A INFLUENCIA DE ARIST6TELES NA OBRA ASTROL6GICA DE PTOLOMEU (0 TETRABIBL OS)
• RESUMO : Este trabalho descreve as concepc;:oes basicas da obra astrol6gica de Claudio Ptolomeu, a partir da analise do Tetrabililos. Atraves da comparac;:ao com outros autores da epoca, mostra-se que Ptolomeu nao apresenta infiuencias est6icas, como alguns autores afirmam. 0 trabalho defende que a base da astrologia ptolomaica e a fisica aristotelica .
•PALAVRAS-CHAVE : Arist6teles ; Ptolomeu ; astrologia; astronomia antiga ; fisica aristntelica; estoicis mo.
1 Introdu�ao
Esse medico come9a a consulta analisando 0 estado dos astros quando as dores come9aram :
Torres - Dez dias de manhii cedo Estava Saturno em Aries ...
Doem- vos as pontas dos pes?
Torres - Nao veja causa nenhuma Para febre verdadeira.
E tambem deste ajuntamento Dos planetas desta era ...
Nao sei ... nao sei. .. mas par mera Astrologia ... nao sei, eu sinto ... Nao sei que e, nem que era ;
Mas ha de saber quem curar Os passos que da uma estrela E ha de sangrar par ela ,
E ha de saber julgar As aguas numa panela.
E ha de saber proporc;:oes No pulso se e temario, Se altera , se e binario,
E saber quantas ]ic:oes
Deu Ptolomeu ao Rei Dario. E quem isto nao souber Va-se beber disso mesmo.
(Auto dos [isicos, in : Vicente, 1843, v.3, p. 300; grifos nossos)
Nem todas as areas de estudo foram abordadas por Arist6teles . Ele nao parece ter escrito nenhuma obra medica, mas teve grande influencia na Medicina, atraves de Claudio Galeno (131-201 d.C.). De fato, a principal diferençã entre a medicina hipocratica e a de Galeno e que este ultimo tenta proporcionar uma teoria, uma justificativa racional para a pratica medica - e, para isso, Galeno busca seu modele e sua base em Arist6teles.
Arist6teles tambem parece nao ter se dedicado aos estudos astrol6gicos. A primeira vista, toda a atitude racionalista de Arist6teles pode nos parecer incompativel com algo tao pouco cientifico quanto a Astrologia. Por isso, nem esperariamos encontrar qualquer conexao entre 0 pensamento aristotelico e esse tipo de estudo. No entanto, por mais estranho que possa parecer, a filosofia de Arist6teles serviu de base te6rica para 0 desenvolvimento da principal obra astrol6gica da tradição helenistica : 0 Tetrabiblos de Claudio Ptolomeu (seculo II da era crista) .
Nao e por acaso que Galeno e Ptolomeu devem ser citados juntos. Ambos, na mesma epoca, fizeram parte do ultimo impulso do racionalismo helenico, que nessa epoca ja convivia ao lade de urn misticismo - que tentava obter por revelação divina aquilo que antes era obtido apenas pelas forçãs da razao (Festugiere, 1989, p.5).
2 0 Livro Quadruplo ( Tetrabiblos)
Antes de Ptolomeu, aparentemente, ninguem havia tentado apresentar a Astro logia como urn corpo de conhecimentos baseado em uma teoria fisica. A Astrologia costumava ser vista ou como uma doutrina religiosa (mistica) ou como urn conheci mento puramente empirico.
Antes de todos - para procurar a autoridade das fontes mais distantes - os assirios, par causa dos vastos pianos que habitavam, e par causa da visao aberta sem obstrw;:6es que os ceus lhes apresentavam par todos os lados, observaram os caminhos e movimentos das estrelas e, anotando-os, transmitiram a posteridade 0 significado que tiveram para cada pessoa. E naquela mesma na9aO os caldeus ... , atraves de uma obserVa9aO longamente continuada das constela96es - assim se pensa - aperfei90aram uma ciencia que lhes permite preyer 0 que oconera a qualquer pessoa e para que destino ele nasceu.
Acredita-se que a mesma arte tambem foi adquirida pelos egipcios atraves de urn passado remoto que se estende a seculos quase incontaveis. (Cicero, De divinatione, Iivro 1, p.i, 2)
o fi16sofo cetico Sextus Empiricus (seculo III da Era Crista), na obra Adversus astrologos, (Con tra os astr610gos)4 tamMm atribui aos caldeus 0 inicio desses estudos :
Sendo assumido previamente que as coisas terrestres simpatizam com as dos ceus e que as primeiras sao sempre afetadas pelas efiuencias das ultimas, os caldeus, tendo contemplado com curiosidade a abobada que nos circunda, declararam q\le as sete estrelas [moveis - isto e, Sol, Lua e planetas] sao causas eficientes do surgimento zodiaco de tudo 0 que ocone na vida e que as partes do zodiaco cooperam com elas. (Sextus Empiricus, Adversus astroiogos, p.4-5)
Para muitos autores antigos, no entanto, a Astrologia era uma doutrina religiosa e mistica, obtida por revela9ao, sendo portanto desproviQa de justificativa racional. Como exemplo desse tipo de atitude, podemos citar 0 medico Thessalos de Tralles (seculo I d.C.), que escreveu uma obra sobre Astrologia medica.5 Thessalos conta ter estudado em Alexandria, aprendendo tudo 0 que se ensinava na epoca sobre 0 assunto, mas ficou decepcionado com 0 que aprendeu. Viajou por todo 0 Egito e, em Diosporis, encontrou urn sacerdote experiente em artes magicas que prometeu ajuda-lo . Esse sacerdote sabia invocar os demonios, os mortos e os deuses. Depois de faze-lo ficar em jejum por tres dias, 0 sacerdote 0 levou a urn local onde invocou o deus Asclepios, que apareceu e ensinou a Thessalos tudo 0 que este queria saber sobre Astrologia. Entre outras coisas, Asclepios diz :
o crescimento e 0 perecimento de todos os rrutos da estar;ao dependem do inOuxo dos astros ; alem disso, 0 espirito (pneuma) divino, que sua extrema sutileza faz passar atraves de todas as substancias, se espalha com abundimcia particular nos lugares atingidos sucessivamente pelos influxos astrais ao longo da revolur;ao cosmica. (Thessalos, apud Festugiere, 1989, p.163)
Como vamos ver, Ptolomeu nao adota nenhuma dessas posi<;:oes . Para ele , a Astrologia e urn conhecimento de tipo filos6fico, com base racional.
Existem dois metodos de predir;EIo pela Astronomia, 0 Sirius, que sao mais importantes e validos. Um, que e 0 primeiro, tanto peIa ordem como peIa eficacia, e aqueIe peIo qual captamos os aspectos dos movimentos do Sol , Lua e estrelas uns em reIar;EIo aos outros e em reIar;EIo a Terra, conforme ocorrem no tempo. 0 segundo e aqueIe peIo qual, atraves do carater natural desses aspectos, nos investigamos as mudanr;as que elas trazem naquilo que cercam. (Ptolomeu, 1980, livro I, cap. l, p.l / Camerarius)[3]
Nos proporcionaremos agora uma descrição do segundo metodo, que e menos auto- sufi ciente, de urn modo propriamente filosofico. Aquele que tern por objetivo a verdade nunca deve comparar essas suas percep<;oes com a certeza da primeira ciencia, invariante, pois ele lhes associa a fraqueza e imprevisibilidade das qualidades materiais encontradas em coisas individuais. No entanto, ele nao se afasta de tais investiga<;oes, pois estao dentro dos dominios da possibilidade, sendo tao evidente que a maior parte dos eventos de uma natureza geral sao causadas pelos ceus circundantes. (Idem, ibid.)
Ptolomeu explica, logo depois, 0 motivo pelo qual se deve supor que os astros influenciam os fen6menos terrestres :
Algumas poucas considera<;oes tornarao claro a todos que urn certo poder que emana da substancia eterea eterna[4] se espalha e permeia toda a regiao em torno da Terra, que esta completamente sujeita a mudançãs, pois, dos elementos sublunares primarios, 0 fogo e 0 ar sao envolvidos e alterados pel�s movimentos do eter, e eles por sua vez envolvem e mudam todo 0 resto, a terra e a agua, as plantas e os animais. Pois 0 Sol, juntamente com 0 ambiente, estci. sempre de alguma forma afetando tudo na Terra, nao apenas pelas mudançãs que acornpanham as esta<;oes do ana para trazer a geração dos animais, a produção das plantas e 0 fiorescimento das aguas e mudançãs dos corpos, mas tambem por suas revolu<;oes diarias produzindo calor, umidade, secura e frio, em ordem regular e em correspondencia com suas posi<;oes em relação ao zenite. A Lua, tambem, sendo 0 corpo celeste rnais proximo a Terra, fornece sua infiuencia de forma mais abundante sobre as coisas do mundo, pois a maioria delas, animadas ou inanimadas, possuem simpatia por ela e mudam junto com ela. Os rios aumentam e diminuem suas correntezas com sua luz, os mares mudam suas proprias mares com seu erguer-se e deitar-se, e plantas e animais no todo ou em alguma parte incham e se esvaziam com ela. Alem disso, a pas sag em das estrelas fixas e dos planetas pelo ceu geralmente significam condi<;oes de calor, vento e neve do ar , e as coisas do mundo sao afetadas de modos correspondentes. Seus aspectos mutuos, tambem, pelo encontro e combinação de suas emissoes , produzem muitas mudançãs complexas. Pois embora 0 poder do Sol predomine no ordenamento geral das qualidades, os outros corpos celestes o ajudam ou se opoem a ele em detalhes particulares - a Lua de modo mais obvio e continuo, como por exemplo quando esLa cheia, em quarto ou nova ; e os astros de modo mais obscuro e em intervalos maiores, como em seus aparecimentos, oculta<;oes e aproxima<;oes. Se essas coisas forem assim consideradas, todos julgarao que se segue que nao apenas as coisas compostas devem ser afetadas de algum modo pelo movimento desses corpos celestes , mas tambem a germinação e brotamento da semente deve ser moldada e sua forma alterada pela quaJidade propria dos ceus no momento. (Idem , livro I. cap.2, p.2-4, Camerarius)
Ptolomeu admite que muitos dos conhecimentos sobre as influencias dos astros foram obtidos por mera observagao (de modo empirico) :
Os fazendeiros e criadores mais observadores adivinham, a partir dos ventos que prevalecem no instante da impregnac;:ao e do semear, a qualidade daquilo que ira resultar; e em geral vemos que as conseqiiencias mais importantes indicadas pelas configurac;:5es mais 6bvias do Sol, Lua e astros sao conhecidas antecipadamente, mesmo por aqueles que investigam apenas pela obser vac;:ao e nao pela teoria. (Idem, p.4, Camerarius)
Em sua ignorancia, por nao conhecerem precisamente os tempos e lugares desses fenomenos , nem os movimentos peri6dicos dos planetas, que contribuem de forma importante para 0 efeito, ocone que eles geralmente erram. Se, no entanto, um homem conhece precisamente os movimentos de todos os astros, do Sol e da Lua, de modo que nem 0 lugar nem 0 tempo de qualquer de suas configurac;:6es escape a sua noticia ; e se ele distinguiu de forma geral suas naturezas como resultado de um estudo previo continuo, ... e se ele for capaz de determinar, com vista em todos esses dados, tanto de modo cientifico como por conjetura bem-sucedida, as marcas de quaJidade distintivas que resultam da combinac;:ao de todos os fatores, 0 que 0 impedira de ser capaz de predizer em cada ocasiao dada as caracteristicas do ar a partir dos fenomenos daqueJe tempo - por exemplo, que sera mais quente ou umido? (Idem, p.5, Camerarius)
A concepção geral da natureza da Astrologia, para Ptolomeu, corresponde aquilo que denominamos como "ciencia" , hoje: urn estudo sobre a natureza que investiga as interac;oes entre os corpos e procura determinar as leis que regem essas interac;oes, pela observação e pela teoria. A Astrologia nao e, para Ptolomeu, nem uma doutrina mistica, nem urn estudo puramente empirico .
Quais eram essas objec;oes? Uma das melhores fontes para 0 conhecimento do pensamento antigo e Sextus Empiricus. Depois de expor a doutrina dos astr6logos, Sextus Empiricus procura critica-la sob varios pontos de vista (Sextus Empiricus, Adversus astrologos, p. 43- 106) . As principais criticas colocadas sao :
• dificuldade pratica de determinar 0 momenta exato de concepc;:ao ou momenta de
• evidencia pratica de que as vidas de varias pessoas nascidas ao mesmo tempo em locais pr6ximos sao bern diferentes:
Aqueles que nasceram aproximadamente ao mesmo tempo nao tiveram a mesma vida, mas alguns, por exemplo, foram reis , enquanto outros envelheceram acorrentados. Assim, muitas pessoas nasceram no mundo ao mesmo tempo, mas ninguem foi igual a Alexandre da Macedonia, nem ao fil6sofo Platao. (Idem , p. SS)
Se for por causa da mudanc;:a do ar, 0 que isso tern a ver com uma diferenc;:a de vida? Pois embora uma certa combinac;:ao do ar possa contribuir para a forc;:a fisica e carater bestial da criatura que nasce, 0 ar nao parece cooperar como causa em que uma pessoa se envolva em dividas ou que se tome urn rei ou seja colocado na prisao ou seja esteriJ ou sem amigos. (Idem, p.l0l)
Os Est6icos, por outro lado (pois Zenao em seus escritos espalhou, por assim dizer, certas sementes que Cleantes havia fertilizado), defenderam quase todos os tipos de adivinhac;:ao. Entao veio Chrysippus, urn homem de intelecto muito agudo, que discutiu exaustivamente toda a teoria da adivinhac;:ao em dois livros e, alem disso, escreveu urn livro sobre oraculos e outro scbre sonhos.
E seguindo-o, seu aluno, Di6genes de Babilonia , publicou urn livro, Antipater dois, e meu amigo Posidonius, cinco. Mas Panaetius , 0 professor de Posidonius, e tambem aluno de Antipater, tendo sido urn pilar da escola Est6ica, afastou-se dos Est6icos, e, embora nao ousasse dizer que a adivinhac;:ao nao era eficaz, afirmou que estava em duvida. (Cicero, De divina tione, livro I, p.iii, 6)
Eclipses do Sol e da Lua sao previstos muitos anos antes por homens que empregam a Matematica no estudo dos caminhos e movimentos dos corpos celestes; e as leis invariantes da natureza fazem com que suas previs6es oeorram. Por eausa dos movimentos perfeitamente regulares da Lua, os astronomos calculam quando ela estara oposta ao Sol e na sombra da Terra - que e 0 "cone de sombra" - e quando, necessariamente, fieara invisivel ...
Mas que tipo de raciocinio e seguido pelas pessoas que predizem 0 achado de urn tesouro ou 0 recebimento de uma heranya? Em que lei da natureza essas profecias se baseiam? (Idem, livro II, p.vi, 17-vii, 18)
Assumindo que todas as obras da natureza estao firmemente unidas entre si em urn todo harmonioso (0 que, como observ�, e a opiniao dos fil6sofos naturais e especialmente daqueles que mantem que 0 universo e uma unidade), que conexao pode existir entre 0 universo e 0 achado de um tesouro? ... No entanto, deve-se admitir um certo contato entre as diferentes partes da natureza e eu 0 concedo. Os Est6icos coletaram muita evidencia para prova-Io. Eles alegam, por exemplo, que os figados dos ratos aumentam no inverno ; que 0 pulgueiro9 seco f10resce exatamente no dia do solsticio de inverno, e que suas vesiculas se inflam e arrebentam, lanyando as sementes la contidas para lOdos os lados ; que quando certas cordas da lira sao tocadas, outras ressoam ; que as ostras e todos os crustaceos crescem com 0 crescer da Lua e diminuem com ela ; e que as arvores sao mais faceis de cortar quando a Lua envelhece lap6s a Lua cheial . pois ficam secas.
As mares nos canais e mares tambem sao governadas pelos movimentos da Lua. Podem ser dados inumeros exemplos do mesmo tipo para provar que existe alguma conexao natural entre objetos distantes. Concedamos que isso existe. No entanto, pode isso responder a meu ponto: se uma fissura em um figado pode indicar um ganho financeiro? (Idem, p.xiv, 33-4)
Chegamos as manifestayoes dos Caldeus. Ao discuti- Ias , Eudoxos, um discipulo de PIatao, que os homens mais doutos consideram 0 primeiro em Astrologia, 10 deixou a seguinte opiniao em seus escritos : "Nao se deve confiar nas prediyoes dos Caldeus quando preveem a vida de um homem pelo seu hor6scopo". Panaetius, ta mbem, que foi 0 unico dos Est6icos a rejeitar as prediyoes dos astr610gos , menciona Anchialus e Cassandrus como os maiores astr610gos de sua epoca e afirma que eles nao empregavam sua arte como meio de adivinhayao, embora fossem eminentes em todas as outras partes da Astrologia...
Mas vamos deixar de lade os testemunhos e discutir as razoes daqueles que defendem as previsoes natalicias dos Caldeus Como, pelo avanyo e retrocesso dos astros, ocone grande variedade e mudanya das estayoes e da temperatura, e como 0 poder do Sol produz resultados que vemos, eles acreditam que e nao apenas provavel, mas seguro, que assim como a temperatura do ar e regulada par esta forya celeste, tambem as crianyas em seu nascimento sao influenciadas em alma e espirito e, par esta farya , sao determinados suas mentes , modos, disposiyao, condiyao fisica, carreira e destino.
Que delirio incrivel ! pois nao basta dizer que esse erro e uma lOlice. (Idem, p.x1ii, 87-90)
Alem disso, Cicero aponta que os astrologos nao levam em conta a influencia dos pais, embora todos vejam que a aparencia e os Mbitos das crian9as sao herdadas dos seus pais . Isso nao aconteceria se as caracteristicas das crian9as fossem deter minadas pelas fases da Lua e pelas condi90es celestes .
6 A defesa da Astrologia no Te trabiblos
Em segundo lugar, a maiaria , par desejo de luera, pede credito para outra arte em nome desta e engana 0 vulgo, pois eles possuem a reputação de prever muitas coisas, mesmo as que nao podem ser conhecidas previamente de modo natural ; e os mais sensatos, par causa disso, sao levados a julgar tambem de forma desfavaravel os temas naturais de prafecia. Mas isso nao merece ser feito. 0 mesmo ocone com a filosofia: nao precisamos aboli-la parque existem evidentemente algumas vibaras entre os que possuem pretensao a ela. (Idem, ibid.)
Na investigação dos fenomenos atmosfericos, essa la complexidade e variabilidadel seria a unica dificuldade, pOis nao existem outras causas a serem levadas em conta alem dos movimentos dos corpos celestes. No entanto, em uma pesquisa sobre nascimentos e temperamentos indivi duais em geral, pode-se ver que existem circunstancias que nao sao de pequena importimcia ou carater desprezivel, que se unem para causar as qualidades especiais daqueles que nascem. Pois diferenc;:as de semente exercem uma enorme infiuencia nos trac;:os especificos do genero, pois, se o ambiente e 0 horizonte forem os mesmos, cada semente prevalece e exprime em geral sua pr6pria forma - por exemplo, de homem, cavalo e assim por diante. E os locais de nascimento produzem grande variac;:ao naquilo que e produzido. Pois se a semente e genericamente a mesma - humana, por exemplo - e as condic;:oes do ambiente sao as mesmas, aqueles que nascem diferem muito, tanto em corpo quanto em espirito, pela diferenc;:a dos paises. Alem disso, mesmo quando todas as condic;:oes acima mencionadas sao iguais, os costumes e a educac;:ao contribuem para influenciar o modo particular pelo qual se desenvolve uma vida. (Idem, p.7-8, Camerarius)
E verdade que 0 movimento dos corpos celestes e realizado eternamente de acordo com urn destino divino imutavel, enquanto as mudanc;:as das coisas terrestres esta sujeita a uma sorte natural e mutavel e, ao trac;:ar suas causas primeiras ao mundo superior, elas estao governadas pelo acaso e pela sequencia natural. Alem disso, algumas coisas acontecem a humanidade atraves de circunstancias mais gerais e nao como resultado das tendencias naturais do pr6prio individuo - por exemplo, quando muitos hornens morrem pela guerra ou peste ou cataclismas , atraves de mudanc;:as monstruosas e inescapaveis do ambiente - pOis as causas menores sempre cedem a maior e mais forte. Outras ocorrencias, no entanto, concordam com 0 pr6prio temperamento natural do individuo atraves de antipatias menores e fortuitas do ambiente. (Idem, cap.3, p. 11 -12 , Camerarius)
Devemos acreditar no medico, quando ele diz que esse ferimento ira se espalhar ou causar putrefac;:ao Igangrenal . e o mineiro, por exemplo, Iquando dizl que 0 ima atrai 0 ferro. Cada uma dessas coisas, se deixada a si propria pela ignorancia de forc;:as opostas, desenvolvera inevitavel mente aquilo a que sua natureza original impele, mas se receber urn tratamento preventivo, a ferida nao se espalhara e nao produzira putrefac;:ao, e se 0 ima for esfregado com alho, nao atraira o ferro; 12 e essas medidas impedidoras tambem possuem seu poder de resistencia de modo natural e pelo destino. Tambem nos outros casos, se os conhecimentos futuros dos homens sao desconhecidos, ou se eles sao conhecidos mas nao sao apJicados os remedios, eles seguirao 0 curso da natureza primaria. Mas se forem reconhecidos antes e forem proporcionados os remedios, entao, ainda de acordo com a natureza e 0 destino, eles ou nao ocorrerao ou serao tornados menos severos. (Idem, p. 13, Camerarius)
De forma resumida, essa e a defesa que Ptolomeu apresenta da Astrologia. Pode-se perceber que ele responde a quase todas as criticas apresentadas por Sextus Empiricus e por Cicero . Em alguns casos , ele fornece esclarecimentos que mostram que 0 tipo de Astrologia que defende e diferente do criticado por outras pessoas (por excmplo : ele nao e fatalista) . Ha, no entanto, urn ponto que tanto Sextus Empiricus quanto Cicero apontam e que, ainda hoje, e a primeira objeQao a Astrologia que ocorre aos cientistas : como se poderia compreender a infiuencia dos astros? Este e urn ponto central, que Ptolomeu desenvolve de urn modo bern diferente de outros astr6logos. Ao inves de recorrer a ideia de uma "simpatia" ou qualquer outra relaQao desconhecida, ele utiliza uma teoria de infiuencias naturais atraves de calor, frio, umidade e secura.
O poder ativo da natureza essencial do Sol e 0 de aquecer e, em certo grau, secar. Isto se torna rnais facilmente perceptivel no caso do Sol do que qualquer outro carpo celeste par seu tamanho e pela evidencia das mudançãs das esta<;:6es, pois quanto mais ele se aproxima do zenite, rnais ele nos afeta deste modo. 0 principal poder da Lua consiste em umidecer, parque esta proxima a Terra e par causa das exala<;:6es umidas que dai saem. Sua ação e partanto precisamente esta, principalmente amolecer e causar putrefação em carpos, mas tambem compartilha modera damente do poder de aquecer, par causa da luz que recebe do Sol.
A qualidade de Saturno e principalmente de esfriar e, moderadamente, de secar, provavel mente parque ele e 0 mais afastado tanto do calar do Sol quanta das exala<;:6es umidas da Terra. Tanto no caso de Saturno como no dos outros plnnetas, tambem existem poderes que provem daobservação de seus aspectos com 0 Sol e a Lua, pois alguns deles parecem modificar as condi<;:6es do ambiente de urn modo, outros de outro, par aumento ou por diminuição.
A natureza de Marte e principalmente de secar e queimar, em confarmidade com sua cor de fogo e por causa de sua proximidade ao Sol, pois a esfera do Sol esta logo abaixo da sua.
Jupiter tem uma forçã ativa temperada, pois seu movimenta ocorre entre a infiuencia resfriadara de Saturno e 0 poder queimante de Marte. Ele tanto aquece quanta umidece ; e como seu poder de aquecimento e maior por causa das esferas subjacentes, ele produz ventos fertilizantes.
Venus tem os mesmos poderes e natureza temperada que Jupiter, mas age do modo oposto; pois ela aquece moderadamente por causa de sua proximidade ao Sol, mas principalmente umidece, como a Lua, por causa da qunntidade de sua propria luz e porque ela se apropria das exala<;:6es da atmosfera umida que cerca a Terra .
Mercurio em geral e encontrado em certos tempos como secando e absorvendo umidade, pois nunca esta a grande longitude do calar do Sol ; e tambem umidificando, porque ele e 0 seguinte acima da esfera da Lua, que e a rnais proxima da Terra ; e muda rapidamente de u rn para outro, como se fosse inspirado pela rapidez de seu movimento nas proximidades do proprio Sol. (Idem, cap. 4, p. 17-9, Camerarius)
Duas das qualidades sao ferteis e ativas - 0 quente e 0 umido (pois todas as coisas sao reunidas e aumentadas par elas) - e duas sao destrutivas e passivas - 0 seco e 0 frio, pelos quais as coisas se separam e destroem. Por isso, os antigos aceitaram dois dos planetas, Jupiter e Venus, juntamente com a Lua, como beneficos - par causa de sua natureza temperada e porque abundam em calor e umidade. Saturno e Marte foram considerados como de natureza oposta listo e, maleficosi, um par causa do seu frio excessivo e 0 outro por sua secura excessiva. 0 Sol e Mercurio, no entanta, eles imaginaram que possuem ambos os poderes, pois possuem uma natureza comum, e unem suas infiuencias as dos outros planetas , seja qual for aquele ao qual estejam associados. (Idem, cap. 5, p.19 , Camerarius)
Ao longo de todo 0 livro, 0 estilo de Ptolomeu continua coerente com a tentativa de fornecer uma teoria unificada da Astrologia. Ao iniciar a discussao dos hor6scopos individuais, por exemplo, ele afirma que nao vai adotar 0 metoda antigo de previsao, baseado na combina9ao de todos os astros, porque "depende muito mais das tentativas particulares daqueles que fizeram essas investiga90es diretamente da natureza, do que daqueles que podem formular teorias com base nas tradi90es" (Idem, livro III , cap.l, p. l07, Camerarius) . Ou seja: Ptolomeu foge do empirismo e busca uma teoria astrol6gica sistematica.
8.1 A fonnulayao de uma teoria astrol6gica
Se compararmos 0 Tetrabiblos a obra astro16gica de Manilius, 0 contraste de estilo e notavel. Marcus Manilius, urn autor romano do primeiro seculo da Era Crista, escreveu 0 mais antigo texto astro16gico que foi conservado : a Astron omica . Por urn lado, a Astronomica tern urn estilo rebuscado, por se tratar de urn poema filos6fico e didatico (como 0 De rerum na tura de Lucretius) . Mas, mesmo fazendo-se 0 devido desconto daquilo que se deve a tentativa de fazer uma obra em versos, a Astronomica e urn receituario astrol6gico que nao procura apresentar uma teoria racional. Todas as explica90es sobre as influencias dos signos se baseiam simplesmente na tradi9ao e em analogias simb6licas tiradas da mitologia e das figuras associadas as constela- 90es do zodiaco.13 A visao da Astrologia da epoca proporcionada por Cicero e Sextus Empiricus tambem e do mesmo tipo : urn receituario baseado na tradi9ao dos caldeus e nao urn sistema filos6fico, com justificativas racionais. Por exemplo : ao descrever as caracteristicas dos varios planetas, Sextus Empiricus assim as apresenta:
Quanto aos astros [Sol, Lua e planetas] eles dizem que algumas delas sao beneficas, algumas maleficas, outras sao ambos. Assim, Jupiter e Venus sao beneficos, mas Marte e Satumo maleficos, enquanto Mercurio e as duas coisas, pois e benefico quando eslil com astros beneficos, mas malefico quando esta com maleficos. (Sextus Empiricus, Adversus astroiogos, p.29- 30)
Pode-se dizer que aquilo que Ptolomeu fez ao discutir as caracteristicas dos astros e muito semelhante ao que Arist6teles fez ao desenvolver uma teoria para os quatro elementos . De fato, desde Empectocles ja existia a proposta de que os corpos terrestres eram constituidos pelos elementos terra, agua, ar e fogo. No entanto, foi Arist6teles quem formulou uma teoria, baseada nas quatro qualidades basicas (quente - frio , umido - seco) , para justificar e tomar mais fertil a concepQao de Empedocles.
o autor da Epinomis platonica, de certa maneira, antevia aquilo que Ptolomeu realizou. Pois, referindo-se a Astrologia dos caldeus, ele afirma:
Tomemos consciencia de que tudo 0 que os gregos adotaram dos barbaros, eles 0 retrabalharam e levaram a urn acabamento melhor. Deve-se pensar 0 mesmo sobre nosso assunto presente. Sem duvida e dificil descobrir a verdade de uma forma indiscutivel em todas essas questoes novas, mas existe uma grande esperanc;:a - e e uma bela esperanc;:a - de que os gregos tomarao urn cuidado rnais nobre e mais justo da doutrina que nos vern dos harbaros naquilo que se refere a todos esses deuses [astros[ ...
(Epinomis, 987 d 9 - 988 a 5, apud Festugiere, 1989, p. 6-7)
8.2 A Astrologia como um ramo da Filosofia natural
Esta obra imensa que forma 0 corpo do universo [mundol. com seus membros compostos de diversas naturezas, ar e fogo, terra e mar plano, e regida pela forc;:a da alma divina [ vis animae divina regit] ; por caminhos sagrados deus traz a harmonia e governa com prop6sito oculto, criando unioes mutuas entre todas as partes, de modo que cada uma fornece e recebe forc;:a da outra e que 0 todo possa permanecer firme em unii'lO apesar de sua variedade de formas. (Manilius, 1977, livro I, p.247-54)
Eu cantarei ao deus, monarca silencioso da natureza, que, permeando ceu e terra e mar, controla uniformemente a poderosa estrutura ; como 0 universo inteiro vive em consenso mutuo de seus elementos e se move pelo impulso da razao, pois urn unico espirito [spiIitus[ reside em todas as suas partes e, espalhando-se par todas as coisas, nutre 0 mundo e Ihe da a farma de uma criatura animada. De fato, se a estrutura inteira nao permanecesse firme, composta par membros cognatos e obediente a urn mestre, se a providfmcia nao dirigisse a vastidao dos ceus, a Terra nao possuiria sua estabilidade, nem as estrelas suas orbitas, e os ceus vagueariam sem meta ou ficariam parados ; as constela<;:oes nao manteriam seus cursos estabelecidos nem se alternariam 0 dia e a noite...
Este deus e razao controladara de tudo, partanto, dirige os seres da Terra pelos signos celestes ; embara as estrelas estejam remotas a uma grande distancia, ele obriga a reoonhecer suas inlluencias ... (Idem, livro II , p.60-73, p.82-4)
Uma visao que pode ser considerada panteista aparece tambem na obra de Plinio, o Velho, quando ele fala sobre as influencias celestes :
Nao quero colocar em duvida que os elementos sejam em numero de quatro. Na regiao mais elevada 0 fogo, dai todas as estrelas que brilham como vemos ; proximo dele, 0 espirito [s piIitus] , que os Gregos e nos chamamos igualmente de ar [aer] , principio de vida que penetra 0conjunto do universo e se une estreitamente a tudo; seu poder mantem em equilibrio no meio de espa<;:o a terra, com 0 quarto elemento, a agua. (Plinio, 1950, livro II, cap.N, § 10)
Entre ela [a Terra] e 0 ceu, 0 mesmo espirito [spiritus] mantern suspensos sete astros separados par intervalos determinados : sao chamados de errantes, pois eles se deslocam, embara nao existam carpos menos errantes do que eles. No meio deles se move 0 Sol, 0 rnais consideravel par seu tamanho e seu poder, que rege nao somente as esta<;:oes e as terras, mas tambem os proprios astros e 0 ceu . Ele e a alma [anima] ou a mente do mundo inteiro, ele e a regra primeira e a primeira divindade da natureza ... (Idem, § 12-13)
Parece necessario estabelecer 0 principio do qual dependem esses sinais. Pois, de acardo com a doutrina dos Estoicos, os deuses nao sao diretamente responsaveis par cada fissura no figado ou par cada canção dos passaros; pois, e claro, isso nao seria adequado ou digno de urn deus, alem de ser impossive!. Mas, no inicio, 0 universo foi criado de modo tal que certos resultados seriam precedidos par certos sinais, que sao dados algumas vezes pelas entranhas e par passaros, algumas vezes par relampagos, por partentos e par estrelas, algumas vezes par sonhos, e algumas vezes pelas vozes de pessoas em transe. (Cicero, De divinatione, livro I, p.lii, 11 8)
A mente divina realiza efeitos semelhantes no caso das aves, e faz com que as conhecidas
par alites, que proparcionam augurios par seu voo, voem para ca e para la e desapareçãm agora aqui e depois la ; e faz as conhecidas par oscines, que proparcionam augurios par seus gritos, cantar agara do lado esquerdo e depois do lade direito ... 0 mesmo poder nos envia sinais dos quais a historia nos preservou numerosos exemplos. Quando, antes do nascer do Sol, a Lua foi eclipsada no signo de Leao, isso indicou que Dario e os persas seriam vencidos na batalha pelos macedonios dirigidos par Alexandre e que Dario marreria ... (Idem, p.liii, 120- 1)
Em Ptolomeu, nao encontramos nada semelhante a tudo isso. Os deuses nao possuem qualquer papel na Astrologia exposta no Tetrabiblos. Note-se, tambem, que a visao dos est6icos justifica nao apenas a Astrologia como todo tipo de metodo de adivinha9ao. Ptolomeu apenas advoga a possibilidade da Astrologia - e critica outros metodos de adivinha9ao, como vimos.
8.3 As influemcias celestes, segundo Arist6teles
o "lugar classico" em que Arist6teles discute 0 tema e 0 capitulo 10, do livro II, da obra De generatione et COJJuptione (Sobre a gera9ao e a COJJUP9ao) . Aqui, ele se refere especificamente ao movimento do Sol, sua aproxima9ao e afastamento no cicIo anual, produzindo 0 nascimento e morte das coisas sublunares. Ele nao se refere neste ponto diretamente a efeitos de outros astros, nem discute 0 modo como se transmite a a9ao do Sol ao mundo sublunar.
Alem disso, como provamos que a mudan9a, que e urn movimento, e eterna, a continuidade da ocorrencia da transforma98.o segue-se necessariamente daquilo que estabeJecemos : pois 0 mo vimento eterno, fazendo com que 0 gerador se aproxime e afaste, produzira de forma ininterrupta a transforma98.o. (Arist6teJes, De generatione et corwptione, Jivro 2, cap. l0, p. 336 a 14-8)
Em seguida, Arist6teles argumenta que existe tanto 0 surgimento quanto 0 desaparecimento das coisas terrestres14 e que os dois processos sao contrarios, exigindo assim causas contrarias. Por isso, esses dois processos exigem a suposição de dois movimentos contrarios que os causam. Arist6teles os explica pela aproximação e afastamento dos astros e, em particular, do SOl, 15 no decorrer do ano, por causa da inclinação de seus movimentos:
Assumimos e provamos que 0 surgimento e 0 desaparecimento acontecem continuamente as coisas ; e afirmamos que 0 movimento causa a transforma<;:ii.o. Assim sendo, e evidente que, se o movimento for imico, os dois processos nao podem ocorrer, pois sao contrarios urn ao outro: pois e uma lei da natureza que a mesma causa, se ocorrerem as mesmas condi<;:oes, sempre produz o mesmo efeito, de modo que, de urn movimento li.nico, sempre resultara ou 0 sugimento ou 0 desaparecimento. Pelo contrario, os movimentos devem ser mais do que um, e opostos um ao outro ou pelo sentido de seu movimento ou por sua irregularidade. Pois efeitos contrarios exigem causas contrarias.
Isso explica porque nao e 0 movimento primario 10 movimento de rotação celeste em urn circulo simples] que causa 0 surgimento e desaparecimento, mas 0 movimento no circulo inclinado: pois este movimento possui tanto a continuidade necessaria como tambem inclui uma dualidade de movimentos. (Idem, p. 336 a 24 - 336 b 1)
E existem fatos empiricos que concordam claramente com nossa teoria. Assim, vemos que o surgimento ocorre quando 0 Sol se aproxima e 0 desaparecimento quando ele se afasta; e vemos que os dois processos ocupam 0 mesmo tempo. Pois a duração dos processos naturais de destruição e surgimento sao iguais. (Idem, p.336 b 16- 19)
A causa eficiente para a continuidade da geração e corrupção, de acardo com Arist6teles, e o movimenta priminio continuo, enquanto que a causa eficiente da geração e da corrupção e 0 movimento do Sol no circulo inclinado. Este ultimo movimento nao e limitado ao Sol, apenas, mas e tambem 0 da Lua e de todos os planetas, embara ele realmente seja mais aparente no caso do Sol. Pois 0 efeito do Sol sobre a alteração das quatro esta,<oes em seu curso ao long o de seu circulo inciinado e precisamente 0 de cada estrela em seu caminho ao longo de seu circulo especifico. Pois embora 0 efeito particular que cada uma das estrelas exerce sobre as coisas em torno de n6snos seja oculto, uma descrição abrangente revelaria que eles possuem de fata uma infiuenda sobre geração e corrupção, a tal ponto que se imaginarmos a remoção de qualquer estrela ou seu movimento, a geração como urn todo ou a geração de alguns seres nao poderia ser completada. De [ato, pode-se observar que algumas coisas sao atribuidas a ação desta ou daquela estrela. N6s vemos que aqueles que observaram as estrelas desde tempos antigos dividiram todas as coisas
em tipos de acardo com elas e caracterizaram uma coisa como provindo da natureza de uma estrela e outra coisa como provindo da natureza de uma outra estrela. (Averroes, Epitome, p. 133)16
A continuidade do movimento e causada pelo movimento do todo ; mas a aproximação e retração do corpo que se move sao causadas pela inciinação. Pois a conseqiiencia da inclinação e que 0 carpo se tarna alternadamente mais pr6ximo e mais remoto; e como sua dismncia e assimdesigual, seu movimento sera irregular. Partanto, se ele gera ao se aproximar e par sua proximi dade, ele (este mesmo carpo) destruira ao se retrair e se tornar remoto. E se ele gera par varias aproxima,<oes, ele tambem destr6i par sucessivos afastamentos. Pois efeitos contrarios exigem causas contrarias ; e os processos naturais de surgimento e destruição ocupam iguais periodos de tempo. Assim, portanto, os tempos - isto 13, as vidas - dos diversos tipos de seres vivos possuem um numero pelo qual eles se distinguem; pois h8 uma ordem que controla todas as coisas e cada tempo 13 medido por um periodo. Nem todos eles, no entanto, sao medidos pelo mesmo periodo, mas alguns por um {periodoj menor, Ou tlOS por um maior: pois para alguns deles 0 periodo, que 13 sua medida, 13 de um ano, en quanto que para OutlOS 13 mais longo e para OutlOS mais curto. (Arist6teles, De generatione et corruptione, Iivro n, capitulo 10, p. 336 b 3 - 16)
No capitulo seguinte do De genera tione et COITuptione (livro II, cap. l l), Arist6- teles discute se a relaQao entre os fenomenos celestes e terrestres e necessaria (deterministica) ou nao . Este e urn ponto essencial para toda discussao astrol6gica.
Alguns acontecimentos sao necessarios (isto e, nao podem deixar de ocorrer), enquanto outros sao contingentes \isto e, poderiam nao oconeI) . Os acontecimentos terrestres que sao causados de forma necessaria pelos fenomenos celestes serao, de acordo com Arist6teles, ciclicos, exatamente como os celestes.
o resultado ao qual chegamos concorda de forma !6gica com a eternidade do movimento circular, isto e, a eternidade da rota9iio dos ceus (um fato que se ap6ia tambem em evidi'mcia independente dessa), pois precisamente os movimentos que pertencem e dependem dessa revolw;:iio eterna surgem de forma necessaria, e ocorreriio necessariamente. Pois como a rota9iio do corpo esta sempre colocando alguma outra coisa em movimento, 0 movimento das coisas que ele move tambem deve ser circular. Assim. pela existencia de uma revo!u9iio superior, segue-se que 0 Sol gira desta maneira determinada; e como 0 Sol gira assim, as estayoes aparecem em um cicIo, isto e, retornam sobre si pr6prias ; e como elas surgem ciclicamente, assim tambem ocorre com todas as coisas cuja gerayiio e iniciada pelas estayoes. (Idem, cap. 11, p.338 a 18 - 338b 6)
Em toda essa discussao, fica claro que a concepQao de Arist6teles sobre a influencia dos astros nos fenomenos terrestres e compativel com a visao astrol6gica do Tetrabiblos.
8.4 A natureza dos ceus e a transmissao de sua infiuencia
Como ja foi citado anteriormente, Ptolomeu fala sobre esses cinco elementos, ao descrever a influencia celeste sobre as coisas terrestres :
Algumas poucas considerac;:oes tornarao claro a todos que urn certo poder que emana da substancia eterea eterna se espalha e permeia toda a regiao em torno da Terra, que esm completamente sujeita a mudanc;:as, pois, dos elementos sublunares primarios, 0 fogo e 0 ar sao envolvidos e alterados pelos movimentos do eter, e eles por sua vez envoIvern e mudam todo 0 resto, a terra e a agua, as plantas e os animais. (Ptolomeu , Tetrabiblos, livro I, cap.2, p.2, Camerarius)
Na Meteorologica (livro I, capitulos 2-3), Arist6teles discute as causas dos fen6menos atmosfertcos. Primeiramente, ele se refere aos cinco elementos que constituem 0 universo - 0 eter, que forma os ceus, e terra, fogo, agua e ar, que formam o mundo sublunar. Depois, ele indica que M uma continuidade entre 0 mundo inferior e o superior e, por isso, a causa eficiente dos fen6menos sublunares e 0 movimento celeste.
Ja estabelecemos que existe urn elemento fisico que forma 0 sistema dos corpos que se movem em circulo17 e, alem dele, quatro corpos que devem sua existencia aos quatro principios. o movimento desses ultimos corpos e de dois tipos : ou Ipara longel do centro ou em direc;:ao ao centro Ido universol . Esses quatro corpos sao fogo, ar, agua e terra. 0 fogo ocupa 0 lugar mais elevado dentre todos eles, a terra 0 rnais baixo, e os dois elementos se relacionam a estes, 0 ar estando mais pr6ximo ao fogo, a agua a terra. Todo 0 mundo que cerca a Terra, portanto, e cujas propriedades sao nosso assunto, e constituido por estes corpos.
Este mundo tern necessariamente uma certa continuidade com os movimentos superiores. Conseqiientemente, todo seu poder e ordem provem deles. Pois 0 principio originador de todo movimento e a causa primeira. Alem disso, esse elemento e etemo e seu movimento nao tern limite no espac;:o, mas e sempre completo - enquanto que todos esses outros corpos possuem regioes separadas que limitam uma a outra. Assim, devemos tratar fogo e terra e os elementos emelhantes a eles como as causas materiais dos acontecimentos neste mundo (signiticando 0 material que e sujeito e e afetado), mas devemos assinalar causaJidade, no sentido de principio originador do movimento, a infiuencia dos corpos que se movem eternamente. (Aristoteles, Meteoroiogica , Jivro I, cap.2, p. 339 a 12 -33)
Mas se devemos investigar agao e passividade e combinagao, devemos tambem investigar contato. Pois agao. e passividade (no sentido proprio das palavras) so podem oconer entre coisas que se tocam uma a outra. E as coisas nao podem se combinar a menos que entrem em certo tipo de contato ...
Todas as coisas que admitem combinagao devem ser capazes de contato reciproco; e 0 mesmo e verdadeiro de duas coisas quaisquer, uma das quais age e a outra sofre a agao, no sentido proprio dos termos. (Aristoteles, De generatione et corruptione, Jivro I , cap.5, p. 322 b 22 - 28)
o movimento circular do primeiro elemento [eterl e dos corpos que ele co nte rn dissolve e in !lama por seu movimento a parte do mundo inferior que esta rnais proxima dele e assim gera calor ...
o corpo que esm abaixo do movimento circular dos ceus e, de certa forma, uma materia, e e potencialmente quente, frio, seco e umido, e possuido de todas as outras qualidades derivadas destas. Mas ele realmente adquire ou mantem uma dessas [quaJidadesl em virtude do movimento ou repouso, cUja causa e principio ja foi expJicado. (Aristoteles, Meteoroiogica , Jivro I, cap.3, p. 340 b l l - 19)
Em sua obra A history of western astrology, Tester afirma que foi "provavelmen te" Poseidonius quem mais influenciou a parte inicial do Tetrabiblos (1987, p.69) ; e, em outro ponto, dedara: "A filosofia a qual sua [de Ptolomeul astrologia se adequa e o Estoicismo, 0 que nao e surpreendente" (Idem, p.68) . Vejamos se existe de fato essa ligac,:ao .
Nesse ponto, 0 De mundo comenta sobre a existencia de principios opostos no universo e discute a harmonia dos contrarios :
Assim, uma (mica harmonia ordena a composic;:ao do todo - ceus e Terra e todo 0 universo - pela mistura dos principios mais contrarios. 0 seco, misturando-se com 0 umido, 0 quente com o frio, 0 leve com 0 pesado, 0 reto com 0 curvo, toda a Terra, 0 mar, 0 eter, 0 Sol, a Lua e 0 ceu inteiro sao ordenados por um unico poder que se estende por tudo, que cIiou todo 0 universo a partir de elementos separados e diferentes - ar, terra, fogo e agua - envolvendo-os todos em uma superficie esferica e forc;:ando as naturezas mais contrarias a viverem em concordancia mutua no universo e assim produzindo a permanencia do todo. (Poseidonius, 1931, cap.5, p. 396 b 23- 32) Igrifo nossol
E mais proprio de sua dignidade e mais adequado que ele esteja entronizado na regiiio mais elevada e que seu poder, estendendo-se atraves de todo 0 universo, mova 0 Sol e a Lua e fac;:a todo 0 ceu girar e seja a causa de permanencia de tudo 0 que esta nesta Terra. Pois ele nao precisa de auxilio ou servic;:o de outros, como nossos regentes terrestres - por causa de sua fraqueza - precisam de muitas maos para fazer seu trabalho ; mas e caracteristico do divino ser capaz de realizar diversos tipos de trabalho com facilidade e pelo movimento simples ... (Idem, p. 398 b 7-14)
8.5 As qualidades basicas da materia
Na sua obra De caelo, Aristoteles introduz os cinco elementos atraves de uma discussao sobre os movimentos terrestres e celestes . No entanto, nao esclarece a propria natureza desses elementos . E no livro II do De genera tione et corruptione que ele desenvolve a teoria das quatro qualidades associadas aos quatro elementos. As quatro qualidades sao opostas duas a duas e perrnitem a existencia de quatro e apenas quatro combinaQoes compativeis :
As qualidades elementares S1'IO quatro, e quatro termos podem ser eombinados em seis duplas . No entanto, os eontrElfios se reeusam a ser unidos : pois e impossivel que a mesma eoisa seja quente e fria, ou seea e umida . Portanto, e evidente que as eombina90es das qualidades elementares serao quatro: quente com seeo, umido com quente, frio com seeD e frio com umido. E esses quatro pares se associam aos eorpos aparentemente simples (fogo, ar, agua e terra) de urn modo eoerente com a teoria. Pois 0 fogo e quente e seeo, 0 ar e quente e umido (sendo 0 ar urn tipo de vapor aquoso) ; agua e fr ia e umida, e a terra e fria e seea. Assim, as diferen9as estiio distribuidas de modo razoavel entre os eorpos primarios, e o numero dos ultimos e eoerente com a teoria. (Aristoteles, De generatione et corIUptione, livro II, eap.3, p. 330 a 30 - b B)
Apenas para citar urn exemplo da influencia medieval dessas ideias, e relevante observar que Al-Biruni (inicio do seculo XI) faz das quatro qualidades a base de toda a Astrologia. De fato, em sua obra 0 livro de instrUr,;80 nos elementos da arte da Astrologia , ele comeQa a discussao dos signos dizendo :
Quanto a natureza e temperamento dos signos, se eles forem escritos em duas linhas, superior e inferior, com 0 primeiro signo acima e 0 segundo abaixo dele, e assim por diante ate 0 ultimo, todos os de linha superior sao quentes e os da inferior frios ; e os pares assim arranjados sao alternadamente secos e umidos.
|
Seeo |
Umido |
Seeo |
Umido |
Seeo |
Umido |
Quente |
Aries |
Oemeos |
Leao |
Libra |
SagiUirio |
Aquario |
Frio |
Touro |
Cancer |
Virgem |
Escorpiao |
Caprie6rnio |
Peixes |
Quando portanto voce conhece as virtudes ativas de urn signo - se ele e quente ou frio - e as virtudes passivas 19 - seco ou umido - ficara evidente a qual elemento do mundo e que humor particular do corpo cada signo se assemelha. Cada signo que e quente e seco esta associado ao fogo e a bilis amarela, cada urn que e frio e seco, a terra e a bilis negra, cada u rn que e quente e umido ao ar e ao sangue e cada urn que e frio e umido a agua e a fleuma. (Al-Biruni, 1934, § 347)
9 Conclusao
Os pontos aqui explorados parecem suficientes para estabelecer aquilo que se queria mostrar: a Astrologia exposta no Tetrabiblos nao pode ser considerada de influencia est6ica, mas deve ser vista como fundamentada diretamente no pensamen to aristotelico .
Trans/FormlA9ao (Sao Paulo), v.18, p.51- 78, 1995.
• ABSTRACT: This work describes the main basic concepts ofthe astrological work ofCla udius Ptolorreo, through an analysis of his Tetrabiblos. Comparing his ideas to those of other au thors of his time, it is shown that Ptolomeo does not present stoic influences, as claimed by some historians. The conclusion of the article is that the basis of Ptolomeo 's astrology is Aristotle's physics.
• KEYWORDS: Aristotle; Ptolomeo; Astrology; ancient astronomy; Aristotelic physics; stoicism.
1 AL-BIRUNI, Abu'l-Rayhan Muhammad ibn Ahmad. The book ofinstruction in the elemen ts of the art of astrology. WRIGHT, R. R. (Ed. e trad.) London: Luzac, 1934.
2 ARIST6TELES. The works of Aristotle transla ted in to English . ROSS, W. D. (Ed.) Oxford: Clarendon, 1931.
3 CICERO, M. T. De senectute. De amicitia. De divinatione. FALCONER, W. A. (Ed. e trad.) Cambridge, MA: Harvard University, 1992.
4 COLISH, M. L. The stoic tradition from Antiquity to the early Middle Ages. Leiden: E. J. Brill, 1990. 2v.
5 FESTUGIERE, A. J. Hermetisme et mystique paienne. Paris : Aubier-Montaigne, 1967.
6 . La revelation d 'Herm es Trismegiste. 1. L'astrologie et les sciences occultes. Paris : Les Belles Lettres, 1989.
7 GILBERT, W. On the loadstone and magnetic bodies. Trad. P. Fleury Mottelay. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1952. (Great books of the western world 28)
8 GOLDSCHMIDT, V. Le systeme stoiden et ]'idee de temps. Paris : Librairie Philosphique J. Vrin, 1989.
9 KURLAND, S. (Ed.) Averroes on Aristotle's De gen eratione et corruptione. Middle commentary and Epitome. Translated from the original arabic and the hebrew and latin versions. Cambridge, MA: The Medieval Academy of America, 1958.
11 PLINTO. Pline J 'Ancien. Histoire naturelle. Trad. J. Beaujeu. Paris : Belles Lettres, 1950.
12 [POSEIDONIOSj . De mundo. Trad. E. S. Forster. In: ROSS, W. D. (Ed.) The works ofAristotle transla ted in to English . Oxford: Clarendon, 1931. v.3.
14 SAMBURSKY, S. Physics of the stoics. New York: Macmillan, 1959.
15 SEXTUS EMPIRICUS. Against the professors. BURY, R. G. (Ed. e trad.) Cambridge, MA: Harvard University, 1971.
16 TESTER, J. A history of western astrology. Woodbridge: Boydell, 1987.
17 VICENTE, G. Obras de Gil Vicen te . Correctas e emendadas pelo cuidado e diligencia de
[1] Orupo de Historia e Filosofia da Ciencia, DRCC - lFOW - Unicamp - 13081 -970 - Campinas - SP - Brasil.
1 [2] Devemos citar que muitos estudiosos do estoicismo nao fazem qualquer men�ao a Ptolomeu e ao Tetrabiblos, a que talvez seja uma indica9ao de que nao veem conexao entre a Astrologia ptolomaica e a est6ica. Como exemplos, podemos indicar Sambursky (1 959), The physics of the stoics e Colish (1990), The stoic tradition from Antiquity to the early Middle Ages.
[3] Utiliza-se normalmente a paginac;:ao da segunda edição do TeuabibJos por Camerarius como padrao. para se citar trechos dessa obra. Utilizamos, no entanto. a edic;:ao e traduc;:ao moderna de Robbins.
[4] Como veremos rnais adiante, Ptolomeu esta utilizando a concepÇão de que os ceus sao farmados par uma substiincia totalmente diferente da que conhecemos, e que era chamada de "eter".