MÁRIO DE ANDRADE E O PRIMEIRO DE MAIO DE 35

 

lná Camargo COSTA[1]

 

  RESUMO: Entre os anos de 1934 e 1942, Mário de Andrade escreveu o conto "Primeiro de Maio", publicado no livro póstumo Contos Novos. A leitura aqui apresentada, ao mesmo tempo em que propõe uma data para a ação, procura rememorar alguns aspectos da história das lutas da classe trabalhadora, vinculados a esse dia e suscitados pelos achados literários do conto.

 

  PALAVRAS-CHAVE: Primeiro de Maio; celebração; comemoração; ficção; história; luta de classes.

 

"Vem ó maio, saúdam-te os povos!

 

Nós queremos remir este mundo Dos senhores da terra e das vidas." (P. Gori, Hino do Primeiro de Maio)

 

 

1 Quem viu São Bernardo do Campo militarmente ocupada naquele gélido e cinzento Primeiro de Maio de 1980 empaca logo no primeiro parágrafo do conto de Mário de Andrade: "No grande dia Primeiro de Maio, não eram bem seis horas e já o 35 pulara da cama, afobado. Estava bem disposto, até alegre, ele bem afirmara aos companheiros da Estação da Luz que queria celebrar e havia de celebrar" (Andrade, 1983, p.39).

Deixemos de lado, por enquanto, o índice "35" do personagem. O estranhamento provém antes da sua intenção: celebrar o Primeiro de Maio. Como assim? O Primeiro de Maio não é o dia mundial de luta dos trabalhadores? Não é dia de homenagear aqueles companheiros barbaramente assassinados em Chicago através de atos públicos (ocupação das ruas), que aqui no Brasil chegam a ser reprimidos até pelo exército? Ou não existe diferença entre celebrar (festivamente) e comemorar (luto, protesto e luta) uma data? Este primeiro problema vai determinar o resto da leitura do conto, pois ,estao em jogo duas diferentes concepções de Primeiro de Maio : a elebrativa do 35 e a do leitor que 0 entende como urn dia de luta,

Resumindo muito esquematicamente os dados hist6ricos disponiveis, comecemos respondendo a uma pergunta previa : Por que primeiro de maio? Sem levar em conta as explicações que remetem a esfera mitol6gica e tambem podem ter 0 seu interesse, na medida em que os social-democratas europeus a certa altura Oa veremos quando) recorreram a elas, a razao hist6rica e mais ou menos esta : nos Estados Unidos do seculo passado, a data-base (como se diz hoje) de inumeras categorias de trabalhadores era 0 dia primeiro de maio, chamado moving day, dia de ceiebrar;ao de contratos de trabalho (cf. Del Roio,  1986, p, 57-64) , Por isso a AFL (Federação Americana do Trabalho), na luta pela redução da jomada a oito horas, convocou para o Primeiro de Maio de 1886 uma paralisação e urn ato publico, 0 resto dessa hist6ria e conhecido : passeata e ato publico no dia primeiro, assassinato de seis grevistas no dia tres, outra manifestação de protesto no dia quatro, estado de sitio, prisao, julgamento e execução - a 11 de novembro daquele ana - dos lideres anarquistas, os martires de Chicago, Desde entao, pelo menos para os anarquistas, 0 Primeiro de Maio passou a ser urn dia de luto e luta pelas oito horas , sempre comemorado com greves, atos publicos, comicios e passeatas , Os socialistas da Segunda Intemacional inicialmente adotaram a bandeira de luta, convocando greves e atos publicos, mas ja no ana de 1890 começãram a mudar de tom, Conquistada a legalidade e a representação no parlamento germanico, para evitar confrontos de classe  "desnecessarios no momento" , 0 SPD (Partido Social Democrata Alemao) retirou da pauta a proposta de greve e introduziu a novidade festiva : ceiebrar as suas (reais) vit6rias , E no ana de 1891 a Segunda Intemacional aprovou a proposta de transformar em feriado 0 dia Primeiro de Maio e tomar permanente a ceiebra r;ao dessa festa , A mitologia começã no momenta seguinte,

Aqui no Brasil, as coisas sempre aparecem entortadas pela colher da classe dominante, E como ela sempre exerceu 0 seu dominio com a mais cordial das ferocidades, nao sao de estranhar os termos de urn certo Dr. Porfirio de Aguiar relatando uma das mais antigas comemorações do Primeiro de Maio em Sao Paulo :

 

Ainda nEw h3 60 dias que em Sao Paulo nos tambem vimos as [estas do trabalho, a primeiro de maio celebradas, mais ou menos ao modo de lEi la Europa!. com 0 mais solene e ruidoso atrevimento; vimos aquelas massas desenvoltas e de revoltante aspecto; aquele prestito insolente de alguns mil homens; aquele absurdo vivo a percorrer as ruas em destemperada passeata entre brados e amea9as ; vimos aqueles estandartes e bandeiras ufanas e desfraldadas ; aquelas divisas nescias e paradoxais, aquelas inscri90es brutais, criminosos pregoeiros da guerra social ; simbolos sem duvida de uma selvageria que, entre nos, nada justifica, nada atenua, (Carone, 1984, p,232-3, grifos nossos)

 

Recorrendo desde ja (sera casual?) as ideias de festa e ceiebra r;ao, 0 Dr. Portirio se refere com visivel horror ao Primeiro de Maio de 1889, E compreensivel sua dlificuldade para admitir 0 cabimento do protesto. Naquele ano, como se sabe (segundo a classe dominante), na ordem do elia estava a questao republicana e nao as trabahistas. Alem elisso, tambem segundo a visao dominante, nem sequer havia capitalismo no Brasil, nao podendo portanto haver classe operaria e muito menos luta de classes ...

Na primeira decada deste seculo, a classe operaria em Sao Paulo chegou a figurar na vanguarda da luta pela jornada de oito horas . Para dar urn exemplo, 0 Primeiro de Maio de 1907, convocado pelos anarquistas - que desde 0 ana anterior ja se manifestavam contra as propostas de testa e celebra r;:8o (identificadas como tatica dos catolicos e social-democratas) -, transformou a Praga da Se em praga de guerra, pois a concentragao foi proibida e tropas armadas ocuparam as ruas do centro para impedi-Ia. Prisoes, espancamentos, expulsao de estrangeiros (anarquistas, evidentemente) nao impediram a continuidade desta luta, enquanto socialistas a brasileira desde 1895 ja vinham reivindicando a transformagao do dia primeiro de maio em feriado - Festa do Trabalho !

Por certo nao se pode computar entre os feitos deste tipo de socialistas a criagao do feriado, mas nao M por que duvidar de que 0 decreto de Arthur Bernardes (de 1924, passando a vigorar em 1925) em alguma medida se aproveitou dessa inspirada sugestao. 0 historiador que estamos acompanhando assim comenta mais esta singular ocorrencia : "Entre nos, 0 feriado nacional de lQ de maio foi decretado antes que existisse lei federal de limitagao da jornada de trabalho a oito horas, ou seja, a classe dominante fez 0 impossivel, transformou em festa nacional a comemoragao de urn objetivo que nao se atingiu. Extraordinario !" (Del Roio, 1986, p. 141 -2)

Alias , Arthur Bernardes , urn inimigo do genero humano, do ponto de vista do movimento operario, realizou outros feitos "trabalhistas" igualmente extraordinarios em seu movimentadissimo mandato presidencial (1922- 1926) . Mas costuma ser lembrado pelos dois "5 de julho" tenentistas (1922 e 1924), que tiveram seu mandato como alvo principal e the deram 0 pretexto necessario para governar em permanente estado de sitio, travando uma feroz guerra contra as organizagoes e liderangas da classe operaria, numa especie de previa do que aconteceria com Getulio em 1936, depois das quarteladas de novembro de 1935.

Cabe ainda lembrar que a historia mundial do Primeiro de Maio, a partir dos anos 20, incorporou urn novo personagem : a Revolugao de 1917, pois, com toda a razao, na Uniao Sovietica 0 dia se transformou numa das festas maximas . Entretanto, a partir da vitoria do exercito vermelho na guerra civil, 0 ponto culminante da celebragao passou a ser urn desfile militar, para horror de anarquistas, social-democratas e outros militantes menos votados, inclusive brasileiros, que tiveram oportunidade de preseciar tal demonstragao publica de CI,Ue alguma coisa nao dera certo naquela original experiencia politica, dita comunista.

Diante de tais informagoes, a disposigao de 35 para celebrar 0 Primeiro de Maio tern uma fungao literaria muito mais importante do que apenas despertar a estranheza de leitores urn pouco mais aguerridos .

2 0 primeiro panigrafo do conto ainda pressupae outras informac;:aes hist6ricas que e preciso recuperar: 0 feriado, 0 numero 35 e a inserc;:ao do personagem na forc;:a de trabalho.

Embora ja saibamos que 0 feriado e de 1924 , consta que foi decretado em 1938 por Getulio Vargas nos preparativos do seu marketing proletario. Se e verdade que a Revoluc;:ao de 1930 revogou toda a legislac;:ao anterior, tamMm 0 e 0 fato de que GetUlio nao usurpou apenas 0 poder, mas ainda os " feitos trabalhistas" de seus antecessores. Por isso, nao admira a nossa maior facilidade para encontrar referencias ao decreta de 1938 do que ao de 1924 . Mas, como 0 conto de Mario de Andrade foi escrito entre 1934 e 1942, a referencia ao feriado com claras indicac;:aes de que a ac;:ao nao se passou em 1939, ou depois, pode ter tido a modesta func;:ao de indicar que as " festas do trabalho" da era getulista no est8.dio do Vasco da Gama, inauguradas no 1Q de maio de 1939, tinham tambem uma pre-hist6ria. 0 conhecido ceticismo de Mario estaria funcionando aqui ao menos para questionar a originalidade da iniciativa do ditador.

Por isso, urn dos momentos mais terriveis do conto - a "celebrac;:ao oficial" no Palacio das Industrias - precisa ser visto em sua possibilidade de mostrar que se 0 pequeno grande "pai dos trabalhadores" (e mae dos patraes) tinha algum merito, este era 0 de saber se apropriar da experiencia acumulada da classe dominante e, se possivel, como neste caso, aperfeic;:oa-la.

o  35, que funciona como "identidade" do personagem,  nao tern nada de cabalistico, tratando-se de urn recurso rigorosamente anti-realista (nao e assim que trabalhadores, mesmo se sabendo seriados, se tratam entre si) . Se Mario optasse por qualquer nome comum ou apelido, deixaria passar a oportunidade de referir sinteticamente a data em que este primeiro de maio transcorreu e evidenciar 0 carater de elaborac;:ao artistica de seu conto (e nao de reportagem, por exemplo). A exposic;:ao enfatica das marcas da elaborac;:ao literaria faz parte do Fepert6rio antiilusionista da literatura moderna, que nem por isso e menos realista, por mais paradoxal que isso possa parecer a leitores apressados.

Que informac;:aes 0 Autor quis passar nomeando seu personagem com 0 numero 357 Alguns leitores apontaram tao bern 0 fen6meno da despersonalizac;:ao configurado neste gesto artistico que nao precisamos voltar ao assunto. Mas embora se refiram aos gravissimos acontecimentos politicos daquele malfadado ana de 1935 (sobretudo o breve movimento da Alianc;:a Nacional Libertadora (ANL) e as malogradas tentativas de golpe militar de novembro) , nao se estabelece relac;:ao com 0 dia de luta dostrabalhadores. Para afirmar que este e 0 Primeiro de Maio de 1935, alem de estabelecer que 0 feriado ja existia desde 1924, e preciso trazer a mem6ria (significado literal de comemorar, como se sabel mais alguns detalhes sobre os fatos hist6ricos daquele ano.

Comecemos pela ANL. Trata-se da versao brasileira da politica de Frente Popular dos stalinistas (Terceira Internacional), criada em 1934, assim como na Franc;:a e na Espanha, e aqui oficialmente lanc;:ada em 1935, pegando como fogo em palha seca, por assim dizer. Nao se sabe se porque 0 incendio ameac;:ou mesmo sair do controle ou porque a nossa classe dominante nunca brincou em serviço quando se trata do controle político, antes mesmo de a ANL sair da clandestinidade, Getúlio encaminhou ao congresso, "democraticamente" eleito no ano anterior, a Lei de Segurança Nacional. Chamada de Lei Monstro por unanimidade entre os militantes do movimento sindical em pleno processo de atrelamento ao Ministério do Trabalho, essa lei foi aprovada a 30 de março de 1935. Seu alvo não foi apenas a nascente ANL, como demonstra a proibição sumária das organizações independentes dos trabalhadores que nela figura.

O quadro pressuposto neste conto contém, pois, pelo menos, os seguintes fatos históricos: uma Lei Monstro em vigor, um movimento de Frente Popular em andamento, uma constituição "democrática" recém-votada pelo Congresso (a de 1934) e a proibição (explicitamente referida) das comemorações independentes do Primeiro de Maio, devidamente enquadradas no conceito de atentado à segurança nacional. Contam ainda alguns historiadores que nesse dia um comício antifascista no Rio de Janeiro foi dissolvido a poder de polícia e cavalaria.

Resta ainda examinar a qualificação de 35 como trabalhador. Que ele não é operário fica claro logo no primeiro parágrafo; trata-se de um carregador de malas que trabalha na Estação da Luz (da Ferrovia Paulista, assim como a Estação do Norte era da Central do Brasil). Esta determinação do personagem faz parte do processo fundamental da exposição da narrativa neste conto, tendo razões de ordem histórica e resultando numa questão de técnica literária - o discurso indireto livre.

O interesse de Mário de Andrade por questões relativas à luta de classes data do final dos anos 20 e sua evolução pode ser acompanhada sobretudo através de algumas cartas. Em 1932, por exemplo, passada a ressaca da "revolução constitucionalista", ele escreve as seguintes linhas a Carlos Drummond de Andrade:

 

Dos quase 200 mil operários de fábricas paulistas, muitos trabalhados pelo comunismo, a contribuição de voluntários para guerrear não foi mínima, foi nula E de certas modalidades do

proletariado a contribuição foi formidável. Sitiantes, chauffeurs, criados, empregados, todos amaram sublimemente, não a Constituição, mas a guerra de São Paulo. (Andrade, 1988, p.167, grifas nossos)

 

Note-se que, mesmo numa carta em que o rigor conceitual não é propriamente exigido, Mário mostra entender operário como uma modalidade do proletariado, como os clássicos do marxismo. Se numa carta, escrita ao sabor da inspiração, nosso Autor tem o cuidado de estabelecer a distinção, o que dizer de um conto que levou oito anos para ser considerado pronto? No mínimo, que a classe do 35 é o proletariado, embora - por razão decisiva para a exposição do conto em discurso indireto livre - não seja operário, nem sequer assalariado: 35 é um carregador, cuja féria depende dos passageiros da Estação da Luz. Por isso mesmo está em contacto com uma das categorias mais aguerridas e bem organizadas da época: os ferroviários da Paulista, que realizaram no ano de 1933 uma greve envolvendo a impressionante cifra de 10 mil trabalhadores (para mencionar s6 urn epis6dio de suas lutas) . Por essa proximidade, alguma coisa da afirmaQao da classe proletaria a qual pertence 0 35 sabe. Sem falar que, por haver a epoca respeitavel presenQa comunista nessa categoria, ele pode estar muito mais pr6ximo da situaQao de "area de influencia" do que parece.

Operando ainea a necessaria aproximaQao entre 0 feriado e 0 tipo de trabalho do 35, vamos chegar a outra determinaQao prevista pelo Autor e ja insinuada quando examinamos a intenQao de celebrar 0 Primeiro de Maio. Mas para isso temos de recorrer aos companheiros dele : "Os outros carregadores mais idosos meio que tinham caQoado do bobo, viesse trabalhar que era melhor, trabalho deles nao tinha feriado. Mas 0 35 retrucava com altivez que nao carregava mala de ninguem, havia de celebrar o dia deles" (Andrade, 1983, p. 39) .

Do ponto de vista daqueles trabalhadores, a atitude do companheiro e boba por significar apenas prejuizo. Objetivamente, 0 gesto nao e politico e suas conseq1i.encias sao individuais. Mas ele e altivo (opiniao do narrador) e esta disposto a pagar 0 prego de sua celebraQao. Este e 0 dado novo : a sua disposiQao (alegre) para 0 sacrifcio voluntanG e individual (her6ico) e, com ela, uma tenue, mas real, marca da sua criaQao crista, que pre para 0 solo onde a ideia de celebraQao deita as raizes mais ferteis no Brasil.

 

3 Sua formaQao religiosa e cat6lica : " chegara ate a primeira comunhao em menino" e achava linda 0 interior da Igreja de Sao Bento . Ele foi criado num lar saudavel onde aprendeu a homar pai e mae . 0 narrador destaca a reverencia a mem6ria do pai (com a navalha herdada) e 0 respeito cuidadoso com que fica nu s6 da cintura para cima devido a presenQa da mae. Ao lade dessa s6lida estrutura familiar (material para interessante analise psicanalitica) , atuou a escola transmitindo-lhe importantes valores nacionalistas (agora em processo de capitalizaQao pela ANL) : 0 35 vestiu-se de bandeira brasileira, gravata verde-e-branco e sapatos amarelos, lembrando-se dos tempos de grupo escolar ("E 0 35 comoveu num hausto forte, querendo bern 0 seu imenso Brasil, imenso colosso gigante" - (Idem, p.4D) . Fica claro tambem que sua vida escolar parou por aqui, pois de outra forma nao seria urn carregador de malas, mas foi suficiente para que ele aprendesse a ler com razoavel competencia, como veremos no capitulo de seu consumo de informaQoes .

Ainda no quadro de sua formaQao crista, na abertura do quarto paragrafo temos que "0 35 apressou a navalha de pure amor. Uma piedade, urn beij o the saia do corpo todo, feito proteQao sadia de macho" (Idem, p.39) . 0 complemento deste impeto amoroso esta no final do epis6dio "Palacio das Industrias": "Tinha piedade, tinha amor, tinha fraternidade, e era s6. Era uma sarQa ardente, mas era sentimento s6" (Idem, p.45) .

Esses passos, que enquadram de maneira decisiva a disposiQao para 0 sacrificio, s6 poderri ser entendidos na 6rbita do sentimento cristao do amor abstrato, da fraternidade abstrata que, como ja nos mostrou exaustivamente a hist6ria - e continua mostrando -, devidamente manipulado por bons conhecedores de psicologia barata, resulta em feitos her6icos ou fanaticos (da na me sma) de gente que nada teme, nem a morte. 0 35 apresenta 0 solo muito bern adubado para a germinac;ao das sementes do fanatismo (0 integralismo ja estava em cena) . Felizmente, Mario de Andrade, talvez grac;as a seu lade socialista, nos poupou dessa provac;ao evitando que ele caisse nas garras do integralismo, mas os dados para uma resoluc;ao literaria dessa ordem estao presentes e contam entre os materiais que conformam urn personagem nao linear, em movimento.

o eixo principal da tensao se constr6i no contraponto entre sua formac;ao (Deus, Patria e Familia) e sua condic;ao de trabalhador que le jomais (provavelmente tambem as publicac;oes clandestinas dos comunistas): "Com seus vinte anos faceis, 0 35 sabia, mais da leitura dos jornais que de experiencia, que 0 proletariado era uma classe oprimida. E os jornais tinham anunciado que se esperavam grandes "motins" do Primeiro de Maio, em Paris, em Cuba, no Chile, em Madri" (Idem, p.39) .

Aqui encontramos 0 motivo para afirmar que sua leitura e razoavelmente competente : ele nao sabe ingles e faz "traduc;ao fonetica" de palavras dessa lingua nos jornais (legais ou clandestinos) ; leu meeting (ato publico, comicio) e traduziu "motim" . Escrevendo motim entre aspas, 0 narrador estabelece uma convenc;ao : no seu uso particular do discurso indireto livre , em alguns momentos distancia-se explicitamente do personagem, de modo a nao endossar pensamentos e palavras, assim podendo adicionalmente chamar a atenc;ao do leitor. Mas 0 grande estudioso de Psicologia que era Mario de Andrade queria mais . Esta traduc;ao nao esta propriamente errada. Freudianamente, Mario a classificaria no numero dos atos falhos. Adaptando a expressao corrente, diriamos que 0 35 pratica uma especie de wishful rea ding e com ela faz uma especie de justic;a poetica que pressupoe uma fusao de multiplos dados : motim na lingua que 0 povo fala (e Mario conhecia como ninguem) e sinonimo de "turumbamba macota" (aqui temos duas "girias", uma de origem tupi, que tambem nos deu sururu e surumbamba, todas significando confusao, convulsao, desordem, e outra proveniente do quimbundo, que quer dizer grandioso) . Com a expectativa de participar de urn fuzue dessa ordem, de urn motim, nada mais natural que "ler" nos jornais a noticia de que em paises como Franc;a, Espanha, Cuba e Chile - na ordem do dia por razoes semelhantes - esperavam-se motins no Primeiro de  maio. Mas a justi9a da tradu9ao vai ainda mais longe : ela e 0 verdadeiro conteudo politico de noticias sobre 0 primeiro de maio veiculadas no discurso e na imprensa da classe dominante. Para esta, sobretudo na sua versao local, meetings de trabalhadores sao motins mesmo, coisa de baderneiros, amotinados, inimigos da ardem e da "paz" social, do interesse de "todos" ... menos do 35, que esta mesmo a fim de turumbamba e dos macotas.

o acesso do personagem a imprensa clandestina se encontra na afirma9ao de que ele sabia da leitura dos jornais ser 0 proletariado uma classe oprimida. E como as referencias a Russia a tornam "so horrenda ou so sublime", ja se ve que 0 personagem so conhece jornais conservadores ou stalinistas .

Esta esperan9a de participar de u rn turumbamba ("para dar uns socos formidaveis nas fu9as dos policias") talvez nao deva ser explicada so pela "tradu9ao" dos meetings dos jornais . Uma rela9ao deste tipo nao se estabelece so atraves de leituras (de intertexto). De algum motim 0 35 M de ter participado, e motim antifascista foi 0 que nao faltou no ana de 1934 . 0 mais proximo deste Primeiro de Maio ocorreu a 7 de outubro de 1934 . Segundo 0 relata de Fulvio Abramo, urn saudoso veterano dessabatalha, naquele domingo haveria urn comicio integralista na Pra9a da Se, chegando a reunir cerca de seis mil pessoas armadas . A recem-formada Frente Unica Antifascista (FUA) convocou os adversarios do integralismo para dissolve-Io. Mais de 20 mil pessoas compareceram ao contracomicio e realmente houve urn turumbamba macota, com diversas martes dos dois lados (cf. Abramo, p.38) . Para enquadrar ainda mais a a9ao do conto, a sua expectativa de rapaz forte ecoa urn outro acontecimento bastante datado, de carater esportivo : refere-se, em sua vontade de dar socos, a Primo Camera, o campeao mundial dos pesos-pesados nos anos de 1933 e 1934.

Com essas expectativas, e achando-se linda na roupa preta de luxo, 0 35 vai orgulhosamente para 0 sacrificio .

 

4 Nao sendo 0 caso de reconstituir a sua " via crucis" ; as quase 12 horas da "ac;ao" deste conto expoem 0 processo de destruic;ao do orgulho do trabalhador. A causa, espantosa, vai enunciada no segundo paragrafo da "saida" deste anti-her6i: "ele estava celebrando e nao tinha 0 que fazer" . Mario de Andrade esta dizendo que 35 e desorganizado no sentido politico. Mesmo sendo area de influencia do Partido Comunista (ou por isso mesmo), nao recebeu nenhuma direqao sobre 0 que fazer nesse Primeiro de Maio. 0 narrador trabalha a ideia da desorganizac;ao politica de seu personagem atraves de uma analogia bastante pesada com a ideia de disponibilidade, ligada a de prostituic;ao, contra a qual os dois lutam: " [0 35 esta no Jardim da Luz el ja passavam negras disponiveis por ali . E 0 35 teve uma ideia nao muito pensada, recusada, de que ele tambem estava uma especie de negra disponivel, assim. Mas nao estava nao, estava celebrando, nao podia acreditar que estivesse disponivel e nib acreditou" (Idem, p.41).

o 35 nao acreditou, 0 narrador nao gosta muito da ideia, mas foi essa a palavra que ambos encontraram para esse lamentavel estado de desorganizac;ao do rapaz, s6 nomeado pelo narrador mais adiante : "Estava tao opresso, se desfibrara tao rebaixado naquela mascarada de socialismo, naquela desorganizac;ao tragica, 0 35 ficou desolado duma vez" (Idem, p.45) .

A trajet6ria deste avulso imbuido das melhores inten<;:oes celebrativas se da em tres niveis : 0 das percepc;oes, 0 da mem6ria e 0 da informac;ao jomalistica. Ele percebe que a cidade esta ocupada pela policia e esvaziada de populac;ao (por causa do feriado), mas nao relaciona a soldadesca a repressao politica e sim a seu papel de protec;ao a propriedade. E, muito esperto, refere-se a esse lade ostensivo daquele desprop6sito policialesco : "Tinha mas era muito policia, policia em qualquer esquina, em qualquer porta cerrada de bar e cafe, nas joalherias, quem pensava em roubar ! nos bancos, nas casas de loteria. 0 35 teve raiva dos policias outra vez" (Idem, p.4D) .

Dentre as lembranc;as, pelo menos duas sao relevantes: 0 jogo de futebol a tarde e 0 piquenique "a doze paus 0 convite" em Santos. Ele entende estas informac;oes quando as aproxima : "entao conseguiu imaginar que esse piquenique monstro, aquele jogo de futebol que apaixonava eles todos, assim nao ficava ninguem para celebrar 0 Primeiro de Maio, sentiu-se muito triste, desamparado" (Idem, p.43).

Mas esta claro que ele entende apenas 0 objetivo de esvaziar a cidade (ou pelo menos 0 centro) ; nao tern meios de se dar conta do que esta por tras desse objetivo. Quanto as informac;oes trazidas pelo jomal, temos a proibi<;:ao policial de comicios e passeatas, uma vaga referencia a motim na Prac;a da Se a tarde, devidamente aguardado por policiais em metralhadoras, a visita dos deputados trabalhistas e a ceJebra r;ao (com a presen<;:a do Secretario do Trabalho) no Palacio das Industrias,4 mas no patio interno, 0 que despertou a imagina<;:ao preventiva do trabalhador: " Nao era medo, mas por que que a gente havia de ficar encurralado assim ! E ! e pra eles depois poderem cair em cima da gente, (palavrao) !" (Idem, p.41).

o  35 programa 0  seu dia depois da leitura do jomal: reiterando e dando consequencia a desorganiza<;:ao ja estabelecida, 0 narrador deixa que este destino se decida segundo as cartas oferecidas pela imprensa da classe dominante. Suas a<;:oes subseqiientes sao 0 resultado desta equa<;:ao politica : vai recepcionar alguns deputados5 na Esta<;:ao do Norte mas chega atrasado ; vai para casa e mal consegue almo<;:ar ; dirige-se ao Palacio das Industrias mas acaba nao entrando,  como dezenas de operarios tambem endomingados ; passa pela Pra<;:a da Se e nao ve 0 motim vagamente anunciado - ve apenas uma multidao (durante cerca de tres horas !). Enfim, para 0 35 nao houve Primeiro de Maio.

Leitores atentos ja examinaram 0 aspecto humane deste conto : 0 personagem passa 0  dia todo sozinho e mal consegue se relacionar com apenas duas figuras, 0 486 e 0 22, como ele, apenas indices . Mas essa trajetoria solitaria de urn trabalhador justo no Primeiro de Maio tern urn significado politico e literario que precisa ser explicitado.

o tema individuo x multidao ja foi tratado outras vezes por Mario de Andrade : por ocasiao dos comicios de 1932, no Diano Nacional, e quando fez seu balan<;:o do movimento modemo, apresentando urn mea culpa por se considerar urn individuo que permaneceu a margem. E quando aconselha : "nao fiquem apenas nisto, espioes da vida, camuflados em tecnicos da vida, espiando a multidao passar. Marchem com as multidoes" (Andrade, 1976a, p. 225) .

No caso da cronica, Mario apresenta-se como 0 individuo que se integra completamente ao ritmo da multidao reivindicando os direitos da cidadania (cf. Andrade, 1976b, p. 505-6), em flagrante contraste com 0 protagonista do conto que

saiu de casa exatamente a procura desse tipo de experiencia. Este nao a encontrou, nem poderia, naquilo que junto com 0 narrador chamou de mascarada de socialismo, e depois nao a pode encontrar na Pra<;:a da Se porque, independentemente do que la pudesse ter acontecido naquelas inquietantes tres horas (urn comicio do PCB/ANL?), ele ja estava derrotado, suas energias esgotadas.

Nao teria interesse 0 contraste se nao levassemos em conta a diferen<;:a essencial entre os dois meetings. Para 0 de 1932, 0 povo paulista foi amplamente convocado, enquanto 0  35 foi a urn "motim" vagamente mencionado e para uma "celebra<;:ao" usurpadora do Primeiro de Maio, tudo filtrado pela imprensa da classe dominante. Acontece que justamente essa diferen9a e reivindicada pelo conto. Recapitulando : depois de mostrar 0 nebuloso conhecimento do 35 sobre a Uniao Sovietica, previamente mencionando a provavel simpa tia pelo comunismo, 0 narrador alerta: "e 0 35 infantil estava por demais machucado pela experiencia para nao desconfiar, 0 35 desconfiava" (Andrade, 1983, p. 39-40) . Se esta desconfian9a incide sobre 0 noticiario que dependia das ideias politicas dos reporteres, ela incide tamMm sobre a experiencia que 0 machucou em crian9a. Ele teria 17 anos quando aconteceu 0 comicio da cronica, estopim de urn processo politico mistificador e manipulado que chegou a envolver ate mesmo urn cetico do quilate de Mario de Andrade. E aquela " guerra" teve conseqUencias tragicas e resultados nulos do ponto de vista proletario . Tudo isso 0 35 mais ou menos pensa :

 

nutria sempre uma especie de despeito por Sao Paulo ter perdido na revolur;:ao de 32. Sensar;:ao alias quase de esporte, questao de Palestra-Corintians, caber;:a inchada, porque nao va que ele havia de se matar por causa de uma besta de revolur;:ao diz-que democratica, vao "eles" !. .. Se fosse 0 Primeiro de Maio, pelo menos... (Idem, p.42)

 

Como se ve, 0 proprio personagem estabelece 0 paralelo entre as suas experiencias - a de 1932 e a de 1935. 1sso explica 0 seu processo psicologico diante do Palacio das 1ndustrias e na Pra9a da Se.

 

5 Os acontecimentos de maxima tensao deste conto sao a ida a celebra9ao patronal-governista no Palacio das 1ndustrias e a ida-meio-fuga ao "motim" da Pra9a da Se.

A decisao de ir ate 0 Parque Pedro II foi to mada ainda pela manha e constitui urn prodigio de configura9ao de processo politico-psicologico :

 

em Sao Paulo a policia proibira comicios na rua e passeatas, embora se falasse vagamente em motins de-tarde no Largo da Se. Mas a policia permitiria a grande reuniao proleUiria, com discurso do ilustre Secretario do Tmbalho, no magnifico patio interno do Palacio das 1ndustrias, lugar fechado ! A sensar;:ao foi claramente pessima. Nao era medo, mas por que que a gente havia de ficar encurralado assim! E ! e pm eles depois poderem cair em cima da gente, (palavrao!) Nao you ! nao sou besta ! Quer dizer: you simi desaforo! (palavrao), sOGOS, uma visao tumultuaria, rolando no chao, se machucava mas nao fazia mal, saiam todos enfurecidos do Palacio das 1ndustrias, pegavam fogo no Palacio das 1ndustrias, nao! a industria e a gente, "operarios da nar;:ao", pegavam fogo na igreja de Sao Bento ... mas que pegar fogo em nada! .. .  e melhor a gente nao pegar fogo em nada; vamos no Palacio do Governo, exigimos tudo do Governo, vamos com 0 General da Regiao Militar, deve ser gaucho, gaucho s6 da e farda, pegamos fogo no palacio dele. Pronto. 1sso 0 35 consentiu, nao porque 0 tingisse 0 menor separatismo (e 0 aprendido no Grupo Escolar?) mas nutria uma especie de despeito por Sao Paulo ter perdido na revolur;:ao de 32. (Idem, p.42)

 

Num certo sentido, temos encenada a luta de classes na cabe9a desse trabalhador. Depois de se dar conta de que 0 patio interno do Palacio das Industrias e uma ratoeira (nao e preciso explorar a metafora) , para a qual 0 proletariado esta sendo atraído e onde se dará um massacre, não necessariamente a poder de armas de fogo (embora elas estejam disponíveis), como um estrategista, o 35 examina as possibilidades de reação do seu exército. Primeiro, a fúria incendiária em resposta ao elemento surpresa, não por acaso descartada após a lembrança da Igreja de São Bento e, depois, o bom senso prevalecendo, reivindicações apresentadas ao Governo. Mas com o General inimigo não tem conversa: é incêndio mesmo. Eis a equação: com os equipamentos de trabalho e com o poder celeste não se mexe; com o poder civil, dialoga-se; mas contra o poder das armas, fogo. Neste ponto temos a expressão máxima do já mencionado espírito de sacrifício. Ao imaginar um turumbamba com tais desdobramentos, é na revolução proletária que o 35 está pensando. Aliás, está contrapondo a "revolução deles", a de 32, à sua, que poderia começar neste Primeiro de Maio. Não se trata, portanto, de um sacrifício qualquer:

 

Se fosse o Primeiro de Maio pelo menos... O 35 percebeu que se regava todo por "drento" dum espírito generoso de sacrifício. Estava outra vez enormemente piedoso, morreria sorrindo, morrer... Teve uma nítida, envergonhada sensação de pena. Morrer assim tão lindo, tão moço. A moça do apartamento... (Idem, ibid.)

 

o  sacrifício é ainda maior do que parecia inicialmente, mas parece ser pela melhor das causas.

Depois do "almoço" (não conseguiu comer), ele foi à celebração oficial:

 

Não eram bem treze horas e já o 35 desembocava no Parque Pedro II outra vez, à vista do Palácio das Indústrias. Estava inquieto mas modorrento, que diabo de sol que acaba com a gente, era por causa do sol. Não podia mais se recusar o estado de infelicidade, a solidão enorme, sentida com vigor. Por sinal que o parque já se mexia bem agitado. Dezenas de operários, se via, eram operários endomingados, vagueavam por ali, indecisos, ar de quem não quer. Então nas proximidades do palácio, os grupos se apinhavam, conversando baixo, com melancolia da conspiração. Policias por todo lado. (Idem, p.43-4)

 

o  enquadramento está completo: o personagem já tem consciência do seu estado de infelicidade, conseqüência de sua solidão e desorganização. O próprio entorno lhe apresenta o termo de comparação: "os grupos se apinhavam, conversando baixo" e ele não tinha sequer alguém com quem praticar aquela "nostalgia da conspiração". Tão grave quanto o seu estado de infelicidade solitária é a visão dos policiais predominando na cena.

Para completar o desastre existencial, a única pessoa conhecida, quase amiga, a se apresentar, é o guarda de trânsito (grilo) 486, um sujeito desprezível aos olhos do 35: se dizia anarquista mas era um covarde; valentão de garganta, na realidade um medroso. A conversa dos dois só serviu para piorar o ânimo do 35 e nesse estado finalmente ele presencia a violência de classe em pessoa: os prepostos dos donos da vida ("aqueles três homens bem vestidos, se via que não eram operários"), tentando parecer amistosos, mandavam todo mundo entrar. E agora sentindo medo, ainda assiste a ultima cena que sua disposic;ao celebrativa lhe permitia imaginar: "Foram todos obedecendo, se aproximando das escadarias, mas 0 maior numero longe da vista dos tres homens, torcia caminho, iam se espalhar pelas outras alamedas do parque, mais longe" (Idem, p. 44) .

Os que se dirigiram ao parque no mesmo estado de desorganizac;ao obedeciam a ordem dos donos da vida. 0 35 entrou em panico, mas continuou ali, resistindo. Deu-se conta de que predominava 1<3. dentro 0 numero dos "bern vestidos", de que a ratoeira era real e entendeu que estava prestes a participar daquela "mascarada de socialismo" s6 tornada possivel porque ele, assim como os que entraram na ratoeira, se encontravam "naquela desorganizac;ao tragica" . A gota d' agua veio com a ordem dos "cavalarias, falando garantidos" que nao era para ninguem ficar no parque, pois a testa era la dentro. Ele fugiu e tomou 0 bonde rumo a Prac;a da Se.

Aqui 0 narrador vai as ultimas conseqliencias : se a mascarada de socialismo do Parque Pedro II 0 levou ao desamparo e ao desespero, a multidao agora sequer chegou a sua consciencia. Mas ela estava la (seria urn ato publico?) e 0 35 " ficou parado assim,mais de uma hora, mais de duas horas, no largo da Se, diz-que olhando a multidao" (Idem, p.45) .

Assim Mario resolve literariamente 0 acontecimento da Prac;a da Se. Nao tern registro. Em seu alheamento, ele volta a se lembrar da moc;a do apartamento e as cinco horas a multidao comec;a a se dissolver "desapontada, porque nao houvera nem uma briguinha, nem uma coneria no largo da Se, como se esperava" . Nao precisamos imaginar a fraude. 0 trabalhador desiste da sua celebrac;ao.

A nova equac;ao politico-literaria estabelece que ele foi capaz de fugir ao canto de sereia patronal-governista, mas nao encontrou alternativa a essa mascarada de socialismo que tao bern compreendera. Ele nao sabe, mas celebrou 0 sacrificio. Nao aquele her6ico, imaginario, que conduziria a sua classe a vit6ria, mas 0 da derrota, da humilhac;ao e da reduc;ao a insignificancia, da "inexistencia fraudulenta" , a que foi conduzido por aquela "desorganizac;ao tragica".

 

6 A falta de termo melhor, pode-se dizer que 0 conto nana uma tragedia moderna, de alcance mundial, cujo epilogo ainda nao foi escrito. Mas ao contar a versao paulista da pior denota sofrida pela classe proletaria neste seculo, Mario de Andrade assumiu 0 papel de nanador de urn round numa luta em andamento. Por isso o desenlace do conto mostra 0 recomec;o deste personagem.

Saindo da Prac;a da Se ap6s aquele Primeiro de Maio perdido, ele voltou ao territ6rio conhecido, conseguiu finalmente se alimentar direito e finalmente conseguiu encarar os companheiros que, numa significativa peripecia, se aproximaram querendo noticias do Primeiro de Maio. Apesar da tentac;ao de mentir, inventar feitos, 0 35 limitou-se a gesticular, desvalorizando os horrores por que passara e, num desfecho bern chapliniano, pas-se a ajudar 0 22, dando-lhe uma h'gao de solidariedade.

 

COSTA, L C. Mário de Andrade and the First of May, 1935. Trans/FormlAção (São Paulo), v.18,

p.29-42, 1995.

 

 

   ABSTRACT: Mário de Andrade wrote his short story, Primeiro de Maio, between 1934 and 1942. Is was posthumousIy published in his coIIection of stories Contos Novos. The following reading dates its action and tries to highlight aspects of the history of the working cJass struggIe. Those aspects are not onIy reIated to the day but aIso stem [rom this short story [ormaI devices.

   KEYWORDS: First of May; ceIebration; commemoration; fiction; history; cJass struggIe.

 

 

Referências bibliográficas

 

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3                        . Táxi e crônicas no Diário Nacional. São Paulo: Duas Cidades, Secretaria de Estado da Cultura, 1976b.

4                                           Cartas a Murilo Mimnda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

5                          Primeiro de maio. In:     . Contos novos. l1.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983.

6                                          Carta de 6.10.32. In: ANDRADE, C. D. de. A lição do amigo. 2.ed. São Paulo:

Record, 1988.

7   CARONE, E. Movimento operário no Brasil (1877-1889). 2.ed. São Paulo: Difel, 1984.

8   DEL ROlO, J. L. lQ de maio. Cem anos de luta. São Paulo: Global, 1986.

9   KAREPOVS, D. (Coord.) Hisria dos bancários, lutas e conquistas 1923-1993. São Paulo: Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, 1994.

10   TROTSKI, L. La revolución espaflOla, 1936-1940. Barcelona: Fontanella, 1977. v.2.



[1] Professora do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada - FFLCH - uSP - São Paulo - SP - Brasil.