PLATÃO ALÉM DO DOGMATISMO

 

 

Alcides Hector Rodriguez BENOIT[1]

 

RESUMO : Este artigo procura mostrar as dificuldades existentes para sustentar a interpretar;:ao dogmatica de Platao e, a partir dai, indicar algumas refiex6es sobre as relar;:6es entre dogmatismo, ceticismo e dialetica.

PALAVRAS-CHAVE : Platonismo ; dogmatismo ; ceticismo ; dialetica.

 

I Existem os dogmas de Platao?

 

"Sextus distingue tIes filosofias. De Platao ele nao sabe 0 que fazel. ..

HegeP

 

 

A palavra grega dogma era ja utilizada por Platao. L8-se, por exemplo, na Republica (538c) : "Temos desde a intancia dogmas (d6gmata) sobre as coisas justas e belas que ... temos 0 Mbito de seguir e de respeitar." Neste caso, "d6gma ta" significa

apenas "opinioes" ou "maximas", nao possuindo ainda urn sentido mais rigoroso. No entanto, ja ao final do seculo N e comeyo do III a.C. , esta palavra evoluira semanticamente e significara "os elementos de uma doutrina filos6fica" . Sobretudo a partir do ceticismo de Pirron, passou-se a opor "os dogmaticos" (oi dogma tikoi) - aristotelicos, epicuristas e est6icos - aos "ceticos" (skeptikOl) - aqueles que nao sustentam nenhuma doutrina positiva.

Tomando a palavra d6gma ta neste ultimo sentido - elementos de uma doutrina positiva -, sentido ja consagrado na hist6ria da Filosofia Antiga, parece hoje estranho perguntar : existiriam os dogmas de Platao? Existiriam nos DiaJogos de Platao dogmas ou elementos afirmativos que constituem uma doutrina filos6fica positiva? Existiria uma doutrina "dogrnatica" em Platao? Parecem hoje urn pouco estranhas tais perguntas ja que, desde a infancia, 0 senso comum e a pr6pria Filosofia ocidental nos acostumaram a aprender e descrever dogmaticamente uma multiplicidade de dogmata platonicos que constituiria senao urn sistema, ao menos, certamente, uma doutrina filos6fica razoavelmente construida e delimitada em suas fronteiras. Questionar a existencia desta doutrina "dogmatica" e hoje tarefa pouco praticada pelos comentadores filos6ficos de Platao. Parece hoje quase impossivel questionar, ate mesmo, - apesar das multiplas interpreta90es divergentes e ate em certos pontos conflitantes - que tal suposta doutrina de PIatao possua como nucleo dos seus dogma ta a celebre "Teoria das Ideias". Realmente, parece bastante estabelecido por centenas de exegetas e historiadores da Filosofia que seria em tome da "teoria das ideias" que se desenvolvem e se estruturam os outros multiplos dogma ta que foram encontrados nointerior dos DiaJogos : a teoria da reminiscencia, aquela da imortalidade da alma, aquela da mim esis, a teoria do conhecimento, a paideia platonica, 0 eros platonico, 0 projeto de cidade e a propria dialetica 3

 

II 0 dogma das Ideias

 

.. ...milIa geloi6s ..................... (Republica. 509c)

 

Quase todos OS comentadores sao tambem unanimes em apontar quais sao as paginas privilegiadas para a descri9ao de tal teoria nuclear estruturadora de toda a dogmatica platonica : sem duvida, aquelas do livro VI da Republica . Recordemos brevemente. Nesse livro, S6crates sustenta a existencia de uma regiao das coisas visiveis e de outra das coisas inteligiveis, a regiao das Ideias (Rep. VI, 509d- 510a). Como se sabe, a primeira regiao e subdividida em duas partes , aquela das meras imagens - sombras, reflexos, espelhamentos - e em seguida, aquela dos corpos sensiveis em geral - animais, plantas, objetos naturais e produzidos pela arte dos homens (510a) . A segunda regiao geral, a dos seres inteligiveis, por sua vez, e tarnbem subdividida: em sua primeira parte existiriam ideias ainda apoiadas em elementos do sensivel, estes ultimos seriam a materia para a constru9ao de raciocinios hipoteticos e dedu90es inteligiveis, este e 0 dominio intermediario, regiao por excelencia das matematicas ; finalmente, na outra e derradeira parte se atingiriam as ideias puras que dariam acesso ao principio absoluto, principio nao-hipotetico (anyp6thetos), que sena o Bern (510b) . Este, como principio absoluto, como Ideia das Ideias, possuiria uma "divina transcendencia" (daimonias hyperboles - 509c), seria dele que emanaria todo o processo do conhecimento, dele os objetos do conhecimento humano receberiam a sua cognoscibilidade, 0 seu ser (t6 einai) e a sua essencia (ousia), ainda que ele proprio, o Bern, nao seja ousia - como afirma- se em 509b - "mas sim, algo que ultrapassa de longe a ousia em majestade e potencia" .

Sem duvida, aqui, nestas breves paginas da Republica, ja estao contidos os dogmas principais da chamada "Teoria das Ideias": as duas regiaes gerais - a do sensivel e a do inteligivel - as suas subdivisaes e finalmente a Ideia epekeina tes Qusias, a ideia " alem da ousia " , a ideia de Bern como ideia das ideias que, da sua fixidez transcendente, emana a fundamentar;ao ontologica de todos os seres inferiores.

Estas paginas foram sempre privilegiadas na descrir;ao da doutrina platonica das ideias, desde Arist6teles e 0 Neoplatonismo ate os recentes comentadores contemporaneos. Por exemplo, ainda Goldschmidt escrevia: "As Formas constituem urn conjunto organizado . Quanto a Forma do Bern, coloca-se no tope do sistema. Ela comunica a todas as Formas existencia e essencia, mas ela propria esta ainda alem da essencia" .4 Da mesma forma, ja na Antiguidade escrevia Proclus (1970, tome II, p.72) a partir daquelas passagens da Republica : "ta uma especie de Urn que nao e 0 Ser e que no entanto e 0 mais alto objeto das ciencias para aqueles que conhecem os Seres, urn Urn tal como S6crates diz que e 0 Bern" . E explicando-nos 0 Bern, em outra passagem, escreveu Proclus (idem, p.88) : "segundo Platao, 0 Bern e acima da essencia dos Inteligiveis e verdadeiramente hiperessencial (hyperousion) ." Da mesma forma, embasada principalmente no livro VI, parece ser a descrir;ao da teoria das ideias feita por Arist6teles sobretudo no livro "A" da Metafisica . Ap6s apontar a separar;ao existente entre os seres sensiveis e as ideias,5 ressalta ainda Arist6teles, conforme a doutrina "dogmatica" da Republica, a particularidade dos seres matematicos enquanto entes intermediarios que, em certo sentido, participariam de ambos os dominios.6 Como se sabe, muitas e muitas paginas similares poderiamos ainda citar, tanto de comentadores antigos como modernos, que estruturam a "doutrina" platonica em tome das proposir;aes do livro VI.

Possuem, no entanto, estes dogmas, atraves dos diversos outros DiaJogos, realmente uma coerencia doutrinaria? Ao examinarmos outros DiaJogos de Platao e contemplarmos 0 reaparecimento da mesma problematica, estes dogmas se preservam com a positividade que, ao menos supostamente, recebem na Republica? A positividade dogmatica da "teoria das ideias" que por tantos seculos foi atribuida ao pensamento de Platao e que serviu como teoria nuclear para a exposic;ao , ensinamento e estruturac;ao do "sistema" de Platao subsiste sem contradic;oes atraves da dialetica geral dos Dicilogos? Reexaminemos algumas passagens dos Dicilogos na sua literalidade dialogico-dramatica.

Tomando 0 dialogo Parmenides, la encontramos, mais uma vez (ou talvez antes, ja que la Socrates e descrito como ainda muito jovem), a discussao da Teoria das Ideias. Sustenta Socrates logo ao inicio do dialogo que existe uma ideia em si e por si (aut6 kath ' au t6) da semelhanc;a e da dissemelhanc;a. Aquilo que participa da semelhanc;a toma-se semelhante, e 0 que participa da dissemelhanc;a, diz ele, toma-se dissemelhante, (Platao, p. 128e- 129a) . Mais adiante, dialogando com Parrnenides, concorda 0 jovem Socrates que, segundo a sua teoria, existe uma ideia em si e por si (ti eidos aut6 kath ' au t6) do justo, do belo, do bern e de todas essas noc;oes similares (Idem, p.130b).

o mesmo ocorreria em relac;ao a seres sensiveis. Existiria uma ideia separada (cons) do homem, do fogo e da agua (Idem, p.130c) . Portanto, sustenta-se aqui aproximadamente a mesma doutrina desenvolvida na RepUblica , os mesmos dogmas da teoria das ideias, tal como foram celebrados pela longa tradic;ao interpretativa. No entanto, paradoxalmente, se a teoria das ideias e de fato aqui mais uma vez apresentada, 0 desenvolvirnento dramatico do dialogo nao a confirara. Ao contrano, as paginas seguintes (Idem, p. 130c- 134e) apresentarao justamente uma sene de aporias na qual se envolve 0 jovem Socrates e todo aquele que hipoteticamente sustentasse tal doutrina. 0 proprio Platao estaria assim, em seus proprios Dicilogos, colo cando dificuldades para a sua propria doutrina? Ou seriam estas apenas paginas isoladas e, como afirrnaram diversos comentadores, apenas meros exercicios academicos de dialetica?

A verdade e que, apesar de contraditorias e profundamente negativas em relac;ao a dogmatica das ideias, estas paginas do Parmenides nao podem ser minimizadas. Afinal, ali estao contidos todos os argumentos das principais criticas que posteriormente foram formuladas contra a Teoria das Ideias e, sobretudo, mesmo aqueles argumentos que iniciaram a longa serie de polemicas contra tal suposta dogmatica de Platao : os celebres argumentos de Aristoteles.

Os problemas comec;am para Socrates quando nao sabe responder se existiriam ideias mesmo de coisas infimas como urn fio de cabelo ou coisas nao nobres como a sujeira (Idem, p.130c-e) . Em seguida, as dificuldades tomam-se maiores quando comec;a-se a investigar de que maneira ocorre 0 processo de participac;ao entre as ideias e as coisas sensiveis . Socrates inicialmente sugere que as ideias encobririam ou envolveriam as coisas sensiveis , como urn veu encobre 0 que esta sob ele ou como a luz do dia envolve as coisas que ilumina. Parmenides lhe mostra que atraves dessas formas a propria ideia se dividiria e nao seria mais urn Urn sobre 0 Multiplo (Idem, p. 130e- 13 1e). A seguir, Socrates levanta a hipotese da ideia como uma unidade sintetica e Parmenides the mostra que desta maneira se cairia no paradoxo da infinitude das ideias, sempre seriam necessarias novas ideias para unificar as anteriores 7 Surge entao a hipotese da ideia como conceito, existiria a identidade entre 0 pensamento e 0 objeto pensado e assim se explicaria 0 processo de participaC;ao entre o sensivel e 0 inteligivel. Parmenides, no entanto, mais uma vez, mostra as novas dificuldades : tudo se transformaria em ideia e desapareceria 0 proprio sensivel (Idem, p.132b-c) . Socrates sugere entao que a ideia poderia ser concebida como urn paradigma que modelaria 0 sensivel, este seria assim uma copia do inteligivel. Parmenides novamente demonstra a impossibilidade de tal soluC;ao recorrendo ao paradoxo do 3Q Homem (Idem, p.132c- 133a) . Diante de tantas dificuldades, Parrnenides sugere que as ideias, mesmo existindo, seriam incognosciveis para 0 homem (Idem, p. 133a- 134c) , ou entao, que 0 mundo divino das ideias nao se comunicaria e nao conheceria 0 mundo humane (Idem, p.134c- 134e) ; ambas as hipoteses parecem inaceitaveis para 0 jovem Socrates, mas nao encontrara saida, ao menos neste dialogo, para a situaC;ao aporetica que se instaurou sobre a teoria das ideias . Assim e que Parmenides, impiedoso, the perguntara: "Que faras da filosofia? Para onde te voltaras se nao tens resposta para estas questoes?" E quase balbuciante, reconhecera 0 jovem que, ao menos no presente, nao vislumbra nenhum caminho (Idem, p.135c) .

Como observa corretamente Dies (1965, p.25-6), estao aqui nesta passagem do Parmenides praticamente todos os argumentos que depois serao de maneira insistente levantados por Aristoteles: "Dificuldades da participac;ao, impossibilidade de justificar a unidade da forma, inutilidade cientifica da duplificac;ao que tal teoria sobrepoe ao real, estao ai as objec;oes sobre as quais Aristoteles s'eten dra a pJaisir" . Dies, no entanto, apesar de reconhecer a gravidade do problema, se abstem, como a maioria dos comentadores contemporaneos, de pensar mais seriamente as conseqi.iencias desse texto para os d6gmata das ideias.8 Ora, Platao - com " clareza impiedosa", antes de Aristoteles - teria realizado uma critica devastadora contra a sua propria teoria central? Platao, antes de Aristoteles, teria destruido os d6gma ta nucleares de sua doutrina, aqueles que estruturam os seus outros d6gmata? No seculo XIX, os comentadores perceberam a existencia do problema e, sobretudo, preocuparam-se com as consequencias teoricas que esta critica possuiria para a interpretac;ao da posterior critica (praticamente a mesma) realizada por Aristoteles. A soluc;ao primeira encontrada foi considerar apocrifo 0 dialogo Parmenides.9 Com os estudos estilisticos quantitativos (Campbell, Ritter, Lutoslawski) desenvolvidos na segunda metade do seculo XIX, no entanto, esta "solUl;:ao" mostrou-se inviavel, ja que foi confirmada a autenticidade estilistica deste dialogo . Em seguida, a "soluçao" predominante, embasada justamente na cronologia advinda dos estudos estilisticos, foi descrever uma suposta "evoluçao" no pensamento platonico. 0 Parmenides seria urn dialogo escrito no fim da vida de Platao, e portanto expressaria uma "crise" do "sistema" platonico. Mas tambem esta "soluçao" foi abandonada, sobretudo a partir da segunda metade do seculo XX, quando , com 0 desenvolvimento da analise estrutural na hist6ria da Filosofia (Goldschmidt), caiu em descredito toda tentativa de explicaçao dita " evolucionista". Entao, em relaçao as contradiçoes existentes entre a "Teoria das Ideias" da Republica e 0 dialogo Parmenides, restou como "soluçao" , ate hoje predorninante, apenas 0 infeliz contentar-se, mais e mais, com 0 estudo separado de cada urn desses dialogos . Colaborou nesse sentido 0 descr8dito sempre crescente das chamadas "macroan8.lises do seculo XIX" . No entanto, no nivel dos manuais de hist6ria da Filosofia se preserva a "macrodogmatica" ancorada na Republica e, em geral, ela reaparece, ao menos parcialmente, em quase todos os estudos monograficos a respeito de conceitos ou dialogos especificos de Platao.

Mas, contra esse infeliz contentar-se das "rigorosas" microan8.lises contemporaneas (ancoradas naquela antiga "macrodogmatica"), e necessario sempre recordar os problemas que 0 "velho" seculo XIX tentou sem sucesso resolver: as celebres paginas do livro VI da Republica , apesar de ainda hoje serem apresentadas nos manuais de hist6ria da Filosofia como contendo os definitivos dogmata de Platao, nao podem ter uma validade absoluta no interior da obra platonica. E 0 que parecem apontar, alem do Parmenides, tambem outros dialogos, como 0 Filebo e 0 Sonsta .

Recordemos, primeiramente, algumas paginas do Sonsta . Os interlocutores, ap6s discutirem a posiçao dos materialistas - "os filhos da terra" -, passam a estudar a doutrina dos "amigos das ideias". 10 Esta parece ser, realmente, a doutrina sustentada por S6crates na Republica , no Parmenides (ainda que de maneira malsucedida) e tambem em alguns outros dialogos, como 0 FI§don . Para "os amigos das ideias" -explica 0 Estrangeiro - a ousia ou essencia e pensada como separada (coris) do devir . 11 

Segundo "os amigos das ideias", por u rn lado, pelo corpo, atraves da sensaçao, possuimos participaçao com 0 devir; por outro lado, pela alma, atraves do raciocfnio, participamos da "essencia que e plenamente" 12 Esta ultima - esclarece ainda 0Estrangeiro - seria segundo "os amigos das ideias" sempre identicamente imutavel, enquanto aquilo que esta mergulhado no devir varia a cada instante. 13 Assim, descrevem-se aqui, como no livro VI da Republica , os dominios do sensivel e do inteligivel, no entanto, paradoxalmente - ao menos para S6crates e 0 dogma das ideias -, como ja ocorrera no Parmenides, mais uma vez, esta doutrina sera contestada. Sem que agora acompanhemos os detalhes da refutaQao, e particularmente importante a critica que se desenvolvera contra a ideia suprema, que na RepUblica seria a ideia das ideias, o Bern, algo epekeina tes ousias, " algo alem da ousia " (Platao, RepUblica , p. 509b). Aqui 0 Estrangeiro de Eleia se refere "ao Ser absoluto" (pan teloos onti (Platao, Sofista , p.248e)) justamente para, contra a celebre teoria da Republica, negar-lhe a sua imovel e indescritivel transcendencia . Nessa direQao, em passagem decisiva, como se estivesse polemizando diretamente com 0 Socrates da Republica , 14 pergunta 0 Estrangeiro : "Nos nos deixaremos tao facilmente convencer de que 0 movimento, a vida, a alma, 0 pensamento realmente nao estao presentes no ser absoluto, que ele nao vive nem pensa, e que, solene e sagrado, nao tendo intelecto, imovel (akineton) e algo que permanece fixo?" (Platao, p.248e-249a) . Na seqUencia do texto, Teeteto e o Estrangeiro concordam que e necessario atribuir ao Ser : intelecto, vida, psique e finalmente 0 proprio movimento (kin esis) (Idem, p.249a-b) . Ora, com essa multiplicidade de predicaQoes que recebe 0 Ser absoluto e, principalmente, com esta ultima, a predicaQao do movimento, nada mais resta da " divina transcendendia" que possuia 0 Bern socratico, absoluto impredicavel, lanQado acima e alem da propria nOQao de ousia . Agora, 0 Ser no seu sentido mais absoluto recebe uma multiplicidade de predicaQoes e mesmo predicaQoes contraditorias, tais como 0 movimento e 0 repouso. Assim diz 0 Estrangeiro que nao devemos ouvir nem os que defendem a imobilidade do Ser (Parmenides e os "amigos das ideias"), nem os que sustentam 0 devir absoluto (os heraclitianos e os " filhos da terra"), mas e precise " fazer seu, como as crianQas em seus desejos, tudo isto que e imovel e tudo isto que se move, e dizer que 0 ser e 0 todo sao imoveis e moveis ao mesmo tempo" (Idem, p.249d) .

Como se ve, estas paginas do Sofista , como aquelas do Parmenides, ainda que em sentidos diferentes, desvelam uma multiplicidade de contradiQoes, aporias e mesmo teses opostas que os proprios Dialogos levantam contra uma suposta dogmatica plat6nica das Ideias . Da mesma maneira, surgem tambem problemas nas tentativas de formulaQao da teoria das ideias que Socrates realiza no Filebo. Aqui, Socrates procura realizar, atraves da introduQao de elementos quantitativos, a mediaao entre 0 sensivel e 0 inteligivel. Propoe que se divida a totalidade dos seres em dois e, logo depois, como que hesitante, se corrige : "ou melhor, se queres , em tres" . (Platao , Filebo, p.23c). Em seguida, passa a nomeaI essas tIes " divisoes" ou "generos" :

o primeiro seria 0 infinito (t6 apeiron) , que corresponderia a unidade sensivel; a segundo seLia a tmito \to peras), ewe conespondena a unidade inteuglve\', "e como terceiro - diz ele - urn outro que faz a sua mistura" (Platao, p.23c-d) . Como se ve, se exatamente em estabelecer os elementos numericos que participariam da mediaQao entre os dominios da realidade. No entanto, como ja ocorrera, no Parmenides e no Sofista , aqui tambem dificuldades erguer-se-ao contra a dogmatica das Ideias . Ap6s nomear 0 primeiro elemento, nomeia 0 segundo, depois 0 terceiro e, como na ideia pensada como unidade sintetica e como paradigma, 15 comeQa a emergir a sene interminavel, 0 argumento do 3Q Homem, 0 velho paradoxo da " rna" infinitude. Assim e que, logo em seguida, e obrigado a nomear 0 quarto elemento, 0 que nao faz sem antes se desculpar : "sou, parece, bern ridiculo (geloi6s) , levando adiante divisaes conforme especies e enumeraQaes" (Idem, p.23d) . Protarco, 0 interlocutor, sem conhecer talvez 0 antigo paradoxo que sempre ressurge e atormenta a S6crates desde a sua juventude, nao compreende imediatamente onde esta 0 "ridiculo" e pergunta: " Que queres dizer, meu caro?" E S6crates the explica: "E que tenho, parece, ainda necessidade de urn quarto genero" (Idem, ibid.). Este quarto sera "a causa da mistura" . Como afirma literalmente S6crates : "Considera a causa da mistura destes, urn em relaQao ao outro ; coloco este como quarto em relaQao aqueles tres" (Idem, ibid.). Evidentemente, estamos diante de uma sene interminavel: se depois dos dois primeiros foi necessano 0 terceiro e ap6s este 0 quarto, nao seria necessario depois 0 quinto genero como " causa da separaQao" e assim sucessivamente a eclosao infinita de novos generos? Eis 0 que parece e e " ridiculo"! E 0 jovem Protarco, mesmo sem conhecer 0 antigo paradoxo, mesmo sem reconhecer a antiga comicidade da nova soluQao socratica, ainda assim perguntara : " Nao sera necessario urn quinto que tenha 0 papel de os separar?" (Idem ibid.). S6crates, vacilante, como tantas e tantas vezes em momentos decisivos de outros diillogos, diante da pergunta a respeito do " quinto", responde evasivamente : "Talvez. Mas, eu penso, nao agora. Entretanto, se ele for necessano, tu me perdoaras, eu imagin, se partir a procura de urn quinto" (Idem, p.23e) . Protarco, assim como nao percebera a comicidade do paradoxo que se aproximava, nao percebe tambem que com essa sua inocente indagaQao reconduzia S6crates e a teoria das ideias ao insuperado labirinto parmenidiano. S6 assim, graQas a inexperiencia juvenil de Protarco, pede S6crates continuar a sua exposiQao no dialogo Filebo. Mais uma vez, parece como se Platao estivesse destruindo a sua pr6pria teoria nuclear. Assim, para defender a leitura dogmatica da tradiQao, interpretes do seculo XIX foram obrigados a considerar, como ap6crifo, tambem 0 dialogo Filebo. 16

Mas, depois desta passagem do Filebo, assim como daquelas do Parmenides e do Sofista , em que ainda poderiamos reencontrar dogmaticamente a doutrina central dos DiaJogos, a Teoria das Ideias, aquela que, segundo a tradiQao, centraliza toda a sene dos dogmas de Platao?

Talvez, nem mesmo, naquelas paginas do livro VI da Republica , aquelas paginas tao veneradas pela longa tradir;ao ocidental. Urn leitor atento, atento sobretudo a dramaticidade dia16gica e assim a pr6pria literalidade do texto, ja po de perceber, mesmo ali, que a riqueza onto16gica suprema da ideia de Bern e, na verdade, pobreza absoluta e camica. A ideia de Bern epekeina tes ousias (509b) imediatamente ap6s ser anunciada por S6crates e ridicularizada por Glauco, 0 irmao de Platao. Como se Ie literalmente no texto : "Entao Glauco exclama de maneira muito engrar;ada (mala geloios): 'Por Apolo, diz ele, que divina transcendencia ! "' . S6crates, se defendendo da ironia, replica: "Voce tambem e culpado [do ridiculoJ . pois me obrigou a dizer as opinioes que tenho sobre este assunto [0 Bern]" (Platao, Republica, p. 509c) . Realmente, 0 pr6prio S6crates, paginas atras, quando pressionado a que falasse do Bern, advertira: "temo que isto ultrapasse minhas forr;as e que a minha forma inconveniente provoque risos (gelata)" (Idem, p. 506d) . Como se ve, a celebre passagem da RepUblica - 509b-c - em que a tradir;ao ocidental encontra 0 fundamento ultimo do Bern transcendente do platonismo e a citar;ao mais convincente da configurar;ao de urn "sistema" metafisico- dogmatico em Platao provoca risos entre os interlocutores do pr6prio dialogo e, longe de ser a instituir;ao solene de urn dogma teo16gico-metafisico, se aproxima, ao menos urn pouco, das camicas Nuvens de Arist6fanes. Se hoje a maioria dos comentadores nao observa a problematica comicidade dessa cena, no entanto, ela esta la inscrita claramente na literalidade dramatico-dia16gica e abala, com 0 seu riso, todas as leituras dogmaticas que sonham, a partir daquela passagem, com uma possivel demonstrar;ao do transcender teo16gico-metafisico de Platao Y

Na verdade, mesmo no interior desse livro VI da Republica , a pretensa dogmatica platanica se dilui em risos. 0 Bern, Ideia das ideias, permanece indeterminado e e a sua indeterminar;ao que provoca a comicidade. S6crates e capaz somente de falar do filho do Bern, 0 Sol; ou seja, S6crates e capaz de falar da regiao mais pura das ideias apenas por imagens sensiveis, imagens sensiveis estas que atestam 0 fracasso dialetico de S6crates . Ao falar da Ideia das ideias apenas por imagens, S6crates demonstra a sua incapacidade de ascender alem do dominio da dian 6ia . Ao contrario, o dominio puro da noesis, a regiao alem de qualquer hip6tese sensivel, 0 momento propriamente dialetico, permanece inatingido e inatingivel, e este fracasso socratico reaparece em todas as outras tentativas : ja na juventude fracassara diante de Parmenides que the demonstrara 0 carater incognoscivel de uma suposta regiao separada das ideias (dialogo Parmenides) ; 0 fracasso se repetira no Filebo, no qual a argumentac;:ao permanecera no dominio quantitativo das matematicas, regiao ainda dianoetica e, por isso mesmo, mais uma vez, se atingira apenas "as portas do Bern" , mas nao 0 pr6prio Bem;18 e, finalmente, no di8.logo Sofista , a intervenc;:ao de urn novo personagem, 0 Estrangeiro de Eleia, refutara de maneira decisiva "os amigos das ideias" (e entre eles, S6crates), demonstrando a noc;:ao de negatividade interna, 0 nao-ser que e, e assim inaugurando uma outra dialetica, uma dialetica nao-socratica e, principalmente, nao-parmenideana. Mas, em tudo isso, onde esta Platao? Onde esta a palavra do soberano Mesmo, aut6s-Autor dos DiaJogos?

Se 0 Bern socratico permaneceu indeterminado e, ao menos em parte, " aristotanico", se assim toda a teoria das ideias e enredada em uma multiplicidade de paradoxos tao claramente apontados no Parmenides, no Sofista e no Filebo, se as fissuras de urn pretenso "sistema" de Platao sao tao evidentes em tantos outros ambitos, por exemplo, que resta da "teoria" do rei-fil6sofo ap6s 0 di8.logo Politico? Que resta dos projetos politicos da Republica depois da teorizac;:ao, desenvolvida nas Leis, dos conselhos eleitos diretamente pelos cidadaos? Se no Sofista se demonstra 0 ser do Nao-Ser e, como 0 notou Deleuze, 0 pr6prio S6crates (pretenso portador supremo dos dogmas de Platao) e cercado e cassada como sofista pelo Estrangeiro de Eleia, nao seria hoje ja chegado 0 momenta de recomec;:ar novamente a perguntar, como se perguntou urn dia na Antiguidade : onde estao os dogmas de Platao? Existem realmente os dogmas de Platao? A filosofia platonica nao estaria conta e alem de toda dogmatica?19

 

m A Antigiiidade e os dogmas de Platao

 

" ... nihil esse certi quo aut sensibus aut animo percipi possit. . " (Arcesilau, segundo Cicero)

 

 

Realmente, a Antiguidade nao teve tanta certeza a respeito da existencia de uma dogmatica de Platao. Como nos relata Sextus Empiricus (1976, livro I, 221, p. 134- 5) : "Platao foi descrito por alguns como dogmatico (dogmatik6n), por outros como aporetico (aporetik6n), e por outros como parcialmente aporetico e parcialmente dogmatico". Diogenes Laercio (1964, livro III , 51, p. 142) tamMm nos recorda que muita discussao (stasis) existia a respeito da interpreta9ao dos Di81ogos : alguns diziam que Platao exercia 0 "dogmatizar" (dogma tizein), outros diziam que nao. Em outra passagem, Laercio (livro IX, 70, p.474) conta-nos que Teodosio colocava Platao entre os precursores de Pinon - 0 fundador do ceticismo . No interior da Media e da Nova Academia - desde Arcesilau, que assumiu a dire9ao da escola em 270 a.C. -, sabe-se que a orientac;ao fundamental era justamente combater os dogma tikoi - ou seja, os aristot8licos, epicuristas e estoicos . Assim escreveu Cicero no De Ora tore (1930, livro III , p. 67) : "Arcesilau ... tira dos diversos escritos de Platao ... a conclusao que nada de certo pode ser apreendido, seja pelos sentidos, seja pelo espirito (nihil esse certi quo aut sensibus aut animo percipi possit... )" ; e acrescenta que Arcesilau utilizava como metodo aquele "de nao revelar 0 que pensa, mas argumentar contra 0 que os outros dizem pensar" . No mesmo sentido, em outra obra, relata Cicero (1928, livro II, p.2) que Arcesilau teria recuperado e retomado como fundamental a pratica do dialogo, abandonada pelos sucessores diretos de Platao - Espeusipo e Xenocrates, os dia dokoi da chamada "Antiga Academia". Na mesma passagem da obra De Finib us, Cicero nos conta que aqueles que quisessem escutar Arcesilau nao deveriam fazer questoes e esperar discursos monologicos como resposta, mas sim, deveriam eles proprios dizer 0 que pensavam sobre deterrninado assunto e, a partir dai, sofrer as refutac;oes de Arcesilau (Idem, ibid.). Assim, para Arcesilau, 0 exercicio e 0 proprio conteudo da Filosofia platonica era a pratica da negatividade antidogmatica. Esta interpretac;ao da Filosofia platonica foi continuada no interior da Academia por Carneades, Clitomaco, Filon de Larissa e Antiocos de Ascalon, que inclusive foi professor de Cicero. 20 Os partidarios da Nova Academia teriam inclusive ido mais longe que os proprios ceticos na sua negatividade; conforme Sextus , estes discipulos de Platao afirmavam "que todas as coisas sao nao- captaveis, e diferem dos ceticos ... pois afirmam isso firmemente, enquanto 0 cetico V8 como provavel que algumas coisas podem ser apreendidas" . 21

A for9a desta tradi9ao, atraves de toda a Antiguidade, e atestada pelo manual anonimo PR OLEGOMENA, manual do seculo VI d.C. Este anonimo recorda os ensinamentos de Arcesilau, Carneades e as interpretac;oes, hoje esquecidas, de que Platao, tanto quanto os ceticos, professaria 0 canter akataleptico, isto e, 0 carater "nao- captavel" das coisas (Anonimo, 1990, p.15, 10 (1-5)) . Os Prolegomena relatam inclusive de maneira detalhada cinco argumentos que eram desenvolvidos para aproximar " Platao dos Ceticos e dos Academicos, sustentando que ele professa tamMm que tudo e nao- captavel" . 22 Urn dos argumentos e que Platao, quando realiza as suas afirma90es, utiliza sempre expressoes dubitativas que marcam hesita9ao : "provavelmente" , "talvez", "sou levado a pensar" . Ora, essas expressoes nao caracterizariam urn homem que acredita realmente saber algo, mas sim, muito mais, "aquele que nao possui urn conhecimento determinado" (Idem, p.1 5). Outro argumento levantado e justamente a observa9ao de que, como acima descrevemos em rela9ao a chamada "Teoria das Ideias", "Platao estabelece teses opostas a respeito dos mesmos assuntos , mostrando assim claramente que a realidade e nao- captavel" (Idem, p.15-6). Os exemplos aqui citados sao as discussoes do Lysis, do Carmides e do Eutifron , em que teses opostas sao sustentadas a respeito da amizade, da sabedoria e da piedade (Idem, p. 16). Relata-nos ainda este Anonimo que, segundo os defensores dessa interpreta9ao, Platao teria declarado : "Nada sei nem ensino, mas somente atravesso problemas (diaporoo monon)" .23 E comentando essa frase, acrescenta 0 autor Anonimo : "Eis portanto como confessa [Plataol , com sua propria boca, nada saber de maneira certa" (Idem, p. 17).

Como se ve, a estranha luz de u rn PIatao negativo e antidogmatico atravessa toda a Antiguidade, se os dogmas a ela foram sobrepostos pela dominante tradi9ao neoplatonica e aristotelica, ainda no crepusculo do mundo antigo, ainda no seculo VI d. C., frases , como aquela recordada pelos Prolegomena , ainda ressoavam sustentando que 0 suposto "Mestre dos mestres" , 0 suposto "divino" Platao de Jamblico e Proclus, o Autor-autos soberano nada soubera ou ensinara e, longe das revela90es absolutas, apenas praticara 0 diaporein . Ainda que vencidos, mal compreendidos e, finalmente, enterrados juntamente com 0 paganismo, nao seriam estes logoi mais proximos e mais Mis ao proprio texto contraditorio dos Dialogos?

 

Observando, na sua simples e bruta literalidade- dramatica, a totalidade desses documentos textuais chamados "Dialogos de Platao", parece que tiveram realmente razao os que, como Arcesilau e Carneades, contestaram as leituras dogmaticas elaboradoras do sistema de Platao ou pensamento de Platao . Tiveram razao ao menos ao come9arem a colocar entre parenteses essa preposi9aO "de" , essa preposi9aO designando posse. Mas, seria esta negatividade contraditoria dos Di8.1ogos, como pensaram os Aca demikoi, apenas a afirma9ao do negativo absoluto e da inexistencia absoluta da verdade? Nos limites deste artigo ja nao podemos responder ou mesmo tentar responder esta questao . Gostariamos, no entanto, urn pouco a maneira dos mitos que tantas vezes encerram os Dialogos, de dar asas a imagina9ao hipotetica e levantar algumas questoes para finalizar este artigo.

 

IV A hipotese da Diahtica como Koinologia

 

" .. .legetai de hoos 6ntoos est! kaina filphiloon . . . "

(Leis, 739c)

 

Posto urn Platao alem do dogmatismo. como propuseram os AcadeJnikoi. nao estariamos diante de uma negaçao e de uma ausencia mais profundas que. meramenteo a negaçao e a ausencia da verdade? 0 diaporein contradit6rio e avassaladoramente negativo dos Dialogos nao seria 0 pr6prio caminhar em si e por si de urn pensamento sem sujeito e sem autor. sem Mesmo soberano? Platao. 0 pr6prio Platao. nao esqueçamos. jamais tomou a palavra em seus pr6prios Dialogos. Na Carta II . escreve coerentemente ele ou outro que ele : "Nao h8. obra de Platao e nao existira" . 24 0 diaporein contradit6rio e radicalmente negativo nao seria 0 pr6prio escavar de urn pensamento que. a procura do Universal concreto da Filosofia. 0 verdadeiro katolou. exatamente se caracterizaria pela supressao das determinaçoes individuais que rompem 0 todo comum? Assim as ausencias de sujeito e de autor individuais. as dificuldades de encontrar a centralizaçao de urn Mesmo soberano. a permanente supressao dos diversos logoi individuais talvez sejam solidarias e complementares das supressoes que se projetam no nivel da praxis. as supress6es propostas no programa sociopolitico que expoe a dialetica dos Dialogos : aquelas da familia patriarcal. da apropriaçao privada das mulheres e das crianças e. em geral. da apropriaçao privada de todas as coisas que sao.

Passagens radicalmente comunistas. como aquela das Leis (739a-d). 25 em que se imagina a ausencia extrema da apropriaçao privada no nivel da cidade. nao seriam correlatas das ausencias de urn Autor (soberano proprietario privado do sentido) e de urn Logos Absoluto ( proprietario privado da univocidade nao- contradit6ria). ausencias tao visiveis na estrutura dia16gica-dialetica desta obra conhecida como "de" Platao? Nao seriam estas hom610gas ausencias 0 escavar da vertiginosa Ausencia. aquela desenvolvida no dialogo Sofista . aquela que abre 0 caminho para 0 logos do Outro.

para a ousia do Nao- Ser, para a negatividade interna ao proprio Ser? Neste diaporein radicalmente negativo, que suprime 0 proprio Ser como 0 objeto absoluto do logos, talvez estivesse a aurora de uma nova presen9a no dominio da Filosofia, a presen9a de uma nova ciencia que estaria alem da unilateralidade do dogma e da aporia, alem da fixidez dos polos negativo e positivo, alem do negativo como externo ao positivo, uma ciencia que seria transpassamento, elabora9ao da koinonia , koino-logia e, neste preciso sentido - fundar a racionalidade do-que-e comum -, dialetica.

No entanto, nem os brilhantes dogmaticos (por exemplo, Aristoteles ou Proclus), nem os perspicazes ceticos, como Sextus Empiricus, nem os proprios academicos da negatividade, como Arcesilau e Carneades parecem ter compreendido ou retomado plenamente esta ciencia entao nascente. As formas desta episteme -  dialetica "platonica" - como disse certa vez Hegel, "permaneceram baldias por dois mil anos" (Hegel, 1965, p.253) . Somente no seculo XIX, com 0 proprio Hegel, voltou-se a pensar o sentido profundo desta esotenca ciencia, a filosofia especulativa, a filosofia dialetica, alem nao somente dos dogmatik6i, mas tambem dos a cademik6i e dos skeptik6i; alem da unilateralidade do meramente positivo, do exclusivamente negativo e tambem da permanente procura cetica. Talvez melhor que toda Antiguidade, e certamente melhor que toda Modernidade, ao retomar a filosofia dialetica (e por isso mesmo) come90u a compreender Hegel 0 diaporein negativo dos Dialogos, 0 negativo que como nega9ao da nega9ao ultrapassa a permanente procura negativa do ceticismo e ultrapassa tambem tanto a nega9ao absoluta dos academicos como a afirma9ao absoluta dos dogmaticos, e reencontra assim 0 conteudo afirmativo no interior da propria nega9ao.26 A obra "sem Autor', - DiaJogos -, como come90u a compreender e indicar Hegel, certamente nao era dogmatica (afirma9ao absoluta) , talvez nao fosse academica (nega9ao absoluta), nem tampouco cetica (permanente procura negativa) , enquanto alem de todas estas posi90es, talvez ela constituisse exatamente 0 ultrapassar dialetico delas, ultrapassar este que a tradi9ao ocidental - sempre tao narcisicamente fiel a apropria9ao privada das obras, dos pensamentos e das proprias coisas -, nao por acaso, jamais soube retomar ou mesmo compreender. Como afinal os narcisicos amantes da Identidade, do Mesmo, da NaoContradi9ao e das Ontologias ousio-Iogicas do individual poderiam compreender os esb090s da arcaica sabedoria comum dos verdadeiramente philoi?

Na abertura dos seus Esbo(:os de Pironismo, Sextus Empiricus (livro I, 1-4, p.2-3) sustenta que existiriam tres principais praticantes de filosofia : aqueles que acreditam haver descoberto a verdade, os dogmaticos, e cita, como exemplo, Aristoteles, Epicuro e os estoicos ; em segundo lugar, aqueles que acreditam que a verdade e nao- captavel, e cita Clitomaco, Carneades e os Academik6i em geral; e em terceiro lugar, aqueles que continuam a procurar a verdade, estes seriam os Ceticos. A respeito dessa classifica9ao, como citamos em nossa epigrafe, observou de maneira precisa Hegel:

"Sextus distingue tres filosofias . De Platao ele nao sabe 0 que fazeI" (Hegel, 1965, p.581). Hoje, ap6s Hegel, ap6s 0 seculo XIX, ap6s 0 novo soterramento dogmatico, cetico e "academico" da Dialetica e da Filosofia, estariamos n6s, em rela9ao aos DiaJagas, em melhor situa9ao que 0 velho Sextus? Sabemos n6s, hoje, 0 que fazer de Platao?

 

BENOIT, A. H. R. Plato beyond dogmatism. Trans/Form!Ar;ao (Sao Paulo), v.18, p.79-93, 1995 .

 

ABSTRACT: The aim of this article is to incfjcate the cfj[[jculties in main taining a dogmaticinterpretation of Pla to, and to develop some reflections about the relationships between dogmatism, scepticism and cfjaiectics.

KEYWORDS: Pla tonism; dogma tism; scepticism; dialectics.

 

 

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[1] Professor do Departamento de Filosofia da Unicamp - 13081-970 - Campinas - SP - Brasil.