ENTRE A CRÍTICA E 0 CIENTIFICISMO[1]

 

Mario Fernando BOLOGNESI[2]

 

O intuito principal das primeiras Jornadas de Filosofia era criar urn ambiente de

discussao interdisciplinar, ern torno das Ciencias Humanas, corn vistas a criar condi<;oes para que se estruturasse urn curso de pos-graduação ern Filosofia, na

UNESP. No inicio, 0 projeto caminhava sob 0 jugo dos Institutos Isolados da Univer­ sidade de Sao Paulo. Corn 0 nascimento da Universidade Estadual Paulista e corn 0 remanejamento de varios cursos, processo levado a cabo pelo entao reitor (ern alguns casos sem a necessaria dose de born senso e contra a vontade de professores e alunos) ,

o   Departamento de Filosofia viu-se diante da necessidade de reestruturar-se, tendo em vista a sua nova localização . Dessa reestruturação nasceu 0 atual curriculo, fortemente marcado pela imperiosa necessidade de juntar-se as Ciencias Sociais, do Campus de Marilia.

As Jornadas prosseguiram e 0 Departamento, de certa forma, abandonou 0 projeto inicial de constituição de uma pos-graduação ern Filosofia e Teoria das Ciencias Humanas. As razoes desse abandono foram diversas e nao se trata, aqui, de recupera-Ias. Essa e uma tarefa que nao se adequa a este momento.

Passados os anos, contudo, a discussao de uma pos em Filosofia, na UNESP, voltou a tona, com urn Departamento muito diverso ern seus corpos docente e discente. Hoje, parece que a tarefa tornou-se imperiosa. Entretanto, deve estar voltada a realidade teorica e profissional dos componentes do Departamento, e e nesse sentido que as discussoes ern torno da pos-graduação tem-se dirigido.

Nesse retorno do desejo e da necessidade de uma pos-graduação, os objetivos, pode-se dizer, desviaram-se do tema e do objeto iniciais das Jornadas, quais sejam Filosofia e Teoria das Ciências Humanas. Porém, antes mesmo que a própria Jornada seja revista - se é que o será! -, a Comissão Organizadora preparou, para este ano, a discussão de alguns temas fundamentais para a compreensão de certos aspectos da vida contemporânea, à luz de pensadores que buscaram nos autores clássicos do marxismo, e na filosofia alemã, em geral, o entendimento das formas e modos de ação social e do pensamento na realidade do mundo burocrático e autoritário, demarcado pelo nazismo e stalinismo. A intenção, portanto, é rever as investigações acerca das relações da estética com a política, da filosofia com a revolução e de como esses ternas e procedimentos foram introduzidos e se desenvolveram no Brasil.

A XVIII Jornada de Filosofia e Teoria das Ciências Humanas, que hoje se inicia, tem como tema o Marxismo ocidental. Professores de diversas instituições de ensino e pesquisa do país estarão reunidos, nesses três dias, para tratar do assunto proposto, cuja base teórica nos remete a Sartre, Adorno, Benjamin, Horkheimer, Marcuse e outros.

Do ponto de vista filosófico, esta Jornada certamente se prestará a rever os modos sob os quais está se dando, na atualidade, a coisificação do homem, em um mundo que se materializou por completo.

Expressão mais acabada dessa materialização é a tradução econômica dos principais motivos da existência. Mercadoria e dinheiro passaram a ser os elementos básicos, uma espécie de café da manhã que orienta os afazeres e preocupações do cotidiano. As relações entre as pessoas são relações entre coisas. Vivemos em um mundo em que os mais íntimos desejOS são coisificados.

Além de manifestar-se através das coisas, a existência tornou-se, ela própria, um produto, ou seja, adquiriu grandeza de valor. O valor de uso é a amplitude de sua necessidade; o de troca se mede pelas formas sociais de sua manifestação.

Indignados com isso, os românticos atuais (seguindo os do passado) procuram expor a dominação da troca sobre o uso, como se este fosse próprio do homem (e nesse sentido natural) e aquela, a troca, da sociedade (isto é, cultural). Haveria, assim, o aniquilamento do humano em nome do social, tema, aliás, dos mais profícuos para o pensamento polítiCO e para a prática artística e cultural do Ocidente, porque envolve a dialetização do indivíduo com o Estado, do sujeito com o coletivo.

Admitindo-se que a essência de algo manifesta-se através de sua aparência, e que esta contém a primeira, vive-se de acordo com as formas e práticas próprias aos tempos atuais. Essas formas e práticas, que compõem os rituais da contemporanei­ dade, cristalizam-se nas diversas mercadorias e produtos. Resta, no entanto, uma séria questão: os homens se coisificaram, ou as coisas se humanizaram?

No plano da consciência e do pensamento é como se estivesse ocorrendo um sucumbir da lucidez, uma espécie de institucionalização do mercado das consciências, cuja finalidade é transformar as exceções em regras. Viver, nos tempos e no Brasil atuais, é um desafio contra a venda da consciência e da ação. Há uma visível dicotomia entre os modos de ação e a concordância com essas ações. Pensa-se de uma forma e age-se de outra. Ar;ao e consciencia sujeitaram-se ao mercado da persuasao das ideias, da cultura, das classes, da politica e da etica.

Nesse mercado compram-se cabec;:as, desviam-se vontades e desejos, em troca de urn bem-estar prometido, quase sempre terminando em mera subsistencia. Troca-se uma atitude vazia por silencio conivente. As vezes, vende-se urn pensamento contundente ao prer;o do isolamento bern acomodado. Outras, sucumbe-se aos valores degradantes das ideias bern comportadas.

No mercado da persuasao, termina-se por curvar-se diante da opressao. Se a necessidade de obediencia cedeu as contingencias, parece que chegou a vez de 0 pensamento tomar 0 mesmo caminho. 0 conformismo das ideias e das ar;oes s6 reitera o modo burocratico e policialesco (ainda que disfarr;ado) que 0 dia-a-dia tomou. A subversao do pensamento, que, de certa forma, alimenta a transformar;ao social, que propulsiona ideais ainda nao alcanr;ados, deixou de existir, em nome de uma mesmice reiterativa, dando os contornos e os limites de uma existencia quase bestializada.

Abundancia dos bens materiais de consumo; acesso crescente a cultura e a informar;ao;  ampliar;ao dos indices de alfabetizar;ao;  sofisticar;ao intermitente no trabalho; conquistas tecnol6gicas aplicadas ao dia-a-dia no lar; facilidades de loco­ mor;ao etc. - eis algumas caracteristicas da vida contemporanea. Paradoxalmente, porem, os ganhos materiais tern side acompanhados de uma gradativa perda da liberdade , de urn vazio existencial, enfim, do esvaziamento do livre arbitrio, com prejuizos notaveis a autonomia do sujeito.

Quanto maior a sensar;ao de felicidade nos bens de consumo, maior a rendir;ao a sociedade de massas, que aniquila com a nor;ao de cidadao para fazer prevalecer a de consumidor, necessidade imperiosa do progresso tecnico e industrial, baseado no individualismo do selfmade man . A sofisticar;ao da vida cotidiana tern como contra­ partida a perda da identidade, da felicidade e da liberdade.

Os assim chamados atributos essenciais do sujeito estao vilipendiados, bern como esvaziado 0  conceito de luta de classes, matriz primordial do pensamento marxista em sua analise do capitalismo. 0 modo contemporaneo de existencia rege-se, exclusivamente, pelo poder aquisitivo,  restrito, portanto, a uma parcela minima da popular;ao. 0 Terceiro Mundo recebe 0 r6tulo e 0 papel de massa, em urn modele social tecnocratico e objetual, mesmo que a imensa maioria nao tenha condir;ao de participar da sociedade de consumo. It de notar, todavia, como essa maioria se ve como massa participante. A fantasia se satisfaz com 0 conforto alheio, motivada por uma educar;ao tecnicista e pelos veiculos de comunicar;ao que semeiam o bem-estar social, mesmo que a distancia. A felicidade restringe-se as imagens (visuais e mentais) das lojas da rua principal, dos shoppings, da moda, dos veiculos de comunicar;ao etc.

Perdeu-se a dimensao do todo. Nao hB. mais tempo para refietir acerca da singeleza dos atos e pensamentos, que caminham na contramao da oficialidade, postura quase insignificante, nao fosse 0 valor que assume diante de urn cotidiano conturbado. Cada vez mais escassos, a ação e o pensar, que não se traduzem em mercadorias, são vistos como extemporâneos, arcaicos, participantes de um mundo que muito se foi. Anulou-se o direito de revolta e a utopia passa ao largo: resquício de um tempo perdido. Já não se tem a capacidade de sonhar e lutar por ideais. O mundo ideal se resume no aumento de renda, com vistas ao maior consumo. Mais do que nunca este velho assunto se faz presente e esta é uma das fortes razões para se rediscutir o marxismo, tal como proposto nesta Jornada.

No plano da cultura, das artes e da estética, o ambiente é igualmente desolador. Nas décadas passadas, o ato de ver um filme, ler um romance, assistir a uma representação teatral ou contemplar uma obra plástica era sinônimo de colocar-se diante de um universo propiciador de diversão, mas também de reflexão.

Afora as exceções de sempre, as artes e a prática cultural trabalhavam no limiar de um discurso anterior, teórico e político, sustentador do modo de se fazer a obra. Por certo, também havia aquele burburinho falsificador de valores, que cultuava uma determinada obra, ou artista, pelo simples jogo do convívio social, quase sempre demarcador de fronteiras e, portanto, de limites de classe.

Hoje, contudo, o processo acelerador da democratização da cultura e da comunicação trouxe a falência daquele substrato teórico e político, que sempre sustentou os grandes momentos da cultura ocidental. Ou, para ser mais preciso, alterou-se a relação da arte com a política, deixando de lado a forma e o conteúdo da obra para alojar-se nos meandros estruturais da produção e reprodução da cultura.

O que teria acontecido com nossa sensibilidade? Dominada pelo universo neoliberal e pelos palpites difusos e confusos da pós-modernidade, a sensibilidade tem-se conformado ao papel de assistente e receptora de valores artísticos, morais, sociais e polítiCOS que pululam nos diversos meios de difusão da cultura e da informação. Hoje, um novo modo de exercício do poder se efetiva, com maior eficácia, a distância, através do domínio da produção simbólica.

A alteração desse panorama ocorreu, na história recente, a partir da década de 1960, um período, dentre outras coisas, marcado pelas lutas de libertação nacional em vários países do Terceiro Mundo. O intervencionismo direto das grandes potências, além de questionado, mostrou-se, na própria lógica do capital, inadequado politicamente. É conveniente ressaltar que o processo de descolonização dos anos 60 foi movido pelo intento primeiromundista de um neocolonialismo. Se, à primeira vista, pode-se ver os diversos movimentos de libertação nacional, ou mesmo o pulular dos movimentos das minorias, como um momento de triunfo sobre o imperialismo, pode-se igualmente encarar como um processo de expansão qualitativa do capitalis­ mo, com a implantação de um arsenal tecnológico bastante inovador e com novos meios de produção. O antigo imperialismo saía de cena para dar lugar a uma nova forma de dominação.

Dentre outros, assistiu-se, naquele período, ao avanço e crescimento da indústria da cultura e da comunicação, criando padrões ágeis e com certo grau de eficiência junto ao imaginario coletivo. Em pouco tempo essa industria viria a ser plenamente adequada aos exercicios do poder.

Esse ramo da industria mostrou-se capaz nao apenas de estender 0 acesso a cultura, como a produzir e reproduzir simbolos e, portanto, a conformar 0 universo das representac;oes e valores mentais. E certo, tambem, que 0 fator economico desempenhou papel importante, pois 0 capital encontrou na cultura uma fonte de explorac;ao. Contudo, naquele momento, 0 dado fundamental e que 0 capitalismo tinhaencontrado urn modo de continuar 0 seu projeto de sociedade e civilizac;ao, sem intervir diretamente nos problemas nacionais dos paises dependentes. As experiencias do Vietna e da Argelia, para citar apenas duas, tinham sido demasiado tragicas para 0 Primeiro Mundo.

Hoje, diante deste novo modo de exercicio do poder, essencialmente simb6lico, M urn nitido conformismo com os valores postos e repostos pelos veiculos de manifestac;ao da cultura e da comunicac;ao e nossa sensibilidade retrai-se diante de modelos culturais consagrados pelo projeto industrial.

Alteraram-se os tempos, as obras, os valores, mas a arte, a cultura, a linguagem e ate mesmo a sensibilidade atrelaram-se ainda mais a politica. Desta feita, como forma quase que privilegiada de dominac;ao social, a distancia.

No plano da investigac;ao das ideias assistiu-se a uma substituic;ao gradual dos grandes sistemas filos6ficos e politicos, particularmente 0 existencialismo sartreano eo marxismo, predominantes nos meios academicos (porem nao hegemonicos), pelo chamado estruturalismo. 0 movimento parecia extremamente claro: a primazia da linguagem e do simb6lico deveria sobrepor-se a tentativa filos6fica de reflexao acerca do mundo e da existencia. Em ultima instancia, houve urn abandono das investigac;oes criticas e filos6ficas para fazer prevalecer urn cientificismo do qual se mostravam carentes todas as ciencias humanas. Do ponto de vista do metodo e do procedimento cientificos, 0 estruturalismo estava muito mais bern equipado. Este caminho viria a implicar, mais tarde, 0 descaso completo para com 0 pensamento critico (em seu questionamento das relac;oes de poder e dominac;ao, que se estendia a reflexao acerca da existencia, do mundo e das coisas), bern ao gosto da p6s-modernidade. A pulverizac;ao dos conceitos e 0 desmantelamento te6rico dos arcabouc;os filos6ficos, nos quais se inclui 0 marxismo, foram a contrapartida do conhecimento tecnicista, que tern predominado desde entao, a despeito ainda da queda do modismo estrutu­ ralista. Restou, contudo, a postura da especialidade, do avanc;o sistematico do singular em oposic;ao a tentativa de compreensao critica de uma totalidade, atributo hist6rico da Filosofia. 0 caminho do cientificismo predominante acabou por sepultar de vez 0 sujeito filos6fico e a sua tarefa. A partir de entao, a Filosofia teria de dar suporte te6rico a pesquisa das ciencias, voltada, com maior ou menor intensidade, ao aprimoramento do mundo tecno16gico, tendo como crenc;a suprema a autonomia e independencia do conhecimento. Vale dizer : sua tarefa deixou de ser a reflexao e a critica para transformar-se em produtora de sentidos para 0 trabalho da ciencia. A pr6pria Filosofia se tecnicizou, ou melhor, materializou-se, nao no sentido classico do materialismo, mas na fun9ao quase que primordial de dar sustentacula teorico e material a linguagem e ao universo simbolico - em ultima insti'mcia, prover de sentido 0 trabalho cientifico. Assim, senhoras e senhores, pretende-se, com esta Jornada, alem de discutir os temas especificos da estetica e da politica, a luz do marxismo ocidental, colocar em foco, ainda que indiretamente, 0 proprio papel da Filosofia. Essa tarefa faz-se necessaria em urn momenta em que,  internamente, pensa-se na reestrutura9ao curricular e na instala9ao de uma pos-gradua9ao. No plano mais geral do conheci­ mento, em urn mundo entregue ao mercado, tanto das coisas como das consciencias, ela tambem se mostra pertinente, ainda que seja para repor uma reflexao da qual somos cotidianamente distanciados, em nome de uma especialidade que nada mais faz do que reiterar a pulveriza9ao do pensamento, passo primordial para urn discurso positiv. Nesse itinerario intermitente de supremacia do objeto e do objetivismo, restam quase sempre esquecidos os propositos ulteriores da critica filosofica, sinteti­ zados na liberdade ou na autonomia do sujeito, que para 0 marxismo deve redundar na compreensao da luta de classes e no aniquilamento da domina9ao. Se hoje a dialetica entre 0 sujeito e 0 objeto apresenta uma soberania do segundo elemento sobre 0 primeiro, demarcador por certo do grau de reifica9ao alcan9ado, e chegado 0 momento, uma vez mais, de propr, no nivel da reflexao ao menos, 0 papel da utopia no convivio social e no trabalho critico da Filosofia. Ou devemos abandona-Ia de veze deixar que a razao sucumba definitivamente ao mundo objetual do trabalho? E possivel que nao se alcance resposta convincente. Contudo, vale 0 intento de recolocar a tematica da critica, que em nada corrobora 0 universo do consumo, tanto material quanto, principalmente, simbolico.

Esses sao alguns temas que esta Jornada certamente tocara. Antigas questoes que cada vez mais sao pertinentes, porque confluem para a problematica politica da existencia, do consumo, da anula9ao do sujeito, da derrocada da revolu9aO e da domina9ao de classe, travestidas ideologicamente em eficiencia, especialidade e verdade para urn mundo e uma consciencia partidos, fragmentados, enfim, tecnici­ zados em seus fetiches.

 

 

BOLOGNESI, M. F. Between critique and scientism. TranslFormlAc;ao (Sao Paulo), v.18, p. 23-28, 1995.



[1] Texto apresentado na abertura da XVIII Jornada de Filosofia e Teoria das Ciencias Humanas. de 19 a 21 de outubro de 1994. na Faculdade de Filosofia e Ciencias - UNESP. Campus de Marilia.

 [2] Professor do Departamento de Filosofia. da Faculdade de Filosofia e Ciencias - UNESP - 17525-900 - MarUia - SP- Brasil.