TRADUC;AOITRANSLATION

 

o OUTRO NIETZSCHE : JUSTIC;A CONTRA UTOPIA MORAL

 

Reinhart MAURER[1]

Tradução: Oswaldo GIAIA JUNIOR[2]

 

1 Pensa-se, com esse titulo, que exista urn Nietzsche diverso daquele habitual­ mente admitido ate entao, particularmente diverso de como 0 apresentam interpre­ ta90es tendencialmente fascistas, marxistas, liberalistas e ate anarquistas , p6s-estru­ tural-ultrapluralistas (ou seja, francesas mais recentes) . Pensa-se, sobretudo, urn Nietzsche tal que nem pode ser reivindicado pela " direita" em sentido politico corrente, nem censurado pela "esquerda" , qui9a do lado marxista, com a censura de que seja em muitos aspectos urn autor pre-fascista, mas que haja nele tambem outros lados aceitaveis . E nesse sentido que Ernst Bloch fala do outro Nietzsche, e com isso pensa num que ocasionalmente apreendesse 0 futuro do homem a luz de seu "Principio Esperan9a" .4

o outro Nietzsche, que eu penso, e aquele que se encontra atras da fachada cheia de efeitos, ate ambiciosa de efeitos e que primeiro salta aos olhos em sua filosofia ; atras das fortes e impregnantes palavras, teses e vaticinios. E gostaria ate de afirmar que esse outro e 0 autentico Nietzsche, e que s6 0 interprete que nao fica preso as palavras fortes avan9a para a camada de sustenta9aO da filosofia de Nietzsche. Nietzsche fala com frequencia de mascaras : seu estilo poderoso em efeitos e a mascara primaria, atras da qual ele se oculta.

 

2 Considerado superficialmente, Nietzsche e, em muitas passagens, cru, radical, ocasionalmente um "macho" marcialmente imponente. Isso, porem, e uma fachada ou mascara de proter;ao, atras da qual ele oculta sua sensibilidade, fragilidade, vulnerabilidade. A essa idiossincrasia pessoal corresponde um trar;o fundamental de sU,a filosofia. Sua autocompreensao a esse respeito nao necessita ser verdadeira; dever-se-ia, entretanto, tomar conhecimento e manter a vista que ela remete a umantagonismo em sua filosofia, analogo aquele de sua personalidade. De acordo com isso, sua radicalidade critica tem um sentido compensatorio. Nietzsche ve uma monstruosa unilateralidade no desenvolvimento da humanidade na direr;ao de uma decadencia igualitaria, pretensamente humanitaria, e gostaria de equilibra-Ia por meio da enfase no contrapolo aristocratico reprimido. A provocativa agudeza de seu protesto se esclarece com base em seu diagnostico de uma crescente prepotencia e presunr;osa autocerteza da linha geral da moderna visao de mundo (Weltanscha uung), que se tem pela (mica humana.

o alvo do pensar compensatorio de Nietzsche se denomina, em conjunto, justir;a, como reconhecimento de uma pluralidade nao necessariamente caotica, mas disposta em hierarquia. Em nome dela, Nietzsche sustenta resistencia contra monopolizar;oes ou absolutizar;oes em nome da verdade, da moral, ou tambem da propria nar;ao, e toma partido por aquilo que desse modo e reprimido . Ele pensa manifestamente tambem em si mesmo, quando escreve : " ... naturezas compensatorias que, entre franceses ou americanos , substituem em si 0 odio aos alemaes, entre alemaes 0 odio aos judeus, por uma benevolencia proposital - nao por contradir;ao, mas por neces­ sidade de justir;a. Dispostos dessa maneira contra periodos historicos inteiros" (Nietzsche, 1980, v.9, p.419).5

o que significa disposto contra periodos inteiros do desenvolvimento da moral, possivelmente durando mais de 2 mil anos, pode-se depreender de Para a Genealogia da Moral. E interessante que ele tambem ja tenha visto que agora M que se tomar partido compensatoriamente pelas coisas, que sucumbem a urn usa abusivo ( Vem utzung) pretensamente humanitario : "Amor e justir;a para com as coisas seja vossa escola" .6

Isso e escrito manifestamente contra uma humanistica, isto e, antropologica­ mente limitada filantropia e justir;a, e com isso contra uma vontade de poder coletiva que se coloca de modo absoluto perante a natureza coisificada. Diante da agora emergente crise ecologica, comer;amos a suspeitar que essa monopolizar;ao poderia nos ter saido muito mal. Filantropia sem amor pelas coisas com as quais nos mantemos ligados pelo nosso lado-coisa (dingliche Seite) e sobretudo natural e manifestamente ruinoso a mais longo prazo.

 

3  Urn pensar compensat6rio segundo sua pr6pria autocompreensao, que critica como unilateralidade com falsa pretensao a totalidade tudo aquilo que e avaliado como born, belo e verdadeiro pela linha geral humanistico-progressiva, tern que parecer, precisamente a essa linha geral, como despropositado, mau ou louco.7 Pois ela se considera, com efeito, 0 unico caminho certo para 0 futuro da humanidade.

Quando abrangemos com a vista contra quem Nietzsche declara suas pretensoes compensat6rias, isto e, contra todo 0 programa cientifico-moral-politico de desenvol­ vimento do novo tempo (Neuzeit) , entao se mede a grandeza do desafio que ele apresenta. Seu ataque se dirige, por principio, contra todas as linhas gerais, pretensOes a totalidade, ideologias de felicitaao da humanidade, em particular, porem, contra a linha geral de nossa hist6ria de proveniencia (Herkunftsgeschich te) judaico- crista e seu moderno prolongamento, aparentemente nao mais dependente de Deus, em democracia, socialismo, anarquismo. Ele se dirige contra a pretensao monopolistica a humanitarismo, a ela ligada, assim como contra liberdade, igualdade, fraternidade, como postulados totalitarios .

 

4   Contra os programas de urn humanismo quili8.stico-totalitario, como contra a utopia do homem escatologicamente (en dgeschichtlich)8 satisfeito e (por iSso?) torna­ do moral, Nietzsche enfatiza 0 homem efetivo ( wirklich), como quando escreve :

"Minha proposiao conclusiva e que 0 homem efetivo apresenta urn valor muito mais elevado que 0 homem desejavel" (KSA, v.13, p.56) ; ou quando, contra "0 ideal compreendido como algo em que nada de lesivo, perigoso, questionavel, destrutivo deva restar, " ele faz valer :

"Nossa compreensao e a inversa: que com cada crescimento do homem, tambem seu lado oposto tern que crescer, que 0 mais elevado homem, suposto que tal conceito seja permitido, seria 0 homem que mais fortemente exibisse 0 carater antagonistico do existir (des Daseins) ." (KSA, v. 12, p.519)

Nietzsche persiste no "terrivel texto fundamental homo natura" : no homem como ele e por natureza,9 e intercede a favor de, em primeiro lugar, apreender toda a variedade das aspira90es humanas , de acordo com sua tese fundamental sobre a efetividade ( Wirklichkeit) , segundo a qual esta seria a oposi9aO e 0 concurso entre si de uma pluralidade de "vontades de poder" heterogeneas e diversamente fortes.

Justi9a significa, a partir dai, nao universaliza9aO coordenada com base em pretensa filantropia, porem, de acordo com seu principio fundamental : "apreensao conceitual e ordena9aO conjunta de urn enorme reino de delicados sentimentos de valor e diferen9as de valor, que vivem, crescem, procriam e perecem" . 10

Aqui fala 0 "outro" Nietzsche, 0 sensivel, que apreende uma efetividade altamente complexa, sobretudo a efetividade humana, que manifestamente nao e apenas terrivel. Tanto e tao pouco quanto 0 homem em geral, Nietzsche e terrivel. Ele nao e nenhum demonio, diabo ou maligno destruidor de razao e humanitarismo, mas urn "pobre diabo" (armes Sch wein), uma criatura humana sensivel, vulneravel e ferida,particularmente pobre porque, como sua cruz, tomou sobre si 0 pior lado do nosso tempo (Niilismo) . A partir desse conhecimento, ele critica 0 ut6pico (mais precisa­ mente : quiliastico) humanismo predominante e opoe a ele primeira e ultimamente nao a des-humanidade (Inh umanitaet), mas urn humanismo realista. Por isso tamMm os programaticos conceitos gerais : humanitarismo e justi9a nao sao, nele, de modo algum negativamente carregados, mas ambivalentes, isto e, positivos ou negativos, conforme se relacionem ao homem efetivo ou ao quiliastico-ideologizado. Nietzsche tern que reconhecer, de acordo com todo seu principio perspectivistico, que ideologia, isto e, interpreta9aO da efetividade, pode ter conseq(.iencias reais. Segundo ele, todavia, nenhuma ideologia, mesmo que possa tambem temporariamente ainda predominar muito, pode constranger em seu trilho duradouramente a antagonistica pluralidade da efetividade.

 

5         Deve ser dito com isso que em Nietzsche nao haveria utopia em nenhum sentido? Isso nao seria adequado a sua filosofia. Ele fala, inclusive, com frequencia suficiente, da necessidade de institui9aO de novos valores e metas, e desenvolve, pelo menos indicativamente, a figura-meta do "Alem-do-homem", a contracorrente da rna tendencia real em dire9aO ao "ultimo homem" que, no Prefacio a Assim falou Zara tustra e descrito com palavras como : "'0 que e amor? 0 que e cria9aO ; 0 que e saudade ; 0 que e astro? ' - assim pergunta 0 ultimo homem e pisca 0 olho ... 'N6s inventamos a felicidade' - dizem os ultimos homens e piscam 0 OlhO."ll

6          Mas, em Nietzsche, a busca da meta para 0 ulterior desenvolvimento da hist6ria humana e diferente, num ponto essencial, de todas as modernas utopias sociais de cunhagem ocidental ou oriental: ela nao acredita na melhoria principial da conditio humana, nem do pr6prio homem, porem ve apenas novas possibilidades, ate intensi­ ficadas, para a velha tensao entre grandeza e pequenez humana. Condic;:ao para 0 nascimento do "Alem-do-homem", do qual Nietzsche fala no circulo do "Zaratustra" (mais tarde surgem em seu lugar outros conceitos menos grandiloqlientes), e par isso tambem 0 reconhecimento do "eterno retorno do mesmo", cujo sentido capital esta decerto em sua antiperfectibilista enfase na inextirpabilidade da estupidez, mediocridade, crueldade humana e sofrimento por elas causado, assim como de outras farmas de sofrimento nao causadas por elas .

Somente sobre essa base vale 0 que Bloch cita como demonstrac;:ao de seu outro Nietzsche, aquele, pretensamente conforme seu "Principio Esperanc;:a", nao meramen­ te "reacionario", mas tambem "utopico" , ou seja:

"Ha mil sendas que ainda nao foram trilhadas , mil saudades e ocultas ilhas da vida. Sempre ainda inesgotavel e nao descoberto e 0 homem e a terra do homem" (Bloch, 1962 ,  p.363) .

 

6 Precisamente 0 outro Nietzsche, que esta por detras da fachada primeiramente impressionante de suas cativadoras formulac;:6es e programas, e urn cetico sutil e sensivel, urn pensador compensatorio, que faz valer contra a moderna unilateralidade utopica a antagonica pluralidade da efetividade, sobretudo da humana. Aquele outro Nietzsche que, em contrapartida, Bloch acredita descobrir, 0 "te6logo que em vao ocupou seu posta na ponte do futuro , cuja hist6ria e iluminada pelo deslumbramento de urn mundo que ainda nao existe" (Idem, p.361), este existe decerto apenas para autores como Bloch. Cegado pela luz rosea da utopia , que no interim do presente brilha a partir do pass ado da historia eurogenetica do progresso, ele nao enxerga as sombrias nuvens de tempestade da destruic;:ao de nossa base natural de vida, que se acumulam no horizonte do futuro. 12 

Esse perigo mortal parece ameac;:ar 0 homem mais do exterior, ou seja, com base em suas relac;:6es com 0 mundo ao derredor ( Urn-welt) , com a natureza ambiente exterior. A ameac;:a esta, todavia, estreitamente ligada com as modernas posturas fundamentais do homem para consigo mesmo e para com os outros homens, com seus conceitos antropologicamente limitados de humanitarismo e justic;:a, com a utopia moral, ou antes, moral-ideologica, baseada em dominac;:ao racional, cientffico tecnica da natureza, que Nietzsche ja criticara em seu escrito anterior 0 Nascimento da Tragedia a partir do Espirito da Musica , sob 0 titulo "socratismo" . Tanto mais importante que agora, pr meio do colapso continuo da versao real-socialista da utopia tecno16gico-moral, cresceu a chance de ver 0 homem - quiQa com Nietzsche - de modo mais realista. As formas liberalistas ocidentais da utopia foram, com efeito, colocadas "p6s-modernamente" em questao, mas ate segunda ordem domina aqui a velha linha geral tecnico-quiliastica, e sente-se ate fortalecida como unica correta pelo colapso de seu ate entao concorrente.

 

7  Desde a RevoluQao Francesa, surgiram sempre de novo as conseqiencias terroristas individuais e coletivas da utopia politico-moral, tornada crescentemente tecno- quiliastica e com isso tecnocratica, pr ultimo no totalitarismo pretensamente humanitario de especie stalinista.13 Os adeptos convictos dessa utopia, que determina a moderna linha geral de visao de mundo (weitanschaulich), se decepcionam sempre de novo com suas conseqiiencias crueis - na medida em que sua viseira ideo16gica

lhes libera a vista para tais consequencias . Desse modo, a convicQao deles de que, no fundo, sao bern intencionados para com 0 homem nao e abalavel em muitos casos, ate diante de mas experiencias . "0 contrario do bern e bern intencionado" (gut gemein t) , diz em algum lugar 0 cetico Odo Marquard.

Quem, em contrapartida - quiQa com Nietzsche -, se coloca desde 0 inicio ceticamente em relaQao ao homem, nao fica decepcionado nem surpreendido. Ele nao tinha esperado outra coisa. Desumanidade e humano, dira ele. No reconhecimento do "terrivel texto fundamental homo natura", Nietzsche concorda com Thomas Hobbes . 0 programa iluminista-progressista de uma crescente realizaQao do huma­ nitarismo pode se reverter em seu contrario, nao em ultimo lugar porque nao quer admitir essa cetica compreensao fundamental do homem.

 

8                Nao subsiste, pois, qualquer diferenQa real, apenas uma meramente ideo16gi­ ca, entre urn programa de crescente humanitarismo e urn programa como 0 nazista, que planifica desde 0 principio a crueldade intra-humana? Da proposiQao : "Desuma­ nidade e humano" resulta que sequer se deva tentar praticar e apoiar 0 humanita­ rismo, pois a tentativa fracassa de todo modo, pode ate causar 0 contrario daquilo que e querido? Urn sistema como 0 nazista, que considera sub-homem uma parte consideravel da humanidade, contra a qual 0 homem normal ou senhorial pode ser cruel ate a destruiQao, e a consequencia do ceticismo nietzscheano em relaQao ao homem, assim como de sua recusa de todo programa de felicitac;:ao da humanidade? A esse respeito, duas considerac;:oes :

1. Ceticismo diante do homem e do reconhecimento de seus lados crueis, agressivos, avidos de poder e posse nao significa qualquer embelezamento desses lados. Eles sao e permanecem, como diz Nietzsche, urn terrivel texto fundamental.

II . Nietzsche nao afirma que essas forc;:as impulsivas nao tivessem que ser domadas e que elas nao 0 tenham sido efetivamente pelo processo civilizatorio. Ele pergunta tambem, no entanto, pelo prec;:o dessa domesticac;:ao e defende que a domesticac;:ao do homem nao seja levada longe demais. Seu prec;:o consiste, com efeito, na cruel repressao da crueldade humana (burocracia tambem pode ser cruel. nao apenas terror sangrento) , assim como na repressao, atrofia, torc;:ao, deslocamento, internalizac;:ao dos impulsos crueis .

Alem disso, deve-se considerar: domesticac;:ao nao e supressao. No subsolo fervilham ainda as forc;:as reprimidas, sempre prontas a irromper outra vez :

"Cultura e apenas uma tenue casquinha de mac;:a sobre urn caos incandescente" , diz Nietzsche (KSA, v. 10, p. 362) .

 

9   Ilusionarias e perigosas sao, de acordo com isso, doutrinas sociais da felicidade que elevam a programa a supressao, ao inves da domesticac;:ao, dos lados crueis do homem. Elas precisamente - dai aspera recusa, por Nietzsche, do socialismo - desembocam em repressao, pois que concedem demasiado pouco livre espac;:o pluralista para esgotamento das heterogeneas vontades de poder, por exemplo, no econ6mico .

No que tal repressao e justificada como progressista e filantropica, pode-se justificar, com ela como base, uma pseudo- aristocracia de vanguarda, modernamente denominada "partido". Assim e que, nos respectivos sistemas, individuos e grupos recebem a chance para esgotamento monopolizado de sua vontade de poder. Recente exemplo modelar: 0 pequeno-burgues romeno Ceausescu, a quem 0 sistema do socialismo real deu oportunidade de se desenvolver em monstro neofeudalista.

 

10 0 que, pois, op6e Nietzsche a programas repressivos de filantropia? Contra isso, ele defende 0 reconhecimento de uma efetividade que surge a partir do impeto de desdobramento de multiplas vontades de poder e nele consiste. A tal reconheci­ mento pertence urn conceito de justic;:a que da espac;:o a pluralidade. E o optimum de reconhecimento no ambito humane e urn conceito de filantropia, segundo 0 qual 0 homem tern que ser amado apesar de ser ruim como e.

Os homens mal sao capazes de u rn amor dessa especie : ele e divino e careceria tambem, segundo Nietzsche, do desvio religioso para poder surgir na historia. Manifestamente tendo em vista Jesus Cristo, escreve ele : "Amor ao homem por causa de Deus - este foi ate agora 0 mais nobre e remoto sentimento alcanr;ado entre homens".

E ele separa essa fil an tropia religiosamen te mediatizada de um "amor pelo homem sem qualquer santificadora intenr;ao oculta", que seria uma "estupidez e animalidade a mais" . 14

Esse texto parece querer, com efeito, ainda superar a exigencia crista de amor pelo homem factico por causa de Deus, por meio de urn amor pelo homem como ele poderia ser (Zaratustra fala de amor ao " distante" ao inves de amor ao pr6ximo), sem desvio religioso. Tambem aqui 0 ceticismo poderia ser oportuno.

 

11  Em certas interpretar;oes mais recentes de Nietzsche, sobretudo alemas ocidentais, "vontade de po deI" se torna quase sinonimo de amor e justir;a. Com esse moderno soft-Nietzsche, exagera-se a contratendencia, em si legitima, ao usa nazi­ facista desse autor. Ha 0 outro Nietzsche, por detras das cativadoras f6rmulas e sentenr;as fortes, tendendo a violencia . Porem, precisamente ele e urn pensador de antagonismos, que tamMm podem certamente ser duros. Ha que se compreender que eles se entre-pertencem, se queremos compreender Nietzsche.

A entre-pertenr;a dos antagonicos se segue da hip6tese fundamental de Nietzs­ che acerca de uma pluralidade de vontades de poder que, em caso propicio, nao provocam nenhum caos, mas procuram criar, cada uma em seu sentido, ordem e hierarquia, e tamMm as criam parcial e temporariamente. Com isso, a vigorosa unificar;ao do multiplo aparece como algo positiv, ambicionavel, tanto se ela ocorre na (possivelmente violenta) imposir;ao de uma perspectiva, como se esta ligada com a sabia, tambem espiritual, visao abrangente (Uebersicht) e reconhecimento da factica multiplicidade de perspectivas . Nesse contexto, e claro em Nietzsche (como em Platao - vide seu dialogo G6rgias) que, tornado por si mesmo, urn impeto de desdobramen­ to/vontade de poder, ainda que forte e vital, fracassa quando, ao mesmo tempo, nao se interpreta a si e ao campo em redor (as outras vontades de desdobramento com as quais ele tern que se haver) , 0 que significa, no aspecto pratico : se nao tateia suas chances de realizar;ao.

Segundo Mueller-Lauter (1971, p . 135 ss.), 0 ideal nietzscheano do " Alem-do-ho­ mem" e determinado por essa oposir;ao - nao contradir;ao - entre vontade de imposir;ao e sabio pairar acima disso (Darueberstehen). Nietzsche admira inteiramente 0 papel que desempenhou na hist6ria a " fera loura" , forte pelo menos de fachada. Porem, em principio, esse tipo esta, para ele, superado, nao e modelo para 0 homem superior do futuro :

"A hist6ria humana seria uma coisa completamente estupida sem 0 espirito, que nela adveio dos impotentes ."16

A fraqueza do tipo forte de fachada, do aristocrata mais antigo, consiste em que nao quer reconhecer a realidade do sofrer. "lsso determina aproximadamente a hierarquia: quae profundamente os homens podem sofrer" , 17 observa Nietzsche em contrapartida.

 

12 Minha tese e, pOis, que a filosofia de Nietzsche nao e contradit6ria em si, antes, porem, diferente do que a principio se pensa. Quando nao se fica preso a seus espetaculares efeitos de fachada, entao ela manifesta uma tendencia unitaria, aspi­ rando a fazer justir;a a imensa complexidade da efetividade perpassada por antago­ nismos . Esse e 0 lado positiv da coisa. 0 negativo e - apesar de toda polernica - a posir;ao frontal nao fanatica, porem cetica, contra toda especie de fanatismo, de absolutizar;ao partidaria de uma direr;ao, de uma moral, de uma ideologia de huma­ nidade, e contra 0 espirito de vinganr;a ligado a esse fanatismo.

Essa camada fundamental suporta a filosofia de Nietzsche desde seu inicio, e encontra expressao sempre mais clara no curso de seu desenvolvimento. Pontos altos de clareza se encontram na obra p6stuma 0 Anticristo, urn dos escritos mais cristaos de todos os tempos . Cristao, com efeito, no sentido em que, contra 0 cristianismo tal como este se desenvolveu, ele faz valer urn cristianismo mais verdadeiro, segundo 0 principio : "no fundo houve apenas urn cristao, e este morreu na cruz". 18 Logo em seguida a sua morte, prevaleceu de novo, como diz Nietzsche, "0 sentimento mais nao- evangelico" ("nao-evangelico" no sentido de : dirigido contra a mensagem de Jesus) , ou seja, 0 desejo de vinganr;a carregado de ressentimento, primeiramente dirigido contra 0 judaismo oficial, que promoveu a execur;ao de Jesus . Esse enfatico antifarisaismo faz de Jesus aquilo precisamente que ele nao quis ser: "urn fariseu e urn te6logo" , 19 isto e, urn homem de partido com convicr;6es dogmaticamente fixadas.

 

 o contexte des sa interpretaao de Cristo, Nietzsche retoma uma questao de seu escrito anterior Human 0, demasiado Human o: "se as convicoes nao sao inirnigosmais perigosos da verdade do que as mentiras", e a agua na questao : "existe, em absoluto, uma oposiao entre mentira e convicao?" . 20 Ele faz entao outras extensoes ao complexo mentira-convicao-partidarismo, que eu gostaria de citar neste contexto. Quem as Ie e toma conhecimento de seu central valor posicional na filosofia de Nietzsche, a esse pode parecer claro que todas as unilateralidades partidartas, sobretudo politicas , cobranas ou condenaoes de Nietzsche sao por ele exortadas a, em primeiro lugar, provar-se a si mesmas : "Eu denomino mentira 0 nao querer ver algo que se ve, nao querer ver algo assim como se 0 ve ... A mentira mais costumeira e aquela com a qual mentimos para n6s mesmos ; 0 mentir para outrem e relativamente exceao . - Ora, esse nao querer ver e ... quase a primeira condiao para todos que sao partido em algum sentido : 0 homem de partido se torna necessariamente mentiroso" . 21

E precisamente tambem antipartidarismo fanatico, quia ligado a afirmaao que a pr6pria posiao estaria para alem de toda ideologia ou interpretaao perspectiva e, segundo ele, opacamente ideo16gico e partidario . E impossivel nao ter nenhuma convicao . Mas alem de seu conteudo, importa do mesmo modo como se a tern. A esse respeito, Gomez Davila (1987, p.59), urn autor hoje vivo, de espirito nietzscheano, diz : "S6 0 estupido nunca se sente como partidario de seu opositor. "

13 0 Utro, 0 Nietzsche de inicio oculto e, pois, aquele para quem 0 tema amor e justia, num sentido que abrange homem e coisas, e central. Ele pr6prio reflete este trao fundamental de sua filosofia s6 bern tarde, no projeto de urn prefacio do ana 1885. La ele apresenta justia como algo que teria faltado em suas reflexoes, que s6 "tardiamente" se teria tornado consciente para ele (depois de seus vinte anos : bastante cedo, portanto) :

 

Que eu me desse conta do que propriamente me faltasse, ou seja, a justir;:a, ocorreu tarde - eu jil passara dos vinte anos -  "0 que e justir;:a? E ela possivel? E se ela nao devesse ser possivel, como se haveria de supartar a vida? " - desse modo eu me questionava sem cessar. Assustava-me profundamente encontrar par toda parte onde escavava em mim mesmo apenas paixoes, apenas perspectivas de urn angulo ( WinkeJ·Perspektiven), apenas a inescrupulosidade daquilo a que jil faltam as pre- condir;:oes da justir;:a : onde estava a circunspecr;:ao? - ou seja, a circunspecr;:ao a partir da compreensao vasta? (KSA, v. ll, p.663 ss.)

 

Com efeito, 0 perspectivismo de Nietzsche abre, em geral, 0 espao de jogo, ou livre espao entre dois p61os : 1. as multiplas perspectivas efetivas e possiveis e 2. a procura de perspectivas abrangentes . Positivamente, estas existem, segundo ele, e sao ate mesmo valoradas como hierarquicamente superiores, 22 por outro lado, falta a uma (platonica?) metaperspectiva, a posição de absoluta, dogmatica verdade. Contra toda unificação nesse sentido, mas tambem contra toda precipitada coordenação por meio de sobreperspectivas relativas, 0 perspectivismo angular ( Winke1-Perspektivis­ mus) de Nietzsche, assim como sua sensivel apreensao da realidade rica ern nuanc;:as23 fazem valer a antagonica multiplicidade.

Num fragmento postumo do ana 1880, le-se :

 

Minha tarefa : sublimar de tal modo todos as impulsos que a percepr;:ao daquilo que e desconhecido (das Fremde) va muito lange e esteja, todavia, associada a prazer: a impulso de honestidade para comigo, de justir;:a para com as coisas, tao forte que suas a1egrias preponderem sobre a valor das outras especies de prazer e, se necessario, estas sejam total ou parcialmente sacrificadas a ele. Na verdade, nao existe contemplar;:ao desinteressada, isso seria 0 tedio completo. Basta, porem, a delicadissima emor;:ao. (KSA, v.g, p.21 1)

 

Esse Nietzsche da delicadissima emoção, da colocação entre parenteses da propria perspectiva de urn angulo, da justic;:a, assim tomada possivel, para corn a multiplicidade da realidade, nao se deve negligencicHo ern proveito do Nietzsche que ern primeiro lugar salta aos olhos, 0 das fortes palavras e programas, entre eles programas de violencia politica e aparentemente apenas caotica desrepressao. Nesse sentido de justiçã, M. que se fazer justic;:a tambem para corn a complexidade de Nietzsche. A interpretac;:ao de Nietzsche so chegou a isso por meio de tentativa e erro, ou seja, tambem por meio de experiencias ruins corn tentativas de emprego politico de urn Nietzsche unilateralmente concebido. 24

Tambem uma tal interpretac;:ao depurada nao pode tomar Nietzsche inequivoco. Quando se Ie corn rigor suficiente, nele se descobrira sempre uma dupla diretiva: uma vez, a indicação da pluralidade de perspectivas , como perigo correspondente de nela se perder ("Infinitude ! E bela sucumbir nesse mar" 25) ; ern seguida, a exortac;:ao a vigorosa, hierarquica unificac;:ao do multiplo, corn 0 correspondente perigo da violenta unilateralidade e injustic;:a. Nietzsche denomina justic;:a a dificil uniao de ambos. 0 exito dela e e permanece inseguro, sobretudo na epoca do Niilismo, isto e, da dissolw;ao das antigas representa<;:oes de caminhos viaveis da justiçã.

 

 

Referencias bibliograticas

 

1    APEL, O. De volta a normalidade? Ou: poderiamos ter aprendido algo especial com a catastrofe nacional? In : . Destruir;80 da conscifmcia moral: chance ou peri- clitaQao? Frankfurt a. M. : Forum fuer Philosophie Bad Hornburg, 1988.

2    BLOCH, E. Heranr;a deste tempo. Ed. amp!. Frankfurt a. M., 1962. (0 impulso Nietzche).

3                                      . 0 principio esperan r;a . Frankfurt a. M. : s.n., 1959. 4 GOMEZ DAVILA, N. Solidoes. Viena: s.n. , 1987.

5   JONAS, H. 0 prin cipio responsabilidade. Ensaio de uma etica para a civilizaQao tecnol6gica. Frankfurt a. M. : s.n., 1979 .

6    KESSLER, H. G. Perfis e tempos. Frankfurt a. M.: s.n. , 1988.

7    MUELLER-LAUTER, W. Nietzsche. Sua filosofia dos contrarios e os contrarios de sua filosofia . Berlim : s.n., 1971.

8    NIETZSCHE, F. Obras completas. Ed. critica de estudos (Kritische Studienausgabe). Munique: G. Golli, M. Montinari, 1980 .

9    SIEFERLE, H. P. Inimigos do progresso? OposiQao contra tecnica e industria do nacio­ nal-socialismo ate a atualidade. Munique: s.n. , 1984.

10   TONGEREN, P. van. A moral da critica nietzcheana da moral. Estudos sobre Para alem de Bem e Mal . Bonn: s.n., 1989 .

11  VIETTA, S. A critica de Heidegger ao nacional-socialismo e a tecnica . Tubinga: s.n., 1989.



[1] Instituto de Filosofia e Ciencias I - Universidade Livre de Berlim (RFA) - Berlim - Alemanha.

[2] Departamento de Filosofia - IFCH - Unicamp - 13081 -970 - Campinas - SP - Brasil.