DUAS OU TRES COISAS SOBRE ANTONIO CANDIDO

 

Ricardo MUSSE[1]

 

         RESUMO: Busca-se aqui investigar a conex8.o entre duas caracteristicas definidoras da originaJidade critica de Antonio Candido: sua fiJiai(8.o a linhagem do "marxismo ocidental" e sua inseri(8.o numa tradii(8.o nacional.

         PALAVRAS-CHAVE : Critica ; literatura ; vida social ; tradii(8.o nacional ; dialetica ; marxismo ocidental.

 

 

Num artigo destinado a ressaltar a originalidade da critica de Antonio Candido, tomando como ponto de partida os estudos desse autor sobre 0 COrti90, Roberto Schwarz insere-o em dois sistemas conceituais distintos.

Primeiro, Schwarz associa-o a corrente que procura "demonstrar pelo exemplo a legitimidade e ate a necessidade do tr€msito entre analise estetica e reflexao social, urn vaivem de esquerda" (Schwarz, 1992b, p.31).

Ora, a inseparabilidade entre materiais esteticos e sociais, expressa no lema de Antonio Candido "filia9ao de textos e fidelidade a contextos" - que the permite fazer nao apenas uma sondagem da correspondencia estrutural entre literatura e vida social, mas tamMm ampliar os conhecimentos existentes acerca da realidade externa, precisamente pelo estudo do dinamismo literario -, esta reversibilidade entre analise literaria e analise social, sabe-se bern, constitui uma das premissas do campo te6rico e conceitual do "marxismo ocidental"[2] possibilitou, na opiniao de Schwarz, que Antonio Candido tratasse de urn tema eminentemente nacional com 0 distanciamento de urn "internacionalista convicto". Assim, a especificac;ao dos vicios e das virtudes peculiares a esse processo cumulativo, nao s6 afasta Candido da orientac;ao patri6tica, tipica do nacionalismo tacanho, como tambem gera, pela constituic;ao de urn sistema local de problemas e contradic;oes - isto e, pela formac;ao de urn campo de forc;as hist6ricas que atua como uma especie de filtro -, uma barreira a ilusao universalista. As questoes contemporaneas seriam entao "filtradas", ou melhor, inseridas apenas como momentos ou faces de urn campo local. Esta moderac;ao, a incorporac;ao meditada e contextualizada de teorias, seria, nesta versao, 0 sintoma maior de que a literatura, a critica, a filosofia alcanc;aram a almejada maturidade.

Embora essa reconstruc;ao - seja do alcance te6rico de Forma98o da Literatura Brasileira , seja destas novas series cumulativas que se organizam como sistema - possa ser objeto de controversias, parece inegavel que 0 ponto de partida tornado por Roberto Schwarz e correto : Antonio Candido insere-se, como urn momenta particu­ larmente feliz , na tradic;ao do "pensamento nacional" .

Ali8.s, essa afirmac;ao assenta-se - e corrobora - numa serie de asserc;oes, de tentativas de autocompreensao, que 0 pr6prio Candido fez, em textos e momentos diversos, acerca de sua obra. Segundo ele, a consolidac;ao te6rica de seu percurso intelectual baseia-se em tres fontes concomitantes : 0 modernismo definido, no sentido amplo, como 0 movimento cultural brasileiro de entre guerras (Candido, 1980, p . 1 34) ; [3] o ensaio hist6rico-socio16gico - decorrente tanto da influencia do espirito modernista, do "ima literario", quanto do "sopro de radicalismo politiCO intelectual que eclodiu depois da Revoluc;ao de 30" -, de Casa grande e senzala, de Raizes do Brasil e de Forma98o do Brasil Con temporaneo, em que confluem hist6ria e economia, filosofia e arte, numa "forma bern brasileira de investigac;ao e descoberta do Brasil" ;[4] e a nova mentalidade definida pela Faculdade de Filosofia da Universidade de Sao Paulo.[5]

Trata-se de urn corte horizontal que privilegia os anos de formac;ao intelectual de Antonio Candido, ancorados na decada de 1930. A cada ponto dessa lista corresponde, porem, uma serie submersa que se estende do passado ao presente. A vocaç:ao para refletir e se interessar pelo Brasil, intensificada por motivos varios neste decenio, data - na periodizaç:ao do pr6prio Candido - de muito antes, mais precisa­ mente do Romantismo, tendo inclusive, antes do seu apice no Modernismo, urn ponto alto no Naturalismo B

Essas tentativas de autodefiniç:ao e diferenciaç:ao, a pr6pria vocaç:ao nativista, teriam como ponto comum inevitavel a constataç:ao de particularidades de meio, raç:a e hist6ria que nem sempre correspondem aos padroes europeus propostos pela educaç:ao. 0 transplante de culturas, 0 implante de urn modelo universalista em nosso meio, tipicos dos processos de colonizac;:ao e de dependencia, se, por urn lado, nos inserem no conjunto da cultura ocidental, por outro lado, chocam-se com elementos divergentes e aberrantes. Esta dupla filiac;:ao , a heranç:a europeia e ao anseio de exprimir uma sociedade diferente em muitos aspectos da europeia, levou muitos de nossos escritores e pensadores a descrever 0 Brasil como urn pais de contrastes.9

Tal senso dos contrastes, a apresentac;:ao das hist6rias do homens e das instituic;:oes em virtude de condic;:oes antagonicas, insere-se, segundo Antonio Can­ dido, numa lei mais geral da nossa cultura, a dialetica do local e do cosmopolita : "Se fosse possivel estabelecer uma lei de evoluc;:ao da nossa vida espiritual, poderiamostalvez dizer que toda ela se rege pela dialetica do localismo e do cosmopolitismo" (Candido, 1980, p. 109) .

Esta lei genertca nao e, entretanto, urn pressuposto aprioristico ou urn axioma intuitivo adotado por Antonio Candido como ponto de partida. Ela e 0 resultado de infindaveis pesquisas, dito de outro modo, trata-se de uma descoberta crucial acerca da especificidade brasileira.

Assim, quando Candido se debruç:ou sobre a formac;:ao da nossa literatura - compreendendo por litera tura urn sistema organico de obras ligadas por uma interaç:ao dinamica em torno do triangulo "autor-obra-publico" numa continuidade literariall tomou como dado primario 0 vinculo placentario de nossa literatura com as literaturas europeias . Tal fato, antes uma decorrencia natural do nosso processo hist6rico do que fruto de uma OP9ao - expresso na celebre frase "a nossa literatura e galho secundario da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas ... " (Can­ dido, 1975, v. l. p.9) -, faz que 0 estudo da literatura brasileira nao possa se eximir da analise de seus caracteres pr6prios, ou melhor, da rela9ao que mantem com outras literaturas. Essa constata9ao conduziu Antonio Candido a ponderar acerca da rela9ao inevitavel entre formas importadas e a escolha de temas novos ou a ado9ao de senti­ mentos diferentes, de tal modo que nao teve como deixar de "estudar a forma9ao da literatura brasileira como sintese de tendencias universalistas e particularistas" (p.23).

Esse andamento dual se intensifica pela disposi9aO dos brasileiros de inserir 0 projeto de constitui9ao de uma literatura pr6pria no esfor90 de constru9ao do pais. o programa do "nacionalismo artistico", 0 compromisso de uma literatura empenha­ da, visa a diferencia9ao e particulariza9ao de temas e modos de exprimi-los. Nesse sentido, num livro que se propoe a ser a "hist6ria dos brasileiros em seu desejo de ter uma literatura", nada mais natural que 0 "jogo destas for9as , universal e nacional, tecnica e emocional, que plasmaram (nossa literatura) como permanente mistura da tradi9ao europeia e das descobertas do Brasil" (Idem, p.28) ocupe 0 lugar central.

Mais ainda, a reinterpreta9ao local das orienta90es esteticas e filos6ficas hauri­ das no exemplo europeu torna-se a chave que perrnite organizar, de modo abrangente, as linhas mestras do processo de forma9ao da literatura brasileira como sistema.12 Esse processo define a articula9ao entre os "momentos decisivos" - Arcadismo e Romantismo - de tal modo que, apesar da evidente ruptura estetica, torna-se possivel determinar, ao longo do periodo entre 1750 e 1880, uma continuidade. Esta solidarie­ dade estreita entre movimentos esteticos diversos , aproximados pela voca9ao hist6- rica - urn dos pressupostos da Formar;ao - , se da pela via de uma complementaridade : o Arcadismo incorpora 0 Brasil aos padroes europeus tradicionais, ao sistema expres­ sivo da literatura ocidental, possibilitando ao Romantismo, com sua enfase nos elementos locais, se apresentar, ao mesmo tempo, como nacional e universal. Esta associa9ao, as semelhan9as e os contrastes entre esses estilos literarios, escJarece-se melhor quando Candido a exemplifica tendo em vista a tematica indianista :

 

Na medida em que toma uma realidade local para integra-la na tradir;:ao classica do Ocidente, 0 indianismo inicial dos neoclassicos pode ser interpretado como tendencia para dar generalidade ao detalhe concreto     0 indianismo dos romanticos, ao contnirio, denota tend{mcia para particularizar os grandes temas, as grandes atitudes de que se nutria a literatura ocidental, inserindo-as na realidade local, tratando-as como pr6prias de uma realidade brasileira. (Candido, 1975, v.2 , p.21 )

 

Ora, Antonio Candido nao extraiu esta regra geral, a dialetica do local e do cosmopolita apenas dos seus estudos acerca da formaçao da literatura brasileira. Percebeu-a tambem como caracteristica decisiva da critica liteniria e mesmo das tentativas de interpretaçao do Brasil. 13

Concomitantemente as suas analises literarias, Candido escreveu uma serie de artigos e tambem livros que pode muito bern ser reconstruida como uma hist6ria meditada da reflexao critica brasileira, 14 0 que talvez nos ajude a entender porque, na definiçao precisa de Davi Arrigucci Junior, a sua obra

 

assume uma funç:iio decisiva no contexto brasileiro, em seu movimento a uma s6 vez de heranç:a e passagem, urn ponto privilegiado da lucidez critica e da consciencia hist6rica com relaç:iio a tradiç:iio. No arcabouç:o articuladissimo de sua construç:iio, permanece e se renova a problematica central organizada pela melhor critica brasileira ao longo dos anos : dos romanticos, de Machado de Assis, de Silvio Romero, de Jose Vcrissimo, de Araripe Jr., do legado modernista, da critica militante dos anos 30 e 40. (Arrigucci, 1992, p.186)

 

o mal-estar gerado pelo carater imitativo de nossa vida cultural - 0 "sentimento de contradiçao entre a realidade nacional e 0 prestigio dos paises que nos servem de modelo" (Schwarz, 1989a, p. 30) -, a tensao entre 0  esforço de atualizaç8.o e de desprovincianizaçao, eo desejo de retomar criticamente 0 trabalho dos predecessores marcam tambem, na visada lucida de Antonio Candido, nao s6 a nossa tradiç8.o critica e interpretativa, mas as pr6prias dificuldades com que se defronta, ainda hoje, 0 trabalho intelectual levado a cabo no Brasil. Assim, nao nos parece ser nenhuma impropriedade a generalizaçao dessa dialetica, levada a cabo por Antonio Candido, para toda a vida mental brasileira.

 

 

Refer€mcias  bibliograticas

1    ARANTES, P. E. Certidao de nascimento. Novos Estudos, n.23, mar. 1989 .

2                         . Providencias de urn critico literario na periferia do capitalismo. In: Dentro do texto, dentro da vida, ensaios sobre An tonio Candido. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1992a. p. 229-61.

3                         . Sentimen to da dialetica na experifm cia intelectual brasileira . Sao Paulo: Paz e Terra, 1992b.

4    ARRIGUCCI JUNIOR. D. Movimentos de urn leitor . In : Den tro do texto, dentro da vida, ensaios sobre Antonio Candido. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1992. p.181 -204.

5     CANDIDO, A. Formagao da literatura brasileira . 5.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, Sao Paulo: Edusp, 1975. v.1, 2.

6                         . Literatura e cultura de 1900 a 1945. In: Litera tura e Sociedade.  Sao Paulo: Companhia Editora Nacional, 1980. p.109-38.

7                                      . Depoimento sobre Clima. Discurso, n.8, p.183-93, maio 1978.

8                         . Fora do texto, dentro da vida. In: Educagao pela noite & outros ensaios. Sao Paulo: Atica, 1987a. p. 140-62.

9                                      . Literatura e subdesenvolvimento. In: Educagao pela noite & outros ensaios.

Sao Paulo : Atica, 1987b. p. 140-62 .

10                         . 0 ate critico. In: Educagao pela noite & outros ensaios. Sao Paulo : Atica, 1987c. p. 140-62 .

11                                      .     0 metodo critico de Silvio Romero. Sao Paulo : Edusp, 1988 .

12                                      . Raizes do Brasil. In : Teresina etc. Sao Paulo : Paz e Terra, 1992. p.123-38. 13 LUKAcs, G. Hist6ria e conscien cia de classe. Porto : Publicac;6es Escorpiao, 1974.

14   SCHWARZ, R. Nacional por subtraC;ao. In: . Que horas sao? Sao Paulo: Compa- nhia das Letras, 1989a. p.29-48.

15                        ·     Pressupostos, salvo engano, de Dialetica da malandragem. In : Que horas sao? Sao Paulo : Companhia das Letras, 1989b. p. 129-55.

16                        ·     Notas do debatedor. In: Den tro do texto, dentro da vida, ensaios sobre Antonio Candido. Sao Paulo : Companhia das Letras, 1992a. p.262-7.

17                        ·     Originalidade da critica de Antonio Candido. Novos Estudos, n.32, p.31-46, marc;o 1992b.



[1] Professor do Departamento de Filosofia da UNESP - 17525-900 - MarHia - SP - Brasil.

1  [2] Essa associaç:ao, como 0  pr6prio marxismo ocidental, inicia-se com Hist6ria e consciencia de c1asse. Numa passagem celebre, Georg Lukacs a expressa, de forma ainda tosca, nos seguintes termos: "A hist6ria dos problemas estudados torna-se efetivamente uma hist6ria dos problemas. A expressao literaria ou cientifica de um problema aparece como expressao de uma totalidade social, como expressao das suas possibilidades, dos seus limites e dos seus problemas. 0 estudo hist6rico da literatura sobre os problemas e assim 0  que melhor pode exprimir a problematica do processo hist6rico. A hist6ria da filosofia torna-se filosofia da hist6ria" (Lukacs, 1974, p.49)

[3] 0 Modernismo nos interessava sobretudo como atitude mental. ao contni.rio de hoje. quando interessa mais como criaçao de uma linguagem renovadora. Para nos. esta era veiculo. Veiculo da atitude de renovaçao critica do Brasil. do interesse pelos problemas sociais; do desejo de criar uma cultura local com os ingredientes tomados avidamente aos estrangeiros" (Candido. 1978. p.187). Acerca da herança modernista na obra de Antonio Candido. ct. tb. Arrigucci. 1992, p.183-6

[4] Cf. Candido, 1980, p.130; 1992, p 124. Casa grande e senzala, bem como a serie iniciada por essa obra. sao, nas palavras de Antonio Candido,  uma ponte entre 0 naturalismo des velhos interpretes da nossa sociedade como Silvio Romero, Euclides da Cunha e mesmo Oliveira Viana, e os pontos de vista mais especificamente sociol6gicos que se imporiam depois de 1940".

[5] A Revista Clima foi , segundo Candido, a primeira manifestaçao no terreno da critica e do movimento das ideias dessa nova mentalidade. Muitas atitutes dessa geraçao provem nao de proceres que depois tornaram-se ilustres como Levy-Strauss e F. Braudel, mas do quase obscuro, em nossos dias, professor Jean MaugUe. Cf. Candido, 1978; Arantes, 1989.