O LUGAR DA ARQUITETURA[1]

 

Roberto SCHWARZ[2]

 

  PALAVRAS-CHAVE: Arquitetura; modernidade; p6s-modernidade; projeto funcionalista; vanguarda.

 

 

Cara Otilia :

Somos amigosM muitos anos, eM muitos anos sou seu leitor atento. De modo que digo sem nenhum medo de errar que 0 seu trabalho intelectual chegou num ponto otimo.

Voce publicou M pouco urn livro sobre Mario Pedrosa que e realmente de primeira, cheio de observa<;oes que interessam a historia nao so de nossas artes plasticas, como de nossa literatura e vida politica (Mario Pedrosa: itinerario critico. Sao Paulo : Scritta, 1991). E urn trabalho que convida a sair da rotina e arriscar conexoes entre dominios da vida que se costumam estudar em separado.

Acompanhando 0 percurso de urn homem ligado ao mesmo tempo a vanguarda artistica e a vanguarda politica, voce historia e analisa os acertos e os desencontros proprios a essa combina<;ao, que para muitos de nos representou 0 ideal. Ao longo da vida tao movimentada e internacional de Mario Pedrosa, VaG se aliando e desenten­ dendo 0 socialismo, a arte social de Kathe Kollwitz nos anos 30, a luta anti-stalinista, o abstracionismo nos anos 50 e 0 megaexperimento modemista que e a constru<;ao de Brasilia.

Para 0  meu gosto, a  parte as muitas liga<;oes apontadas e os acertos de caracteriza<;ao, 0 achado do livro esta na sua linha central. Com toda razao , voce sublinha a unidade do impulso utopico, 0 qual levava 0 intelectual a ser revolucionario tanto nas artes quanto em politica, a ponto de imaginar que a realiza<;ao de projetos  caros a vanguarda artistica s6 podia ser indicio de algo paralelo no campo social. Dai o entusiasmo que levou Pedrosa a se tornar por urn momenta uma especie de ide6logo de Brasilia.

Pois bern, chegada aqui, voce teve 0 born senso (e a ousadia) de considerar que esta Brasilia, que realizava 0 programa de artistas tao indiscutivelmente avangados como Niemeyer e Lucio Costa, nao dizia respeito somente ao mundo dos arquitetos. Ela era a mesma que, do ponto de vista da critica social, representara urn aprofunda­ mento do carater autoritario e predat6rio da modernizagao brasileira, em linha com a tendencia que em seguida levaria ao regime militar.

Noutras palavras, a realizagao mais sensacional e abrangente do programa hist6rico das vanguardas artisticas incluia entre as suas virtualidades 0 servir de alibi a urn processo de modernizagao passavelmente sinistro, em cuja esteira ainda nos encontramos, e ao qual aquela realizagao em fim de contas se integra bern, sem dissonancia notavel.

A revolugao nas formas arquitetonicas e urbanisticas nao cumprira a sua promessa de revolucionar a vida para melhor. A Brasilia da vida real, que nao M porque passar por alto num debate estetico que se preze, constitui uma verificagao palpavel do carater iludido do vanguardismo abstrato - como ali8.s constataria 0 pr6prio Mario Pedrosa no ultimo periodo de sua vida, quando afirma que a nogao de vanguarda artistica perdeu 0 fundamento. Noutras palavras, voce soube reconhecer no percurso e sobretudo no impasse de urn critico 0 destino local, mas globalmente relevante, de uma das grandes aspiragoes deste seculo no ambito da civilizagao burguesa.

Logo depois deste livro, voce publicou outro, escrito a quatro maos com Paulo Arantes, em que comenta e critica as duas conferencias de Habermas em defesa do movimento modernista na arquitetura (Um pon to cego no projeto moderno de Jurgen Habermas. Sao Paulo: Brasiliense, 1992.) Este trabalho nao e de leitura facil, porque e superlotado de argumentos, e muito economico e preciso na exposigao.

o assunto esta indicado no subtitulo: arquitetura e dimensao estetica, depois das vanguardas. Trata-se da teoria da modernidade segundo 0 fil6sofo, bern como da situagao da arquitetura contemporanea, confrontadas criticamente uma com a outra e tendo como fundo a "Teoria Estetica" de Theodor Adorno. Indiretamente, esta em jogo a pr6pria situagao atual da arte.

o tom e de discussao propriamente dita, sem ponto morto, sem temor a compartimentagao academica das especialidades, circulando com liberdade entre 0 argumento filos6fico, a descrigao de obras e a situagao hist6rica. Tudo estritamente segundo as necessidades do objeto e do raciocinio, num clima de sobriedade e intensidadeintelectual que e raro. Penso nao me enganar achando que M ai urn padrao de prosa critico-filos6fica novo no pais. Sem entrar na substancia do livro, quero ainda chamar a atengao para 0 seu t6pico final, intitulado "Urn ponto de vista".

Depois de haver discutido as razoes da revalorizagao tardia da arquitetura moderna pelo fil6sofo, 0 ensaio salta para 0 Brasil, para a nossa experiencia com 0 modernismo arquitetonico, a qual sera chamada a testemunhar no capitulo. 0 passo a frente e grande e consiste em dar-se conta de que as teorias de urn pensador, mesmo alemao, podem ser testadas sem desproposito pela experiencia local, ou, mais grave ainda, que a reflexao sobre a experiencia local pode fornecer urn capitulo a urn livro filosofico...

Ha urn avan<;:o paralelo no argumento sobre 0 significado local da nova construçao. A inadequação de origem esta a vista de todos que tenham urn verniz materialista. De fato, "num meio acanhado como 0 nosso, onde esta a base social e produtiva que daria sentido a racionalidade arquitetonica desejada pelos modernos?" Deste angulo, na ausencia de grande industria, 0 Brasil nao seria lugar apropriado para 0 essencial da nova arquitetura, cujos descaminhos locais seriam antes equivocos do que parte integral da linha historica da arquitetura moderna. Ora, as suas reflexoes vao em direção contraria a esta, cujo progressismo na verdade e conformista, pois se lirnita a denunciar e lamentar a falta das condi<;:oes modernas no pais.

o ponto de vista que voce expoe e bern mais drastico, e sustenta que foi precisamente a ausencia de uma sociedade industrial desenvolvida que perrnitiu a realização dos experimentos por assim dizer totais da arquitetura e do urbanismo novos, os quais nao poderiam ocorrer senao nas condi<;:oes autoritarias do Terceiro Mundo, por exemplo, na india ou no Brasil.

A reflexao nacionalmente engajada sobre os obstaculos locais a modernização (perspectiva tao incontornavel quanto ideologica) cede 0 passo a reflexao teorica sobre o dinamismo modernizante global, tomada na sua feição efetiva, de que a teratologia terceiro-mundista faz parte. Assim, longe de ser urn desvio sem significado, a combinação monstruosa e desconcertante de modernismo e misena esta na logica do processo. Ela diz algo de essencial sobre a concepção de modernidade que animou a arquitetura deste seculo, bern como sobre a nossa ideia e a propria realidade da modernização.

Cada urn a seu modo, os livros sobre Mario Pedrosa e sobre Habermas acompa­ nham urn movimento que, iniciado nos paises do capitalismo maduro, a certa altura se transplanta e tern urn capitulo brasileiro. Este, longe de ser uma variante folclorica, ensina algo de substantivo sobre 0 processo considerado no conjunto. 0 merito desprovincianizador desta estrategia expositiva e evidente, pois leva a encarar os fatos locais em termos nao apenas nacionais, mas contemporaneos, e vice-versa, rompendo com a estreiteza de vistas do nacionalismo, sem no entanto desconhecer a realidade do ambito a que este se refere. Nessas materias, toda receita e urn erro, mas nos dois trabalhos esta dado este passo valioso, que acho que pode ser tornado como programa: os desenvolvimentos locais sao vistos no bojo da historia contemporanea, mas nao como simples ilustração, em fim de contas redundante, e sim como momenta verdadeiro e revelador do sentido geral da atualidade.

Bern, mas vamos entao a seu livro novo, que voce apresentou para esse concurso de livre-docencia (0 Jugar da arquitetura depais das mademas. Sao Paulo: Edusp, lidade desta promessa, surge a atual arquitetura do simulacro, do espetaculo, da multiplicação das imagens, escandalosamente oposta a sobriedade funcionalista e a seu animo de reforma. Voce reage com born senso e duvida da proclamada onipotencia do simulacro, ou da volatilização da realidade operada pela presençã generalizada da TV. Em lugar disso, voce observa que, com a nova arquitetura, a cidade se torna ela mesma uma midia, contribuindo por sua vez para a generalização do "efeito televisao". Guiada pela politica cultural do Estado ou das grandes empresas, a arquitetura moderna vern a ser uma peçã importante para 0 desenvolvimento da sociedade de consumo.

Assim, depois de interpretar as necessidades da industrialização capitalista, a arquitetura inventa as solu<;:oes necessarias ao aprofundamento do consumismo. Ou, como voce queria demonstrar, funcionalismo e pos-modernismo sao momentos sucessivos de uma mesma racionalidade social.

o resume foi urn pouco acelerado, mas espero que nao tenha side muito inexato e que permita algumas perguntas, com as quais termino.

De urn modo geral, as suas exposi<;:oes se completam pelo confronto entre ideia e resultado, entre 0 que urn movimento promete e 0 que ele cumpre no seu desempenho efetivo. Embora esta ordem de confronto pertençã ao programa e ao proprio receituario da dialetica, sao poucos os trabalhos bem-sucedidos nesta linha. Fazem parte do grupo estes seus estudos, em que 0 curso das promessas e dos resultados da arquitetura moderna compoe uma figura vasta e de fato impressionante. Dito isto, quero lembrar uma boa reflexao de Adorno, segundo a qual as ideologias nao sao mentirosas pela sua aspiração, mas pela afirmativa de que esta se tenha realizado. Qual 0 significado, qual 0 partido que a critica de arte pode tirar deste espa<;:o entre aspiração e realização, e sobretudo entre obra individual e tendencia geral?

Neste sentido, como ficam as experiencias modernistas de que mal ou bern se formaram as no<;:oes de beleza de nossa geração e da anterior, no<;:oes de que nao saberia como abrir mao? Penso no impacto de revela<;:oes juvenis, como aquelas propiciadas - digamos - pelos moveis escandinavos, pela religiao das tubula<;:oes aparentes, pela sobriedade do espa<;:o moderno, pelo antiilusionismo do palco brech­ tiano etc. Foram absorvidas pela modernização, sem deixar residuo critico?

E como se liga ao destino da arquitetura a diferençã tao tangivel entre as casas modernas bonitas e as feias? Em que sentido as explica<;:oes que voce da poderiam incidir em nossa apreciação de obras-primas, por exemplo de Mies van der Rohe, ou de beldades como 0 Palacio do Itamaraty? 0 angulo de analise teria de ser outro?

Minha cara Otilia, quero cumprimenta-Ia calorosamente pelo born trabalho.

 

SCHWARZ, R. The place of architecture. TranslFormlAr;ao (Sao Paulo), v. 18, p.9-13, 1995 .

 

  KEYVORDS: Architecture; modernity; post-modernity; [onctionalist project; vanguard.



[1] Argiiir;:ao do Concurso de Livre-Docencia de OtUia B. F. Arantes. na Faculdade de Filosofia. Letras e Ciencias Hurnanas - USP.

[2] Ensaista e critico, autor de a pai de familia e Machado de Assis - Urn rnestre na periferia do capitalisrno.