A INFLUENCIA DE ARIST6TELES NA OBRA ASTROL6GICA DE PTOLOMEU (0 TETRABIBL OS)

 

 

Roberto de Andrade MARTINS[1]

 

    RESUMO : Este trabalho descreve as concepc;:oes basicas da obra astrol6gica de Claudio Ptolomeu, a partir da analise do Tetrabililos. Atraves da comparac;:ao com outros autores da epoca, mostra-se que Ptolomeu nao apresenta infiuencias est6icas, como alguns autores afirmam. 0 trabalho defende que a base da astrologia ptolomaica e a fisica aristotelica .

PALAVRAS-CHAVE : Arist6teles ; Ptolomeu ; astrologia; astronomia antiga ; fisica aristntelica; estoicis­ mo.

 

 

1 Introduao

 

Gil Vicente (1465- 1 536) , em uma de suas " farsas" - 0 Au to dos fisicos - nos permite urn vislumbre humoristico da Medicina da epoca, fortemente influenciada pela Astrologia. 0 tema desse Auto e 0 amor de urn clerigo por uma jovem (a Blanca Denisa) . Nao sendo correspondido em sua paixao, 0 clerigo adoece (sem poder revelar a causa de seu sofrimento) e surgem os medicos (" fisicos ") para trata-lo. Urn deles e o " fisico" Torres.

Esse medico come9a a consulta analisando 0 estado dos astros quando as dores come9aram :

 

Torres - Dez dias de manhii cedo Estava Saturno em Aries ...

Doem- vos as pontas dos pes?

 

 

E depois continua comentando que 0 ana e bissexto, que Jupiter e a Lua estavam em Peixes etc. Mas nao consegue descobrir a causa dos males do clerigo :

 

Torres - Nao veja causa nenhuma Para febre verdadeira.

E tambem deste ajuntamento Dos planetas desta era ...

Nao sei ... nao sei. .. mas par mera Astrologia ... nao sei, eu sinto ... Nao sei que e, nem que era ;

Mas ha de saber quem curar Os passos que da uma estrela E ha de sangrar par ela ,

E ha de saber julgar As aguas numa panela.

E ha de saber proporc;:oes No pulso se e temario, Se altera , se e binario,

E saber quantas ]ic:oes

Deu Ptolomeu ao Rei Dario. E quem isto nao souber Va-se beber disso mesmo.

(Auto dos [isicos, in : Vicente, 1843, v.3, p. 300; grifos nossos)

 

Alem de nos mostrar a grande importancia da Astrologia medica no Portugal renascentista - alias, em toda a Europa da epoca - Gil Vicente nos da uma indicação muito precisa sobre a principal autoridade em que essa tradição se baseava: Ptolomeu, o famoso astronomo de Alexandria. As "lic;oes que Ptolomeu deu ao rei Dario" sao uma referencia a mais importante obra astrol6gica de todos os tempos : 0 Tetrabiblos.

o objetivo deste trabalho e estudar as bases da Astrologia ptolomaica, procurando mostrar a existencia de uma grande influencia aristotelica. A visao aqui apresentada difere da interpretação tradicional, que ve a Astrologia antiga influenciada apenas pela tradição filos6fica est6ica (ver, por exemplo : Tester, 1987, cap. IV). Em certo sentido, a posição aqui defendida e a de que Arist6teles pode ser considerado 0 avo da Astrologia helenistica, que adquiriu sua forma madura no Tetrabiblos de Ptolomeu[2]

Como e bem sabido, 0 grande fil6sofo Arist6teles, de Estagira (384- 322 a.C.), desenvolveu um sistema filos6fico abrangendo muitas areas do conhecimento huma­ no : L6gica, Etica, Metafisica, Fisica, Astronomia, Meteorologia, Quimica, Hist6ria Natural, Fisiologia etc. Ele legou a posteridade urn impressionante corpo de conhecimentos sistematizados, justificados e mutuamente interligados, que serviu de modelo para 0 desenvolvimento cientifico durante dois milenios.

Nem todas as areas de estudo foram abordadas por Arist6teles . Ele nao parece ter escrito nenhuma obra medica, mas teve grande influencia na Medicina, atraves de Claudio Galeno (131-201 d.C.). De fato, a principal diferençã entre a medicina hipocratica e a de Galeno e que este ultimo tenta proporcionar uma teoria, uma justificativa racional para a pratica medica - e, para isso, Galeno busca seu modele e sua base em Arist6teles.

Arist6teles tambem parece nao ter se dedicado aos estudos astrol6gicos. A primeira vista, toda a atitude racionalista de Arist6teles pode nos parecer incompativel com algo tao pouco cientifico quanto a Astrologia. Por isso, nem esperariamos encontrar qualquer conexao entre 0 pensamento aristotelico e esse tipo de estudo. No entanto, por mais estranho que possa parecer, a filosofia de Arist6teles serviu de base te6rica para 0 desenvolvimento da principal obra astrol6gica da tradição helenistica : 0 Tetrabiblos de Claudio Ptolomeu (seculo II da era crista) .

Nao e por acaso que Galeno e Ptolomeu devem ser citados juntos. Ambos, na mesma epoca, fizeram parte do ultimo impulso do racionalismo helenico, que nessa epoca ja convivia ao lade de urn misticismo - que tentava obter por revelação divina aquilo que antes era obtido apenas pelas forçãs da razao (Festugiere, 1989, p.5).

 

2 0 Livro Quadruplo ( Tetrabiblos)

Claudio Ptolomeu (circa 100- 178 d.C.) e bern conhecido como urn dos mais famosos astronomos da Antiguidade . No seu grande livro Almagesto (ou "Syntaxis mathematica"), ele sistematizou 0 sistema geocentrico, descrevendo matematica­ mente os movimentos dos planetas como se a Terra estivesse parada no centro do Universo. Trata-se de uma obra de grande complexidade e sofisticação matematica, que permitiu 0 calculo bastante correto dos movimentos observados nos ceus, durante seculos . Mas a obra de Ptolomeu e muito mais vasta. Ele tambem escreveu importantes trabalhos sobre Geografia, Optica, Harmonia e - aquilo que nos interessa aqui sobre Astrologia.

Sob 0 ponto de vista atual, a Astrologia e a Astronomia costumam ser vistas como coisas totalmente distintas . A Astronomia parece ser urn estudo "seno", desenvolvido por cientistas ; a Astrologia parece ser apenas uma superstição. Por isso,no seculo XIX (epoca em que 0 cientificismo estava em alta) surgiu a suspeita de que o astronomo Ptolomeu nao poderia ter sido 0 autor de uma obra astrol6gica. Essa suspeita, no entanto, foi motivada apenas por urn preconceito, por uma visao anacronica do pensamento astronomico e astrol6gico. Na Idade Media e no inicio da Idade Modema, ninguem jamais suspeitou que 0 Tetrabiblos pudesse nao ser de Ptolomeu, pois nessas epocas os dois tipos de estudos ainda estavam intimamente relacionados. Kepler, como se sabe, foi astronomo e astr6logo. E claro que, a rigor, nao podemos ter certeza de que Ptolomeu escreveu 0 Tetrabiblos ou qualquer outra obra - nao existem manuscritos dessa epoca que nos permitissem, por exemplo, comparar letra e assinatura. Os manuscritos mais antigos existentes do Tetrabiblos sao do seculo XIII. Existe urn comentario de Proclos (Paraphrase) em manuscrito do seculo X, e esse e 0 mais antigo documento referente ao Tetrabiblos. Mas 0 proprio estilo e linguagem mostram que 0 autor do Tetrabiblos pode ser 0 mesmo autor do Aimagesto. Por isso, assumiremos que foi Ptolomeu quem escreveu ambas essas obras. o nome " Tetrabiblos" (" livro quadruplo", em grego - traduzido em latim como Quadripartitum) e 0 modo mais popular pelo qual se refere a essa obra. 0 nome mais compIeto encontrado em alguns manuscritos e Ma thematike Tetrabiblos sintaxis ("tratado matematico em quatro partes"), que lembra 0 nome original do Aimagesto: Sin taxis mathematika . Ambos os trabalhos devem ter sido compostos em torno do ana 150 da Era Crista. Nessa epoca, Ptolomeu residia em Alexandria (ou talvez em uma cidade proxima a Alexandria, Canopus) , no Egito. Alexandria era 0 grande centro cultural do mundo, onde se reuniam as tradi90es egipcias, orientais e gregas. Mas logo depois, como se sabe, esse centro foi destruido.

Durante muito tempo, 0 Tetrabiblos ficou esquecido na Europa. No entanto, ele foi conservado e depois traduzido para 0 arabe, por 1shaq ben Hunein (seculo IX) . Com ase nessa versao, Plato Tiburtinus (1138) e Aegidius de Thebaldis (seculo XIII) fizeram tradu90es para 0 latim, que foram publicadas em 1484 . A partir dessa epoca, a obra se torna uma das mais importantes fontes astrologicas, na Europa.

Pouco apos a inven9ao da imprensa de tipos moveis , 0 proprio texto grego do Tetrabiblos foi publicado . Em 1535, a gratica Froben, em Nurnberg, publicou 0 texto editado por Camerarius, com tradu9ao parcial; em 1553, 0 proprio Camerarius publicou nova edi9ao, pela gratica de Joannes Oporinus, em Basel, com tradu9ao latina completa por Philip Melanchthon; e em 1581, 0 texto foi publicado em Leyden pOI Fr. Junctinus, como parte da obra Speculum astrologiae.

Desde 0 seculo XVI, foram publicadas varias tradu90es (para 0 latim e outros idiomas) do Tetrabiblos . Uma das mais importantes tradu90es diretas do grego foi a de Antonius Gogava, publicada em 1 543, em Louvain. Essa tradu9ao teve, depois, muitas reedi90es 1sso mostra a grande importancia que se dava a essa obra, na epoca. Atualmente, 0 livro de Ptolomeu e pouco lido e quase desconhecido. E necessario, no entanto, recuperar sua leitura, pela grande importancia cultural que teve durante mais de mil anos .

 

 

3 Astronomia e Astrologia na Antigiiidade

 

Aquilo que chamamos atualmente de "Astrologia" nasceu junto com 0 que cha­ mamos de "Astronomia". Na verdade, eram dois aspectos de urn mesmo estudo : a investiga9ao dos corpos celestes e de suas propriedades (incluindo sua influencia na Terra) . Esses dois estudos nao nasceram na Grecia : hB. tradi90es muito mais antigas (egipcias e babilonicas, por exemplo) que ja se dedicavam a esse tipo de investiga9ao. No entanto, tanto na Astronomia quanto na Astrologia, 0 pensamento grego proporcionou uma contribui9aO especial: a tentativa de sistematizar, de fornecer uma teoria ampla e coerente de todos os fen6menos 3 0 pico desse desenvolvimento foi 0 trabalho de Ptolomeu.

Antes de Ptolomeu, aparentemente, ninguem havia tentado apresentar a Astro­ logia como urn corpo de conhecimentos baseado em uma teoria fisica. A Astrologia costumava ser vista ou como uma doutrina religiosa (mistica) ou como urn conheci­ mento puramente empirico.

Cicero atribui a origem da Astrologia aos assirios, caldeus e egipcios e sup6e que a sua origem e empirica, ou seja, observacional:

 

Antes de todos - para procurar a autoridade das fontes mais distantes - os assirios, par causa dos vastos pianos que habitavam, e par causa da visao aberta sem obstrw;:6es que os ceus lhes apresentavam par todos os lados, observaram os caminhos e movimentos das estrelas e, anotando-os, transmitiram a posteridade 0 significado que tiveram para cada pessoa. E naquela mesma na9aO os caldeus ... , atraves de uma obserVa9aO longamente continuada das constela96es - assim se pensa - aperfei90aram uma ciencia que lhes permite preyer 0 que oconera a qualquer pessoa e para que destino ele nasceu.

Acredita-se que a mesma arte tambem foi adquirida pelos egipcios atraves de urn passado remoto que se estende a seculos quase incontaveis. (Cicero, De divinatione, Iivro 1, p.i, 2)

 

De urn modo geral, os antigos aceitavam uma origem empirica para a Astrologia.

o fi16sofo cetico Sextus Empiricus (seculo III da Era Crista), na obra Adversus astrologos, (Con tra os astr610gos)4 tamMm atribui aos caldeus 0 inicio desses estudos :

Sendo assumido previamente que as coisas terrestres simpatizam com as dos ceus e que as primeiras sao sempre afetadas pelas efiuencias das ultimas, os caldeus, tendo contemplado com curiosidade a abobada que nos circunda, declararam q\le as sete estrelas [moveis - isto e, Sol, Lua e planetas] sao causas eficientes do surgimento zodiaco de tudo 0 que ocone na vida e que as partes do zodiaco cooperam com elas. (Sextus Empiricus, Adversus astroiogos, p.4-5)

 

A linguagem utilizada por Sextus mostra que ele nao via fundamentos na Astrologia : ela se baseava apenas em urn pressuposto de "simpatia" eritre os ceu e as coisas terrestres .

Para muitos autores antigos, no entanto, a Astrologia era uma doutrina religiosa e mistica, obtida por revela9ao, sendo portanto desproviQa de justificativa racional. Como exemplo desse tipo de atitude, podemos citar 0 medico Thessalos de Tralles (seculo I d.C.), que escreveu uma obra sobre Astrologia medica.5 Thessalos conta ter estudado em Alexandria, aprendendo tudo 0 que se ensinava na epoca sobre 0 assunto, mas ficou decepcionado com 0 que aprendeu. Viajou por todo 0 Egito e, em Diosporis, encontrou urn sacerdote experiente em artes magicas que prometeu ajuda-lo . Esse sacerdote sabia invocar os demonios, os mortos e os deuses. Depois de faze-lo ficar em jejum por tres dias, 0 sacerdote 0 levou a urn local onde invocou o deus Asclepios, que apareceu e ensinou a Thessalos tudo 0 que este queria saber sobre Astrologia. Entre outras coisas, Asclepios diz :

o crescimento e 0 perecimento de todos os rrutos da estar;ao dependem do inOuxo dos astros ; alem disso, 0 espirito (pneuma) divino, que sua extrema sutileza faz passar atraves de todas as substancias, se espalha com abundimcia particular nos lugares atingidos sucessivamente pelos influxos astrais ao longo da revolur;ao cosmica. (Thessalos, apud Festugiere, 1989, p.163)

 

Note-se que, nesse caso, a pr6pria natureza da influencia dos astros na Terra se da pelo "espirito divino" - ou seja, ao inves de uma teoria fisica, temos uma justificativa teo16gica para a Astrologia.

Como vamos ver, Ptolomeu nao adota nenhuma dessas posi<;:oes . Para ele , a Astrologia e urn conhecimento de tipo filos6fico, com base racional.

 

4 A natureza da Astrologia para Ptolomeu

 

o inicio do Tetrabiblos apresenta uma justificativa geral da Astrologia. Na Antiguidade, os nomes "Astrologia" e "Astronomia" eram sinonimos , como ja disse­ mos . No entanto, Ptolomeu diferencia aquilo que chamamos normalmente de Astro­ nomia (0 estudo dos movimentos dos astros) daquilo que chamamos de Astrologia (0 estudo das influencias dos astros nos acontecimentos terrestres) :

Existem dois metodos de predir;EIo pela Astronomia, 0 Sirius, que sao mais importantes e validos. Um, que e 0 primeiro, tanto peIa ordem como peIa eficacia, e aqueIe peIo qual captamos os aspectos dos movimentos do Sol , Lua e estrelas uns em reIar;EIo aos outros e em reIar;EIo a Terra, conforme ocorrem no tempo. 0 segundo e aqueIe peIo qual, atraves do carater natural desses aspectos, nos investigamos as mudanr;as que elas trazem naquilo que cercam. (Ptolomeu, 1980, livro I, cap. l, p.l / Camerarius)[3]

Ptolomeu considera 0 primeiro metoda (que chamamos de Astronomia) mais direto, auto-suficiente, passivel de demonstra<;:oes por utilizar uma abordagem mate­ matica. 0 segundo, pelo contrario (que corresponde ao que chamamos de Astrologia) , estuda as influencias celestes . Ele nao e auto- suficiente (pois depende de calculos sobre a posição dos astros, dados pelo primeiro metodo) , nem e tao seguro quanto 0 primeiro. Segundo Ptolomeu, ele utiliza urn metodo filos6fico :

 Nos proporcionaremos agora uma descrição do segundo metodo, que e menos auto- sufi­ ciente, de urn modo propriamente filosofico. Aquele que tern por objetivo a verdade nunca deve comparar essas suas percep<;oes com a certeza da primeira ciencia, invariante, pois ele lhes associa a fraqueza e imprevisibilidade das qualidades materiais encontradas em coisas individuais. No entanto, ele nao se afasta de tais investiga<;oes, pois estao dentro dos dominios da possibilidade, sendo tao evidente que a maior parte dos eventos de uma natureza geral sao causadas pelos ceus circundantes. (Idem, ibid.)

 

Note-se que Ptolomeu utiliza aqui uma concepgao de filosofia que indui 0 estudo daquilo que e apenas provavel.

Ptolomeu explica, logo depois, 0 motivo pelo qual se deve supor que os astros influenciam os fen6menos terrestres :

 

Algumas poucas considera<;oes tornarao claro a todos que urn certo poder que emana da substancia eterea eterna[4] se espalha e permeia toda a regiao em torno da Terra, que esta completamente sujeita a mudançãs, pois, dos elementos sublunares primarios, 0 fogo e 0 ar sao envolvidos e alterados pels movimentos do eter, e eles por sua vez envolvem e mudam todo 0 resto, a terra e a agua, as plantas e os animais. Pois 0 Sol, juntamente com 0 ambiente, estci. sempre de alguma forma afetando tudo na Terra, nao apenas pelas mudançãs que acornpanham as esta<;oes do ana para trazer a geração dos animais, a produção das plantas e 0 fiorescimento das aguas e mudançãs dos corpos, mas tambem por suas revolu<;oes diarias produzindo calor, umidade, secura e frio, em ordem regular e em correspondencia com suas posi<;oes em relação ao zenite. A Lua, tambem, sendo 0 corpo celeste rnais proximo a Terra, fornece sua infiuencia de forma mais abundante sobre as coisas do mundo, pois a maioria delas, animadas ou inanimadas, possuem simpatia por ela e mudam junto com ela. Os rios aumentam e diminuem suas correntezas com sua luz, os mares mudam suas proprias mares com seu erguer-se e deitar-se, e plantas e animais no todo ou em alguma parte incham e se esvaziam com ela. Alem disso, a pas sag em das estrelas fixas e dos planetas pelo ceu geralmente significam condi<;oes de calor, vento e neve do ar , e as coisas do mundo sao afetadas de modos correspondentes. Seus aspectos mutuos, tambem, pelo encontro e combinação de suas emissoes , produzem muitas mudançãs complexas. Pois embora 0 poder do Sol predomine no ordenamento geral das qualidades, os outros corpos celestes o ajudam ou se opoem a ele em detalhes particulares - a Lua de modo mais obvio e continuo, como por exemplo quando esLa cheia, em quarto ou nova ; e os astros de modo mais obscuro e em intervalos maiores, como em seus aparecimentos, oculta<;oes e aproxima<;oes. Se essas coisas forem assim consideradas, todos julgarao que se segue que nao apenas as coisas compostas devem ser afetadas de algum modo pelo movimento desses corpos celestes , mas tambem a germinação e brotamento da semente deve ser moldada e sua forma alterada pela quaJidade propria dos ceus no momento. (Idem , livro I. cap.2, p.2-4, Camerarius)

 

Ou seja: Ptolomeu indica conexiSes causais puramente naturais entre os fen6- menos celestes e terrestres, sem qualquer mengao nem a "simpatias" nem a influen­ cias sobrenaturais .

Ptolomeu admite que muitos dos conhecimentos sobre as influencias dos astros foram obtidos por mera observagao (de modo empirico) :

Os fazendeiros e criadores mais observadores adivinham, a partir dos ventos que prevalecem no instante da impregnac;:ao e do semear, a qualidade daquilo que ira resultar; e em geral vemos que as conseqiiencias mais importantes indicadas pelas configurac;:5es mais 6bvias do Sol, Lua e astros sao conhecidas antecipadamente, mesmo por aqueles que investigam apenas pela obser­ vac;:ao e nao pela teoria. (Idem, p.4, Camerarius)

 

Esse conhecimento empirico, no entanto, nao e suficiente : ele leva a erros, pois as pessoas nao conhecem todos os fatores envolvidos . Mas Ptolomeu afirma que, desde que se levem em conta todos os fatores e se disponha do conhecimento te6rico (cientifico) adequado, e possivel fazer previsoes corretas :

 

Em sua ignorancia, por nao conhecerem precisamente os tempos e lugares desses fenomenos , nem os movimentos peri6dicos dos planetas, que contribuem de forma importante para 0 efeito, ocone que eles geralmente erram. Se, no entanto, um homem conhece precisamente os movimentos de todos os astros, do Sol e da Lua, de modo que nem 0 lugar nem 0 tempo de qualquer de suas configurac;:6es escape a sua noticia ; e se ele distinguiu de forma geral suas naturezas como resultado de um estudo previo continuo, ... e se ele for capaz de determinar, com vista em todos esses dados, tanto de modo cientifico como por conjetura bem-sucedida, as marcas de quaJidade distintivas que resultam da combinac;:ao de todos os fatores, 0 que 0 impedira de ser capaz de predizer em cada ocasiao dada as caracteristicas do ar a partir dos fenomenos daqueJe tempo - por exemplo, que sera mais quente ou umido? (Idem, p.5, Camerarius)

 

 

A concepção geral da natureza da Astrologia, para Ptolomeu, corresponde aquilo que denominamos como "ciencia" , hoje: urn estudo sobre a natureza que investiga as interac;oes entre os corpos e procura determinar as leis que regem essas interac;oes, pela observação e pela teoria. A Astrologia nao e, para Ptolomeu, nem uma doutrina mistica, nem urn estudo puramente empirico .

 

 

5 Criticas antigas a Astrologia

 

Na epoca de Ptolomeu, havia defensores e adversarios da Astrologia. Ptolomeu conhece os diferentes argumentos e procura responder as principais objec;oes .

Quais eram essas objec;oes? Uma das melhores fontes para 0 conhecimento do pensamento antigo e Sextus Empiricus. Depois de expor a doutrina dos astr6logos, Sextus Empiricus procura critica-la sob varios pontos de vista (Sextus Empiricus, Adversus astrologos, p. 43- 106) . As principais criticas colocadas sao :

  nao existe "simpatia"8 entre as coisas celestes e as humanas , pois nao ha conexao e uniao entre elas ;

  s6 e possivel predizer 0 futuro se existe urn destino fixo - e se M urn destino fixo , essa predic;:ao e inutil, pois nada se pode fazer a favor ou contra esse futuro ;

  dificuldade pratica de determinar 0 momenta exato de concepc;:ao ou momenta de

nascimento de uma crianc;:a, e a posic;:ao exata dos astros, nesse momento, para trac;:ar 0 hor6scopo ;

  evidencia pratica de que as vidas de varias pessoas nascidas ao mesmo tempo em locais pr6ximos sao bern diferentes:

 

Aqueles que nasceram aproximadamente ao mesmo tempo nao tiveram a mesma vida, mas alguns, por exemplo, foram reis , enquanto outros envelheceram acorrentados. Assim, muitas pessoas nasceram no mundo ao mesmo tempo, mas ninguem foi igual a Alexandre da Macedonia, nem ao fil6sofo Platao. (Idem , p. SS)

 

   dificuldade de compreender a influencia dos astros e das constelac;:6es nos fenome­ nos terrestres :

 

Se for por causa da mudanc;:a do ar, 0 que isso tern a ver com uma diferenc;:a de vida? Pois embora uma certa combinac;:ao do ar possa contribuir para a forc;:a fisica e carater bestial da criatura que nasce, 0 ar nao parece cooperar como causa em que uma pessoa se envolva em dividas ou que se tome urn rei ou seja colocado na prisao ou seja esteriJ ou sem amigos. (Idem, p.l0l)

 

Uma fonte anterior a Sextus Empiricus nos apresenta argumentos semelhantes : e a obra De divina tione de Marcus Tullius Cicerus (106 - 43 a.C.). Essa obra e apresentada como urn debate entre Cicero e seu irmao Quintus sobre a possibilidade de preyer 0 futuro . Quintus defende a possibilidade de todos os tipos de adivinhac;:6es (por sonhos, por aUgUrios, pelo exame do figado dos animais sacrificados etc.) e Cicero se op6e a eles . Urn dos metodos discutidos e a Astrologia. As principais fontes de informac;:ao utilizadas no livro sao de origem est6ica :

 

Os Est6icos, por outro lado (pois Zenao em seus escritos espalhou, por assim dizer, certas sementes que Cleantes havia fertilizado), defenderam quase todos os tipos de adivinhac;:ao. Entao veio Chrysippus, urn homem de intelecto muito agudo, que discutiu exaustivamente toda a teoria da adivinhac;:ao em dois livros e, alem disso, escreveu urn livro sobre oraculos e outro scbre sonhos.

E seguindo-o, seu aluno, Di6genes de Babilonia , publicou urn livro, Antipater dois, e meu amigo Posidonius, cinco. Mas Panaetius , 0 professor de Posidonius, e tambem aluno de Antipater, tendo sido urn pilar da escola Est6ica, afastou-se dos Est6icos, e, embora nao ousasse dizer que a adivinhac;:ao nao era eficaz, afirmou que estava em duvida. (Cicero, De divina tione, livro I, p.iii, 6)

 

Cicero contrasta a pr6pria Astronomia com os processos de adivinhac;:ao do futuro :

 

Eclipses do Sol e da Lua sao previstos muitos anos antes por homens que empregam a Matematica no estudo dos caminhos e movimentos dos corpos celestes; e as leis invariantes da natureza fazem com que suas previs6es oeorram. Por eausa dos movimentos perfeitamente regulares da Lua, os astronomos calculam quando ela estara oposta ao Sol e na sombra da Terra - que e 0 "cone de sombra" - e quando, necessariamente, fieara invisivel ...

Mas que tipo de raciocinio e seguido pelas pessoas que predizem 0 achado de urn tesouro ou 0 recebimento de uma heranya? Em que lei da natureza essas profecias se baseiam? (Idem, livro II, p.vi, 17-vii, 18)

 

Cicero aceita a existencia de certas influencias celestes sobre coisas terrestres, mas nao aceita a existencia de sinais de acontecimentos futuros:

 

Assumindo que todas as obras da natureza estao firmemente unidas entre si em urn todo harmonioso (0 que, como observ, e a opiniao dos fil6sofos naturais e especialmente daqueles que mantem que 0 universo e uma unidade), que conexao pode existir entre 0 universo e 0 achado de um tesouro? ... No entanto, deve-se admitir um certo contato entre as diferentes partes da natureza e eu 0 concedo. Os Est6icos coletaram muita evidencia para prova-Io. Eles alegam, por exemplo, que os figados dos ratos aumentam no inverno ; que 0 pulgueiro9 seco f10resce exatamente no dia do solsticio de inverno, e que suas vesiculas se inflam e arrebentam, lanyando as sementes la contidas para lOdos os lados ; que quando certas cordas da lira sao tocadas, outras ressoam ; que as ostras e todos os crustaceos crescem com 0 crescer da Lua e diminuem com ela ; e que as arvores sao mais faceis de cortar quando a Lua envelhece lap6s a Lua cheial . pois ficam secas.

As mares nos canais e mares tambem sao governadas pelos movimentos da Lua. Podem ser dados inumeros exemplos do mesmo tipo para provar que existe alguma conexao natural entre objetos distantes. Concedamos que isso existe. No entanto, pode isso responder a meu ponto: se uma fissura em um figado pode indicar um ganho financeiro? (Idem, p.xiv, 33-4)

 

Aqui, a crltica de Cicero nao e a pr6pria Astrologia, mas a previsao baseada no estudo de entranhas de animais sacrificados . Mas a citação e relevante, pois mostra que ele aceita a existencia de certas conex6es entre fenomenos celestes e terrestres. Mas em outro trecho de sua obra, Cicero apresenta uma critica direta a Astrologia :

 

Chegamos as manifestayoes dos Caldeus. Ao discuti- Ias , Eudoxos, um discipulo de PIatao, que os homens mais doutos consideram 0 primeiro em Astrologia, 10 deixou a seguinte opiniao em seus escritos : "Nao se deve confiar nas prediyoes dos Caldeus quando preveem a vida de um homem pelo seu hor6scopo". Panaetius, ta mbem, que foi 0 unico dos Est6icos a rejeitar as prediyoes dos astr610gos , menciona Anchialus e Cassandrus como os maiores astr610gos de sua epoca e afirma que eles nao empregavam sua arte como meio de adivinhayao, embora fossem eminentes em todas as outras partes da Astrologia...

Mas vamos deixar de lade os testemunhos e discutir as razoes daqueles que defendem as previsoes natalicias dos Caldeus Como, pelo avanyo e retrocesso dos astros, ocone grande variedade e mudanya das estayoes e da temperatura, e como 0 poder do Sol produz resultados que vemos, eles acreditam que e nao apenas provavel, mas seguro, que assim como a temperatura do ar e regulada par esta forya celeste, tambem as crianyas em seu nascimento sao influenciadas em alma e espirito e, par esta farya , sao determinados suas mentes , modos, disposiyao, condiyao fisica, carreira e destino.

Que delirio incrivel ! pois nao basta dizer que esse erro e uma lOlice. (Idem, p.x1ii, 87-90)

 

Por que essa suposi9aO parece tao absurda a Cicero? Ele da varios motivos . Em primeiro lugar, tendo em vista a grande distancia entre os planetas, que influencia eles poderiam ter sobre a Terra? Em segundo lugar: em regioes muito proximas, 0 clima pode ser muito diferente, em urn mesmo instante. Isso, por urn lado, parece indicar que a influencia celeste nao determina 0 clima. Por outro, se 0 nascimento e influenciado pelos astros, nao seria tambem influenciado pelo clima, que no entanto nao e levado em conta pelos astrologos?

Alem disso, Cicero aponta que os astrologos nao levam em conta a influencia dos pais, embora todos vejam que a aparencia e os Mbitos das crian9as sao herdadas dos seus pais . Isso nao aconteceria se as caracteristicas das crian9as fossem deter­ minadas pelas fases da Lua e pelas condi90es celestes .

Por outro lado, Cicero aponta que M pessoas unicas, diferentes de todas as outras por sua vida e destino, mas que devem ter nascido sob 0 mesmo horoscopo que muitas outras ; e pessoas que morrem em uma mesma batalha, mas que nasceram sob ceus muito diferentes. Por fim , Cicero indica que muitas previsoes feitas pelos astrologos a respeito de importantes politicos (como 0 proprio Cesar) falharam completamente.

 

6 A defesa da Astrologia no Te trabiblos

Ptolomeu conhecia varias dessas criticas da epoca. Ele responde a varias delas, logo no inicio do Tetrabiblos . Em primeiro lugar, ele examina os erros das previsoes astrologicas e as explica como resultado de erros daqueles que praticam a Astrologia e nao da propria Astrologia (Ptolomeu, 1980, livro I, cap.2, p.6, Camerarius) . Alem disso, ele alerta para 0 fato de que muitos , intitulando-se astrologos, enganam as pessoas , utilizando outros metodos que nao permitem fazer previsoes corretas :

 

Em segundo lugar, a maiaria , par desejo de luera, pede credito para outra arte em nome desta e engana 0 vulgo, pois eles possuem a reputação de prever muitas coisas, mesmo as que nao podem ser conhecidas previamente de modo natural ; e os mais sensatos, par causa disso, sao levados a julgar tambem de forma desfavaravel os temas naturais de prafecia. Mas isso nao merece ser feito. 0 mesmo ocone com a filosofia: nao precisamos aboli-la parque existem evidentemente algumas vibaras entre os que possuem pretensao a ela. (Idem, ibid.)

 

Nao sao apenas as pessoas mal intencionadas que erram, segundo Ptolomeu. Ele admite que 0 terna e muito complexo e que M outras causas e influencias alem das celestes, que podem afetar os acontecimentos terrestres .

 

Na investigação dos fenomenos atmosfericos, essa la complexidade e variabilidadel seria a unica dificuldade, pOis nao existem outras causas a serem levadas em conta alem dos movimentos dos corpos celestes. No entanto, em uma pesquisa sobre nascimentos e temperamentos indivi­ duais em geral, pode-se ver que existem circunstancias que nao sao de pequena importimcia ou carater desprezivel, que se unem para causar as qualidades especiais daqueles que nascem. Pois diferenc;:as de semente exercem uma enorme infiuencia nos trac;:os especificos do genero, pois, se o ambiente e 0 horizonte forem os mesmos, cada semente prevalece e exprime em geral sua pr6pria forma - por exemplo, de homem, cavalo e assim por diante. E os locais de nascimento produzem grande variac;:ao naquilo que e produzido. Pois se a semente e genericamente a mesma - humana, por exemplo - e as condic;:oes do ambiente sao as mesmas, aqueles que nascem diferem muito, tanto em corpo quanto em espirito, pela diferenc;:a dos paises. Alem disso, mesmo quando todas as condic;:oes acima mencionadas sao iguais, os costumes e a educac;:ao contribuem para influenciar o modo particular pelo qual se desenvolve uma vida. (Idem, p.7-8, Camerarius)

 

Mais adiante, Ptolomeu esclarece que a Astrologia nao preve 0 futuro de modo necessario, como urn destino fixo, mas apenas pela analise de tendencias.

 

E verdade que 0 movimento dos corpos celestes e realizado eternamente de acordo com urn destino divino imutavel, enquanto as mudanc;:as das coisas terrestres esta sujeita a uma sorte natural e mutavel e, ao trac;:ar suas causas primeiras ao mundo superior, elas estao governadas pelo acaso e pela sequencia natural. Alem disso, algumas coisas acontecem a humanidade atraves de circunstancias mais gerais e nao como resultado das tendencias naturais do pr6prio individuo - por exemplo, quando muitos hornens morrem pela guerra ou peste ou cataclismas , atraves de mudanc;:as monstruosas e inescapaveis do ambiente - pOis as causas menores sempre cedem a maior e mais forte. Outras ocorrencias, no entanto, concordam com 0 pr6prio temperamento natural do individuo atraves de antipatias menores e fortuitas do ambiente. (Idem, cap.3, p. 11 -12 , Camerarius)

 

Ptolomeu faz varias comparac;:oes para esclarecer sua visao sobre as previsoes astrologicas . Na natureza, existem coisas que ocorrem necessariamente, e outras que apenas ocorrem se nenhuma coisa oposta interfere. Ha, por exemplo, doenc;:as que sao sempre fatais e que 0 medico nem mesmo trata;ll e outras que so produzem a morte se nao forem tratadas . Ou seja: ha causas que, abandonadas a si proprias, produzirao seus efeitos, mas que podem ser impedidas de produzir esse efeito por outras causas . Dessa forma, no nascimento de uma pessoa, as influencias celestes - juntamente com outras causas admitidas por Ptolomeu - criam certas predisposic;:oes que, se nao forem impedidas por outras causas, produzirao certos efeitos (constituic;:ao fisica e moral etc.) ; mas esses efeitos podem nao ocorrer, pela ac;:ao de outras causas . Assim, 0 proprio conhecimento das predisposic;:oes astrologicas de urn individuo poderia ser util porque, ao inves de descrever algo inevitavel, apresenta apenas uma predisposic;:ao que pode ser aj udada ou impedida de atuar.

 

Devemos acreditar no medico, quando ele diz que esse ferimento ira se espalhar ou causar putrefac;:ao Igangrenal . e o mineiro, por exemplo, Iquando dizl que 0 ima atrai 0 ferro. Cada uma dessas coisas, se deixada a si propria pela ignorancia de forc;:as opostas, desenvolvera inevitavel­ mente aquilo a que sua natureza original impele, mas se receber urn tratamento preventivo, a ferida nao se espalhara e nao produzira putrefac;:ao, e se 0 ima for esfregado com alho, nao atraira o ferro; 12 e essas medidas impedidoras tambem possuem seu poder de resistencia de modo natural e pelo destino. Tambem nos outros casos, se os conhecimentos futuros dos homens sao desconhecidos, ou se eles sao conhecidos mas nao sao apJicados os remedios, eles seguirao 0 curso da natureza primaria. Mas se forem reconhecidos antes e forem proporcionados os remedios, entao, ainda de acordo com a natureza e 0 destino, eles ou nao ocorrerao ou serao tornados menos severos. (Idem, p. 13, Camerarius)

 

Ptolomeu faz uma nova comparaQao logo depois : mesmo se 0 inverno e o verao forem inevitaveis, as pessoas podem se prevenir contra 0 excesso de calor ou de frio em abrigos adequados. 0 papel das previsoes astrol6gicas seria identico ao das previsoes meteorol6gicas : permitir que as pessoas utilizem esse conhecimento para reforQar ou lutar contra as tendencias observadas . Ptolomeu tamMm lembra 0 usa que os egipcios haviam feito da Astrologia na Medicina : ao inves de servir para prever o inevitavel, a Astrologia tinha a utilidade de facilitar 0 tratamento, pelo conhecimento mais profundo das tendencias da doenQa.

De forma resumida, essa e a defesa que Ptolomeu apresenta da Astrologia. Pode-se perceber que ele responde a quase todas as criticas apresentadas por Sextus Empiricus e por Cicero . Em alguns casos , ele fornece esclarecimentos que mostram que 0 tipo de Astrologia que defende e diferente do criticado por outras pessoas (por excmplo : ele nao e fatalista) . Ha, no entanto, urn ponto que tanto Sextus Empiricus quanto Cicero apontam e que, ainda hoje, e a primeira objeQao a Astrologia que ocorre aos cientistas : como se poderia compreender a infiuencia dos astros? Este e urn ponto central, que Ptolomeu desenvolve de urn modo bern diferente de outros astr6logos. Ao inves de recorrer a ideia de uma "simpatia" ou qualquer outra relaQao desconhecida, ele utiliza uma teoria de infiuencias naturais atraves de calor, frio, umidade e secura.

 

 

7 As qualidades e caracteristicas dos astros

 

Ap6s defender a possibilidade e importancia da Astrologia, Ptolomeu descreve as propriedades dos varios planetas e suas infiuencias . Aqui, percebe-se claramente que ele utiliza como base de seu estudo as quatro qualidades - quente, frio, limido, seco :

O poder ativo da natureza essencial do Sol e 0 de aquecer e, em certo grau, secar. Isto se torna rnais facilmente perceptivel no caso do Sol do que qualquer outro carpo celeste par seu tamanho e pela evidencia das mudançãs das esta<;:6es, pois quanto mais ele se aproxima do zenite, rnais ele nos afeta deste modo. 0 principal poder da Lua consiste em umidecer, parque esta proxima a Terra e par causa das exala<;:6es umidas que dai saem. Sua ação e partanto precisamente esta, principalmente amolecer e causar putrefação em carpos, mas tambem compartilha modera­ damente do poder de aquecer, par causa da luz que recebe do Sol.

A qualidade de Saturno e principalmente de esfriar e, moderadamente, de secar, provavel­ mente parque ele e 0 mais afastado tanto do calar do Sol quanta das exala<;:6es umidas da Terra. Tanto no caso de Saturno como no dos outros plnnetas, tambem existem poderes que provem daobservação de seus aspectos com 0 Sol e a Lua, pois alguns deles parecem modificar as condi<;:6es do ambiente de urn modo, outros de outro, par aumento ou por diminuição.

A natureza de Marte e principalmente de secar e queimar, em confarmidade com sua cor de fogo e por causa de sua proximidade ao Sol, pois a esfera do Sol esta logo abaixo da sua.

Jupiter tem uma forçã ativa temperada, pois seu movimenta ocorre entre a infiuencia resfriadara de Saturno e 0 poder queimante de Marte. Ele tanto aquece quanta umidece ; e como seu poder de aquecimento e maior por causa das esferas subjacentes, ele produz ventos fertilizantes.

Venus tem os mesmos poderes e natureza temperada que Jupiter, mas age do modo oposto; pois ela aquece moderadamente por causa de sua proximidade ao Sol, mas principalmente umidece, como a Lua, por causa da qunntidade de sua propria luz e porque ela se apropria das exala<;:6es da atmosfera umida que cerca a Terra .

Mercurio em geral e encontrado em certos tempos como secando e absorvendo umidade, pois nunca esta a grande longitude do calar do Sol ; e tambem umidificando, porque ele e 0 seguinte acima da esfera da Lua, que e a rnais proxima da Terra ; e muda rapidamente de u rn para outro, como se fosse inspirado pela rapidez de seu movimento nas proximidades do proprio Sol. (Idem, cap. 4, p. 17-9, Camerarius)

 

E a partir de uma teoria naturalista, perfeitamente compreensivel e adequada, para os padroes da epoca, que Ptolomeu procura explicar as caracteristicas de cada planeta. A partir de suas qualidades basicas, ele estabelece outras propriedades. Alguns dos planetas sao beneficos, outros maleficos ; alguns sao masculinos, outros femininos . Que relação isso possui com as qualidades basicas? Ptolomeu esclarece :

 

Duas das qualidades sao ferteis e ativas - 0 quente e 0 umido (pois todas as coisas sao reunidas e aumentadas par elas) - e duas sao destrutivas e passivas - 0 seco e 0 frio, pelos quais as coisas se separam e destroem. Por isso, os antigos aceitaram dois dos planetas, Jupiter e Venus, juntamente com a Lua, como beneficos - par causa de sua natureza temperada e porque abundam em calor e umidade. Saturno e Marte foram considerados como de natureza oposta listo e, maleficosi, um par causa do seu frio excessivo e 0 outro por sua secura excessiva. 0 Sol e Mercurio, no entanta, eles imaginaram que possuem ambos os poderes, pois possuem uma natureza comum, e unem suas infiuencias as dos outros planetas , seja qual for aquele ao qual estejam associados. (Idem, cap. 5, p.19 , Camerarius)

 

De forma semelhante, Ptolomeu associa a umidade a caracteristica feminina e, por isso, atribui esse sexo a Lua e a Venus . Pelo contrario, 0 Sol, Saturno, Jupiter e Marte sao masculinos e Mercurio pertence a ambos os generos. Dessa forma, 0 Tetrabibios racionaliza a tradição astrologica e a propria mitologia antiga.

Ao longo de todo 0 livro, 0 estilo de Ptolomeu continua coerente com a tentativa de fornecer uma teoria unificada da Astrologia. Ao iniciar a discussao dos hor6scopos individuais, por exemplo, ele afirma que nao vai adotar 0 metoda antigo de previsao, baseado na combina9ao de todos os astros, porque "depende muito mais das tentativas particulares daqueles que fizeram essas investiga90es diretamente da natureza, do que daqueles que podem formular teorias com base nas tradi90es" (Idem, livro III , cap.l, p. l07, Camerarius) . Ou seja: Ptolomeu foge do empirismo e busca uma teoria astrol6gica sistematica.

 

8   Arist6teles e a base te6rica da Astrologia

 

Como foi anunciado no inicio, 0 objetivo deste trabalho e mostrar a existencia de forte influencia do pensamento de Arist6teles na formula9ao astrol6gica do Tetrabiblos.

 

 

8.1      A fonnulayao de uma teoria astrol6gica

 

Sob 0 ponto de vista metodol6gico, essa influencia e bastante clara. De fato, Ptolomeu se afasta de todos os astr6logos anteriores exatamente ao procurar fornecer uma visao te6rica sistematica da Astrologia. Ele tenta transforma-la em uma ciencia (ou melhor, em urn ramo da Filosofia, como ele pr6prio diz). Aqui, nota-se a mesma distin9ao (e valoriza9ao) estabelecida por Arist6teles, que constantemente foge ao empirismo e rebaixa as artes a urn nivel muito inferior a Filosofia (ver, por exemplo, a Analitica posterior de Arist6teles) .

Se compararmos 0 Tetrabiblos a obra astro16gica de Manilius, 0 contraste de estilo e notavel. Marcus Manilius, urn autor romano do primeiro seculo da Era Crista, escreveu 0 mais antigo texto astro16gico que foi conservado : a Astron omica . Por urn lado, a Astronomica tern urn estilo rebuscado, por se tratar de urn poema filos6fico e didatico (como 0 De rerum na tura de Lucretius) . Mas, mesmo fazendo-se 0 devido desconto daquilo que se deve a tentativa de fazer uma obra em versos, a Astronomica e urn receituario astrol6gico que nao procura apresentar uma teoria racional. Todas as explica90es sobre as influencias dos signos se baseiam simplesmente na tradi9ao e em analogias simb6licas tiradas da mitologia e das figuras associadas as constela- 90es do zodiaco.13 A visao da Astrologia da epoca proporcionada por Cicero e Sextus Empiricus tambem e do mesmo tipo : urn receituario baseado na tradi9ao dos caldeus e nao urn sistema filos6fico, com justificativas racionais. Por exemplo : ao descrever as caracteristicas dos varios planetas, Sextus Empiricus assim as apresenta:

 

Quanto aos astros [Sol, Lua e planetas] eles dizem que algumas delas sao beneficas, algumas maleficas, outras sao ambos. Assim, Jupiter e Venus sao beneficos, mas Marte e Satumo maleficos, enquanto Mercurio e as duas coisas, pois e benefico quando eslil com astros beneficos, mas malefico quando esta com maleficos. (Sextus Empiricus, Adversus astroiogos, p.29- 30)

 

Nao h8. sequer urn vislumbre de explicaQao ou justificativa dessas caracteristicas. E claro que Ptolomeu defende exatamente a mesma caracterizaQao, como vimos - pois ele esta seguindo a tradiQao, em suas linhas mais gerais . No entanto, ele procura colocar essas ideias dentro de urn sistema racional unificado.

Pode-se dizer que aquilo que Ptolomeu fez ao discutir as caracteristicas dos astros e muito semelhante ao que Arist6teles fez ao desenvolver uma teoria para os quatro elementos . De fato, desde Empectocles ja existia a proposta de que os corpos terrestres eram constituidos pelos elementos terra, agua, ar e fogo. No entanto, foi Arist6teles quem formulou uma teoria, baseada nas quatro qualidades basicas (quente - frio , umido - seco) , para justificar e tomar mais fertil a concepQao de Empedocles.

o autor da Epinomis platonica, de certa maneira, antevia aquilo que Ptolomeu realizou. Pois, referindo-se a Astrologia dos caldeus, ele afirma:

 

Tomemos consciencia de que tudo 0 que os gregos adotaram dos barbaros, eles 0 retrabalharam e levaram a urn acabamento melhor. Deve-se pensar 0 mesmo sobre nosso assunto presente. Sem duvida e dificil descobrir a verdade de uma forma indiscutivel em todas essas questoes novas, mas existe uma grande esperanc;:a - e e uma bela esperanc;:a - de que os gregos tomarao urn cuidado rnais nobre e mais justo da doutrina que nos vern dos harbaros naquilo que se refere a todos esses deuses [astros[ ...

(Epinomis, 987 d 9 - 988 a 5, apud Festugiere, 1989, p. 6-7)

 

 

8.2     A Astrologia como um ramo da Filosofia natural

 

Outro aspecto do Tetrabiblos de clara influencia aristotelica e sua tentativa de proporcionar explicaQoes naturalistas das influencias celestes, sem qualquer menQao a aspectos religiosos . A atitude de Ptolomeu segue a tradiQao aristotelica e contrasta fortemente com a Astrologia exposta pelos fil6sofos est6icos . Marcus Manilius, que pertence a esta corrente filos6fica, assim expoe sua visao sobre a influencia dos astros :

 

Esta obra imensa que forma 0 corpo do universo [mundol. com seus membros compostos de diversas naturezas, ar e fogo, terra e mar plano, e regida pela forc;:a da alma divina [ vis animae divina regit] ; por caminhos sagrados deus traz a harmonia e governa com prop6sito oculto, criando unioes mutuas entre todas as partes, de modo que cada uma fornece e recebe forc;:a da outra e que 0 todo possa permanecer firme em unii'lO apesar de sua variedade de formas. (Manilius, 1977, livro I, p.247-54)

Eu cantarei ao deus, monarca silencioso da natureza, que, permeando ceu e terra e mar, controla uniformemente a poderosa estrutura ; como 0 universo inteiro vive em consenso mutuo de seus elementos e se move pelo impulso da razao, pois urn unico espirito [spiIitus[ reside em todas as suas partes e, espalhando-se par todas as coisas, nutre 0 mundo e Ihe da a farma de uma criatura animada. De fato, se a estrutura inteira nao permanecesse firme, composta par membros cognatos e obediente a urn mestre, se a providfmcia nao dirigisse a vastidao dos ceus, a Terra nao possuiria sua estabilidade, nem as estrelas suas orbitas, e os ceus vagueariam sem meta ou ficariam parados ; as constela<;:oes nao manteriam seus cursos estabelecidos nem se alternariam 0 dia e a noite...

Este deus e razao controladara de tudo, partanto, dirige os seres da Terra pelos signos celestes ; embara as estrelas estejam remotas a uma grande distancia, ele obriga a reoonhecer suas inlluencias ... (Idem, livro II , p.60-73, p.82-4)

 

De acordo com essa concep9ao teo16gica da natureza, Manilius explica que 0 pr6prio conhecimento das influencias celestes e urn dom divino (e nao 0 resultado da reflexao racional ou da observa9ao) e que e urn sacrilegio pensar em urn ceu desprovido de vontade (Idem, p.115-28) .

Uma visao que pode ser considerada panteista aparece tambem na obra de Plinio, o Velho, quando ele fala sobre as influencias celestes :

 

Nao quero colocar em duvida que os elementos sejam em numero de quatro. Na regiao mais elevada 0 fogo, dai todas as estrelas que brilham como vemos ; proximo dele, 0 espirito [s piIitus] , que os Gregos e nos chamamos igualmente de ar [aer] , principio de vida que penetra 0conjunto do universo e se une estreitamente a tudo; seu poder mantem em equilibrio no meio de espa<;:o a terra, com 0 quarto elemento, a agua. (Plinio, 1950, livro II, cap.N, § 10)

Entre ela [a Terra] e 0 ceu, 0 mesmo espirito [spiritus] mantern suspensos sete astros separados par intervalos determinados : sao chamados de errantes, pois eles se deslocam, embara nao existam carpos menos errantes do que eles. No meio deles se move 0 Sol, 0 rnais consideravel par seu tamanho e seu poder, que rege nao somente as esta<;:oes e as terras, mas tambem os proprios astros e 0 ceu . Ele e a alma [anima] ou a mente do mundo inteiro, ele e a regra primeira e a primeira divindade da natureza ... (Idem, § 12-13)

 

Entre os est6icos, encontra-se tambem a ideia de que a divindade envia sinais aos homens, por meio dos fen6menos celestes ou outros fen6menos :

 

Parece necessario estabelecer 0 principio do qual dependem esses sinais. Pois, de acardo com a doutrina dos Estoicos, os deuses nao sao diretamente responsaveis par cada fissura no figado ou par cada canção dos passaros; pois, e claro, isso nao seria adequado ou digno de urn deus, alem de ser impossive!. Mas, no inicio, 0 universo foi criado de modo tal que certos resultados seriam precedidos par certos sinais, que sao dados algumas vezes pelas entranhas e par passaros, algumas vezes par relampagos, por partentos e par estrelas, algumas vezes par sonhos, e algumas vezes pelas vozes de pessoas em transe. (Cicero, De divinatione, livro I, p.lii, 11 8)

A mente divina realiza efeitos semelhantes no caso das aves, e faz com que as conhecidas

par alites, que proparcionam augurios par seu voo, voem para ca e para la e desapareçãm agora aqui e depois la ; e faz as conhecidas par oscines, que proparcionam augurios par seus gritos, cantar agara do lado esquerdo e depois do lade direito ... 0 mesmo poder nos envia sinais dos quais a historia nos preservou numerosos exemplos. Quando, antes do nascer do Sol, a Lua foi eclipsada no signo de Leao, isso indicou que Dario e os persas seriam vencidos na batalha pelos macedonios dirigidos par Alexandre e que Dario marreria ... (Idem, p.liii, 120- 1)

Esse e urn ponto central da tradi9ao est6ica. Segundo essa visao, nada no univer­ so se produz por acaso : tudo tern uma causa, uma razao, uma finaUdade, dentro de urn plano estabelecido pela divindade (ver Goldschmidt, 1989, p.83-4 ; CoUsh, 1990, v. l, p.32). Assirn, nao apenas urn grandioso fen6meno astron6mico mas ate mesmo 0 canto de urn passaro fazem parte de urn plano divino e servem de sinais para os homens .

Em Ptolomeu, nao encontramos nada semelhante a tudo isso. Os deuses nao possuem qualquer papel na Astrologia exposta no Tetrabiblos. Note-se, tambem, que a visao dos est6icos justifica nao apenas a Astrologia como todo tipo de metodo de adivinha9ao. Ptolomeu apenas advoga a possibilidade da Astrologia - e critica outros metodos de adivinha9ao, como vimos.

De acordo com Cicero, os seguidores de Arist6teles de seu tempo eram contranos a adivinha9ao do futuro por exame de entranhas de animais, augurios e profecia por sonhos, enquanto os est6icos aceitavam esses metodos (Cicero, De divina tione, Uvro I, p.xxiii, 72) . Isso nao quer dizer que os peripateticos negassem todo tipo de previsao do futuro, pois Cicero afirma explicitamente, em outros pontos, que eles a aceitavam (Idem, p. iii, 5; livros. I, p. xli, 87) . A obra de Cicero nao permite descobrir, no entanto, se ele considera que os peripateticos daquela epoca aceitavam ou nao a Astrologia.

 

 

8.3     As influemcias celestes, segundo Arist6teles

 

Vamos prosseguir e verificar se as ideias de Ptolomeu sobre as influencias celestes podem ter tido influencia da filosofia aristotelica.

o "lugar classico" em que Arist6teles discute 0 tema e 0 capitulo 10, do livro II, da obra De generatione et COJJuptione (Sobre a gera9ao e a COJJUP9ao) . Aqui, ele se refere especificamente ao movimento do Sol, sua aproxima9ao e afastamento no cicIo anual, produzindo 0 nascimento e morte das coisas sublunares. Ele nao se refere neste ponto diretamente a efeitos de outros astros, nem discute 0 modo como se transmite a a9ao do Sol ao mundo sublunar.

Arist6teles acredita em urn universo que sempre existiu, e no qual sempre existe transforma9ao das coisas terrestres (sublunares) . Toda transforma9ao possui uma causa, por isso a ocorrencia de uma continua transforma9ao exige uma causa continua e eterna. Ora, existe no mundo celeste urn movimento eterno dos astros.

 

Alem disso, como provamos que a mudan9a, que e urn movimento, e eterna, a continuidade da ocorrencia da transforma98.o segue-se necessariamente daquilo que estabeJecemos : pois 0 mo­ vimento eterno, fazendo com que 0 gerador se aproxime e afaste, produzira de forma ininterrupta a transforma98.o. (Arist6teJes, De generatione et corwptione, Jivro 2, cap. l0, p. 336 a 14-8)

 

A interpreta9ao usual desse trecho e a de que Arist6teles esta se referindo ao Sol CIl;lando fala sobre 0 "gerador" . No entanto, nada impede que se de uma interpretação mais vaga e ampla, abstrata, dessa frase: quando a causa de transfor­ mação se aproxima e afasta, ocorre seu efeito.

Em seguida, Arist6teles argumenta que existe tanto 0 surgimento quanto 0 desaparecimento das coisas terrestres14 e que os dois processos sao contrarios, exigindo assim causas contrarias. Por isso, esses dois processos exigem a suposição de dois movimentos contrarios que os causam. Arist6teles os explica pela aproximação e afastamento dos astros e, em particular, do SOl, 15 no decorrer do ano, por causa da inclinação de seus movimentos:

 

Assumimos e provamos que 0 surgimento e 0 desaparecimento acontecem continuamente as coisas ; e afirmamos que 0 movimento causa a transforma<;:ii.o. Assim sendo, e evidente que, se o movimento for imico, os dois processos nao podem ocorrer, pois sao contrarios urn ao outro: pois e uma lei da natureza que a mesma causa, se ocorrerem as mesmas condi<;:oes, sempre produz o mesmo efeito, de modo que, de urn movimento li.nico, sempre resultara ou 0 sugimento ou 0 desaparecimento. Pelo contrario, os movimentos devem ser mais do que um, e opostos um ao outro ou pelo sentido de seu movimento ou por sua irregularidade. Pois efeitos contrarios exigem causas contrarias.

Isso explica porque nao e 0 movimento primario 10 movimento de rotação celeste em urn circulo simples] que causa 0 surgimento e desaparecimento, mas 0 movimento no circulo inclinado: pois este movimento possui tanto a continuidade necessaria como tambem inclui uma dualidade de movimentos. (Idem, p. 336 a 24 - 336 b 1)

 

o exemplo que Arist6teles utiliza para ilustrar seu argumento e que quando 0 Sol se "aproxima" da Terra (verao) , ele produz 0 surgimento dos seres vivos e, ao se "afastar" , produz sua destruição.

 

E existem fatos empiricos que concordam claramente com nossa teoria. Assim, vemos que o surgimento ocorre quando 0 Sol se aproxima e 0 desaparecimento quando ele se afasta; e vemos que os dois processos ocupam 0 mesmo tempo. Pois a duração dos processos naturais de destruição e surgimento sao iguais. (Idem, p.336 b 16- 19)

 

Embora 0 unico astro citado pOI Arist6teles neste local seja 0 Sol, 0 seu argumento te6rico e totalmente geral. Nao e apenas 0 Sol que se move em urn circulo inclinado (a ecliptica) em relação a Terra : a Lua e os planetas tamMm se movem em circulos inclinados e, portanto, tamMm se "aproximam" e "afastam" dos locais terrestres . Eles tambem poderiam influenciar 0 surgimento e desaparecimento de certos tipos de seres .

Seguidores de Arist6teles fizeram 0 que ele nao fez : introduziram os outros astros no esquema. Embora Averroes seja de epoca muito posterior a Ptolomeu, e conve­ niente citar que na sua obra Epitome ao Sobre a geraqao e a corrupqao (escrito aproximadamente em 1172 d.C.), aparece essa ampliac;:ao, que provavelmente era ja aceita muito antes :

 

A causa eficiente para a continuidade da geração e corrupção, de acardo com Arist6teles, e o movimenta priminio continuo, enquanto que a causa eficiente da geração e da corrupção e 0 movimento do Sol no circulo inclinado. Este ultimo movimento nao e limitado ao Sol, apenas, mas e tambem 0 da Lua e de todos os planetas, embara ele realmente seja mais aparente no caso do Sol. Pois 0 efeito do Sol sobre a alteração das quatro esta,<oes em seu curso ao long o de seu circulo inciinado e precisamente 0 de cada estrela em seu caminho ao longo de seu circulo especifico. Pois embora 0 efeito particular que cada uma das estrelas exerce sobre as coisas em torno de n6snos seja oculto, uma descrição abrangente revelaria que eles possuem de fata uma infiuenda sobre geração e corrupção, a tal ponto que se imaginarmos a remoção de qualquer estrela ou seu movimento, a geração como urn todo ou a geração de alguns seres nao poderia ser completada. De [ato, pode-se observar que algumas coisas sao atribuidas a ação desta ou daquela estrela. N6s vemos que aqueles que observaram as estrelas desde tempos antigos dividiram todas as coisas

em tipos de acardo com elas e caracterizaram uma coisa como provindo da natureza de uma estrela e outra coisa como provindo da natureza de uma outra estrela. (Averroes, Epitome, p. 133)16

 

o pr6prio texto de Arist6teles, se for examinado com cuidado, proporciona elementos favoraveis a essa interpretac;:ao mais ampla da infiuencia dos astros nos fen6menos celestes. Em primeiro lugar, como ja vimos, todo 0 argumento aristotelico e vago, abstrato, geral, nao se referindo diretamente ao Sol. Por outro lado, M trechos que sao incompativeis com a interpretac;:ao usual, em que somente se atribui ao Sol a transformac;:ao das coisas terrestres . Pois Arist6teles afirma :

 

A continuidade do movimento e causada pelo movimento do todo ; mas a aproximação e retração do corpo que se move sao causadas pela inciinação. Pois a conseqiiencia da inclinação e que 0 carpo se tarna alternadamente mais pr6ximo e mais remoto; e como sua dismncia e assimdesigual, seu movimento sera irregular. Partanto, se ele gera ao se aproximar e par sua proximi­ dade, ele (este mesmo carpo) destruira ao se retrair e se tornar remoto. E se ele gera par varias aproxima,<oes, ele tambem destr6i par sucessivos afastamentos. Pois efeitos contrarios exigem causas contrarias ; e os processos naturais de surgimento e destruição ocupam iguais periodos de tempo. Assim, portanto, os tempos - isto 13, as vidas - dos diversos tipos de seres vivos possuem um numero pelo qual eles se distinguem; pois h8 uma ordem que controla todas as coisas e cada tempo 13 medido por um periodo. Nem todos eles, no entanto, sao medidos pelo mesmo periodo, mas alguns por um {periodoj menor, Ou tlOS por um maior: pois para alguns deles 0 periodo, que 13 sua medida, 13 de um ano, en quanto que para OutlOS 13 mais longo e para OutlOS mais curto. (Arist6teles, De generatione et corruptione, Iivro n, capitulo 10, p. 336 b 3 - 16)

o trecho que grifamos acima e incompativel com a interpretac;:ao exclusivamente solar da teoria de Arist6teles . Pois, se 0 Sol fosse 0 tinico corpo celeste capaz de gerar a transformaQao dos corpos terrestres, todos os corpos terrestres teriam a mesma duraQao. Mas 0 pr6prio Arist6teles afirma que isso nao ocorre. Portanto, 0 surgimento e destruiQao de seres que possuem uma duraQao menor ou maior do que urn ana s6 podem ser explicados por corpos celestes que possuem periodos menores do que urn ana (Lua, Mercurio, Venus) ou maiores do que urn ana (Marte, Jupiter, Saturno).

No capitulo seguinte do De genera tione et COITuptione (livro II, cap. l l), Arist6- teles discute se a relaQao entre os fenomenos celestes e terrestres e necessaria (deterministica) ou nao . Este e urn ponto essencial para toda discussao astrol6gica.

Alguns acontecimentos sao necessarios (isto e, nao podem deixar de ocorrer), enquanto outros sao contingentes \isto e, poderiam nao oconeI) . Os acontecimentos terrestres que sao causados de forma necessaria pelos fenomenos celestes serao, de acordo com Arist6teles, ciclicos, exatamente como os celestes.

 

o resultado ao qual chegamos concorda de forma !6gica com a eternidade do movimento circular, isto e, a eternidade da rota9iio dos ceus (um fato que se ap6ia tambem em evidi'mcia independente dessa), pois precisamente os movimentos que pertencem e dependem dessa revolw;:iio eterna surgem de forma necessaria, e ocorreriio necessariamente. Pois como a rota9iio do corpo esta sempre colocando alguma outra coisa em movimento, 0 movimento das coisas que ele move tambem deve ser circular. Assim. pela existencia de uma revo!u9iio superior, segue-se que 0 Sol gira desta maneira determinada; e como 0 Sol gira assim, as estayoes aparecem em um cicIo, isto e, retornam sobre si pr6prias ; e como elas surgem ciclicamente, assim tambem ocorre com todas as coisas cuja gerayiio e iniciada pelas estayoes. (Idem, cap. 11, p.338 a 18 - 338b 6)

 

Como exemplo de fenornenos naturais ciclicos, Arist6teles fala explicitamente sobre as estaQoes do ana e, depois, sobre fenomenos atmosfericos (chuvas) . No entanto, urn mesmo animal ou uma mesma pessoa nao ressurge ciclicamente. Aris­ t6teles esclarece que apenas as coisas que possuem uma substancia eterna podem ressurgir iguais a si pr6prias em cada ciclo (por exemplo, os astros etc.), mas que no caso dos seres vivos, 0 que reaparece e algo da mesma especie, mas nao 0 mesmo individuo.

Em toda essa discussao, fica claro que a concepQao de Arist6teles sobre a influencia dos astros nos fenomenos terrestres e compativel com a visao astrol6gica do Tetrabiblos.

 

 

8.4     A natureza dos ceus e a transmissao de sua infiuencia

 

Outro aspecto caracteristico da filosofia aristotelica que aparece no Tetrabiblos e a teoria sobre a natureza da substancia celeste. Na obra De caelo, Arist6teles dedica varios capitulos a discussao dos elementos que constituem 0 universo e as caracte­ risticas especiais do elemento celeste. Os corpos celestes possuem movimentos circulares em torno da Terra e esses movimentos sao regulares, invariantes, nao tendo sofrido alteraQao com 0 passar dos seculos. Ora, nenhum corpo terrestre conhecido possui movimento circular natural: os elementos do mundo terrestre (terra, fogo, agua e ar) possuem apenas movimentos naturais retilineos (para baixo ou para cima). Portanto, os corpos celestes devem ser constituidos por urn quinto elemento, que Arist6teles denomina " eter" (Arist6teles, De caelo, livro I, cap. 2-3). A adiQao do eter aos quatro elementos de Empectocles e reconhecidamente uma contribuiQao de Arist6teles.

Como ja foi citado anteriormente, Ptolomeu fala sobre esses cinco elementos, ao descrever a influencia celeste sobre as coisas terrestres :

 

Algumas poucas considerac;:oes tornarao claro a todos que urn certo poder que emana da substancia eterea eterna se espalha e permeia toda a regiao em torno da Terra, que esm completamente sujeita a mudanc;:as, pois, dos elementos sublunares primarios, 0 fogo e 0 ar sao envolvidos e alterados pelos movimentos do eter, e eles por sua vez envoIvern e mudam todo 0 resto, a terra e a agua, as plantas e os animais. (Ptolomeu , Tetrabiblos, livro I, cap.2, p.2, Camerarius)

 

E claro que a simples menQao dos cinco elementos aristotelicos nao prova nada, pois depois de Arist6teles muitos fil6sofos - incluindo os est6icos - aceitaram essa teoria. Mas e muito significativo que Ptolomeu fale sobre uma aQao do eter sobre os elementos sublunares mais elevados (fogo e ar) e destes sobre a agua e a terra, pois Arist6teles apresenta uma visao semelhante.

Na Meteorologica (livro I, capitulos 2-3), Arist6teles discute as causas dos fen6menos atmosfertcos. Primeiramente, ele se refere aos cinco elementos que constituem 0 universo - 0 eter, que forma os ceus, e terra, fogo, agua e ar, que formam o mundo sublunar. Depois, ele indica que M uma continuidade entre 0 mundo inferior e o superior e, por isso, a causa eficiente dos fen6menos sublunares e 0 movimento celeste.

 

Ja estabelecemos que existe urn elemento fisico que forma 0 sistema dos corpos que se movem em circulo17 e, alem dele, quatro corpos que devem sua existencia aos quatro principios. o movimento desses ultimos corpos e de dois tipos : ou Ipara longel do centro ou em direc;:ao ao centro Ido universol . Esses quatro corpos sao fogo, ar, agua e terra. 0 fogo ocupa 0 lugar mais elevado dentre todos eles, a terra 0 rnais baixo, e os dois elementos se relacionam a estes, 0 ar estando mais pr6ximo ao fogo, a agua a terra. Todo 0 mundo que cerca a Terra, portanto, e cujas propriedades sao nosso assunto, e constituido por estes corpos.

Este mundo tern necessariamente uma certa continuidade com os movimentos superiores. Conseqiientemente, todo seu poder e ordem provem deles. Pois 0 principio originador de todo movimento e a causa primeira. Alem disso, esse elemento e etemo e seu movimento nao tern limite no espac;:o, mas e sempre completo - enquanto que todos esses outros corpos possuem regioes separadas que limitam uma a outra. Assim, devemos tratar fogo e terra e os elementos emelhantes a eles como as causas materiais dos acontecimentos neste mundo (signiticando 0 material que e sujeito e e afetado), mas devemos assinalar causaJidade, no sentido de principio originador do movimento, a infiuencia dos corpos que se movem eternamente. (Aristoteles, Meteoroiogica , Jivro I, cap.2, p. 339 a 12 -33)

 

Sao os movimentos celestes que produzem os fen6menos terrestres. Esse movimento e transmitido por algo entre 0 ceu e a Terra, pois Arist6teles nao admite ação a distancia :

 

Mas se devemos investigar agao e passividade e combinagao, devemos tambem investigar contato. Pois agao. e passividade (no sentido proprio das palavras) so podem oconer entre coisas que se tocam uma a outra. E as coisas nao podem se combinar a menos que entrem em certo tipo de contato ...

Todas as coisas que admitem combinagao devem ser capazes de contato reciproco; e 0 mesmo e verdadeiro de duas coisas quaisquer, uma das quais age e a outra sofre a agao, no sentido proprio dos termos. (Aristoteles, De generatione et corruptione, Jivro I , cap.5, p. 322 b 22 - 28)

 

Deve ser, portanto, algo existente no espa<;:o entre 0 ceu e a Terra que transmite as influencias celestes aos corpos sublunares. Mas esse espa<;:o intermediario nao e apenas ar ("Portanto e claro que nem 0 ar nem 0 fogo, sozinhos, preenchem 0 espa<;:o intermediario" - Meteoroiogica , 340 a 17). Mais adiante, ele indica que "Afirmamos que a regiao superior [acima do arl ate a Lua consiste em urn corpo distinto tanto do fogo quanto do ar, mas variando em grau de pureza e em tipo, especialmente perto de seu limite no lado do ar e do mundo que cerca a Terra" (Arist6teles, Meteoroiogica p. 340 b 6- 11). Os astros e seu movimento influenciam a parte superior do espa<;:o intermediario, produzindo varia<;:oes de calor, frio , secura e umidade. Assim, podem existir influencias fisicas dos ceus sobre 0 mundo inferior (terrestre).

 

o movimento circular do primeiro elemento [eterl e dos corpos que ele co nte rn dissolve e in !lama por seu movimento a parte do mundo inferior que esta rnais proxima dele e assim gera calor ...

o corpo que esm abaixo do movimento circular dos ceus e, de certa forma, uma materia, e e potencialmente quente, frio, seco e umido, e possuido de todas as outras qualidades derivadas destas. Mas ele realmente adquire ou mantem uma dessas [quaJidadesl em virtude do movimento ou repouso, cUja causa e principio ja foi expJicado. (Aristoteles, Meteoroiogica , Jivro I, cap.3, p. 340 b l l - 19)

 

It atraves de influenCias puramente fisicas (no sentido moderno da palavra) que Arist6teles tenta explicar todos os fen6menos atmosfericos, na sua Meteoroiogica . Ora, essa visao sobre 0 mecanismo de influencia dos corpos celestes sobre os terrestres e exatamente a que foi adotada pelo Tetrabibios. Como os est6icos nao adotam essa teoria, nao pode ser deles que Ptolomeu a obteve. A influencia aristotel-ica e muito clara, aqui.

It relevante fazer uma comparação, aqui, com 0 tratado pseudo-aristotelico De mundo. Esta obra foi considerada de autoria de Arist6teles no periodo medieval e no Renascimento. No entanto, a critica contemporanea a atribui ao est6ico Poseidonius (ou algum de seus seguidores) . Sup6e-se que ela foi escrita no primeiro ou segundo sEkulo da Era Crista - ou seja, em epoca pr6xima a composic,:ao do Tetrabiblos.

Em sua obra A history of western astrology, Tester afirma que foi "provavelmen­ te" Poseidonius quem mais influenciou a parte inicial do Tetrabiblos (1987, p.69) ; e, em outro ponto, dedara: "A filosofia a qual sua [de Ptolomeul astrologia se adequa e o Estoicismo, 0 que nao e surpreendente" (Idem, p.68) . Vejamos se existe de fato essa ligac,:ao .

o inicio do De mundo apresenta uma descric,:ao do universo muito semelhante a de Arist6teles - induindo a aceitac,:ao do eter como quinto elemento. Em grande parte, Poseidonius seguiu a Meteorologica de Arist6teles. No entanto, a partir do capitulo 5, comec,:am a aparecer elementos tipicamente est6icos e que diferem daramente da visao de Arist6teles , como tambem da adotada no Tetrabiblos.

Nesse ponto, 0 De mundo comenta sobre a existencia de principios opostos no universo e discute a harmonia dos contrarios :

 

Assim, uma (mica harmonia ordena a composic;:ao do todo - ceus e Terra e todo 0 universo - pela mistura dos principios mais contrarios. 0 seco, misturando-se com 0 umido, 0 quente com o frio, 0 leve com 0 pesado, 0 reto com 0 curvo, toda a Terra, 0 mar, 0 eter, 0 Sol, a Lua e 0 ceu inteiro sao ordenados por um unico poder que se estende por tudo, que cIiou todo 0 universo a partir de elementos separados e diferentes - ar, terra, fogo e agua - envolvendo-os todos em uma superficie esferica e forc;:ando as naturezas mais contrarias a viverem em concordancia mutua no universo e assim produzindo a permanencia do todo. (Poseidonius, 1931, cap.5, p. 396 b 23- 32) Igrifo nossol

 

 

Ora, a ideia de urn deus criador que permeia todo 0 universo (ver 0 trecho que grifamos) e est6ica (ver Colish, 1990, v. l, p. 23-4) , mas totalmente alheia a Arist6teles. Mais adiante, 0 De mundo continua a desenvolver 0 mesmo tipo de concepc,:ao : pois deus e realmente 0 preservador e criador de tudo 0 que foi trazido a perfeic,:ao neste univers. (Poseidonius , 1931, cap.6, p. 397 b 20-22) e, segundo essa visao, a divindade atuaria diretamente (como causa eficiente) sobre 0 universo. Deus e comparado a urn rei que dirige tudo ; no entanto, ele nao tern necessidade de auxiliares :

 

E mais proprio de sua dignidade e mais adequado que ele esteja entronizado na regiiio mais elevada e que seu poder, estendendo-se atraves de todo 0 universo, mova 0 Sol e a Lua e fac;:a todo 0 ceu girar e seja a causa de permanencia de tudo 0 que esta nesta Terra. Pois ele nao precisa de auxilio ou servic;:o de outros, como nossos regentes terrestres - por causa de sua fraqueza - precisam de muitas maos para fazer seu trabalho ; mas e caracteristico do divino ser capaz de realizar diversos tipos de trabalho com facilidade e pelo movimento simples ... (Idem, p. 398 b 7-14)

 

 

Esse deus ativo, que influencia e dirige os movimentos celestes e terrestres, e totalmente incompativel com a filosofia de Arist6teles . Ve-se, assim, que mesmo quando adotam diversas ideias aristotelicas - como ocorre no De mundo - os est6icos utilizam uma cosmovisao teologica que e totalmente diferente da empregada no Tetrabiblos. Por isso, devemos considerar que a concepQao de influencia celeste sobre os fenomenos terrestres adotada por Ptolomeu nao e a dos estoicos, e sim a de Aristoteles.

 

 

8.5     As qualidades basicas da materia

 

Outro ponto importante e a concepQao aristotelica sobre as quatro qualidades basicas (quente - frio, umido - seco) que fundamentam toda sua teoria sobre a transformaQao dos corpos terrestres .

Na sua obra De caelo, Aristoteles introduz os cinco elementos atraves de uma discussao sobre os movimentos terrestres e celestes . No entanto, nao esclarece a propria natureza desses elementos . E no livro II do De genera tione et corruptione que ele desenvolve a teoria das quatro qualidades associadas aos quatro elementos. As quatro qualidades sao opostas duas a duas e perrnitem a existencia de quatro e apenas quatro combinaQoes compativeis :

 

As qualidades elementares S1'IO quatro, e quatro termos podem ser eombinados em seis duplas . No entanto, os eontrElfios se reeusam a ser unidos : pois e impossivel que a mesma eoisa seja quente e fria, ou seea e umida . Portanto, e evidente que as eombina90es das qualidades elementares serao quatro: quente com seeo, umido com quente, frio com seeD e frio com umido. E esses quatro pares se associam aos eorpos aparentemente simples (fogo, ar, agua e terra) de urn modo eoerente com a teoria. Pois 0 fogo e quente e seeo, 0 ar e quente e umido (sendo 0 ar urn tipo de vapor aquoso) ; agua e fr ia e umida, e a terra e fria e seea. Assim, as diferen9as estiio distribuidas de modo razoavel entre os eorpos primarios, e o numero dos ultimos e eoerente com a teoria. (Aristoteles, De generatione et corIUptione, livro II, eap.3, p. 330 a 30 - b B)

 

Como vimos, Ptolomeu faz urn uso sistematico das mesmas quatro qualidades basicas para caracterizar os astros e explicar suas influencias. Como as transformaQoes dos corpos terrestres (ou sublunares) sao, segundo Aristoteles, causadas por mudan­ Qas dessas quatro qualidades , todos os fenomenos podem ser explicados se as influencias celestes forem exatamente desse tipo. Assim, a teoria de Ptolomeu e exatamente aquilo que se poderia esperar de uma Astrologia baseada na Fisica aristotelica.

E claro que a correspondencia encontrada por Ptolomeu entre os astros e as qualidades nao e tao simples e convincente quanto a encontrada por Arist6teles. Se existissem apenas quatro planetas, tudo seria mais coerente . Apesar disso, Ptolomeu faz 0 melhor que pode para reduzir as propriedades dos astros as qualidades basicas. Nenhum outro autor, antes dele, tentou fazer isso.

Foi esse aspecto da Astrologia de Ptolomeu que permitiu uma ligaQao direta com a Medicina de Galeno. Ja nas obras hipocraticas, encontrava-se uma conexao entre as doenQas e as condiQoes atmosfericas e estaQoes do ano, mas nao havia uma teoria por tras disso . Galeno sistematizou diversas ideias dos textos hipocraticos, como a pr6pria concepQao de que 0 organismo humane e regido por quatro humores (sangue, fleuma, bilis amarela e bHis negra) . Esses quatro humores sao associados por Galeno aos quatro elementos terrestres e as quatro qualidades basicas de Arist6teles. Atraves dessas associaQoes, torna-se possivel encontrar entao uma ligaQao entre os fen6menos celestes e as doenQas, pois tudo passa a ser descrito de urn modo unificado - atraves das qualidades quente - frio , umido - seco. Pode-se assim compreender como, na Idade Media e no Renascimento, viu-se como urn unico corpo te6rico a Filosofia de Arist6teles, a Astrologia de Ptolomeu e a Medicina de Galeno - cada uma delas reforQando as outras , atraves de sua base comum.

Apenas para citar urn exemplo da influencia medieval dessas ideias, e relevante observar que Al-Biruni (inicio do seculo XI) faz das quatro qualidades a base de toda a Astrologia. De fato, em sua obra 0 livro de instrUr,;80 nos elementos da arte da Astrologia , ele comeQa a discussao dos signos dizendo :

 

Quanto a natureza e temperamento dos signos, se eles forem escritos em duas linhas, superior e inferior, com 0 primeiro signo acima e 0 segundo abaixo dele, e assim por diante ate 0 ultimo, todos os de linha superior sao quentes e os da inferior frios ; e os pares assim arranjados sao alternadamente secos e umidos.

 

 

Seeo

Umido

Seeo

Umido

Seeo

Umido

Quente

Aries

Oemeos

Leao

Libra

SagiUirio

Aquario

Frio

Touro

Cancer

Virgem

Escorpiao

Caprie6rnio

Peixes

 

 

Quando portanto voce conhece as virtudes ativas de urn signo - se ele e quente ou frio - e as virtudes passivas 19 - seco ou umido - ficara evidente a qual elemento do mundo e que humor particular do corpo cada signo se assemelha. Cada signo que e quente e seco esta associado ao fogo e a bilis amarela, cada urn que e frio e seco, a terra e a bilis negra, cada u rn que e quente e umido ao ar e ao sangue e cada urn que e frio e umido a agua e a fleuma. (Al-Biruni, 1934, § 347)

 

Embora Ptolomeu associe os signos aos diversos planetas e os descreva sob 0 ponto de vista das qualidades, 0 Tetrabiblos nao chega a uma concepQao tao clara quanto a exposta por Al-Biruni. A Astrologia arabe deu urn passe alem de Ptolomeu,fundindo de urn modo mais claro e de forma duradoura as associaQoes que Ptolomeu comeQou a introduzir. Pode-se dizer que 0 Tetrabiblos iniciou, mas apenas a Astrologia arabe completou, a fusao entre a Filosofia aristotelica, a Astrologia e a Medicina.

 

 9 Conclusao

 

Seria possivel encontrar ainda outros elementos de comparagao entre a Astro­ logia de Ptolomeu e 0 pensamento aristotelico. Nao se pode esperar, e claro, que exista uma coerencia detalhada e completa entre as duas obras. Na verdade, mesmo dentro da obra de Arist6teles podem ser descobertas diversas inconsistencias. Podemos assegurar que nao hB. choques importantes entre as duas concepgoes e que hB. notaveis concordancias entre elas.

Os pontos aqui explorados parecem suficientes para estabelecer aquilo que se queria mostrar: a Astrologia exposta no Tetrabiblos nao pode ser considerada de influencia est6ica, mas deve ser vista como fundamentada diretamente no pensamen­ to aristotelico .

 

 

Agradecimento

 

o autor agradece 0 apoio recebido do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnol6gico (CNPq) , sem 0 qual teria sido impossivel desenvolver este trabalho.

 

 

MARTINS, R. de A. Aristotle's influence on Ptolomeo's astrological work (the Tetrabiblos) .

Trans/FormlA9ao (Sao Paulo), v.18, p.51- 78, 1995.

 

ABSTRACT: This work describes the main basic concepts ofthe astrological work ofCla udius Ptolorreo, through an analysis of his Tetrabiblos. Comparing his ideas to those of other au thors of his time, it is shown that Ptolomeo does not present stoic influences, as claimed by some historians. The conclusion of the article is that the basis of Ptolomeo 's astrology is Aristotle's physics.

      KEYWORDS: Aristotle; Ptolomeo; Astrology; ancient astronomy; Aristotelic physics; stoicism.

 

 

Referências bibliográficas

 

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16    TESTER, J. A history of western astrology. Woodbridge: Boydell, 1987.

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J. V. Barreto Feio e J. G. Monteiro. Lisboa: Livraria Europea de Baudry, 1843 . 3v.



[1] Orupo de Historia e Filosofia da Ciencia, DRCC - lFOW - Unicamp - 13081 -970 - Campinas - SP - Brasil.

1   [2] Devemos citar que muitos estudiosos do estoicismo nao fazem qualquer menao a Ptolomeu e ao Tetrabiblos, a que talvez seja uma indica9ao de que nao veem conexao entre a Astrologia ptolomaica e a est6ica. Como exemplos, podemos indicar Sambursky (1 959), The physics of the stoics e Colish (1990), The stoic tradition from Antiquity to the early Middle Ages.

[3] Utiliza-se normalmente a paginac;:ao da segunda edição do TeuabibJos por Camerarius como padrao. para se citar trechos dessa obra. Utilizamos, no entanto. a edic;:ao e traduc;:ao moderna de Robbins.

[4] Como veremos rnais adiante, Ptolomeu esta utilizando a concepÇão de que os ceus sao farmados par uma substiincia totalmente diferente da que conhecemos, e que era chamada de "eter".