RESENHAIREVIEW
Lauro F. B. da SILVEIRA[1]
Rosana M. FIGUEIRED0[2]
Carlos H. de C. GONC;:ALVES[3]
Juliano Cesar da SILVA[4]
ECO, U., SEBEOK, T. A. (Orgs.) 0 signo de tres. Sao Paulo: Perspectiva, 1983.
A obra 0 signa de tres e uma compilac;ao de varios artigos elaborados por autores de diversas areas do saber, confrontando 0 metoda de investigac;ao do personagem de Arthur Conan Doyle, Sherlock Holmes, e o argumento abdutivo de C. S. Peirce. 0 resultado desse embate nao poderia ser mais interessante : a analise cognitiva estudada a luz do conhecimento interdisciplinar poe a nu os processos metodo16gicos e cientificos utilizados na ficc;ao .
Para nao trair a originalidade da obra, sera mantido seu carater anto16gico, inclusive com suas possiveis repetic;oes. E, a cada capitulo se dedicara urn pequeno resume comentado, reservando as criticas ao momenta da conclusao.
As triplices correlac;oes parecern povoar 0 cosmo e 0 univers� da cultura. Elas foram escolhidas, por fil6sofos e cientistas, para explicarem fen6menos de fundamental importancia. E sua grande vantagem parece ser a sua capacidade autogerativa e expansiva; ja que a presen9a de urn terceiro correlato interpreta a rela98.0 dos outros dois e abre a potencialidade de continuidade do ciclo interpretativo. Este e 0 tema explorado por Thomas Sebeok e que motiva 0 titulo do pr6prio livro .
Peirce, com a evolU98.0 de seu quadro categorial, ao propor as n090es de primeiridade, secundidade e terceiridade, organiza a totalidade do universo fenome nico, aprofunda as rela90es triacticas e permite mostrar sua aplicabilidade aos mais diversos dominios do real. Outros autores, contudo, igualmente exploram tais rela- 90es : Lotz, ao estudar em Linguistica 0 sistema vocalico ; Gamow, ao sugerir a existencia do c6digo trigemio na informa98.0 hereditaria; e Murray Gell-Mann ao prop�r para os quarks 0 modele 6ctuplo de constitui98.0 de familias de octetos.
A triade, no entanto, pode ja ser encontrada nas propostas de Kant e Hegel. 0 primeiro, ao agrupar sob quatro t6picos as 12 categorias do entendimento, conside rando tres casos formalmente relacionados entre si em cada urn da queles t6picos, e o segundo com os famosos tres momentos constitutivos do processo dialetico.
A escolha da triparti98.0 encontra-se presente, tambem, na base da teoria pSicanalitica freudiana, em n090es tais como as de Ego, Id e Superego.
o artigo se elabora a partir de urn jogo de cena. Peirce e Holmes parecern se opor urn ao outro : 0 primeiro, urn cientista fundador de uma importante teoria semi6- tica, defende a l6gica do levantamento de hip6teses para sustentar qualquer empreen dimento racional; 0 outro, urn homem pratico, personagem de fiC98.0 detetivesca, rejeita iniciar qualquer investiga98.0 sustentando previamente qualquer hip6tese.
Porem, acontece que Peirce, ao menos num caso narrado por ele mesmo, desvenda urn roubo devido ao seu poder de observa98.0 e ousadia em conjecturar. Enquanto Sherlock Holmes faz , ao longo dos romances, preciosas digressoes tecnicas de semi6tica.
Em comum a ambos se encontra 0 maximo cuidado na observa98.0 dos detalhes. E se Sherlock n8.o admite submeter-se a hip6teses previas, isso decorre da atitude preconceituosa e convencional que tal submiss8.o provoca em quem a elas se submete: policiais, investigadores profissionais e cidad8.os comuns, estes 0.ltimos representados por Dr. Watson.
A abdu98.0 proposta e explorada por Peirce, a qual, em sua teoria, tamMm denomina retrodU98.0, seria aceita e praticada por Sherlock Holmes e a convergencia entre ambos seria muito acentuada. Percebe-se esta convergencia, quando 0 investigador, no caso, Sherlock Holmes, raciocina a partir de um evento e preve suas conseqtiencias. Mas tambem e, principalmente, quando este mesmo investigador, a partir de urn fato dado consegue remontar as suas fontes. Este modo de raciocinar e denominado pela personagem de "raciocinando para tnls".
Em comum, tambem, pode-se destacar que ambos tinham conhecimento da pratica medica. Esta exige, e freqtientemente exercita, as virtudes fundamentais do investigador, sendo 0 raciocinio retrodutivo imprescindivel para 0 levantamento de hipoteses diagnosticas.
Na introdw;ao, 0 texto levanta a tese : "a imagem de Sherlock Holmes como epitome da explica9ao da racionalidade e do metoda cientifico ao comportamento humane e, certamente, urn fator fundamental do talento do detetive para conquistar a imagina9ao do mundo" (Eco & Sebeok, 1983, p.59) . A rara for9a dessa imagem produziu urn tao alto grau de aceita9ao por parte do publico leitor que muitos assumiram-na como uma realidade palpavel ; alem de, ao mesmo tempo, alimentarem literariamente seu proprio desenvolvimento.
Essa aceita9ao decorre da capacidade da personagem de colo car a argUcia a servi90 das solu90es de problemas concretos e, aparentemente pouco importantes : a solU9aO de crimes, a identifica9ao de pessoas comuns segundo seus habitos de vida, seus afazeres , interesses e problemas . A intelig.encia, atraves de urn metoda atencioso, sustenta 0 acesso possivel as grandes descobertas. Essa inferencia teve repercussao inclusive na propria area da criminalistica : a realidade colhendo na fic9aO diretrizes importantes de atua9ao .
o famoso metodo aqui promovido partiria do senso comum, trabalhando-o pela acuidade da observa9ao e sintese da imagina9ao. Assumiria a possibilidade de se cons truir 0 todo a partir da observa9ao dos fragmentos. Consistiria freqtientemente num pro cesso publicamente comunicavel, de articular conhecimento, observa9ao e dedu9ao.Com efeito, considerando 0 universo uma trama unica e deterministica, para 0 cabal esclarecimento de urn fato e necessario ter disponivel urn conhecimento das mais diversas areas do real. Deste modo, 0 que parece estranho e inverossimil, a primeira vista, encontra na trama do real sua explica9ao deterministica.
o fato, de seu lado, exige aten9ao total para ser observado e 0 maximo controle por parte do observador para nao fazer intervir seus temores, desejos e preconceitos. Pela analise dos fatos , e possivel remontar as suas causas, embora tal processo ofere9a grandes dificuldades. Mais facil seria deduzir, a partir das causas, seus efeitos ; mas na decifra9ao de urn crime, 0 processo inverso e fundamental.
A abdu9ao ou retrodu9ao, como logica de levantamento de hipoteses ; a dedu9ao, como processo inferencial necessario das conseqtiencias experimentais das hipoteses e a induc;ao, como estrategia l6gica de verificac;ao dessas conseqtiencias, embora sem a pretensao de superar 0 falivel, produzem elas pr6prias 0 fundamento que confere objetividade as suas conclusoes. Se se procurar aplicar a abduc;ao defendida por Holmes as exigencias l6gicas dos tres tipos de argumento peirceanos, percebe-se que varias falhas ocorreriam no raciocinio do detetive, a maioria por falta de rigor.
Por sua vez, 0 sucesso das investigac;oes do detetive, a luz da 16gica de investigac;:ao cientifica, dependeria em grande parte da trama construida da narrativa. Nao fosse sua elaborac;:ao literaria, muitos casos encaminhados segundo a 16gica de Sherlock nao teriam encontrado a soluc;:ao dada.
Quanto a compreensao psicol6gica das motivac;:oes humanas, que fazem de Sherlock urn eximio perscrutador das intenc;oes, 0 artigo mostra que 0 detetive guarda urn ceticismo de fundo quanto as relac;:oes sociais. E recorre as minucias nas personagens para inferir suas motivac;:oes, nao deixando de considerar o comporta mento dos animais domesticos, ja que informam sobre seus donos. Alem disso, Holmes e extremamente sensivel a personalidade feminina pois, diante do jogo de seduc;:ao que as mulheres sao capazes de exercer, e necessario redobrar 0 autocontrole para nao se deixar iludir.
Embora procurasse a justic;:a , Sherlock permitia-se violar as normas sociais sobre os direitos a privacidade. Ele compartilhava os preconceitos da sociedade vitoriana, fazendo restric;:oes as minorias . Contudo, 0 detetive era urn analista de caracteres e, deste modo, avaliava as motivac;oes dos crimes que ocorriam: nos crimes sem motivac;:ao, via os mais dificeis de serem esclarecidos ; naqueles praticados por urn medico, os melhores a serem dissimulados. Sherlock, com seus estratagemas, recorre a livres associac;:oes, antecipando 0 que mais tarde se considerara 0 fazer aflorar 0 inconsciente.
Em seu 0 autor examina 0 que se chama de "modelo conjectural para a onstruc;:ao do segundo ele, esse modelo se baseia na utilizac;:ao de pistas aparentemeI1te irrelevantes tornando-as centrais para tal construc;:ao. Alem disso, data 0 aparecimento do modelo conjectural em fins do seculo XIX, mas cujos primeiros sinais de suas origens podem ser detectados nos cac;:adores pre-hist6ricos. Como exemplo desse modelo conjectural, temos 0 de Giovanni Morelli: 0 "metodo Morelli" era utilizado para avaliar a autenticidade de obras atraves da verifica c;:ao de detalhes de pouco interesse estetico. A critica 0 achava mecanico ou meramente positivista. Deve-se ressaltar que tal metoda e considerado pr6ximo ao da filologia.
Os livros de Morelli pare cern ser verdadeiros arquivos policiais, aproximando-o do metoda adotado por Holmes - interpretac;:ao de detalhes, inclusive anat6micos. E provavel que Conan Doyle tenha conhecido os trabalhos de Morelli, este tambem medico. Freud considerava este metoda pr6ximo da PSicanalise; e tambem manifes tava interesse em Sherlock Holmes - reconhecendo na Psicanalise, em Sherlock e em Morelli , minusculos detalhes que fornecem a chave para uma realidade mais profunda, inacessivel por outros metodos.
Os estudos voltados para 0 individuo sao sempre antropocentricos e etnocentri cos, mas a influencia da ciencia de Galileu levava 0 seculo XVI a procurar mais caracterizar tipos do que descobrir individualidades, desenvolvendo com isto a Hist6ria Natural. Come<;:am, inclusive, as tentativas de aplica<;:ao do "metodo galilea no" , fundamentado na Matematica, as atividades sociais, principalmente quando suscitavam questoes demograiicas (uso da estatistica). Predomina, contudo, a abor dagem qualitativa entre as ciencias humanas, sobretudo na Medicina. As classifica<;:oes nao eram freqiientemente aplicadas e todo conhecimento era indireto e conjec tural, nao se podendo sequer provar a eficacia do procedimento medico. A presen<;:a da pratica, da tradi<;:ao e da observa<;:ao dos casos era fundamental.
A Enciclop8dia marca a apropria<;:ao burguesa desse tipo de conhecimento - generaliza-se a cole<;:ao sistematizada de pequenos achados, permitindo grandes descobertas (ver Eco & Sebeok, 1983, p.35-41). E a ciencia reconhece a contribui<;:ao que pode receber desse metodo.
o metoda Morelli, baseado no carater identificador dos tra<;:os mais infimos dos detalhes anat6micos na pintura, coincide com 0 aumento da extensao do poder do Estado sobre os individuos, quando entao se recorre ao cadastramento de seus minimos tra<;:os individualizadores. Urn exemplo significativo disso sao as impressoes digitais e, mais recentemente, 0 mapeamento do c6digo genetico como recurso de identifica<;:ao dos individuos. No cerne do paradigma conjectural ou semi6tico esta a concep<;:ao de que a realidade e opaca, mas M certos pontos - pistas, sintomas - que nos permitem decifra-Ia. Assim, chega-se a Psicanruise e ao pensamento aforismatico (nome tornado da obra de Hip6crates), em que as opinioes sobre a sociedade sao tomadas com base em sintomas, pressupondo que essa sociedade esteja enferma.
o paradigma oferece a vantagem de urn "rigor elastico" , de dificil formula<;:ao e aprendizado, exigindo a chamada intui<;:ao - saltar do conhecido ao desconhecido. Ela tern origem nos sentidos, com base nos quais os extrapola.
e Giampaolo Proni
Comparar 0 procedimento de Sherlock Holmes, na descoberta do assassino em Um Estudo em Vermeiho, com a 16gica de investiga<;:ao de Charles Sanders Peirce, e a tarefa a qual se dedicam M. Bonfantini e G. Proni.
Os autores procuram a nitida correspondencia mantida entre Sherlock e Peirce: o primeiro parte de urn processo indutivo inicial, caracterizado pelo conjunto das primeiras observac;oes ; 0 segundo segue 0 processo abdutivo de levantarnento de hip6teses, capaz de identificar possiveis causas de eventos resultantes. Em seguida, deduzem-se as conseqiiencias necessariamente inerentes as hip6teses formuladas e passa-se a experi mentar, na situac;ao concreta, tais conseqiencias. Esta semelhanc;a nao pode, porem, fazer que se desprezem as diferenc;as do metoda adotado por Peirce e Holmes.
Sherlock defende com veemencia a necessidade de se "raciocinar retrospecti vamente" (Eco & Sebeok, 1983, p.138), 0 que corresponderia a adotar a abduC;ao, a qual ele denomina analise. 0 fato, porem, de a abduc;ao em Peirce procurar leis gerais ja se diferencia, a primeira vista, da procura de Holmes de uma causa especifica, individualizada, para urn evento geralmente especifico.
As hip6teses de Sherlock Holmes encontram apoio nas ciencias experimentais, ria classificac;ao de produtos e mercadorias, na observac;ao dos habitos da vida cotidiana e no senso comum. Medem-se todas pela simplicidade e eficiencia, sendo da ordem da resoluc;ao de quebra-cabec;as e nao da hermeneutica, como interpretac;ao de fatos "opacos". A personagem evita, pois, embarcar em suposic;oes, mantendo-se no nivel das evidencias.
Contrastadamente, a preocupac;ao de Peirce e com a hip6tese arriscada e criativa, nao podendo se livrar do exercicio da suposic;ao. Ao nao aceitar a propalada simplicidade das impressoes dos sentidos, Peirce considera abdutivas todas as etapas do processo de conhecimento. 0 grau de complexidade dos fen6menos levaria a se estabelecer diversos tipos de abduc;ao : daqueles simples, que somente identificam urn objeto sem uma definic;ao, aqueles que exigem a elaborac;ao de uma ideia nova para explicar urn fato desconhecido e nao aceitadamente representado . Neste caso, fica evidente a aceitac;ao necessaria de urn risco para se lanc;ar a hip6tese.
Pode-se, assim, concluir e enumerar tres tipos de abduc;ao : quando a passagem do resultado ao caso se faz quase automaticamente; quando a lei que permite a passagem pertence a uma enciclopedia disponivel ; e quando essa lei necessita ser inventada. A base que sustenta a possibilidade da abduc;ao e, para Peirce, 0 instinto ou "luz natural" . Decorrem eles da inserc;ao da inteligencia numa natureza em constante evoluc;ao, a qual pertencem tambem os objetos do conhecimento. Garan te-se, deste modo, uma base de realidade as conjecturas que fazemos . Os autores deste capitulo, contudo, prefeririam trocar a luz natural por luz cultural, a fim de evitar a adoc;ao da tese da transmissao de caracteres adquiridos.
Se a hist6ria de detetive for uma fabula, que consiste na produc;ao de sintomas, e evidente que 0 leitor, convidado a decifra-Ios, sentir-se-a obrigado a tomar constantes decisoes. Isto se faz em varios niveis com a variac;:ao do grau de evidencia dos sintomas.5 Deve-se lembrar que 0 autor conceitua signo, sintoma e indice de maneira diversa da aceita. Por indice ou indicios considera as diversas marcas deixadas no ambiente. Os sintomas sao baseados na naturalidade, motivac;:ao e acrescern aos indices uma func;:ao designativa de uma causa. E aos signos reserva-se urn sentido convencional. A considerac;:ao da presenc;:a e da ausencia sintomatica de indicios e que diferencia Sherlock Holmes do Dr. Watson e dos detetives de policia.
Esse valor sintomatico decorre da hip6tese levantada para elucidar urn caso. E ai que se requer 0 cuidado para se interpretar indicios como sintomas . A pr6pria distinc;:ao entre signo intencionalmente produzido e sintoma natural precisa ser tomada com cuidado, dada a dissimulac;:ao possivel de indicios .
No caso de urn crime cometido, invariavelmente, Dr. Watson, por descuido na analise dos indicios, se engana diante dos estratagemas usados pelo assassino. Suas confusoes servem, sobretudo, de contraponto para mostrar as diferenc;:as entre os pontos de vista interpretativos dele e de Sherlock. Nao se deixar confundir pela aparente coerencia dos indicios e a atitude de Sherlock; ou seja, e a de nao se deixar levar pela conclusao de que 0 numero de indicios para explicitar urn caso e completo. Mas a tal dissimulac;:ao atinge 0 pr6prio Holmes diante de alguns inimigos.
A racionalidade de Sherlock encontraria seu eixo nao na deduc;:ao, como foi por ele declarado, mas num processo imaginativo controlado que aproxima abduc;:ao de induc;:ao . Tal processo procura encontrar uma explicac;:ao natural, verificavel diante do contexto. Isto supoe, com base em urn ponto de apoio solido, uma escolha feliz de dados. Uma hipotese inicial, submetida a prova dos fatos , poderia dar origem a outras hip6teses e com isto aproximar-se da verdade dos fatos.
Estes ultimos nao supoem uma unica interpretac;:ao possivel. Eles apontam para direc;:oes diferentes conforme 0 angulo do qual sao observados. 0 fato em hist6ria de detetive transforma sintoma em signo, fechando-se alternativas (dai a ilusao de fato seguro) . Mas nem todo fato tern a mesma capacidade de produzir diferenc;:as em sua extensividade : alguns permitem inferencias locais e somente alguns, inferencias globais.
5 A tradicional distinc;:ao entre signo e sintoma. sendo 0 primeiro baseado na artificialidade, arbitrariedade e convencionalidade, e 0 segundo na naturalidade, nao-arbitrariedade e motivac;:ao, nao inteiramente satisfat6ria no que concerne aos textos aqui considerados, peio menos se prelendemos uma distinc;:ao rigorosa. A dificuldade inerente a tal abordagem surge de modo mais flagrante quando se trata de casos de simulac;:ao, ou seja, prodUl;:ao voluntaria de sintomas. Pensemos, por exempio, em uma pegada na areia. Mesmo que parec;:a urn caso evidente de signo natural, M a possibilidade de que, em uma circunstancia determinada, tenha sido intencionalmente produzida de modo a desviar 0 rumo de uma investigac;:ao. Depende de uma hip6tese interpretativa, da decisao (motivada) de 0 detetive considera-la ou signo ou urn sintoma. Por exemplo, Vall, 0 assassino, deixou uma pegada no peitoral da janela para fazer crer a todo mundo que ele teria escapado desse modo. Naturalmente, a simulac;:ao, como produc;:ao de uma realidade fraudulenta, ainda que nao totalmente infundada, baseia-se na coerencia e na probabilidade das pistas que fabrica. No caso da situac;:ao acima, suas incongruencias acabaram por voltar-se contra a pessoa que havia originalmente produzido a falsa pista (Eco & Sebeok, 1983, p . 152)
A grada<;:ao das inferencias distingue 0 procedimento de Sherlock do de Dr. Watson. 0 ultimo salta nipido de zonas de verossimilhan<;:a a zonas de misterio, do obvio a casos sem solu<;:ao . Para Sherlock, contudo, e uma questao de abdu<;:ao. Alem do poder de dedu<;:ao ou abdu<;:ao e de observa<;:ao, Sherlock e capaz de recorrer a urn vasto estoque de conhecimento dirigido para sua atividade de detetive.
A desordem do crime, Sherlock opoe a desordem do conhecimento. Mas 0 conhecimento de Sherlock tern a ordem (caleidoscopica) de uma enciclopedia. E tal conhecimento nao basta, pois e necessaria uma atividade de afastamento diante dos sentimentos e emo<;:oes . Assim, e possivel conhecer 0 modo de representar os outros e nao se deixar influenciar pela aparencia.
Os capitulos 7 e 8 se complementam e articulam-se mutuamente, procurando conferir ao procedimento de Sherlock Holmes urn tratamento proveniente da Logica Modema. Alem de substituir as proposi<;:oes gerais por questoes , os autores do primeiro artigo supoem a presen<;:a de urn fundo tacito de informa<;:oes verdadeiras, necessarias e universalmente acessiveis ao qual remeteria todo questionamento.
Enquanto a filosofia considerar que a logica so lida com tautologias, em nada contribuira para que se obtenha urn aumento de informa<;:ao sobre a realidade. SherlockHolmes, atraves do relate do Dr. Watson, julga que seu metoda de dedu<;:ao e analise traz informa<;:oes , contribuindo para 0 aprimoramento da pratica de investiga<;:ao.
Atraves do questionamento , produzem-se premissas adicionais com base em uma massa desclassificada de informa<;:ao de fundo, somando-as as informa<;:oes co lhidas atraves de conclusoes deduzidas de premissas do senso comum : explicita-se a informa<;:ao tacita, derivada da dedu<;:ao sherlockiana. Deve-se, assim, criar urn contexte conceitual adequado para discutir e avaliar este procedimento.
Traduzindo toda informa<;:ao anterior em respostas as perguntas, conclui-se que o processo de avalia<;:ao do "conhecimento tacito" e controlado pelas perguntas que servem para extrair essa informa<;:ao para a atualidade.
A melhor pergunta pode ser aquela de maior poder informativQ. Cabe, agora, estudar as perguntas, as respostas e suas inter-rela<;:oes . As respostas as perguntas iraQ se constituir em premissas para 0 conjunto inter-relacionado de conclusoes.
As perguntas frequentemente decorrem de combina<;:oes das respostas as ques toes , com conclusoes ptoduzidas de premissas logica ou temporalmente anteriores .
Dada a impossibilidade de se dispor do conjunto completo de informac;:oes para que se constituam premissas e, muito especialmente, em casos complexos da vida real em que se envolvem detetives, tem-se que encontrar meios de se obter progres sivamente as informac;:oes necessarias para a obtenc;:ao de tais premissas. Freqiiente mente, parte das informac;:oes de fundo que permitem as premissas e as conclusoes intermediarias e inconsciente. Ha, pois, lugar para urn processo inconsciente de elaborac;:ao, sendo que a percepc;:ao implica a coleta de informac;:oes e nao acesso direto a impressoes sensiveis nao estruturadas .
Conclusoes tambem podem levar a busca de dados, permitindo que 0 raciocinio percorra 0 caminho inverso pelo qual se vai das premiss as as conclusoes.
Para que se obtenha informac;:oes, baseando-se em questoes e deduc;:oes, pode-se pensar 0 processo como urn jogo proposto a natureza e urn armazenamento da informac;:ao tacita do investigador, contando-se pontos segundo os tablea ux de Beth (1955). Quanto mais informativas forem as questoes, menos pontos sao perdidos ate que se possa chegar a conclusao esperada.
Segundo Jaakko Hintikka, " ... a habilidade de urn brilhante e aplicado racioci nador e uma opc;:ao bastante estrategica. Consiste em colocar questoes estrategica mente corretas, isto e, questoes cujas respostas resultam ser mais informativas e abrem canais futuros de outros questionamentos bem-sucedidos" (Eco & Sebeok, 1983, p. 189) . A teoria matematica dos jogos ou, como seria melhor, a teoria da estrategia, e atualmente 0 melhor instrumental disponivel, sendo capaz de estabelecer as sequencias de perguntas-respostas : jogam 0 investigador e a natureza e adotam-se, para registro contabil, as tableaux de Beth . U rn born exemplo da aplicac;:ao desse jogo pode ser dado ao se analisar 0 raciocinio de Sherlock Holmes em Silver Blaze (exemplo - idem, p. 194) .
A tradutibilidade mutua de questao-resposta e deduc;:ao mostra que se esta trabalhando num sentido compativel com a declarac;:ao de Sherlock Holmes .
e Edgar Alan Poe - Nancy Harrowitz
A abduc;:ao e uma teoria desenvolvida para explicar urn fato preexistente. Voce observa urn fato, e a fim de explicita-Io e compreende-Io, busca em sua mente urn vislumbre de teoria, uma explicac;:ao . Resta testar a nova hip6tese.
A abduc;:ao e literalmente a base necessaria que antecede a codificayao de urn signo : ela cria uma nova ideia. Em Peirce, abduc;:ao remete a algo tornado como regra: a lei ou regra da Natureza ou outra verdade geral (incluindo tambem a experiencia publica ou particular) .
Poe constrói o hiper-real - o contexto inusitado e quase maravilhoso, em que ocorrem os fatos narrados - por via da ratiocination. Este é um estado da mente que permite as abduções, através de um trabalho raciocinante. A presença da razão se faz manifestar, superando as emoções alteradas. Supõem-se a presença de conhecimentos prévios e um agudo poder de observação, daí ser possível formular abdutivamente a regra que subsume o caso.
Escapando ao domínio da regra, não basta o cálculo para se inferir conclusões. É necessário, na linguagem de Poe, recorrer à análise - essa decorre da observação de inúmeros indícios, e permite que surja um processo abdutivo. Para a ocorrência deste último interferem, corretamente, várias causas. A resolução de um crime exige que seja sempre mantida uma visão do todo e que se prove que as impossibilidades aparentes são possíveis.
A ratiocination envia ao jogo de ruminação ("musement") peirceano, o qual exigeempo e paciência para que as idéias se aproximem uma das outras. A questão é, para Peirce, quais as teorias e conceitos que devemos acolher (Robin, 1967, p.61).
10 Chifres, cascos, canelas: algumas hipóteses acerca de três tipos de abdução - Umberto Eco
Neste ar tigo, o autor utiliza três metáforas para ilustrar o prinCÍpio abdutivo. Chifres para Aristóteles, cascos para Zadig de Voltaire e canelas para Sherlock Holrnes.
Uma boa definição, segundo Aristóteles, apenas diz "o que uma coisa é e não que uma coisa é. Contudo, dizer o que uma coisa é também significa dizer porque é assim, ou seja, conhecer a causa de ser assim" (Eco & Sebeok, 1983, p.220).
Em sua lógica, preferivelmente parte-se de uma proposição universalmente verdadeira para toda uma classe de substâncias para se concluir que o que é predicável de toda classe e necessariamente predicável de qualquer uma das classses incluídas, ou mesmo de um indivíduo que a ela pertença. Toda explicação que conseguir inserir-se nesse processo inferencial dirá com plena necessidade para uma espécie de seres - espéCie, podendo ser, logicamente, considerada uma classe - aquilo que puder ser deduzido de sua definição.
No mundo empíriCO, para Aristóteles, para explicar fatos surpreendentes torna se necessário encontrar uma causa que os explique e que sirva de termo médio para uma demonstração (silogismo). Aparece, deste modo, a causa final como explicativa de certas propriedades dos animais. A escolha do termo médio e da definição significa a escolha do que deve ser explicado.
Nos estudos realizados por Aristóteles sobre os animais, por exemplo, depOis de descrever e tentar bem definir os portadores de chifres, propõe-se explicar a formação de chifres como meio de proteger o ruminante, já que estes não apresentam outros meios de defesa, tais como dentes incisivos superiores. A inadequaQao de tais dentes a urn animal herbivoro faria que se deslocasse para a formaQao de chifres 0 material que para outros animais seria dedicado a arcada dentaria. Na causa final - como a preservaQao da especie - presidiria a forma assumida por aquela mesma especie. "Chifres sao, portanto, a causa final da falta de incisivos superiores. Desse modo, podemos dizer que os chifres sao responsaveis pela falta de dentes" (Idem, p.221).
Esse procedimento logico coincide com 0 que Peirce denomina hipotese ou abduQao . Aristoteles admitia, conforme a escolha da propriedade do definiens, definiQaes diferentes do definiendum . Se a apagoge, para Aristoteles, nao procedia de uma funQao definitoria, para Peirce, ela coincide com a abduQao, exercendo urn papel em todo 0 conhecimento, mesmo na percepQao (Peirce, 1974, v.5, §181) e na memoria (Idem, v.2, §625) . Na verdade, a apagoge equivale ao modelo epistemologico aristotelico para aqueles casos nos quais nao era possivel dar-se uma definiQao completa por genero e diferenQa especifica. Nesse modelo, quando nao se obteve a essencia completa do definiendum , recorre-se a observaQao do mundo empirico, e nela escolhem-se os aspectos (propriedades) que mais se adequem aos propositos do proprio conhecimento . 0 termo medio ja nao e mais a essencia, mais urn conjunto de predicados.
Continua existindo a questao crucial da escolha do termo medio, que varia conforme as circunstancias das observaQoes : 0 grau de imposiQao deste termo segue frequentemente criterios de regularidade e normalidade. A abduQao pode conduzir de fatos surpreendentes a uma lei geral, ou de fatos particulares a urn outro fato, desde que tal conduQao seja explicativa. No primeiro caso, a explicaQao diria respeito a natureza do universo, e no segundo, a dos textos. Esta distinQao talvez se reduza a urn tinico tipo de abduQao para 0 qual ou 0 texto e lido como universo, ou 0 univers� como texto.
De fato , outras divisaes poderiam ser preferiveis para classificar as abduQaes : as hipercodificadas , as hipocodificadas, as criativas e as metaabdutivas. Nas abdutivas hipercodificadas, 0 codigo permitiria representar uma classe de fenomenos, sendo de tal maneira univoco que a interpretaQao se faria quase automaticamente. Nas demais, o trabalho interpretativo se faria com maior risco e participaQao do investigador. Na abduQao hipocodificada haveria a necessidade de uma escolha entre regras equipro vaveis de interpretaQao. Na abduQao criativa, a lei precisaria ser inventada ex novo e nas metaabdutivas , dever-se-ia decidir se 0 proprio universo possivel delineado por abduQaes coincidiria com 0 universo de nossa experiencia.
A personagem Zadig, de Voltaire, relaciona-se com os tres tipos de abduQao : as hipercodificadas, as hipocodificadas e as metaabdutivas, somente nao se relacionando com as criativas. Enquanto a estas se relaciona Sherlock Holmes, Zadig colhe os dados do universo e 0 constroi como urn texto ; ele fala do universo empirico como se fosse urn universo imaginario, como se estivesse contando uma historia, quando entao entra em choque com as expectativas das pessoas que querem informaQaes sobre 0 mundo eal. Ele se nega a fornece-Ias por nao admitir que as inferencias por ele produzidas sejam de fato reais. Sherlock Holmes, por outro lado, parte dos fatos encontrados no meio e os arranja como se estivesse montando urn texto de fiq:ao ; remete as evidencias encontradas nesse texto ao mundo empirico, com plena convicc;ao de que elas sejam adequadamente elucidativas . Para 0 total sucesso do empreendimento da personagem, colabora 0 escritor que elimina as alternativas indesejaveis.
Grande parte das abduc;oes de Sherlock pode ser classificada como pertencente as criativas . Essas recriam meios para explicar os fatos , mas se deslocam para as metaabdutivas, pois ele cre firmemente que a ordem das ideias e de suas conexoes corresponde a ordem da realidade a ponto de denominar deduc;ao suas hip6teses. Sherlock Holmes, diferentemente do falibilismo de Peirce e das duvidas de Zadig, nunca erra.
A abduc;ao para Peirce se encerra no universo sempre falivel da experiencia. Pretende explica-Io, mas para isso corre 0 risco de sempre vir a falhar. A infalibilidade jamais sera urn predicado da ciencia.
Ao longo desse estudo, notou-se que a relac;ao entre a "abduc;ao peirceana" e o que se passou a chamar "metodo sherlockeano" e analisada atraves da visao particular que cada autor a ela destina em seus respectivos textos. Nestas visoes, os autores delimitam 0 campo do que e abduc;ao, pesquisam a 16gica do pensamento do detetive e, por fim, procuram a possibilidade de existir uma semelhanc;a entre aqueles dois modos de proceder.
A abduc;ao, dentro das tres formas de raciocinio propostas por Peirce, e a unica que inaugura uma ideia nova. Ela permite formular urn progn6stico geral, mesmo sem garantias de resultados bem-sucedidos. Holmes, ao dizer que nunca faz suposic;ao ou que nao mantern urn constante uso dos processos perceptivos e hipoteticos, se engana, pois e justamente 0 contrario que ele mais faz . E atraves de suposic;oes que a personagem consegue retroceder dos resultados as fontes dos fatos . Com alto grau intuitivo, constitutivo da abduc;ao, Sherlock congrega indicios ate ser capaz de formular suas hip6teses .
E importante ressaltar que, nesse estudo, Jaakko Hintikka foi talvez 0 unico autor que partiu de urn ponto de vista nao da abduc;ao mas de urn processo indutivo permitido pela 16gica formal. Trata-se de uma altemativa interessante que, contudo, nao parece retirar nada do valor real da abduc;ao, apresentado ao longo da obra 0Signa de TIeS. Se 0 metoda do questionamento evita a suposic;ao de uma lei geral para explicar os eventos, requer, no entanto, urn fundo infalivel de verdade que compreenda a toda e qualquer questao !
1 BETH, E. W. Semantic entailment and formal derivability. Mededilingen van de Koninklijke Nederlandse Akademie van Wetenschappen , Afd. Letterkunde, N. R., v.18, n.13,
p. 309-42, 1955.
2 ECO, U. 0 nome da rosa . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985a.
3 . Escrito a 0 nome da rosa . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985b.
4 ECO, U. , SEBEOK, T. A. (Orgs.) 0 signo de tres. Sao Paulo: Perspectiva, 1983.
5 PEIRCE, C. S. Collected Papers of C. S. Peirce. Cambridge, MA: Harvard University, v. 1-6, 1974 ; v.7-8, 1958.
6 ROBIN, R. S. Annotated catalogue of the papers of Charles S. Peirce. Worcester, MA. : The
University of Massachusetts Press, 1967.
7 VOLTAIRE, F. M. A. Contos / Voltaire. Trad. M. Quintana. Sao Paulo: Abril Cultural, 1983 .
[1] Professor Assistente Doutor do Departamento de Filosofia da UNESP - 17525-900 - Marilia - SP - Brasil.
[2] Licenciada em Filosofia. Bolsista de Aperfeir;:oamento e Pesquisa do CNPq - 17525-900 - Marilia - SP - Brasil.
[3] Licenciando em FiJosofia. Bolsista de Iniciar;:ao Cientifica do CNPq - 17525-900 - Marllia - SP - Brasil.
[4] Licenciando em FiJosofia. Bolsista de Iniciar;:ao Cientifica do CNPq - 17525-900 - MarHia - SP - Brasil.