta conteudofeminista. Myra Love,particularmente,demonstrou de maneira marcante que,embora Wolfnãouse0termo"patriarcal"atedezanosap6sa publicaQaode The Quest for Christa T., tanto a personagem Christa T. como a narradora (por meio do processo no qual ela recria Christa T., e ao fazer isso muda a si mesma) derrubam todo um conjunto de oposiQoes alternativas, mutuamente exclusivas, que marcaram asculturaspatriarcais.0amortambemindica0potencialut6picodaconsciencia feminina de Christa T.:"Ao determinar 0 tipo de subjetividade incorporado por Christa T.,a narradora tambem determina, por meio de um processo de solidariedade,0 po­ tencial ut6pico de uma subjetividade feminina hist6rica" (Love, 1979). 0 tema do amor levanta semelhanQas palpaveis entre 0 romance de Christa Wolf e a obra de muitas feministas do Ocidente (Adrienne Rich e Mary Daly). 1. Ezergailis (1982) faz 0 mesmo em um livro que estuda Ingeborg Bachmann, Doris Lessing e outras, e seu livro explica, mais detalhadamente,a"afinidade eletiva"entre 0 feminismo e 0 romantismo,pOisemboranão use 0 termo, revela, nas autoras estudadas, a configuraQao arquetipica romantica: sentimento de perda e 0 desejo de recriar um paraiso perdido de plenitude.

Nao e facil saber a extensao da reaQao de Christa Wolf para com a dimensao romantica dos eventos europeus de 1968 ;de qualquer forma,nesse ana ela escreveu seu ensaio"The Reader and the Writer", que traz uma das mais belas exposiQoes sobre 0 ethos romantico-ut6pico:"Guardamos para n6s mesmos uma lembranQa de tempos passados( Var-Zeiten),que traziaurnmododevidamaissimplesesereno, essa mem6ria forma nossa imagem nostalgica do futuro..." (1980, p.45-6). Sehnsuch t­ bildvonder Zukunft:naosepodeimaginarurn resumomaischocantedaligaQao dialetica romantica entre passado e futuro,nostalgia e utopia.

 invasao sovietica na Tchecoslovaquia e 0 clima interno quase insuportavel na Alemanha Oriental - Th e Quest far Christa T. de Wolf havia sido condenado pela lideranQa do Partido Comunista na Sexta Conferencia de Escritores na Alemanha Oriental em maio de 1969 - criaram 0 contexto historico para uma nova etapa de sua evoluQao intelectual e literaria, caracterizada por urn posicionamento critico aguQado e urn cres­ cente interesse pela tradiQao romi"mtica alema. Outros escritores da RDA tambem par­ tilhavam de preocupaQoes semelhantes a essas. Na verdade, as ideias de Wolf faziam parte de urn modelo mais amplo, que inclui outros escritores de renome da RDA,como Heiner Milller, Volker Braun e Cristoph Hein ; durante os anos 70 e 80, cada urn deles desenvolveu, a sua maneira, uma critica de reificaQao e alienaQao que foi inspirada peloprotestoromanticocontra a zivilisatianmoderna(e,atecerto ponto,inspirada pela critica da Escola de Frankfurt da razao instrumental). Todos pareciam acreditar que as limitaQoes ou falhas do socialismo da Alemanha Oriental eram resultado de urn rompimento incompleto com a civilizaQao ocidental. E essa visao apocaliptica da historia direcionou toda sua forQa para a utopia. Confrontada por uma civilizaQao oci­ dental condenada pela maldiQao de sua destruiQao utilitaria, 0 saIto para 0" diferente" tornou-se uma questao de sobrevivencia para a especie humana 12[12]

A propria versao de Christa Wolf sobre esse modelo e sutilmente colorida pela ironia romantica e subversao feminista.Urn das primeiras obras dessa nova etapa e o conto"Neue Lebensansichten eines katers" (198 1b), escrito em 1970. 1nspirado pela obra-prima ir6nica de E.T. A. Hoffmann, Lebensansichten des katers Murr (citada na epigrafe), 0 conto e uma satira mordaz da ideologia tecnoburocratica e"cientifica".

Max,0gatoquecontaa historia,partilhacomentusiasmodas visoesdeseu dono, Prof. R. W. Barzel e seus socios, Dr. Lutz Fettback (uma visivel referencia ao termofeedba ck usadoemcibernetica),dietista efisioterapeuta,eDr.GuidoHinz, sociologo cibemetico. Seu objetivo e grandioso: nada mais, nada menos que TOFEHUM (Total Felicidade Humana)! 1nfelizmente, a especie humana atualnão alcanQou ma­ turidade suficiente para compreender suas necessidades e precisa ser forQada a ser feliz. 1sso acontecera graQas a introduQao (obrigatoria para todos) de urn sistema ex­ clusivamente cientifico e a prova de enos, chamado SISACEM (Sistema de Saude Cor­ porea e Espiritual M8.ximas).

Como deve ser implantado 0 SISACEM? Segundo os tres ilustres estudiosos, e preciso apenas eliminar alguns aspectos inuteis e superfluos da vida humana. Por exemplo, a alma (Seeie), uma ilusao reacionaria, que serve apenas para certificar uma existencia util para campos econ6micos improdutivos - como a literatura (Belletristik). 0 mesmo se aplica a outras ideias ou valores anacr6nicos e pre-cien­ tificos como"pensamento criativo","audacia","altruismo","compaixao","orgulho".

oresultado desse processo de purificaQao sera 0"ser humano normalizado" (Narmal­

m ensch), urn ser puramente reflexivo que responde a estimulos de maneira totalmente previsivel.

Em outras palavras: 0 objetivo e uma programac;ao completa do espac; o de tem­ po que as pessoas designam pela palavra arcaica VIDA. Ate agora a humanidade tern tido uma atitude mistica e irracional para com esse espac;o de tempo ; essa atitude leva a desordem, a perda de tempo e a urn gasto desnecessario de forc;a. Agora, grac;as ao SISACEM,temos urn sistema logicamente inevitavel de conduta de vida racional, aplicando a tecnica mais recente de calculo (1981b, p. 97- 123).

As mulheresnão parecern compartilhar da crenc;a dos tres cientistas,e de seu discipulofelino,0gato Max,sobreasqualidadesdoSISACEM.Em geral,comore­ conhece com tristeza 0 Prof. Barzel, elas parecem resistir com teimosia aos metodos experimentais mais avanc;ados da ciencia. Isa, a filha mais nova do professor, formula, com precisao, sentimentos femininos sagazes, ao chamar 0 pai de Fortschrittsspiesser (filisteu em evoluc;ao) (p.98, 11 5).

Ao ridicularizar esse tipo de projeto" cientifico", Christa Wolfnão somente sa­ tiriza a ideologia positivista das elites dominantes do Oriente e do Ocidente, como tamMm chama a atenc;ao para os perigos da desumanidade tecnologica e da padro­ nizac;ao autoritaria que resultam de urn certo tipo de racionalidade instrumental. As­ sim como 0 Murr de E. T. A. Hoffmann, 0 gato Max de Wolf e urn instrumento ir6nico para desmascarar a tentativa filistina de eliminar a imaginac;ao e os sentimentos hu­ manos em nome da"razao".

"Neue Lebensansichten eines Katers" e uma das tres historias publicadas com o subtitulo de"Drei unwahrscheinlichen Geschichten"["Tres historias improvaveis" j. Em uma conversa com Hans Kaufmann, Christa Wolf nos fornece algumas pistas im­ portantes sobre sua intenc;ao:

 

Escrevi as tres historias entre 1969 e 1972, e elas representam aquela fase de meu trabalho

.Espero que sua"improbabilidade",seu carc'lter sonhador,utopico e grotesco produzam urn efeito alienador para com determinados processos, circunstancias e ideias que, por terem se tor­ nado tao familiares,não notamos e nem nos incomodamos mais com eles.E,na verdade,eles deveriam nos incomodar - e digo isso com a firme convicc;:ao de que podemos mudar aquilo que nos incomoda. ( 1988b, p 36)

 

o terceiro conto"improvavel","Self-Experiment" (1978), tamMm e uma critica ao" cientificismo", mas dessa vez tendo como assunto principal a questao dos gene­ ros.Ea primeiradesuasobrasqueapresenta urnethosabertamente feministae antipatriarcal. A historia deve acontecer em urn futuro proximo (0 ana e 1992!), quando o progresso cientifico permitira, grac;as a uma nova droga ("Peterine Masculinum 199"), a transformac;ao de mulheres em homens. 0 texto e uma carta escrita ao pro­ fessor que coordena 0 projeto por uma das cientistas que participam do grupo de pesquisa, que aceitou servir como cobaia. A carta e uma descric;ao de seus sentimentos e reac;oes durante 0 experimento e tamMm uma reflexao mais geral sobre as relac;oes entre os generos.Como urn homem, ela (ou melhor, ele) tern urn caso com a filha do professor, mas apos algumas semanas, urn sentimento da" absurda falta de logica" da experiencia leva-o/a a interromper 0 estudo e voltar acondic;ao feminina.

Ela entao passa a entender bern mais que 0 professor, e seus assistentes do sexo masculino compartilham uma"adOIaC;ao supersticiosa a resultados previsiveis"; estao aprisionados em sua"rede de mimeros, diagramas e calculos". Acreditando na neutralidade cientifica, tentam permanecer frios, distantes e impessoais ; segundo a narradora, 0 segredo de sua invulnerabilidade e a indiferenqa. Para eles, mulheres problematicas,que hesitam entre a felicidade no amor e a necessidade de trabalho, sao como urn"mouse de computador que foi mal programado", ziguezagueandode urn lado para outro. Elesnão entendem"0 espirito demoniaco que se apossou de mim e fez que eu deixasse prematuramente 0 experimento de sucesso".

De volta a sua natureza feminina, a narradora opoe" as palavras de minha lin­ guagem interna" a neutralidade irreal do discurso" cientifico". Repudia a atitude de impassividade enão- envolvimento dos cientistas e critica seu modo de vida:

 

 

Sem saber e sem querer, trabalhei como urn espiao em territorio inimigo e,com iSso, des­ cobri aquilo que deve continuar sendo seu segredo para que seus convenientes privilegios con­ tinuem inviolados:que a atividade na qual voces se envolvemnão pode trazer felicidade, e que temos 0 direito de resistir quando voces tentam nos induzir a ela.

 

 

Ao mesmo tempo, ela rejeita a perigosa divisao do trabalho que"da as mulheres os direitos da dor,histeria e da grande maiOIia das neuroses, ao conceder-lhes 0 prazer de lidar com os desdobramentos da alma (que aindanão foram vistos em microsc6- pio)" e com as belas artes - enquanto, por outro lado, os homens se voltam para as realidades: neg6cios, ciencias e politica mundial (p.113, 120-2, 127-8).

Essa"hist6ria improvavel" tern alguns elementos fundamentais em comum com"Neue Lebensansichten eines Katers": 0 protesto romantico contra 0 dominio tiranico da forma quantificadora e calculista, fria e impessoal da moderna racionalidade tecnica e cientifica. Como salientou Christa Wolf, em urn comentario sobre Selbstversu ch, 0 que esta sendo questionado na hist6ria sao"certos tipos de pen­ samento positivista que se escondem pOI tras do chamado metodo natural cientifico e ignoram os aspectos humanos"(1 988b, p.35).Entretanto,seu tom e radicalmente diferente do conto anterior.não e ir6nico ou satirico, mas revela desconforto e ate mesmoamargura.E0pontoessencialnãoe0absurdodospIanos para0direcio­ namentocientifico da alma,e sim a ligaC;ao intima entre essa ideologia positivista e a hierarquia patriarca].

O conto"Self-Experiment" tambem e uma contribuiC;ao para 0 continuo debate en tre feminis tas quanto a escolha en tre igualdade au diferenc;a como vetor p rincipal da libera C;ao da mulher. A heroina do experimentonão nega a necessidade de igualdade, mas critica a tendencia"assimilacionista" das mulheres emancipadas, sua imitac;ao dos padroes de comportamento masculinos. Nas conversas com Hans Kaufman,n,acima mencionadas,Christa Wolf faz algunscomentarios bastante pes­ soais sobre esse t6pico:

 

As questoes que tentei levantar com rninha historia bus cam saber se 0 objetivo da eman­ cipac;:ao feminina para as mulheres deveria ser"tornarem-se semelhantes aos homens"... Com a melhora das condic;:oes materiais que perrnitem urn inicio igual para ambos os sexs, e esse deve ser 0 primeiro passe para a emancipac;:ao, encaramos com mais precisao 0 problema de se dar a todos a oportunidade de serem diferentes, de reconhecer que possuem necessidades diferentes, e que homens e mulheres, e não somente os homens,saomodelosdesereshumanos.1ssonão acontece nem mesmo com a maioria dos homens, e na verdade muito poucas mulheres ques­ tionam e chegam ao porque de suas consciencias estarem sempre perturbadas (poisnão podem fazer 0 que se espera que fac;:am). Se chegassem ao amago da questao, descobririam que e sua propria identificac;:ao com uma masculinidade idealizada que esta, na verdade, obsoleta. (p. 34-5)

 

Em sua introduc;:ao a primeira traduc;:ao inglesa de Selbstversu ch(em New Ger­ man Critique, invemo de 1978), Helen Fehervary e Sara Lennox sublinham a dimensao feministada historia,etambema reinterpretac;:aodomarxismo,feita por Wolf,por meio da experiencia feminina.[13] Entretanto,deve-se acrescentar que os valores ins­ piradores de sua utopia marxistaJfeminista e sua rejeic;:ao dosmodos de vida positivis­ taJpatriarcal estao profundamente emaizados na tradic;:ao romantica de Zivilisationskritik. Essa ligac;:ao,ja sugerida em suas primeiras obras,ira se tomar central nos proximos trabalhos: No Pla ce on Earth e os ensaios sobre as correspondencias de Karoline von Gunderrode e Bettina von Amim.

Kein Ort. Nirgen ds (escrito em 1977) e uma das expressoes mais interessantes,

dentro da literatura da segunda metade do seculo XX,da continuidade subterrEmea entre 0 Friihromantik proximo ao inicio do seculo XIX e 0 romantismo de nossos tem­ pos,0que,e claro,nao quer dizer quenão haja diferenc;:as significativas. Apesar das

inurneras citac;:oes de Kleist e seus amigos que aparecem nos dialogos,0romance e totalmente"modemo",quanto ao estilo,conteudo e significado.

Por que uma escritora alema-oriental dos anos 70 sentiu a necessidade de escrever urn romance sobre urn encontro imaginario entre Kleist e Karoline von Gunderrode? A escolha de Christa Wolf deve ser localizada no contexto politico e cultural especifico da RDA daquela epoca. Por muitos anos, a entrada do romantismo na RDAfoidominada pelaesteticadorealismode Lukacs,querejeitava a tradic;:ao romEmtica no geral e,principalmente, as obras de Kleist, taxando-as de subjetivistas, irracionalistas e reacionarias. Ja em 1937,Anna Seghers havia contestado essa visao, emsuacorrespondencia (publicada)com Lukacs,massua afirmativaera marginali­

zada pela doutrina vigente. Foi apenas nos anos 70 que comec;:ou a existir uma nova aproximac;:ao com 0 romantismo por escritores alemaes-orientais e historiadores lite-

arios, 0 que po de ser visto como parte de uma tendencia geral a critica cultural da ideologiaoficial.[14]0romanceeosensaiosdeChrista Wolfsaorelacionadosa esse movimento, mas ao enfocar escritoras romEmticas virtualmente ignoradas pelo canon literario alemao (como Karoline von Giinderrode ou Bettina von Arnim) e seu conflito com as normas patriarcais,Wolf bateem uma nova tecla e cria seu proprio,unicoe singular universo literario.

Entretanto, tambem M u rn fundo politiCO em seu interesse pessoal nos roman­ ticos: a situa9ao criada pela expulsao do poeta e cantor dissidente Wolf Biermann da RDA. Em novembro de 1976, em resposta a essa medida arbitraria, urn grupo de es­ critores e intelectuais, entre eles Stephan Hermlin, Christa Wolf, Gerhard Wolf (marido de Christa) e Sara Kirsch, enviou uma carta aberta de protesto para 0 jornal oficial do Partido Comunista e para a agencia de noticias francesa, intimando as autoridades a reconsiderar sua a9ao. Em represalia a esse primeiro protesto publico coletivo, Chris­ ta Wolf e outros escritores de renome foram expulsos da diretoria da agencia da Uniao dos Escritores em Berlim.0 vice- ministro da Cultura,Klaus Hbpcke,chamou os assinantes da peti9ao de"inimigos do socialismo". E, apos alguns meses, Gerhard Wolf foi excluido do PartidoComunista.

Para Christa Wolf, esses eventos magoaram-na intensamente (logo em seguida, ela veio a sofrer urn ataque cardiaco) e foram urn ponto crucial para a altera9ao de suas rela90es com a estrutura de poder da RDA. A partir daquele momento, ela passou a sentir-se marginalizada, como os escritores romanticos em rela9ao a suas sociedades. ComodisseaFraukeMeyer-Gosauemumaconversaalgunsanosmaistarde,ela tentou ligar essa experiencia pessoal a alguns padroes gerais de civiliza9ao moderna:

 

oque mais me interessava era investigar quando teve inicio essa terrivel separa<;:ao entre individuos e sociedade... Na sociedade industrial... nem as mulheres nem os intelectuais pos­ suem qualquer influencia sobre os process os basicos que deterrninam nossas vidas. Foi a seve­ ridade dessa transforma<;:ao em marginal que senti em minha propria vida, e isso que gostaria de estudar...Ond equandocome<;:ou?Nasobras e na vida dos romanticos encontramos muita documenta<;:ao sobre iSso, eles sentiam que eram marginalizados, quenão eram necessarios em uma sociedade que passava por urn processo de transforma<;:ao para se tomar uma sociedade industrial, para intensificar a divisao de trabalho, para transformar pessoas em acessorios de ma­ quinas... 0fato de que realmente podemos notar semelhan<;:as com nossas proprias rea<;:6es. impeliu-me a dar esse tao falado salto no passado. (1 988b)

 

Em outras palavras, os primeiros romanticos, e principalmente as m ulheres en tre eles, por meio de sua notavel sensibilidade humana, ja haviam descoberto alguns dos aspectos negativos da sociedade industrial moderna que come9ava a se cristalizar no seculo XIX.Voltando as suas obras, podemos encontrar as raizes dos problemas atuais, tanto no Oriente como no Ocidente. Segundo Christa Wolf (ainda nessa entrevista), existem algumas necessidades humanas basicas quenão sao satisfeitas pelos sistemas econ6mico e social dos dois estados alemaes: POI exemplo, a necessidade de... poesia na vida das pessoas. De tudo aquilo quenão pode ser simpiesmente contado, medido ou coiocado em termos estatisticos. A literatura tern aqui sua fun9aO como meio de auto-afirma9aO... E voltamos novamente ao caminho que nos leva ao ro­ mantismo. (p.91-2,100)

 

Os romances e ensaios de Christa Wolf do tim dos anos 70 sao considerados romanticosnão apenas por tematizarem a vida de poetas e escritoras de 1804, mas tambem por darem expressao literaria a profunda afinidadeeletivacomosdilemas, valores e aspirac;oes desesperadas dos Primeiros Romanticos. Ao mesmo tempo, seu interesse especifico pelas escritoras e poetas reflete 0 amadurecimento da consciencia feminista,a crescente preocupaC;ao com assuntos relacionados aos generos e as es­ truturas patriarcais (Kuhn,1988,p. 143,174).

Faremos,agora,urn examemaisdiretode No Pla ceonEarth.Aestruturado romance e, de certa forma, estatica: descreve urn encontro imaginario entre Heinrich von Kleist e Karoline von Gunderrode (que em breve cometeria suicidio), em 1804, na casa de urn mercador, Merten, em Winkel no Reno. Entre os convidados, estao 0 poeta Clemens Brentano,Savigny,0 fil6sofo do Direito (casado com Gunda,irma de Clemens), 0 medico Wedekind e 0 cientista Nees von Esenbeck. Gunderrode tivera urn envolvimento emocional com Savigny,mas tenta soltar-se dessa ligaC;ao.No de­ correr da tarde, ela e Kleist aproximam-se movidos por urn sentimento comum de insatisfaC;ao com a conversa banal no salao-de-cha. Saem juntos para uma caminhada, quando revelam urn ao outro seus sentimentos, ideias e duvidas mais intimas. Logo se separam,e Kleist volta para Mainz. A primeira parte do romance e composta prin­ cipalmente por mon610gos interiores de Kleist e Gunderrode, e apenas na ultima parte acontece urn tipo de dialogo real entre eles.

As duas tiguras poeticas e tragicas sao colocadas em forte contraste com as outras, e principalmente com 0 que chamariamos os" filisteus" da festa do cha. Faz-se urn contraste humano e tambem filos6fico correspondente ao choque entre valores romanticos e 0 estilo de vida dominante. Joseph Merten,"comerciante atacadista de temperos e perfumes", patrono das artes e ciencias, e 0 tipo ideal de burgues filisteu: emsua inocencia,não consegue entender por que a poesianão pode ser escrita com a mesma ordem e transparencia de seus livros de contabilidade,"por que as regras que ja foram testadas e experimentadas em uma areanão seriam validas em outra area?". Nees von Esenbeck e 0 tipico"filisteu cientitico", que rejeita, em nome da"tendencia dos tempos" e do"progresso das ciencias", as"lamentac;oes hipocon­ driacas dos cavalheiros literarios"; seu unico desej o e viver duzentos anos mais tarde,na condi C;ao paradisiaca que a humanidade ira desfrutar,graQas aodesen­ volvimento da ciencia. E, por fim, Savigny (0 fundador da arquiconservadora Es­ cola de Direito Hist6rica) parece representar 0 intelectual tilisteu que insiste na ideia de que deveriamos manter bern diferenciados 0 campo do pensamento do campo da

o, e que se recusa categoricamente a medir a vida por meio de urn ideal (Wolf, 1981a, p. 43, 50- 1, 78-80).

Contra esse fundo cinza e conformista, a figura de Kleist aparece como a encar- naQao de uma ordem espiritual superior. Apesar de suas hesitaQoes e ambiguidades politicas (entre Napoleao e Prussia), ele acredita em determinados valores com os quaisnão consegue se comprometer. Quando Merten sugere que viva com 0 lucro de sua produQao literaria, responde com"veemencia inesperada" que se recusa a"escrever livros por dinheiro". Explica a Savigny quenão pode aceitar as ideias em vigor sobre o que e nobre e 0 que e vil:"Trago em meu peito uma lei, contra a qual todas as externas,ainda que feitas por urn rei,nao possuem valor algum".E,em urn debate com Esenbeck, Savigny critica com ferocidade a"unilateralidade ciclopica" das disciplinas cientificas, elogiando a sede humana da sabedoria e iluminaQao:"sem o A ufk1arung, 0 ser humano e pouco mais que urn animal". Entretanto, como a maior parte dos romEmticos, ele acredita que a ciencia foi pervertida pela sociedade moder­ na:"assim que entramos na esfera do conhecimento, parece que urn feitiQo maligno vira contra nos 0 usa que fazemos de nosso aprendizado" (ibidem).

o estado mental de Kleist e de desespero. Profundamente desapontado por suas experiencias na FranQa e na Prussia,não acredita que possa encontrar urn lugar na Terra onde possa se encaixar:"Vida impossive!. Kein Ort. Nirgends". Na verdade, a questaonão e tanto de lugar e sim de tempo: e o Zeitgeist que toma a vida tao depri­ mente. Eeeste 0ponto em que ele, intuitivamente, sente que Karoline von Giinderrode partilha de seus sentimentos. Enquanto pessoas como Merten" louvam as vantagens dos novos tempos em relaQao ao tempos passados... acredito que eu,Giinderrode,eu e voce sofremos com os males dos novos tempos" (p.65, 80- 1, 86, 108).

A Gunderrode de Christa Wolf e urn espirito rebelde. Quando quer soltar as amarras de dependencia de Savigny, ele reclama dos"sentimentos republicanos" dela (os quais define como"urn resquicio da RevoluQao Francesa") e de sua"independen­ cia extravagante" (ou trierte SelbstBndigkeit). Mas ela se agarra com todas as forQas a essa autonomia orgulhosa, que tern como terrivel limite 0 punhal que sempre traz consigo, para poder acabar com sua vida a qualquer momento. Em urn de seus poemas (publicado com 0 pseudonimo masculino de"Tian"), classifica como des­ leais as pessoas (como Savigny) que, com" consciencia fria" (Kalt Bewusstsein),"jul­ gam,calculam e medem"coisas do amor.Diferente dos artistas que bus cam ape­ nas gloria e sucesso, a poesia e, para ela, produto de uma necessidade intima, de urn desejo intenso e nostalgico (Sehnsuch t) de expressar sua vida de urn modo eterno (p.50, 59, 75).

Enquanto os outros homens na festa do cM (Clemens Brentano, Savigny) a tra­ tam como objeto, urn tipo de"propriedade particular", ela encontra na conversa com Kleist a possibilidade de uma comunhao humana significativa (nao necessariamente erotica)."0dialogoentreKleisteGunderrode,0climaxde No Pla ceonEarth,se distingue das conversas na casa de Merten (que, para os dois, sao futeis), por se tratar de uma troca entre intelectuais iguais que conseguem ver urn ao outro como individuos autônomos"(Kuhn,1988, p.1 64-5). Alem das barreiras de identidade e hierarquia se­ xual, dois seres humanos se encontram e mostram urn ao outro seus sentimentos e ideias mais profundos. 0 dialogo a seguir faz parte da luta romantica e ut6pica em comum

lKleistl: Sempre penso: e se, devido a nossa organizac;:ao, a primeira eondic;:ao ideal (Idealzustand), produzidapela Natureza e que tivemos que destruir,nunea noslevarate a segunda eondic;:ao idea]?

lGunderrodel: Se deixarmos de ter esperanc;:a, entao aeonteeera aquilo que mais tememos. (Wolf, 1981a, p.1 17)[15]

E dificilnão ouvir nessa ultima sentenQa urn eco da filosofia de esperanQa de Bloch. Embora muitos dos dialogos de No Place on Earth sejam mais ou menos citaQoes literais das obras e correspondencia das figuras hist6ricas,Christa Wolf certamente se­ lecionou e reinterpretou este material sob a influencia de sua pr6pria sensibilidade critica e feminista.

Aomesmo tempoqueescrevia seu romance,Christa Wolf preparavaumaco­ leQao das obras de Karoline von Gunderrode (poemas, prosa, cartas), que publicou nomesmoano,1979,com0 titulo (extraidode uma dascartas) Der Scha tteneines Tra umes [0 espectro de um sonhol. Esse tambem e 0 titulo do ensaio que introduz o livro, urn dos textos mais brilhantes de Wolf.não basta dizer que ele ilumina 0 ro­ mance e tambem traz a tona seu contexto hist6rico. E uma j6ia rara da critica e da literatura e uma contribuiQao decisiva para a redescoberta da vida e obra da jovem poeta romantica que sesuicidouem1806,aos 26anos.Alem disso,revelaasrazoes do grande interesse de Christa Wolf pelo romantismo alemao inicial, e mostra ainda a atualidade desse universo cultural em relaQao aos problemas do mundo contemporaneo.

Emprimeirolugar,elaenfatiza0fortecarater antiburguesdomovimento.Os romanticos de 1800 formavam urn pequeno grupo de intelectuais,"uma vanguarda sem apoio como s6 houvera, na hist6ria alema, durante as Guerras dos Camponeses", que travou uma guerra perdida contra a posiQao tacanha da burguesia alema (uma classe subdesenvolvida que,do catecismo burgues,s6 aprendera urn mandamento: fiquem ricos! ), que tinha como unico interesse moral"sintonizar a desvairada busca de lucros com as virtudes luterano- calvinistas da diligencia, frugalidade e disciplina". Essa geraQao se rebelara contra 0 racionalismo arido da epoca (parecido com nosso materialismo vulgar), urn pacato"estado mental superficial" (Plattheit) que fingia ex­ plicar tudo,masnão compreendia nada,contra a abstraQao congelada e a irresistivel consolidaQaodeestruturasdestrutivas,contra0"insensivel pensamentoutilitario" ( erbarm ungslose Zweckmassigkeitsdenken). Ou seja, contra todos os aspectos da mo­ dernidade que levam ao medo, depressao e autodestruiQao (Wolf, 1981c, p.7- 10).

Wolf cita urn poema filos6fico de Karoline von Gunderrode como testemunho da reaQao dessa geraQao romantica contra 0"rebaixamento do grande climax inte-

lectualdo A ufkla.rung alemaoa urn raciocinio pragmaticoinferior (pra gma tisch er Verniinftelei)", na visao de mundo palida e monotona de agora:"Der Himm el ist ges­ tiirzt, der Abgrun d a usgefiillt, Un d mit Vernunft bedeckt, und sehr bequem zum gehen" (p.1 0) [16]

Tambem em oposiyao ao feudalismo de mente fechada e ao espirito triste­ mente ganancioso ( tristen Erwerbsgeist) dos novos tempos, Gunderrode sonha comurn paraiso perdido:"Para mim,nossaepoca echata e vazia ;umadornos­ talgica (sehnsu ch tsvoller Schmerz) me puxa com forya para 0 passado". Como poeta romEmtica, ela e destinada a tomar-se marginal e, de suas relayoes emocionais com­ plexas com tres homens (Clemens Brentano, Karl von Savigny, Friedrich Creuzer)não abstrai nada alem de (em suas proprias palavras)"0 espectro de urn sonho". Segundo Wolf, podemos sentir em suas cartas e poemas 0 desejo desesperado de que"entre homens e mulheres possam existir outras relayoes alem da dominayao, subordinayao, ciume,propriedade ;relayoesigualitarias,amigaveis,solidarias".Luta,pOI meiode suas obras, para ser urn ser autOnomo,mas"0processo para se tomar urn individuo vai contra a natureza do Zeitgeist, que busca utilidade, valorizayao ( Verwertbarkeit), a transformayao de todas as relayoes em valores de cambio. Como se houvessem lanyado urn feitiyo sobre pessoas e coisas" (p.1 3-22).

Ao ler a correspondencia entre Gunderrode e suas amigas (Lisette Nees, Bettina vonAmim),Wolf chegaaconclusaoqueessas jovensmulheres,asprimeirasinte­ lectuais,"sentem0comeyOda era industrial,a divisaodotrabalhoea divinizayao da Razao como uma violayao de sua natureza". E so agora as marcas que deixaram podem ser percebidas, aceitas e compreendidas.não e por acaso que foi justamente sobre as mulheres que cairam os males dos tempos. Sua marginalidade economica, a impossibilidade de lutar por uma posiyao,urn cargo publico libertava-as da neces­ sidade de legalizar 0 espirito de subordinayao (Untertanen-Un geist). Por meio de uma estranha mudanya, nasceu, de uma situayao de total dependencia,"urn pensamento totalmente livre, e utopico", transportado poeticamente para 0 sonho de Karoline von Gunderrode:"Sim, devera haver uma epoca na qual cada ser estara em harmonia consigo mesmo e com os outros". A poesia, diz Wolf, possui afinidade com a essencia da utopia, pOis apresenta"uma inclinayao ao mesmo tempo dolorosa e prazerosa para o perfeito" (p,28-9, 51).

Gunderrode foi tirada do esquecimento pOI sua amiga Bettina von Amim, que publicou uma versao revisada de sua correspondencia em 1840. Em urn posfacio a reediyao desse livro (Die Giin derrode), em 1980, Christa Wolf escreveu urn ensaio sobre essa outra notavel escritora, muitas vezes citada apenas por seu relacionamento comalgumas figurasmasculinas (irma deClemens Brentano,amiga de Goethe,es­ posa de Achim von Amim),cujas obras estao entre as poucas que mantem vivo,du­ rante a primeira metade do seculo XIX,0radicalismo do inicio do romantismo.Pela

sua atenQao para com os pobres e proletarios, Bettina foi acusada de"comunismo", e seus livros foram proibidos pelas autoridades prussianas ;"A insensivel mecanizaQao que foi transportada do crescente sistema maquinario para as relaQoes sociais e para os seres humanos era, para ela, uma abominaQao" [17]

Aofalar sobre essa correspondencia,Wolf se mostra fascinada pelo modo com o qual as duas mulheres romanticas" co- filosofaram" sobre uma"religiao baseada na humanidade e no prazer de viver", radicalmente oposta ao culto masculino da agres­ sao.A amizade entre elas era uma experiencia ut6pica,uma tentativa de dar vida a urn tipo diferente de razao e progresso, urn tipo de a utklarerischen Denkens em opo­ siQao a"unilateralidade do pensamento instrumental e reificado" e aos"insensiveis mecanismos de uma filosofia que mata todos os tipos de sentimento (geisttotenden)" ; ambas sonhavam com uma alteraQao para a exploraQao da natureza, a inversao dos fins e dos meios e a repressao de todos os elementos"femininos" da nova civilizaQao. A melancolia das obras de Bettina e 0 suicidio de Gunderrode sao testemunhos dessa batalha perdida (1980, p.312-4).

Esses dois ensaios constituem uma das mais brilhantes e bern articuladas ten­ tativas de Christa Wolf de descobrir as raizes comuns, a secreta solidariedade, a intima relaQao entre 0 protesto romantico e a utopia feminista.

Com a publicaQao de Kassandra, em 1983, pode-se dizer que to do 0 processo de maturidade da integraQao do ponto de vista romantico ut6pico e feminista chega a seu apice.Nessa obra,asduas tendencias,que haviam se tornado cada vez mais perceptiveis nas ultimas obras de Wolf (mas que estavam presentes desde 0 inicio), atingem sua forma mais consciente, explicita e elaborada, e apresentam-se, tambem, muito mais interligadas e entrelaQadas, tornando-se, assim, aspectos igualmente im­ portantes de uma unica e mesma visao. Enquanto em No Pla ce on Earth Wolf havia se ligado a uma primeira tradiQao romantica, em Kassan dra expressa 0 foco principal do impulso romantico-ut6pico: busca inspiraQao no passado para imaginar urn futuro que pode transcender 0 presente degradado. It neste ponto que aparece com mais clareza a estrutura geral da visao romantica. Tambem agora 0 feminismo de Wolf, que ate certo ponto permanecera latente nas produQoes anteriores, vern a ser expresso de maneira aberta e vigorosa, como urn dos enfoques centrais da obra.

Kassan dra e uma sequencia de cinco conferencias apresentadas por Wolf na Universidade de Frankfurt em 1982: as quatro primeiras feitas a partir de narraQoes e reflex6es sobre suas recentes viagens a Grecia e leituras sobre a cultura da antiga Grecia, e a ultima delas e urn pequeno romance que reinterpreta a lenda de Cassandra. Os quatro primeiros textos foram inicialmente publicados a parte, com 0 titulo de Vora ussetzungeneiner Erzahlung,masWolf (1988b,p. 1 18)deixaraclaroqueesses textos e 0 romance" formam juntos urn todo estetico". A ediQao inglesa, da qual fa­ remos ascitaQoes,publica oscinco textos em urn mesmo volume,mas coloca 0 ro­ mance na frente, apesar de 0 termo que designa os outros textos ( Vora ussetzungen) implicar precedencia. Ao discutir a obra, iremos, portanto, retomar a ordem original.

No prefacio de Vora ussetzungen, Wolf (1984, p. 142) afirma que em Kassandra" minha primeira preocupaQao sao os sinistros efeitos da alienaQao...", e as leituras preliminaressao,na verdade,antesedepois,urnquadrodaalienaQao,urn retrato vago do"barbarismo da era moderna" (p.1 59). ComeQando por sua inquietaQao com a atmosfera anti-septica do aeroporto edoaviao,urn microcosmode sociedade no qual ninguem se preocupa com ninguem, a narrativa da viagem marca sua descoberta da Grecia moderna, desfigurada pela poluiQao (que rapidamente destr6i as lembran­ Qasdo passado,inclusive os locaismais sagrados,como a Eleusis) e feiura arquite­ tOnica (" cubos de concreto", indicando que 0 sentido grego de beleza cedeu lugar ao" dominio da eficiencia sobre todos os valores") (p.203). Encontra em Atenas uma" cidade superpopulosa, apressada, homicida e avida por dinheiro, que vomita fumaQa e gas carbOnico, tentando estar em dia... [com paises mais ' avanQados ']"; nessa cidade, 0 que une as"m6nadas da cidade" e"a caQa das dracmas" (p.1 59-60). Em reflexaes posteriores, Wolf desenvolve suas ideias sobre a civilizaQao moderna de forma mais geral, e enfoca claramente a mecanizaQao e a alienaQao do trabalho, a ideologia da" cientificidade"e a burocracia.Dentro dessa civilizaQao,elaevoca particularmente a"suplica desesperada" das mulheres, que se encontram em pior situaQaoque a de Kassandra,vitima de urn estagio inicial do desenvolvimento mo­ derno (p.1 51, 195).

Wolf nota a presenQa de alguns aspectos da antiga vida: varias ciganas que levam"urn circulo de parentesco onde quer que estejam" (p.163), ou ainda a cidadezinha tradicional quevisitouna Grecia.Mas isso,a seu ver,nao representa uma soluQao ; nesses lugares, a comunidade e os valores significativos tambem implicam total sub­ missao das mulheres.Para ela, a crenQa religiosa e impossivel,os paraisos modernos sao" mudos e sem sentido" (p.158), assim como e impossivel a" aventura", e tambem como todas as outras coisas, com exceQao de"uma aventura no pensamento" (p.199) ; Wolf toma parte de uma aventura como essa ao tentar a viagem imaginaria, da Grecia moderna aos tempo antigos.

Essa jornada ao passado mostra que 0 periodo homerico, da Guerra de Tr6ia e da lenda de Cassandra (que vira a ser seu tema), ja esta"atrasado": isto e, nesse tempo, as primeiras mutaQaes hist6ricas determinantes ja haviam acontecido no ca­ minho que leva a modernidade. A civilizaQao classica grega adora"falsos deuses", semelhantes aos nossos (p.237).Em determinada passagem, Wolf questiona quando foram os"pontos de mutaQao" (e tambem se eles eram inevitaveis); emboranão tente precisar historicamente 0 momento, ou os momentos, de transiQao, nessa e em muitas outraspassagensela procuradefiniranaturezadessefato.Torna-seclara,aqui,a ligaQao integral entre 0 feminismo e 0 romantismo no pensamento de Wolf, pois ela ve esse processo como se envolvesse simultaneamente 0 advento do patriarcalismo e de uma serie de caracteristicas que mais tarde iraQ se transformar na civilizaQao moderna e capitalista: a propriedade particular, a hierarquia de classes, a busca inicial de eficiencia econ6mica e de"mais produtos a cada dia" (p.251, 282, 296). Em termos psicol6gicoseideol6gicos,essa mudanQa foiacompanhadapeladivisaodocorpo, alma e espirito.

 

Antes que essas mudanc;as desastrosas acontecessem, existiam matriarcados agricolas que cultuavam a fertilidade e deusas da terra, nas quais a magia era prati­ cada por senhoras idosas ou por sacerdotisas, e nas quais prevalecia uma correlac;ao holistica de todos os aspectos da vida. Esse periodo, que Wolf sugere ser 0inicio da humanidade (pois foi entao que 0 genero humano desenvolveu sua especificidade em relac;ao a seus ancestrais animais), exerce uma visivel fascinac;ao sobre ela (assim como 0matriarcado minoico,tambem por ela comentado).E,ao mesmo tempo,ela sente dificuldade em distinguir sua posic;ao daquela de algumas feministas radicais (no texto, representadas pelas americanas Sue e Helen), que fazem dessas culturas de Ur terras prometidas idealizadas. Ela sabe que a sociedade minoica incluia hie­ rarquia feudal e escravidao,e os matriarcados agricolas primitivos eram pre-racionais e aindanão conheciam 0 egoismo individual. 0 fato de Wolfnão aceitar tais sociedades como modelo, e ainda prevenir contra os perigos do puro"irracionalismo", mostra bern como sua perspectiva romantica integra por completo a A utklariing emsi mesma.

Sua visao e, assim, essencialmente voltada para 0 futuro, para a criac;ao de urn futuroque,mesmotrazendoconsigo0passado,seria basicamentenovo,uma Au­ fbebung do passado. Nas conferencias contidas em Kassandra, Wolf suscita a questao desse futuro, e pergunta se existe alguma alternativa para 0"barbarismo" da moder­ nidade.Ela e tomada por duvidas e acredita que uma futura mudanc;a na vida,uma nova renascenc;a, e uma mera possibilidade, dificil de se crer na atual situac;ao. Sua (micacertezaedequeessenovofuturo,sevieraacontecer,seraurn fen6meno humano generalizado (ela rejeita terminantemente 0 sectarismo feminista e o particula­ rismo)e tambem urn futuro noqual asmulheres terao urn papel central,pelacon­ tribuic;aodeaspectos positivosda consciencia feminina historicamente formada.a ultima das conferencias preliminares termina avisando que"palavras" de mulheres que"poderiam ter 0 poder de lanc;ar feitic;os" (p.305) sao ameac;adas pelo risco de as mulheres virem a pensar como homens,fazendo que,em vez de igualdade formal,os homens continuassem a reinar por meio da perpetuac;ao de sua mentalidade de mo­ dernidade destruidora. Wolf afirma que essa e"a mensagem de Cassandra para hoje".

Essa estrutura de sentimento utopico-romantica e articulada, em termos ficcionais, na novela Kassandra - a dinamica de urn presente que esta decaido em relac;ao ao passado,eapos0qual se abre a possibilidade(mas apenasuma possibilidade)de urn futuro diferente. A principal diferenc;a entre as conferencias e 0 romance nesse aspecto e que, enquanto aquelasnão mostram nenhum encrave politico na realidade atual, Wolf consegue projetar na ficc;ao tais encraves dentro de sua Troia imaginaria. Essa Troia,descrita na Ilia da,ja foi corrompida pelos viciosdamodernidade,ena verdade pode ser lida como uma alegoria de nosso proprio mundo.

Certa vez esse passado e chamado de uma" Epoca Dourada" da" antiguidade longinqua", antes de acontecer uma"sucessao de eventos que arrasaram nossa ci­ dade...sob a soberania de uma sucessao continua de reis..."(p.37).Dessa forma,0 patriarcado ja esta bern estabelecido em Troia na epoca da guerra, assim como no campo dos inimigos gregos. Uma das func; oes de Wolf ao recontar a Guerra de Troia

e,na verdade,desmitificar 0"heroi"patriarcal,revelandosua hipocrisia,covardia e brutalidade. Tambem ja se encontra bern firmada em Troia (assim como na Grecia) amentalidademercantil:Cassandraassocialembranyasdesua intancia,0" cheiro limpo e ascetico de meu pai" com"as mercadorias que vendiamos ou transportava­ mos... os resultados de nossa renda e as discussoes sobre como iriamos gasta-Ia" (p.13-4). Ao mesmo tempo, Troia, durante a guerra (e ate mesmo antes da guerra propriamente dita), mostra as marcas do estado autoritario ; Eumelos lidera esse apa­ rata ao engajar-se na quase- orwelliana manipulayao da linguagem e reescrita da his­ toria,e tambem ao ordenar a perseguiyao e posterior prisao de Cassandra.

Existe nessa sociedade completamente alienada (ou quase completamente, vis­ to que M alguns sinais de que os troianosnão se tornaram tao corruptos quanto os gregos)umacontracultura utopica:asmulheresquesecretamentecultuamCibele, uma antiga deusa da fertilidade no valedo monte Ida.Essecultoe de uma"religiao ateista", pois pelo menos os membros mais refinados do grupo reconhecem que Cibele existe, na verdade, para"aquilo que faz parte de nos mesmos, mas quenão ousamos reconhecer" (p.124). Uma sociedade completamente igualitaria, na qual as mulheres escravas e serviyais sao tratadascomo filhas de sangue real;uma comunidade bern entrelayada e baseada na divisaoe doayao,e na qual as atividades trazem a.tona 0 ser humano pOI completo. Esse grupo restaura a crenya de Cassandra na humanidade (que ja se extinguia),"por ser diferente, pOI tirar de sua natureza qualidades que eu quasenão ousara imaginar" (p.79). Formada principalmente por mulheres, essa sociedadenão e excludente, pois possui 0 velho Anquises, urn escultor de belos objetos em madeira, que ele da de presente a outros. Possivelmente existe uma alusao a Ernest Bloch na figura de Anquises, pois ele"nao se cansava de dizer que sempre seria possive!" fazer aquilo que seu grupo fazia, isto e,"trazer urn pequeno pedayo do futuro para 0 rigido presente...", e ele"ensinava os mais jovens a sonhar tendo os dois pes no chao" (p.1 34-5).

Entao a comunidade de mulheres se torna u rn Vorschein blochiano: u rn vislum­ bre no presente do que poderia ser urn futuro livre. Esse grupo sempre pensa no ser humano do futuro:"Acima de qualquer coisa, falamos sobre quem vira apos nos. Como serao...se iraQ preencher nossa omissao,consertar nossos erros"(p.132). En­ quanto 0grupode Moska uer Novelle e afirmativo quanta ao futuro,0de Kassandra e interrogativo, pois Wolfnão acreditou, por muito tempo, na inevitabilidade do mun­ do.0 futuro permanece aberto nessa obra,a utopia se torna uma esperanya.

Nas obras subseqiientes a Kassandra(Stdrfa11,1987 ;Sommerstiick,1989;Was Bleibt, 1990), 0 pessimismo de Wolf e aprofundado e a esperanya parece diminuir perigosamente. 0 capitulo final de Christa Wolf's Utopian Vision, de Anna Kuhn, sobre Stbrfall, ultimo dos livros de Wolf a surgir antes de ser publicado,levanta a questao da base da visao de Wolfnão haver desmoronado com a pressao das ultimas invenyoes.0 subtitulo do capitulo de Kuhn aparece na interrogativa:"A destruiyao da utopia?". Se olharmos para os tresultimoslivros publicados ate hoje,parece claro que,ao invesde uma tendencia naquela direyao, a questao deve ser mesmo respondida na negativa.

 

Como bem aponta Kuhn,"a tensao entre a esperanQa e a descrenQa, tao caracte­ ristica da obra de Wolf desde No Pla ce on Earth, e 0 principio estrutural de StOrfall" (1988, p.221). Diante do evento que gera esse texto, a explosao do reator nuclear em Chernobyl, 0 lado da descrenQa pesa mais na balanQa sem, contudo, esmagar por completo a esperanQa. Wolf agora ve 0mundo moderno (que se coloca amargem da destruiQao, com Chernobyl) como um sistema no qual"tudo se encaixa...:0 desejo da maioria das pessoas de ter uma vida confortavel, a tendencia a acreditar naqueles que discursam sobre palanques e nos homens de casaco branco... parecem corres­ ponder a arrogancia, sede de poder, busca do lUCIO, curiosidade inescrupulosa e nar­ cisismo de outros" (Wolf, 1989, p. 17). 0 sistema e visto como bastante monstruoso, e a humanidade e vista como se houvesse se transformado em um monstro em relaQao a ordem natural. Os golfinhos, com"sua vida brincalhona e comportamen­ to amigavel", sao comparados favoravelmente aos humanos; Wolf sente que, por mais que tentemos,"nao podemos ser amigaveis", pois"aceitamos presentes de falsos deuses..." (p.98).

Mas ainda assim a ciencia, a tecnologia e 0"progresso" material e quantitativo que se tornaram deuses modernosnão sao rejeitados por si mesmos: 0 que se rejeita e o fato de eles terem sido elevados a condiQao de deuses, ou seja, de valores supremos que estao acima de todos os outros. Wolf reconhece 0 potencial do bem na ciencia ao contrastar Chernobyl e a bem-sucedida operaQao de um tumor no cerebro a qual seu irmao foi submetido. E ainda, a narradora de StOrfall projeta outros valores como umaalternativaforQosa para0ethos domundomoderno:emparticular,apr6pria"amizade",na qual ela passa anão acreditar,quando busca mentalmente seu irmao na mesa de operaQaes, comunica-se com ele e 0 ajuda de forma intuitiva enão cien­ tifica.0 texto termina com uma nota sombria,com um sonho no qual uma voz grita:" Um monstro perfeito",e noqual uma"lua putrescente" desaparece de vista (p.1 09). Mas 0 tempo condicional da ultima frase -"Como seria dificil, meu irmao, partir dessa terra" - ainda deixa aberta a porta da esperanQa.

Embora a pr6xima obra publicada, Somm erstiick, tambemnão feche essa porta, a enfase e dada ao erro e a resignaQao. Sommerstiick retoma a tentativa de alguns amigos, artistas,intelectuais e outros que se sentem amargem de sua sociedade de conseguirumacomunidadesatisfat6riaadquirindo,reformando evivendo(parcial­ mente)emvariascasasdecamponesesemumvilarejorural.Essaobrapodenos ajudar a entender por que a parte de Kassan dra em Vora ussetzungennão inclui ne­ nhum encrave ut6pico, do tipo que e imaginariamente projetado no romance pelos adoradores de Cibele. Somm erstiick se refere a uma experiencia que ocorreu na vida de Wolf antes da composiQao de Kassandra, visto que suas primeiras versaes foram escritas em fins da decada de 1970 e inicio dos anos 80 (revista em 1987, a obra s6 foipublicadaem1989).PorSommerstiickseranarrativadeuma utopia abortada, podemos deduzir porque Vora ussetzungen de 1982- 1983não tinha esse assunto como tema.Em Kassandra como um todo,Wolf ainda queria levar adiante 0principio da esperanQa. A primeira pagina de Somm erstiick diz ao leitor que a experiencia esta acabada, que 0"destino"não quis que fosse bem-sucedida. E, perto do tim, Ellen, a personagem que mais se assemelha a Wolf, pensa sobre a ideia basicamente insatisfat6ria de urn retiro para uma ilha de satisfa9ao rural das pessoas que querem, na verdade, a trans­ forma9ao da sociedade como urn todo. Todavia, 0 conteudo do texto evoca muitos momentos de" magica" e simpatia nas rela90es entre amigos, e de satisfa9ao com a belezadeseumeio.Aomesmotempo,marca tensoeseconflitos,emostracomo, mesmo nesse vilarejo, 0 meio natural e humano sofre as incursoes da modernidade (tambem inclui a visao de urn desastre ecol6gico iminente). 0 esfor90 para criar con­ di90es de vida inspiradas pelo passado e amea9ado todo 0 tempo e e, por fim, des­ truido.Signiticativamente,perto do tim, quando 0 grupo tern a ideia de escrever urn livro em conjunto, como as oticinas de arte dos mestres do passado, alguem comenta que 0 presentenão e 0 passado e que não possuem mais essa liberdade.

o ultimo livro publicado, Was Bleibt, tambem a revisao de urn texto escrito hB. muitotempo(primeiraversao:1979 ;revisao:nov.1989;publica9ao:1990),euma narrativa das atividades e reflexoes de urn dia na vida da narradora. Urn de seus en­ foques principais e a possibilidade de urn futuro diferente do presente. A situa9ao e desanimadora, as expe ctativas vagas e,em uma passagem, a narradora percebe que a pr6pria linguagem que usa para formular seu desejo mostra que ja come90u a pensar como os que governam 0 presente:

 

Se ao menos houvesse uma maquina que pudesse reunir toda a esperan9a que ainda existe no mundo e lan9a-Ia como urn raio laser nesse horizonte de pedra, derretendo-o e fazendo-o se abrir... Voce ja pensa como eles - maquinas, radia98.0, violencia. Voce esta, agora, estendendo para 0 futuro 0 pouco do atual poder que detem. E e dessa forma que colocariam voce exatamente onde querem. (Wolf, 1993, p. 270)

 

Entretanto, 0 condicional da ultima frase reatirma que nem tudo esta perdido, e a conclusao total de sua obra restabelece com tirmeza a perspectiva blochiana da esperan9a.

Em uma palestra dada pela narradora, no espa90 reservado para perguntas, uma jovem perguntou sobre"como poderia nascer urn futuro no qual n6s e nossos filhos pudessemos viver, partindo da situa9ao atual?". A pergunta gera uma discussao aca­ lorada sobre a ideia do futuro e, durante a discussao, alguem pronuncia delicadamente a ut6pica palavra"irmandade" e a atmosfera se torna leve," como na vespera de uma celebra9ao" (p.286-8). Os termos que Wolf utiliza para descrever esta cenanão deixam duvidas de que esta tornou-se urn Vorschein de urn futuro livre. No tinal dessa pa­ lestra, e revelado 0 significado do titulo - 0 que restou -: 0 futuro e 0 que restou, mostrando claramente que a utopia, para Christa Wolf,não foi totalmente destruida. Was Bleibt tambem enfoca a persegui9aoda narradora pela Stasi,ee este as­ pecto da obra que a colocou em violenta controversia politica logo ap6s sua publica- 9ao. Por ter esperado para publica-Io ap6s a queda do Muro e do regime alemao-oriental, 30 Wolf foi acusada de haver-se comprometido com o regime (foi chamada por alguns de Staatsdichterin). Mais lenha foi colocada na fogueira quando, em janeiro de 1993, Wolf revelou que ela mesma havia sido uma"colaboradora informal" da Stasi entre 1959 e 1962. Embora um estudo completo dessa questão esteja fora do intuito deste trabalho sobre a visão romântica/feminista de Wolf, apresentaremos, por fim, algumas considerações sobre essa controvérsia, principalmente até o ponto em que ela apre­ senta relação com nossa concepção sobre sua obra.

Sobre a real colaboração de Wolf com a Stasi, devemos enfatizar muitas coisas. Primeiro, esse"pacto com o demônio" aconteceu por um curto período, no início da carreira de Wolf, que corresponde à produção de Moskauer Novelle. Nesse período, Wolf era ainda bastante ingênua politicamente e possuía um forte"complexo de in­ ferioridade" para com a aura antifascista dos líderes do governo. Era também uma colaboração limitada, cheia de receios e aparentemente pouco proveitosa para a Stasi (Gitlin, 1993). Mas o mais importante é que esse período terminou logo, o que não aconteceu com muitos outros artistas da Alemanha Oriental.[18] A atitude de Wolf tor­ nou-se cada vez mais crítica,e teve início em 1968 com sua recusa (apenas dela e de Anna Seghers) em assinar o termo de apoio da União dos Escritores à repressão Soviética na Tchecoslováquia; ela tornou-se suspeita e foi assediada pela Stasi por um tempo muito mais longo (mais de 20 anos) do que o curto período em que cola­ borou com esse órgão.

Quanto às dúvidas lançadas sobre a posição de Wolf no período posterior, su­ gerindo que ela fosse culpada de hipocrisia, parecem ser injustas. Como notou um de seus defensores entre os intelectuais de renome, Günter Grass, até o fim ela nunca abandonou a esperança da possibilidade de uma mudança na sociedade do Leste alemão[19] Na verdade, para a sensibilidade utópico-romântica de Wolf, o Ocidente capitalista, a própria raiz da modernidade, nunca foi uma alternativa atraente. E as chamadas nações"socialistas", embora tenham disfarçado o fato, haviam sido fun­ dadas sobre um projeto emancipador. Assim, Christa Wolf escolheu o caminho con­ traditório de testemunhar a esperança utópica de verdadeira realização humana in­ dividual dentro do confinamento do"socialismo real". Devemos admitir, assim como ela mesma o faz, que sua crítica política do regime alemão-oriental foi insuficiente; entretanto, suas realizações como escritora de longe superam essa fraqueza. Como notou David Bathrich, embora nunca tenha questionado as estruturas políticas fun­ damentais da RDA (o sistema unipartidário, a falta de democracia), ela é"alguém que, no momento do perigo, disse o que não se podia dizer", denunciando aspectos da sociedade alemã-oriental que se assemelhavam ao Ocidente, criando também uma"verdadeira alternativa cultural" (Bathrick, s.d., p.10-1), que, acrescentaríamos, é in­ dissoluvelmente feminista e romântica.

 

31 SAYRE, RLOWY,M.Romanticism as a feminist vision:the quest of Christa Wolf.

   ABSTRACT:Fewmodemau thorshavegivensuchpowerfulexpressiontothe"electiveaffinity" between romanticismand feminismas ChristaWolf.When we refer to her as a romantic writer,we not only take into account her explicitinterest in romantic women authors from the early 19th century, such as Caroline von Giinderrode and Bettina von Arnim, but also, and above all, her own romantic worldview,and its relationship to marxismand feminism.

   KEYWORDS: Romanticism; feminism; marxism; German Democratic Republic; industrial civilization.

 

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[1] Tradução de Marielza Correia da Silva (Oficina de tradução - UNESP - São José do Rio Preto, revisão da tradução por Álvaro Hattnher).

[2] Professor da Universidade de Paris V'

[3] Diretor de Pesquisas no CNRS.

[4] Sobre o conceito de "afinidade eletiva" em estudos culturais, ver Löwy, 1992.

[5] Apresentamos, inicialmente, nossa interpretar;ao do romantismo em Sayre & L6wy, 1984. Esse artigo gerou urn debate que pode ser encontrado na coler;ao de ensaios publicada por Rosso & Watkins, 1990. Mais recentemente, desenvolvemos nossa tese em urn Iivro publicado na Franr;a, Sayre & L6wy, 1992.

[6] Kuhn,1988.A primeira sentenr;a e 0 subtitulo de sua obra,e a segunda aparece na p.26.

[7]Para uma descri<;:ao de sua descoberta do marxismo,ver Wolf, 1972,p.47-53.

[8] Ver J. Zipes, 1976, e o ensaio"Auf den Spuren Ernest Bloch. Nachdenken (iber Christa Wolf", de Huyssen, 1979, p. Bl -7. Para urn estudo da visao romantica de mundo de Bloch,ver Sayre & Lbwy,1992,cap.6.

 

[9] Anna Kuhn (1988, p. 26) afirma alga parecido com isso. Jack Zipes (1976) be rn nota nessa passagem uma chave para a entendimento de Moska uer Novelle, e tambern para todos as obras posteriores de Wolf.

[10] Ver,tambem,Kuhn,1988,p.46.

[11] Ver"June afternoon", em Wolf, 1993, p.53-4.

[12] Sobre esse topico,ver ° ensaio interessante (mas antipatico) de Herziger & Preusser (1991),sobre"A literatura da RDA na tradic;:ao da critica alema da civilizac;:ao".

[13]"Wolf extrai da vida das mulheres u rn potencial de experiencia econhecimento totaImente novo          0 que se

chamou de marxismo'critico','humano' ou 'utopico' em sua obra representa sua percep\:ao feminina da historia, e os 'tra\:os' e 'esperan\:as' utopicas comentados por Bloch em suas obras teoricas revestem-se de urncarater material indestrutivel na realidade de mulheres intermediadas por Wolf. E isso,na verdade,e o proprio radicalismo das obras de Wolf,nao como uma alternativa ao marxismo,mas,sim,como uma dimensao aut6noma e quali­

tativamente nova,que e pre-requisito para sua renova\:ao"(Fechervary &Lennox,1978,p.111-2).SobreErnst

Bloc e Christa Wolf. ver 0 ensaio"Auf den Spuren Ernst Blochs. Nachdenken (iber Christa Wolf",de Huyssen, 1979, p.81-7.

[14]Ver Kuhn, 1988,p.142:"Dessa forma, No Place on Earth pode ser vista como parte de uma tentativa de reabilitaao dos romanticos por parte da vanguarda literaria socialista".Ver,tambem,Trotten, 1982

[15] 0 dialogo econstruido de tal forma que ficadificilsabersempre quemesta falando,eesteprocedimentoenfatiza a comunhao espiritual dos dois escritores romanticos.

[16]"as ceus desmoronaram ; ° abismo esta cheio e coberto pela razao,born lugar para se andar."

[17] Ver:"Nun Ja l Oas nachste Leben geth aber heute an.EinBrief tiberdie Bettine",em Wolf,1980,p.287,311

[18] Ver"Sleeping with the enemy: Stasi and the literati". Newsweek,8 levo1993;e"Intellectuels est-allemands sur la sellette", Le Monde Diplomatique, p.11, abr. 1993.

 

[19] Le Monde Diplomatique, p.ll, abr. 1993.