ALGUMAS REFLEXOES SOBRE DESCARTES E MAQUIAVEL
1
Cicero ARAUJ0
2
RESUMO: Neste artigo, duas cartas de Descartes sobre Maquiavel sao
anaIisadas. Primeiro, e apresentado, com base no que 0 próprio filósof0
sugere nas cartas, urn contraste entre os dois
pensadores,
do qual
emerge
uma distin
c;:
ao
entre
moral
e
politica
em Descart
es.
Uma
leitura
da
moral
cartesiana
e
fei
ta
,
em
seguida,
a
tim de
10caIizar
as
raizes
desta
distin
c;:
ao
.
PALAVRA
S-
CHAVE
:
Desc
art
es;
Ma
qui
avel
;
moral
;
vir
tude
;
politic
a
;
fortu
na.
I
Comparar sempre envolve riscos de exagero.
Quando se trata de
comparar pensamentos
filo
s6ficos
,
0
risco
e
maior
ainda:
a
obra
de
u
rn
fil6
sof
o
costuma
ter muitas
facetas em
seus
dif
erentes
textos
e
mesmo
num
unico
tex
to
.
Assim
,
determi-
nada faceta assemelha-se com uma
qualquer de outro autor, enquanto em outra nada poderia haver de mais
antagonico. Alem disso, nao se contempla a obra de urn fil6sofo com os
mesmos olhos. Nao s6 porque 0 mesmo leitor modifica seu olhar com 0
tempo, mas tambem porque la onde alguem V8 "campo comum" entre
autores
-
dependendo,
e
claro
,
do
recor
te
que
fa
z
das
obr
as,
do
qu
e
considera
principal
e
se
cun
d
il
rio
nelas
-,
sempre e possivel haver quem
veja urn sumo contraste.
Ainda assim, parece-me que tal atividade acaba sendo extremamente
elucida-
tiva
.
Nao raro
,
a
compara
C;
ao
transforma
nossa
perspec
tiva
de
cada
obra
(aquela
em que nos colocavamos quando a estudavamos
separadamente): certos textos, frases ou ate uma determinada palavra mudam
1
Este
artigo
e
part
e
do
trabalho final apresentado no
Programa
de Forma
<;:
ao
de Quadros
Profissionais
do
CEBR
AP
,
em abril de 1991.
2
Doutorando no Departamento de Filosofia - F'FLCH - uSP - 05508- 900
- Sao Paulo - SP.
de sentido ou mesmo passam a adquirir sent
ido
.
Mas
M
comparac;6es e comparac;6es. Em alguns casos, a comunidade
tematica e de epoca sao tao explicitas que tal atividade torna-se obrigat6ria:
como pensar Platao
sem que a figura de Arist6teles nos venha a cabeya?
Mas
M
casos em que as preocupayoes sao aparentemente tao discrepantes
-
sem contar a separayao de epoca -, que urn empreendimento de
comparayao nao deixaria de ser de qualquer
ponto
de
vista
,
bastante
tem
erario.
Parece
ser
0
caso
de
Des
cartes
e
Maquia
vel
.
Embora
a
Europa
culta
do
se
culo
XV
II
ja
ti
vesse
amplo
conhecimento
da obra do
pensador
fl
orentino
,
inclusi
ve
tradu
zida
para
0
fran
ces
,
nada
dos
textos
de
Des
cartes
destinados
a
publi
cayao
indica
qualqu
er
tentativa de dialogo
com Maquiavel. E como se 0 desconhecesse completamente.
Nada
a
estranhar
,
porem
,
se
este
des
conhecimento
fo
sse
real
:
afinal
de
contas
,
os grandes empreendimentos politicos e as intrigas dos soberanos
sempre estiveram fora
de
suas
cogitay
oes
,
e
de
forma
deliber
ada
.
Tendo
a
crer mesmo
que
ele
ja
mais
teria
se
aventurado
a
cotej
ar
0
pensa
mento
de
Maquiavel
com
0
seu
pr6prio
,
nao
fo
sse
o
apelo
de
uma
ilustre
amiga
,
a
princesa Elisabeth
,
qu
e,
depois
de
tres
anos
de
assidua corre
spondencia
debatendo
os
es
critos
car
te
sianos
(u
rn
dos
quais
,
os
P
rincipes
de
la
Philosophie, dedicado a ela),
pedia-Ihe entao para escrever sobre "as
m8.ximas da vida
civil"
.
3
Cedendo
aos
seus
apel
os,
tempos
depois
, como
mote
da discus
sao
,
ambos combinam a leitura de 0 Prin cipe.
A
jo
vem
Elisa
b
eth
-
cuj
o
pai
,
Freder
ico
,
fora rei da
Boe
mia
-
encon
trava
-se,
na
epoca
,
exilada
na Holanda
com
sua
familia
em
virtu
de
da Guerra
dos
Trinta
An
os.
Em
sua
correspondencia
com
Desc
artes
,
por
mais
de
uma
vez
ela
se
queixara
dos
infortunios politicos de sua familia,
que tanto a afligiam fisica e emocionalmente. Mas as queixas logo se
transformavam num dialogo restrito ao tema da felicidade pessoal que, aos
olhos de Descartes
-
como veremos com mais detalhes oportunamente -,
independia
de
infortunios
daquele
tipo
.
Sobre
0
te
rn
a
da
feli
cidad
e,
por
sinal
,
a
prin
CB
sa
ja the havia pedido para escrever algo inspirado em urn livro
de Seneca (nao raro os ensinamentos de Descartes a Elisabeth eram expressos
na forma de comentarios de livros que ambos combinavam de ler).
Contudo, ao solicitar suas opinioes sobre "as maximas da vida civil",
a mOya sabia que avanyava sobre urn terreno delicado,
estranho aos termos
com os quais ate entao
haviam
se
des
enrolado
as
conversas
com
Descar
tes
,
e
que
tinha
u
rn certo
ar desaf
iador
,
porque
0
pr
6prio
Des
cartes
havia
dec
larado varias
vezes
,
em
es
critos publicos
e
a
ela
pes
soa
lmen
te,
sua
aversao
ao
assunto
,
que dizia
resp
eito
exclusiva
-
mente
aos
soberano
s.
Ainda
que
com
cer
ta
hesitayao
,
acaba
ac
eitando
dar
sua
opiniao
,
em
uma
car
ta
datada
de
setem
bro
de
16
46.
Elisa
be
th
responde
no
mes
se
guinte
;
por
fi
m,
numa
carta
de
novembro
do mesmo
ano
,
Desc
artes
dedica algumas
poucas
linhas
mais
sobre
0
tema
e,
aparentemen
te
,
encerra
a
discussao
.
E
a
essas
cartas que nos dedicaremos agora, para verificar se dali seria possivel
extrair elemen- tos
de
u
rn
pensamen
to
politico
como
,
de
resto
,
varios
comentadores
ja
sugeriram
4
0
contraponto com Maquiavel, indicado pelas
pr6prias cartas, servira como uma ref
erencia
de
apoio
a
essa
reflex
ao
.
II
Ao ler as duas cartas sobre Maquiavel, isoladas do conjunto da
correspondencia entre
Des
cartes
e
El
isa
be
th
,
e
tentador
dar
tal
importancia
ao
seu
conteudo
a
pon
to
de se querer extrair dali os
fundamentos de uma filosofia politica cartesiana. Exata-
mente pelo fato de constituirem urn dos rarissimos momentos em que
Descartes se
dispoe
a
falar
da
politica
dos
Es
tados
.
A
tentayao
pode
ser
mitigada
se
pensarm
os
, em
primeiro
lugar
,
que
se
trata
de
urn ponto de descontinuidade:
0 assunto nao taz parte da reflexao
sistematica do fil6sofo
-
sistema
ti
ca
,
pelo
contrario
,
e
sua
recusa
em
erigir
uma
filo
so
fia
po
liti
ca
-,
desvia-se do caminho que persevera nas
demais cartas que compoem a conespon- dencia com a princesa e no
conjunto dos textos destinados a publicayao.
s
Em segundo
lug
ar,
0
pr6prio
Des
cartes
dei
xa
claro
,
nas
duas
cart
as
, que
vai
falar
como
u
rn
leigo
no
assunto (ao contrario das cartas que tratam de Metafisica, Medicina e
Moral), e chega mesmo a declarar que nao pretende ensinar qualquer coisa
a princesa sobre
"e
sta
mater
ia"
e
sim
proporcionar-
lhe
"a
lgum
divertim
ento
" .
Isso
,
apesar
da
re
lativa
extensao dos comentarios
(especialmente na primeira carta) e da gravidade com que aprecia
os
ensinamentos
de
Maquia
vel
.
As primeiras experiencias de leitura desses textos alternaram em mim
a inclinayao para considera-los mais uma peya de critica severa aos
escritos do florentino
-
como os muitos versus machiavellum (em geral
de carater moralizante) que se difundiram na Europa desde a primeira hora
em que se tornaram publicos
;6
ou
,
ao
contrario
,
a
inclinayao
para
recon
hecer,
af
inal,
uma
sintonia
essenc
ial
entre
Des
cartes
e
Maq
uiavel
.
Pensei
no que
pode
ria
haver
neles
que
sus
citava
em
mim
tendencias tao
contrarias.
A primeira carta7 - a mais extensa - comeya com 0 pr6prio Descartes
indicando uma oscilayao: comentando 0 Prin cipe, diz que encontrou nele
preceitos " muito bons"
e outros que "nao poderia aprovar". Mas a primeira
critica nao poderia ser mais
veemente: diz que 0 "maior eno" cometido pelo
autor foi nao ter distinguido claramente entre principes que "adquiriram
urn Estado por vias justas e aqueles que
o
us
urparam
por
meios
ilegitim
os"
.
Assim
,
Maquiavel
teria
eq
uivo
camente gener
ali
zado
preceitos
adequados
apenas
aos
ultim
os
;
em
rela
<;
ao
a
est
es,
de
fato
,
a
marca registrada s6 poderia ser a violencia, pois "aqueles que come<;aram
a se estabelecer por meio de crimes sao obrigados ordinariamente a continuar
a cometer crimes e nao poderiam se manter se quisessem ser virtuosos".
S6 que Descartes se restringe a apontar a necessidade da justi<;a na
aquisi<;ao
do Estado (e necessario " sup
r que
foram justos
os
meios
de
que
ele
[0
principe]
se serviu para
estabelecer- se").
Mas
nao
diz
uma
palavra
sobre
0
conteudo
desse
princip
io
.
Inclin
a-se,
pe
lo
contrario
,
a
subj
etiva
-
I
o
: entende
por
"m
eios
ju
stos
" ,
"
q
uase
todos os meios " ao alcance dos
principes, desde que estes os "julguem tais".
0
que
se explica
na
ideia
de
que
0
soberano
esta
acima
da
justi<;a
"entre
os
particulares"
;
alem
di
sso
,
"p
arece
que
nestas
ocorrencias
Deus
da
0
direito
a
quem
da
a
fo
r
<;
a
" .
Para
Des
cartes,
0
problema
todo
esta
,
nao
no que
se
entende obj
etivamente
por
justi
<;
a,
mas
na inten9BO do
sujeito
que
a
da:
"as mais justas
a<;oes
se
tornam injustas
quando
os que as fazem as pens am tais".
Co
nt
udo
,
isso
nao
signif
ica,
como pode
parecer
a
prime
ira
vista
,
uma
aceita
<;
ao
da doutrina do direito divino dos reis:
0
martelo de Deus
apenas decreta a rela<;ao necessaria entre quem tern a fon;:a e
0
direito de
dar a justi<;a, mas nao que Ele tenha
ungido
determinadas
pessoas
,
muito
especia
is,
para governar
.
Tanto
que
Des
cartes
considera legitimos ate
mesmo os principes "recentemente entrados num Estado"
-
os que de
"particulares" passaram a condi<;ao de governantes (alusao aos "principes
novos" de Maquiavel).
A legitimidade nao consiste na identifica<;ao do
legitimo herdeiro
mas
,
a
esta
altura
da
carta
pelo
men
os,
e
o
resu
ltado
da
inten9BO
de
se
fazer
just
i
<;
a.
Termo
qu
e,
alias
,
ganha
maior
sen
tido
quando
nos
remetemos
a
outros
textos
do
fil6
sof
o
.
Descartes ja havia dito a Elisabeth - e tambem 0 dira a rainha Cristina
da Suecia
-
que a felicidade e alcan<;ada nao tanto pela correta adequa<;ao
(feita pelo entendi- mento) dos meios aos fins.
o
entendimento
deve
,
sim,
guiar
nossas
a
<;
oes
-
a
virtu
de
nao
e
pura
vontade
de
fa
zer
0
bern
,
e
nao
ha
vir
tude
sem
a
inter
ve
n
<;
ao
do
entendimento
;
todav
ia,
mesm
o
que
0
entendimento
erre
(des
de
qu
e,
evi
dentemen
te,
nos
esf
orcemos
por
usa-Io)
,
ainda
assim
a
fel
icidade
esta
ao
alcance
de
todos.
Pois
,
consistindo
a
fe
licidade
na
aquisi
<;
ao do Bern
Soberano
;
e nao sendo este outra coisa senao 0 "contentamento do
espirito"
resul
tante
da
pratica
da
virt
ude
,
is
to
e,
da "vontade
firme
e
con
stante
de
que
ju
lgamos
ser 0 melhor";
8
entao
fazer 0
bern
nada
mais
e
do
que ter a
inten<;ao de
fazer
0 bern
com
0
usa
do
entendimen
to
.
Se
consid
erarmos
a
justi
<;
a
u
rn bern
,
a
mensagem
da
carta
se
esc
larece
imediatamente
.
o
problema
e
que
Des
car
tes
,
quando
fala do
Bern
Soberano
,
fala no
plano
pri
v
ado.
Nada nos esclarece a respeito do
que
poderia
ser
0
Bern
Soberano
na
esfera publica.
Al
ias
,
na
carta
a
rainha
Cr
isti
na,
chega
a
distinguir
os
dois
:
0
Soberano
Be
rn
"d
e
cada
urn em particular [que e 0
assunto da carta) e toda outra coisa" do Soberano Bern " de todos
os
hom
ens
em conj
un
to"
(DA
III
,
p.
746)
.
Admitamos
que
0
principe
se
ja
pessoalmente feliz se praticar a vertu cartesiana: mas isso garantira a
sobrevivencia do
Es
tado
,
a
manuten
c;
ao
do "b
e
rn
publ
ico
"
ou mesmo
a
sua
pe
rman
en
cia enqua
nto
soberano? A vertu cartesiana e apropriada a
quem pretende conquistar 0 poder ou conserva-lo? Descartes parece nao ter
em mente essas quest6es ate aqui, ou, se as
te
rn
,
limita
-se
a
apontar
uma
sec
reta convergencia entre
a
e
fi
cacia da
a
c;
ao
do
pr
in
cip
e
(0
que
signi
fi
ca
ser
bem-sucedido
nos
negocios do
Es
tado)
e
a
inten
c;
ao
de
fa
zer
justi
c;
a
.
Com isso 0 filosofo exime-se de rastrear qualquer teoria da justic;a
universalmente
valida
(no
caso
do cartesianismo
,
leia-
se
:
metaf
isi
camente
garanti
da)
.
E
a
ten
tativa
de estabelecer preceitos com base na ideia da
intenc;ao esgota-se nela mesma. Descartes e entao levado a considerar as
demais partes do livro de Maquiavel, colocando entre parenteses 0
componente intencional de sua vertu, para explorar 0 que
se
refere
ao
usa
do
en
ten
d
im
en
to
.
Diferentemente
do campo do
conhecimento
cientif
ico
,
0
usa
do
entendimen
to
no campo da
a
c;
ao
chama
-se
"p
rudencia
" ,
0
que
significa guiar-se mais pela " experiencia" do que pela intuic;ao de ideias
claras e
distintas
(DA
III
,
p.
654)
-
intui
c;
ao
,
alias
, impossivel
num
espa
c;
o
em que corpo
e
alma encontram
-se
substanc
ialmente
unidos
-,
e
se
contentar
com
0
veros
simil
,
em "ju
lgar
o melhor possivel".
Vejamos como
explora esse componente.
Da mesma forma que Maquiavel,9 0 filosofo divide 0 assunto em tres
aspectos:
politica para os "inimigos", para os "aliados ou amigos" e para os
"suditos". Em relac;ao
aos primeiros, acolhe a metatora do acoplamento da
raposa ao leaD (astucia e
forc;a
;
Maquiavel usa a imagem no capitulo 18, mas
nesta altura ele ja esta tratando dos dois ultimos aspectos): contra os inimigos
e permitido " quase tudo". Chega a admitir ate
uma
def
ini
c;
ao
bern
ampla
destes
:
"c
ompreendo
,
sob
0
nome
de
inimig
os
, todos
os
que nao sao
amigos ou aliados, pelo fato de que se tern direito de lhes fazer guerra
quando nisto se encontra nossa vantagem".
Mas 0 tom critico reaparece quando 0 assunto passa a ser a relac;ao com
os
"amigos
ou
aliados".
Neste
caso,
pensa
Descartes,
0
tratamento
deve
ser
totalmente
diferen
te
:
"a
amizade
e
uma
coisa
demasiado santa para
dela
se
ab
usa
r"
, diz
,
referindo-se a passagem de 0 Prin cipe que recomenda, em
certos casos, a simulac;ao
da
amizade
com
0
proposito
de
arruinar
u
rn
aliado.
Con
tudo
,
0
que
faz
Des
cartes
recusar esse conselho e menos 0
valor em si da amizade do que as consequencias prati
cas
de
uma
atitu
de
desleal
.
Pois
, mesmo que
0
cumprimento
da pa
lavra
dada
,
por
exemplo
,
fo
sse
prejudic
ial
a
curto
pra
zo,
"n
ao
0
poderia
ser
tanto
quanto
the
e
util
a reputa9ao de nao deixar de fazer 0 que prometeu" (0 grifo e meu).
Repare-se como
a enfase da analise desloca-se da intenc;ao do sujeito para
a sua imagem (0 que os
"outros" pensam de seu carater).
0 que leva
Descartes a dar uma delimitac;ao mais
precisa do campo dos "aliados",
chegando mesmo a descolorir 0 tom da critica a
Maquiavel: assim,
pensa o filósofo que a vigência do preceito da lealdade é possível
quando o príncipe mantém "alianças estreitas" apenas "com aqueles
que são menos poderosos", pois estes sempre temerão trai-lo. Ora,
com tal restrição, o próprio Maquiavel admitiria a importância de
preservar aliados com a fidelidade.
A
crítica abranda mais ainda quando o assunto é a política para
os súditos. Descartes havia elogiado a idéia de que "o amor do povo
vale mais que as fortalezas" (referência a Maquiavel, 1987, capo 20).
Agora ele vai concordar com a classificação maquiaveliana de dois
tipos de súditos
-
os "grandes" e o "povo" (cf. P, capo 9). E a
definição de cada tipo não parece muito diferente: "grandes" são
"todos aqueles que podem formar partidos contra o príncipe";
"povo" é o resto, a maioria quantitativa. Mas Descartes deixa de
considerar o conflito
entre
os dois grupos (implicíto na própria
definição maquiaveliana desses termos: "grandes" são os que
querem oprimir o "povo"; "povo", os que o querem ser
oprimidos), que é um dos pontos centrais da análise de Maquiavel
em todo o livro, para apenas considerar o conflito potencial de
cada
grupo contra o soberano. E, por esta ótica, Descartes preceitos
quase idênticos aos do pensador florentino: quanto aos "grandes",
"todos os polítiCOS estão de acordo que se deve empregar todos os
cuidados para rebaixá-los" (comparar com P, capo
3);
mas no que toca
ao "povo", "deve-se sobretudo evitar seu ódio e desprezo" (comparar
com P, capo 20).
Agora, quanto à maneira de evitar o ódio, o filósofo, mesmo ao
estar em sintonia
com Maquiavel, parece raciocinar mais
linearmente, retirando a sinuosidade dos conselhos deste: por
exemplo, quando diz que o prínCipe sempre deveria observar a
"justiça à moda deles" (dos súditos), o que Maquiavel admite para
o caso dos
"principados mistos" (cf. P, capo 3, 5), mas não quando o
prínCipe é inteiramente novo e é obrigado a refundar o Estado (cf. P,
capo 6). De qualquer forma, Descartes retém a idéia da reputação do
prínCipe perante os ditos, e é em tal medida que diz que vale até
mesmo o sacrifício da transparência de suas ações: assim, o soberano
deve recorrer a seus ministros e auxiliares, encarregando-os "das
condenações mais odiosas", reservando para si "suas ações mais sérias
ou aquelas que podem ser aprovadas por todos" (comparar com P,
capo 7, em que Maquiavel extrai esta lição das peripécias políticas de
César Bórgia).
Ainda que concordando com o conselho da preservação da
imagem, Descartes prepara aqui o terreno para uma nova crítica. Se a
imagem é tão essencial, o é também, por decorrência, ser "imutável e
inflexível" nas decisões. Pois uma atitude assim, por mais prejudicial
que venha a ser, nunca será maior que "a reputação de ser leviano e
instável" (o grifo é meu). Apesar de Maquiavel também observar isso
quando critica os "príncipes irresolutos" (cf. P, capo 21,
23),
Descartes
acredita que aqui uma contradição no pensamento do florentino;
ser "imutável e inflexível" nas decisões
se
chocaria com a máxima do
capítulo 15, que recomenda ao prínCipe "ser malvado quando a
ocasião o exigir" (pois, diz Maquiavel, "sendo o mundo muito
corrompido, é impossível que não nos arruinemos se quisermos ser
sempre homens de bem").
Ora,
para Descartes é evidente que, desde
que consideremos "homem de bem" aquele que
" faz tudo 0 que Ihe dita
a verdadeira razao"
-
e nao aquele "homem supersticioso e
simp
les
,
que
nao
ousa
ferir
batalha
no
dia
de
Sa
ba"
-
,
"0
melhor
e
esf
or
<;
ar-se
por
se-l
o
sempre
" .
Com
isso
,
salva
r-se-
ia
a
maxima
da
imutabi
lidade
nas
decisoes
.
Mas
nao
e
ap
enas
a
coerencia
das
max
imas que poderia
ser
sa
lva
.
0
fi
l6s
ofo
quer
tam
bem,
a
esta
altu
ra
,
res
gatar
uma
ideia que suger
ira
no
inicio
da car
ta
:
e
possivel conciliar 0 principio de " fazer 0 bern sempre",
com a necessidade de agir com eficacia, no sentido de 0 principe conservar
sua posi<;ao.
Tanto e assim que vai discordar enfaticamente de uma passagem
do capitulo 19: "0 principe pode se arruinar
tanto
pelas
boas
quanto
pelas
mas
a
<;
o
es"
ass
everando
,
ao
con
trario
,
que
0
principe
deveria praticar "boas
a<;oes" sempre, pois estas s6 tenderiam a conquistar mais e mais
0
amor
do po
vo
.
E
mesmo que
a
"b
oa
a
<;
ao
"
eventualmente
pre
ju
dicas
se
particula
res
,
nao
haveria
razoes
para crer que
ela
se
converteria em 6dio:
"s
ofre
-se
com paciencia os males que nao merecemos quando se cre que
0 principe, de quem
os
recebem
os,
e
de
algum
modo
obrigado
a
fa
ze-l
os
e
que
te
rn
desprazer
nisto
,
pe
lo fato de que se estima que e justo que ele
prefira a utilidade publica a dos particulares". Descartes, porem, tern plena
consciencia de que nem sempre os suditos concordam com 0 principe sobre
0 que e " fazer 0 bern", mesmo quando ambos tern em mira a "utilidade
publica". Isso fica claro quando considera 0 caso em que a opiniao do povo
sobre
a
justi
<;
a
nao
e
unitaria
-
por
exemplo
,
quando
os
"
c
ivis
"
te
rn
uma
opiniao
e
os
"soldados"
outra:
"Neste
caso,
e
razoavel
conceder
alguma
coisa
a
uns
e
outros
."
0
que
poe
em relevo
0
vies
pragmati
co
,
nao-
categ6r
ico
,
do pre
ceito
"
f
azer o
bern sempr
e"
, que
havia
lapidado
nas
linhas
anteri
ores
.
Atente-se que neste ponto Descartes resgata tambem a ideia inicial de
que nao
ha
nenhum
principio
obj
etivo
de
justi
<;
a
que
possa
definir
claram
ente,
por
exemplo
,
o
que
se
ria
0
"b
e
rn
com
um"
ou
a
"u
tili
dade
publica
" .
Apenas diz que
cada
povo
,
pais
ou
Es
tado
te
rn
0
seu
pr
inci
pio
,
que
e
to
do
particula
r,
ao
qual
0
principe
deve
estar
atento
para
dele
lan
<;
ar
mao em
seu
proveito
,
sem
que
desp
erte
0
6dio do povo
.
E
ja
que esta e a
forma que mais prescinde do uso da violencia, Descartes vai considera-la
a mais conveniente para 0 principe assegurar-se, ainda que tenha que gastar
boa parte de seu tempo inculcando nos suditos a justi<;a "a seu modo".
Pois
"pouco a pouco"
-
gra<;as a atividade educadora dos "escritos publicos" e da
"voz dos pregadores"
-
os suditos
sa
be
riam
conce
be-l
a
por
conta
pr
6pria
.
III
Todo esse movimento oscilante da carta, ate aqui pelo menos, bern
poderia indicar 0 esfor<;o de Descartes para conciliar elementos
fundamentais de sua moral
-
cujo objetivo e a felicidade "de cada urn"
-
com preceitos adequados a urn soberano que norteia suas a<;oes no sentido
da conserva<;ao do poder. Como se estivesse com urn pe " fora " e outro
"dentro" da quadra do jogo de politica que Maquiavel queria
seduzir
seu
lei
tor
a
jo
gar
:
de
"
f
or
a"
, diz que
ele
nao
po
de
ser
jo
gado
sem
0
principio
da justir;a (que e 0 que regeria a divisao entre principes "legitimos" e "
ilegitimos"),
mas
elude
0
problema
te6rico
,
subj
etivando
0
principio
-
a
justi
r;
a
e
aquilo
que
0
soberano
conside
ra justo
.
Por
"d
entro
"
da quadra
,
suspende
0
problema
da
inten
r;
ao
de
justi
r;
a
do
principe
para por
0
ac
ento
na
reputa
r;
ao
de
ser
ju
sto
.
E
fi
camos
sem
saber se a justir;a praticada
(isto e, a justir;a "a moda do povo") deveria ou nao coincidir com 0 que,
intimamente, 0 governante entende por justo.
Esse
esfo
r
r;
o
,
porem
,
sofre
uma
subita
interrup
r;
ao
no
final
da car
ta,
quando
Descartes
-
como que sentindo que 0 " divertimento" que estava
propiciando a princesa ja ia longe demais
-
passa a questionar a pr6pria
validade de se estabelecer
m
B.
x
imas
aos
soberano
s.
A
opor
tunidade
do
questionamen
to
surge exa
tamente
no momenta em que vai comentar 0
Prefacio-dedicat6ria de
0
Prin cipe a Lorenzo de Medicis (soberano de
Florenr;a).
Diz achar inconveniente a imagem que Maquiavel utiliza para
justificar seu trabalho (" assim como e preciso estar na planicie para ver
melhor a forma das montanhas, tambem e necessario ser de condir;ao privada
para conhecer bern 0 oficio de urn principe"). Seu argumento: "os principais
motivos das ar;6es dos principes sao muitas vezes circunsti'mcias tao
particulares que, a nao ser que se seja 0 pr6prio principe ou entao que se
tenha sido por longo tempo participante
de
seus
segred
os
,
nao
se
poderia
imag
ina-los
" .
Assim,
"m
ereceria
ser
objeto
de
zombaria se pensasse poder
ensinar alguma coisa a Vossa Alteza nesta materia".
Mais interessante ainda e que neste trecho final 0 fil6sofo acha
oportuno lembrar a princesa uma lir;ao anterior:
que nao devemos vincular
nossa felicidade pessoal as peripecias da fortuna
-
sinalizando que 0 assunto
guardava alguma dependencia com ela
-
e que 0 melhor para a princesa seria
"resolver praticar aquelas mB.ximas que ensinam que a felicidade de cada
urn depende de si mesmo". E para alguem como
ela
,
nascida em ber
r;
o
esplendido
,
mas
que agora amargava
os
dissa
bores
do
exilio
-
exa
tamente
por
fa
zer
parte
de
uma
familia
real
,
em que
os
problemas
pol
iti
cos
de
seu
pais
e
os
famili
ares
se
misturavam
tanto
-,
aquele pre
ceito
signi
ficava
,
talvez ate
com
mais intensidade do que para
os
que
sempre
viveram
no
infortunio
,
considerar
aquelas
raz6es " que servem para fazer com que
aprovemos as coisas que vemos acontecer".
Com
essas
obs
erva
r;
6es
,
seria
0
caso
de
nos
pe
rguntarm
os
se,
nesse
trecho
fi
nal
da carta, Descartes nao estaria concedendo uma especie de
liberar;ao das ja frageis amarras moralizantes com que, linhas acima, vinha
tentando restringir as ar;6es dos soberanos; e se nao seria tambem uma
admissao de que os ensinamentos sobre a felicida de pessoai nao guardam
relar;ao necessaria com os procedimentos pr6prios de urn chefe de Estado.
A carta seguinte, de novembro de 1646,
s6 vai acentuar esta
impr
essao
.
Mas
antes
de
falar
sobre
ela
,
vej
amos
como
a
princesa
responde
a
pr
im
eira
carta
(A
T
IV
,
p.
519-
24)
.
Diz
ela
que
,
quando
lera
0
P
ri
n
ci
pe,
havia
ex
perimentado
uma
aprovar;ao geral de seus preceitos, "nao por serem bons
em si, mas porque causam menos mal". E que achou-os melhor do que os
de que costumam se servir inumeros " ambiciosos imprudentes"
;
pois se
estes tendem a causar a ruina, aqueles pelo menos
"t
endem todos
ao
estabelecimento
" .
Lembra
,
alem
di
sso,
que
0
objeto
principal
do livro e
" 0 Estado mais dificil de governar, onde 0 principe e urn novo usurpador".
Neste caso, "as grandes violencias fazem menos mal que as pequenas".
Justamente por se tratar
de
uma
circunstEmcia
especi
fi
ca
,
a
princesa diz
concordar
com
a
criti
ca
de
seu
correspondente:
Maquiavel propusera como
gerais, maximas que seriam proprias
apenas
naquelas
circunstan
cias
.
Contudo
,
diz
ela
,
no mesmo
erro
incorreram
"
q
uase
todos os Santos Padres
e os antigos filosofos" (so que em relaC;ao a outras circuns- tancias).
Quanto
ao
problema
de
"
f
azer
0
bern
sempre
"
ou
nao
,
pareceu
a
pr
in
cesa
que Maquiavel se referia nao tanto ao homem supersticioso (talvez
the tenha parecido que
Descartes havia dito isso na carta),
mas ao que segue "esta
lei comum" que
reza
ser necessario
" fazer
a
cada
urn
como
se
quisesse
fazer
a
si",
principio
que
0
soberano
nao poderia seguir " quase nunca", pois
assim requer "a utilidade publica". Nao via
nisso
u
rn
pr
ob
lema
,
desde
que
se
defi
nisse
claramente "v
irt
ude" como
seg
uir
0
que a reta razao
determina, e nao restringi-la a certas "leis ou regras particulares ".
Def
ini
C;
ao
qu
e,
segundo
a
princes
a ,
nao
havia
sido
explicitada
por
ninguem
antes
de
Descar
tes
.
A princesa encontrara na resposta do amigo urn escritor bern menos
disposto a se alongar no assunto. Descartes se limitara a dizer que
Elisabeth "assinalou muito
bern seus erros
[os
de
Maquiavelj
e
os
meus
;
pois
e
verdade
que
seu
proposito
de
louvar Cesar Borgia 0 fez estabelecer
maximas gerais para justificar ac;oes particulares que
dif
icilmente
poderiam
ser
executadas
" .
E
registra que
havia
li
do
,
depo
is,
"s
eus
dis
curs
os
sobre
Tito
Livio
,
onde
nao
obser
vei
nada
de
ma
l". Registra
,
tam
bem,
sua
aprovac;ao ao que considerara 0 "principal preceito" do livro:
deve-se " extirpar inteiramente os inimigos, ou entao tornar-se seus amigos,
sem jamais seguir a via do meio".
Apesar da
aprov
a
c;
ao
,
Des
cartes
faz
0
seg
uinte
reparo
,
a
meu
ver
bastante significativo se levarmos em conta aquela subita mudanc;a de
curso que 0 final da outra carta havia empreendido:
diz que, mesmo sendo
0 preceito dos Discorsi "sem duvida 0 mais certo", "nao e 0 mais
generoso", quando "nao temos nenhum motivo
de temor" (0 grifo e meu).
Ora, apesar de toda a relutEmcia com
que Descartes parece
escrever essas
linhas, admitir que determinado comportamento politico e 0 "mais
certo"
e, ao mesmo tempo,
nao
necessariamente
qualificavel
como
"generoso",
parece
indicar a concessao de que a virtude cardeal de sua moral nao seria
presenc;a obrigatoria no campo de atividades de que trata Maquiavel.
A
palavra "g
eneroso"
e
usada
por
Desc
artes
com
u
rn
sen
tido
bern
determinado
.
Trata-se de uma especificac;ao de sua definic;ao geral de
virtude: "a verdadeira
generosida
de"
, diz
0
filosofo
nas
Passions
de
l
'
ame
consiste
,
por
u
rn lado
,
em conhecer
que nada pertence tanto a alguem
como
a
" livre disposic;ao
de
suas vontades",
e,
por
outro
,
0
sen
timento
de
uma
"
f
irme
e
con
stante
reso
lu
c;
ao
de
bern
usa-l
a"
,
isto
e,
de
"nunca carecer de
vontade para empreender e executar todas as coisas que julgue
serem
as
melhor
es
;
0
que
e
se
guir
pe
rfeita
mente
a
virt
ude"
(
P
A,
art
.
15
3)
.
A
generosid
ade,
em
conseq
uencia
,
"i
mpede que
se
despreze
os
outros
" ,
pois
nos
faz
pensar que aquele "conhecimento e sentimento de si proprios" nao se
restringe a nos mesm
os
,
mas
deve
estar
pres
ente
nos
demais home
ns
.
Assim
,
sem
pre tenderemos
a desc
ul
pa-l
os
por
suas
fal
tas
,
ja
que
estimaremos que
as
come
teram
,
nao
por
falta
de
vontade, mas por " falta
de conhecimento". E se a "boa vontade" pode existir em cada um dos outros
homens,
entao nunca nos consideraremos "muito inferiores aos que possuem
mais riquezas e honras", nem "muito superiores" aos que possuem menos
(PA
,
art
.
1
5
4)
. Nao
e
por
acaso
,
a
seu
ver,
que
"o
s
mais gener
osos"
tendem
a
ser
"o
s
mais humildes" (PA, art.
155)
e nada estimem mais do que fazer 0
bem aos outros e
"d
esprezar
seu
pr
oprio
inter
esse"
(PA
,
art
.
15
6)
.
Desde
que
se
tenha
0
conhecimento
de
certos
bens
fu
ndamenta
is
,
toda
enfase
da
moral
cartesiana
re
cai
,
po
rtan
to
,
no
esfor
c;
o
da
vont
ade
.
Al
ias
,
como
esta
fu
ndado metafisicamente 0 conhecimento de que a alma
"e mais nobre que 0 corpo", isso implica que 0 maior bem que possuimos
"e a livre disposiC;ao de nossa vontade" (PA,
art
.
14
4)
.
0
pr
oblema
moral
dec
isivo
e
entao
0
controle
que
a
vontade
deve
exercer sobre a paixao do
desejo, paixao que tende a embac;ar a fronteira entre 0 que esta ao
nosso
alcance
e
0
que
nao
esta
.
E
a
virtu
de
da
generosi
da
de,
transformada em
habi
to,
e um excelente "remedio" contra os "desregramentos" do desej0
10
Tentemos agora contrastar essa concepC;ao de "generosidade" com as
lic;oes que Descartes diz ter extraido da leitura dos Discarsi sapra la prima
deca di Tita Livia.
11
E simples perceber por que 0 filosofo registrou uma
dissonancia entre as maximas daquele livro e seu ideal do homem
"generoso". Particularmente elucidativa e a
pass
agem em que
Maq
uiavel
faz
uma
primeir
a
an81ise
dos
tipos
de
con
stitui
C;
ao
das republicas
(D
I,
cap.
1-6).
Ancorando-se
nos
exemplos
de
Esparta,
Veneza
e
Roma,
diz que
0
tipo
de
con
stitui
C;
ao
condiciona
e
e
condicionado pela
pol
itica
extema
:
Es
parta
teve
sua
const
itui
C;
ao
feita
de
uma
s6
vez
e
definiti
vamente
por
Li
curgo
e
excluia os "estrangeiros" da cidadania
;
Esparta e Veneza tinham
regimes "aristocra-
ticos
" ,
excluiam
a
plebe do poder
.
Ja
Roma
tinha
sua
con
stitui
C;
ao
fre
q
li
ent
emen
te
modificada, e era marcada por fortes tensoes
entre a nobreza e a plebe
;
esta ultima par
ticip
ava do
poder,
im
pos
a
nobreza
a
institui
C;
ao
do
tri
buno
e
0
direito
de
es
colher
os
consul
es
;
alem
di
sso
,
Roma
era
uma
cidade aberta
aos
"e
strangeiro
s"
(D
I,
cap
.
5-6).
Distintas caracteristicas constitucionais levaram a distintas politicas externas:
Es
parta
e
Ve
neza
limitar
am-se
a
politicas
pouco
agressiv
as,
de
conq
uistas
moderad
as
.
E
toda
vez
que
fi
zeram
guerras
de
maior
envergadura
se
arruinaram
,
ou porque
naa
reuniam
for
c;
a
suficiente
para
a
vito
ria
,
ou
po
rque
nao
conseg
uiam
preser
var
as
conquistas. Roma
,
ao
contrar
io,
desde
0
come
c;:
o
enveredou pelo
caminho
da
extrema
agre
ssi
vida
de,
lan
c;:
ando
-
se
a
constIU
c;:
ao
de
u
rn
imperio
.
Sua
Con
stitu
i
c;:
ao
era
incom-
pativel com
a modestia de pretensoes. Uma conseq1.iencia direta da abertura politica
a plebe e aos "estrangeiros", pois sua contrapartida tinha que ser a busca
constante
de
riq
uezas
de
outros
Es
tados
(D
I,
cap
.
6)
.
Maquiavel procura mostrar entao que 0 exemplo de Roma nao
permitia aquilo que tradicionalmente se admitia como "justa medida" no
trato com as riquezas (isto
e, 0 meio termo entre a falta e 0 excesso).
Nem
sempre 0 que vale para 0 cidadao
indiv
idualmente
-
a
modera
c;:
ao
para
preser
var
a
ordem da cidade
-
vale para
0
Es
tado
,
principalmente
se
e
uma
republ
ica
.
Para
esta
,
ao
contrario
,
a
caracteristica
"
m
ais
gloriosa",
e que
funciona como urn estimulo a vida civil republicana, e a ambi9ao, a
op
c;:
ao
pelo
ex
cesso
(D
I,
cap.
6).
Numa
outra
pas
sagem
,
retomando
0
que
havia
dito
em
0
P
ri
n
ci
pe,
Maq
uiavel
considera
as
atitu
des
que devem
ser
tomadas por
u
rn
"
n
ovo
soberano
" .
Es
te
,
a
seu
ver
,
nao
pode
relutar
u
rn
so
minuto
em adotar
u
rn
modo
de
agir
"barbaro
,
contrario
a
civil
iza
c;:
ao
,
anticristao
e
anti-
humanitario
" ,
quando
necessa
rio
.
Mas
nao
se
pense
que
o
maior
obstac
ulo
a
ado
c;:
ao
desse
compor
tamento
e
exterior
ao
protagoni
sta.
A
grande
batalha que todo "novo soberano" vai travar e contra uma tendencia
profundamente encravada em si proprio: os homens "pensam que e possivel
escolher urn caminho entre esses dois extremos, 0 que e muito perigoso.
Nao sabem ser completamente bons nem completamente maus". Mas a
quem "em vez do bern preferir 0 poder",
convem que opte por atitudes
extremas (D I, cap. 26; comparar com P, cap. 3). Por isso Roma "nunca
tomou meias-medidas": ou tornava-se inteiramente amiga de outros
povos
-
"c
o
ncedendo-l
hes
privilegio
s,
cidadan
ia,
completa
seg
uran
c;:
a"
-
,
ou
tornava-se
inteiramente
inimiga,
sendo
"suas
casas
devastadas"
e
"
dispersos
de
modo
a nao poder causar mais dano" (D II, cap.
23).
Justamente a critica a via del mezzo que Descartes havia registrado e,
surpreen- dentemen
te,
aceito
.
Digo
"s
ur
preenden
temen
te" porque todas
as
restr
i
c;:
oes
que
Des
cartes
havia
feito
a
0
P
ri
n
ci
pe,
na
primeira
car
ta
,
poder
iam
ser
feitas
aos
Discorsi,
na
seg
unda
.
Como
aca
bamos
de
ver,
tambem
nest
a
obra
0
fl
orentino
acons
elha
ao chefe
de
Estado
nao
ser
"homem
de
bern
sempre"
;
prega a
necessidade
de
esconder suas
verdadeiras
in
ten
c;:
oes
(cf.
D
I,
cap.
44)
e
0
usa
da
frau
de
(D
II
, cap.
13
) ;
e
da
exemplos de como ele pode se perder tanto par
"boas"
quanto por
"mas
ac;:oes. 12
E,
todavia, Descartes diz que nos Discorsi nao encontrara "nada
de mal".
Pare
ce-me
evidente
que para
0
fi
los
ofo
essas
considera
c;:
oes
contra
as
"m
eias
-
medidas
"
sao
bern pouco
compativeis
com
a
a
c;:
ao
generos
a,
modelo
de
sua
moral
.
Foi exa
tamente
isso
que
Des
cartes
quis
ass
inalar
na
car
ta
:
por mais
fl
exivel
que
fo
sse
sua
def
ini
c;:
ao
de
"g
enerosidade
" ,
nem
de
longe
ser
ia
pos
sivel
apontar
uma
convergencia entre
ela
e
0
que
Maquiavel
chama
de
"barbaro
,
anticristao
e
anti-humanitario
" .
Ao mesmo
tempo, Descartes diz que 0 preceito maquiaveliano e "sem duvida 0 mais
certo". Estaria 0 fil6sofo deliberadamente se contradizendo para evitar urn
conflito de opiniaes
com
El
isa
beth?
Talve
z.
Con
tudo
,
mesmo
tal
comportamento
s6
parece
inteligivel se projetado sobre 0 pano de fundo da
recorrente recusa de trazer a politica para
sua
re
fl
e
xao
filo
s6f
ica
.
En
fim
,
tudo
isso
me
fez
considerar
se
riamente
a
hi
p6tese
de
que
Des
cartes
estaria, na segunda carta, reconhecendo a incompatibilidade entre
os princfpios que regem a vida de urn "particular" e os que regem a de urn
homem de Estado
;
e que talvez
essa
seria
a
unica
questao em que
os
do
is
autores
converg
iriam
inteiramente
.
Como duas retas que se en con tram
num unico ponto para logo em seguida seguirem seus pr6prios caminhos.
E 0 caminho seguido por Descartes nessa segunda carta nao poderia
ser mais claro.
Exceto
essas
poucas
referencias
aos
DiSCOJsi
,
a
carta
retoma
a
atenQao
ao
bem- estar privado.
A princesa e entao advertida de que os livros
"desse Doutor dos Principes" s6 tenderiam a afasta-la do desfrute das "coisas
presentes" e the causar tristeza; pois Maquiavel, "nao representando senao
as dificuldades que eles [os
princ
ip
esj
te
rn pa
ra
se
man
ter
,
e
as
crueldades
e
pe
rfidias
que
lhes
aconselha,
faz
com
que
os
pa
rticulares
que
0
leiam
tenham
mais
motivos
para
invej
ar
sua
condiQao
,
do que para a lastimar".
Fica bern visivel aqui 0 entrelar;amento entre Medicina
-
"tecnica
que visa ao
corpo" - e Moral - tecnica " que s6 visa ao corpo enquanto associado
em mim a urn entendimento puro"
1 3
-, pois Descartes acreditava que as
doenr;as corporais de que a princesa frequentemente se queixava eram
derivadas de estados de alma nocivos.
Dai que procurasse modificar tais
estados na princesa induzindo-a a pensamentos
"alegres"
ou
ajudando -a a
pensar
0
"lado
born",
mesmo
de
situar;aes
tragicas
como a
mor
te
por
de
capita
r;
ao
de
seu
tio
,
0
rei Ch
arles
I
da
Inglaterra
:
sua
morte
,
esc
reve
a
Elisa
be
th
,
apesar
de
violenta
,
fora "m
ais
glorio
sa,
mais feliz
e
mais
doce"
do que
se
tivesse ocorrido "em seu leito", e ate menos dolorosa se tivesse sido
por uma "doenr;a que mata vagarosamente" (DA III,
p. 889).
Descartes tambem sabe que uma das causas do abatimento da
princesa, filha de ex-soberanos, e a Guerra dos Trinta Anos, que arruinara sua
familia. Nao me parece acidental que ela se identifique tanto com 0 ponto
de vista de Maquiavel: a Alemanha do
se
culo
XV
II
bern pod
eria
the sugerir
a
Italia
do
sec
ulo
XV
I
:
"s
em chefe
,
sem
ordem,
batida, espoliada, lacerada,
invadida" (como diz Maquiavel no ultimo capitulo de
0
P
rin
ci
pe), em suma
,
inteiramente
a
merce
de
potencias estrangeiras
(entre
el
as,
as
mesmas
Fran
r;
a
e
Es
panha
,
que compaem
muitas
das
cenas
pol
iticas
des
critas
pe
lo
florentino).
Assim
,
tendo
em
mente
0
contexte
que
ce
rcava
sua
"p
aciente
" ,
Des
ca
rt
es
percebera
a
necessidade
de
uma
inter
venQao
cirurgi
ca
bern
prec
i
sa
:
desv
incular
,
nos
pensamentos da princesa, a felicidade da patria
da felicidade pessoal.
IV
Procuramos
mos
trar
,
ate
aqui
,
que
a
fi
l
osof
ia
cartesiana
tolera
muito
bern
a
divergencia
entre
os
principios
da
vida
pr
ivada
e
os
da
vida
publ
ica
.
0
que
intro
duz
uma
seria
dificuldade
na
tese
de
que
0
fi
l6sof
o,
nas
cartas
a
prin
cesa
,
teria
pensado
a
pol
itica
inseparavelmente da
moral
,
1
4
pe
lo
menos
no sentido em que entende
essa
ultima
.
Ao
inves
de
se
buscar
tal
elo
,
a
mim
parece
mais promissor
pensar
por que Descartes nao reservou urn lugar especial para a politica, embora 0
tenha reservado para
a
moral
.
Nao
digo
que
ele
tenha
se
recusado
a
agir
po
liti
camente
,
0
que
e
desm
entido
por
sua
pr
6pria
vida
.
Mas
pense
que
M
fo
rtes
raz6es
para
sup
r
que
ele
nao
concedeu
dig
nidade
f
il
os6
fi
ca
a
po
li
tica
.
E
como
essa
tendencia
nao
e
de
to
do inusitada na hist6ria da
filosofia (embora rara ou pouco conhecida nos autores hoje
tidos
como
"classic
os
"),
vale
a
pena
pesq
uisar
suas
fon
tes
.
1
5
Em rela
<;
ao
a
Des
cart
es
,
espec
if
icamen
te
,
uma
das
varias maneiras
de
abordar o problema seria se perguntar por que sua filosofia abriu a
possibilidade de pensar a fe
licidade
pess
oal
(0
tema
da
mo
ral)
mas
fech
ou-
se
para
0
tema
da
fel
icidade
publ
ica
.
Creio que uma resposta possivel esta
no fato de Descartes ter vislumbrado 0 fio que conduzia a moral a sua
metafisica, mas nao 0 encontrou nem para a etica (isto e, a
investiga<;ao sobre
as "leis e os costumes dos povos "),
nem
para
a politica
em
sentido
estrito (a
investigayao sobre a pratica dos agentes politicos).
Urn dos textos mais interessantes para investigarmos isso, como nao
poderia deixar de ser, e o DiscOUTS de la methode.
Em consonancia com 0
tom autobiogrMico
da
obra
,
0
fil6sofo diz
,
na segunda pa
rt
e
(DA
I,
p.
568-
78
)
, que
0
intento
de
suas
reflex6es nunca fora "alem de procurar reformar
meus pr6prios pensamentos, e
construir
u
rn terreno que
e
to
do meu".
Cheio
de
cuidad
os
,
adverte que "m
esmo
tendo
minha obra me agradado
bastante", nem por isso queria "aconselhar alguem a imita-lo". E e
enfatico em rejeitar totalmente "esses temperamentos perturbadores e
nquietos que, nao sendo chamados nem pelo nascimento nem pela fortuna,
ao manejo
dos
negocios
public
os,
nao
de
ix
am
de
neles
praticar
sem
pre
,
em ideia
,
alguma
nova reforma". Uma posir;:ao tao contraria a ar;:ao
reformadora (no campo politico e dos
"c
ostumes
")
nao
impl
ica,
naturalmente
,
que
quem
adere
a
ela
de
ix
e
de
es
crever
sobre
o
assunto
.
Mas
,
na
se
xta
parte
do
livro
(DA
I,
p.
632-
50)
,
trata
de
dissipar
essa
duvida
:
enquanto considerou seu dever publicar os resultados a que chegara no
campo das
" ciencias
especulativas"
(especialmente
"nor;:oes
gerais
de
Fisica")
"Pois
elas
me
fizeram ver que e possivel chegar a conhecimentos
que sejam muito uteis a vida"
;
teve 0 cuidado de nada escrever sobre os "
costumes", ja que "cada qual segue de tal forma 0 seu proprio parecer que
se poderia encontrar tantos reformadores quantas
caber;:as,
se fosse permitido
a
outros,
alem
dos
que
Deus
estabeleceu
como
soberanos dos
pov
os
, ou
entao
aos
que
concedeu
suficiente
gra
r;:
a
e
zelo
para
serem
profet
as
,
tentar
mUda-los em algo".
Ve-se quanto esses pensamentos (escritos em 1637) ainda estao
presentes em
Des
cartes
quando
da
primeira
carta
sobre
Maquiavel
.
Mas
M
algo
espec
ialmente
comum nos dois escritos: embora a carta admita
explicitamente "principes novos" (0 que sig
nif
ica
adm
itir
que
u
rn
aventureiro
,
u
rn pa
rticul
ar,
possa
eventualmente
al
r;:
a
r-se
ao poder),
possibilidade que 0 texto do Discours parece rejeitar, ambos expoem a
necessidade
de
uma
instancia
que governe
a
sociedade
e
seja
distinta
dela
,
de
uma
pessoa ou grupo de pessoas que dite a justir;:a aos outros homens sem
qualquer contesta
r;:
ao
.
Mas
Des
car
t
es
,
em
vez
de
usar
essa
ideia como
"s
emente"
de
uma
filosofia
politica (como acontece em Hobbes), vai usa-la estritamente como
"semente" de sua
moral
.
Pod
e-se
ate
considera-la
como
u
rn
dos
"
f
undament
os"
desta
,
e
que
vai
colocar
ao
lade
de
tres outros
"
f
unda
mento
s"
que ap
res
enta
a
princesa
Elisabe
th
,
numa
carta
de 1645:
somos todos "uma parte deste Estado,
desta sociedade, desta familia [el nao
saberiamos
subsi
stir
so
zinh
os"
(DA
III
,
p.
607)
.
1
6
Se
e
assim
,
uma
instancia
de
gover
no
se impoe para impedir que 0 mau usa do livre-arbitrio de alguns
prejudique os que
0
usam bern e acabe pondo em perigo a propria sociedade.
Mais do que isso:
a primeira
max
ima
da
"
m
oral
provis
oria
"
do
Discours
:
"O
bedecer
as
leis
e
aos
costumes
de
meu pais", tacitamente assume a
impossibilidade de considerar que as "leis e costumes"
de
u
rn
determinado
pais
sejam
superiores
as
de
qualquer
outro
,
aceitando
assim
sua
irredutivel
diversidade (cf.
DA
I, p. 583). Nao
M
urn fundamento universalmente valida
para
a
justi
r;:
a
;
alias
,
bern
de
acordo
com
0
que
es
crevera na
carta
sobre
Maquiavel
.
Nem
M
qualquer tentativa de demonstrar a superioridade de
regimes absolutos. Ha sim urn esforr;:o de identificar urn seguro "
fundamento " da maxima moral (e apenas moral) que estabelece a
necessidade de se obedecer as leis e ao governo do pais em
que se esta
vivendo,
seja
ele
monarquista ou
republicano
;
esteja-se
na Franc;a,
Holanda
ou Turquia, nao importa:
"meu pais" e bern diferente de " minha patria".
Outro ponto significativo da "moral provis6ria" do Discours e 0 que
determina aceitar as opinioes "mais moderadas", ou seja, as que estejam mais
equidistantes dos
"e
xtre
mo
s",
conforme dei
xa
claro
0
texto
:
tais
opinio
es
,
alem
de
serem
mais
prati
ca- veis
,
sao
"v
erossi
milmente
as
melh
ores
,
pois
todo
ex
cesso
costuma
ser
ma
u",
e
provocam erros menores do que "tendo
escolhido urn dos extremos, fosse 0 outro 0 que deveria ter seguido".
0
que contrasta nitidamente com sua aprovac; ao ao preceito
maquiaveliano
con
tra
a
vi
a
del
me
zzo,
na
carta
em
que
se
refere
aos
Discorsi
.
Pore
m,
nao
se
trata
de
uma
mudan
c;
a
de
posi
C;
ao
sobre
as
max
imas
de
sua
moral,
e
sim
de
uma
mudan
c;
a
de
ob
jeto
de
reflex
ao
.
No
Prefacio
aos
P
ri
n
cip
es
de
1a
philosophie,
dedicado
a
prin
cesa
Elisa
be
th
,
0
sentido de "moral provis6ria" se amplia urn pouco
;
perde 0
trac;o marcadamente pessoal em que e apresentada no Discours e passa a ser
proposta a todo homem que que
ira
tril
har,
como
ele
,
0
caminho
da
sagesse,
0
da
aquisi
c;
ao
de
"urn per
feito
conhecimento de todas as coisas que 0
homem pode saber".
Mas a ideia de
prov
isoriedade
da
moral
se
mantem
,
como pode
ser
constatado no
momenta
em
que
lan
c;
a
mao
da
famo
sa
imagem
da
"a
rvore da
fil
osof
ia".
E
nesta
passa
gem
,
alias
,
qu
e
somos
mais
inclin
ados
a
pensar
a
filosofia
cartesiana como
u
rn sistema
,
como
u
rn
conj
unto
de
dis
ciplinas
que
se
relacionam umas
as
outras ded
uti
vamen
te
.
Que
disciplinas
a
integram?
Primeiro
,
a
Metafisica
(
=
ra
izes)
,
isto
e,
os
"pr
incipios
do
conhecimento";
segundo,
a
Fisica
(=tronco),
ou
os
"principios
das
coisas
materiais";
por
ult
imo
,
"t
odas
as
outras cienc
ias
"
(
=
ram
os)
, red
utiveis
a
"t
res
principais
" :
a
Medici
na,
a
Mecanica
e
a
Moral
.
0
carater
pr
ovis6rio
de
suas
ma
xi
mas
morais
e
sugerido aqui, quando
Descartes nos poe na expectativa de uma "perfeita Moral" ainda por
vir
:
"e
ntendo
que
a
mais
alta
e
pe
rfeita
Moral,
pressupondo
urn
inteiro
conhecimento
das
outras ciencias
,
e
o
ultimo
de
grau
da
sabedor
ia
(sag
esse)"
(DA
III
,
p. 780).
A
parte
0
problema
da
prov
isoriedade
,
do
qual
falarei em
seg
ui
da,
sa
lta
a
vista
que Descartes nao mencione especificamente a Politica ou 0
Direito. 0 que confirma,
no
minimo
,
seu
desinteres
se
por
elas
e
sua
inten
C;
ao
de
nao
estender
suas
investiga-
90es
para
0 mundo
dos
soberanos
nem
das
"leis
e
costumes"
dos
povos.
E
sugere
que
a
falta
de
u
rn
conhecimento
espe
cifico
delas
nao
compromete
a
aquisi
C;
ao
da
sagesse.
Tambem
vale mencionar
0
fato
de
a
Medicina
e
a
Me
canica
,
duas
dis
ciplinas
tecnic
as,
estarem
posicionadas
no mesmo
lugar
da
Moral
,
se
considerarmos
a
imagem
da
arvore.
Afirm
ei
,
anteriorme
nte
,
que
a
moral
cartesiana
tern
por objeto
a
"
f
elicidade
de
cada urn".
Esta e definida pelo "contentamento do espirito"
obtido com a pratica da vertu, 0 que simplesmente quer dizer "usar 0
entendimento 0 melhor possivel".
Quando Descartes diz "0 melhor
possivel", esta sinalizando que a uniao corpo/alma
im
possi
bilita
a
intui
C;
ao
das
id
eias
claras
e
distint
as
.
E
qu
e,
por
tan
to
,
as
"
i
deias
conf
u
sas" integram 0 campo da aC;ao humana substancialmente e nao apenas
acidentalmen
te, como acontece no campo especulativo (em que 0 uso
precise do metoda pode disciplinar a vontade de inclinar-se apenas ao que
0 entendimento determina como
claro
e
distint
o)
.
Or
a,
no
caso
da
moral
,
e
preciso
dis
ciplinar
a
vontade
pa
ra
a
a9ao
apesar das ideias confusas.
0
entendimento nao tern como conhecer de modo absolu-
tamente certo
;
so M. conhecimento verossimil. Com isso 0 problema passa
a ser, nao
a
au
sen
cia
de
ciencia
,
mas
a
irresolu9ao
1
7
-
por
isso,
no
Discours,
e
parte
sistema
tica
de sua filosofia a ad09ao de uma "moral
provisoria" enquanto a duvida perdure.
E certo que no Discours e no Prefacio dos Principes, Descartes coloca 0
leitor na expectativa de uma moral "mais perfeita". A meu ver, isso nao
implica a expectativa
de
uma
mora
l
def
initi
va,
no
sen
tido
de
uma
ciencia
apodit
ica
,
pois que
es
taria
em expressa contradi9ao com a metafisica
cartesiana. A moral jamais sera uma ciencia
-
no
se
ntido
es
trito
de
conhec
imento
absolutamente
ce
rto
,
como
0
sao
a
Meta
fi
sic
a
e
a
Fisica
-
pois
a
propria
nat
ureza
do objeto
im
pede
essa
pos
sibil
idade. Neste sentido
,
a
moral
e
de
finitiva
mente
pr
ov
isor
ia.
Ela
pode,
sim,
ser
ap
er
f
ei90ada
,
ja
que
u
rn
conhecimento verossimil pode ser substituido por outro mais
verossimil (dai que a moral do Discours e do Pref,kio dos Prin cipes seja
"provisoria").
18
Embora a a9ao nao receba 0 selo de garantia das ideias claras e distintas,
a moral (enquanto uma tecnica) tern " fundamentos " certos. Ela e urn ramo
da arvore, suas raizes sao metafisicas
-
garantia da existencia de urn Deus,
que a alma e mais nobre que 0 corpo e a impossibilidade humana de se
conhecer as causas finais da cria9ao
divi
na.
0
conhecimen
to
dos
"
f
undamentos
"
abre
0
caminho
da
felic
idade
.
Pois
,
apontando que os bens
da alma sao mais importantes que os do corpo (mesmo estes sao gozados
na alma e nao no corpo em si), concluimos que 0 libre arbitre e 0 maior
bern que possuimos
;
que seu born usa exige apenas bon sens, do qual todos
somos dotados
;
que, mesmo que 0 entendimento erre
-
0 que e sempre
possivel no campo da a9ao -, ainda assim 0 espirito pode se contentar pelo
esfor90 de ter agido 0 melhor
possi
vel
.
E,
apontando que ha
u
rn
Deus
cuj
os
decretos
sao
"i
nf
alive
is"
, con
cluimos
que nenhum infortunio ou desastre
pode ser tao grande que supere 0 contentamento de ver realizada a vontade
de Deus (ct. DA III,
p. 599- 609).
Mesmo que nessa passagem
-
como em muitas outras
-
0 filosofo
empregue
0
termo fortuna, entende-a como uma " falsa crenr;a", baseada
num erro do entendi-
mento
.
A
fort
una
Des
cartes
op6e
0
termo
providen
cia
di
vi
na,
conf
orme
aponta
nas
Passions:
a providencia e "como uma
fatalidade ou uma necessidade imutavel que cumpre opor a fortuna, para
destrui-la como uma quimera que provem apenas do erro de nosso
entendimento", pois a cren9a na fortuna advem do fato "de nao conhecermos
todas
as
causas
que
contribuem para
cada
efeito"
(PA,
art.
145).
Quem
esta
preso a
essa cren9a, esta sob 0 "imperio da fortuna", sempre desejara coisas
que nao dependem de si, ou melhor, nao estabelece aquela distin9ao entre
0 que depende de
mim
e
0 que nao
depen
de,
logo
,
os
"d
esejos
vaos
" .
En
tretan
to
,
aquilo
qu
e
depende
de meu livre-arbitrio eu devo fazer, pois
minha aao livre faz parte da concatenaao
universal
das
coisas,
e
mais
uma
causa
entre
outras:
se
Deus
nos
concedeu
0 poder
de escolher, entao
escolher livremente e urn dever. Dai Descartes nao opor providencia
a
liv
re-ar
bitr
io,
mas
insista em
op6-la
a
fort
una
.
Se no Pref,kio dos Prin cipes a "moral provis6ria" ainda parece destinada
a todo homem que queira adquirir a sagesse - e esta tern ali uma tendencia
a ser identificada com "conhecimento cientifico" -, nas Passions e
particularmente na correspondencia
com
El
isa
beth
e
a
rainha
Cristina da
Suecia
,
emer
ge
0
pen
sam
ento
de
que
a
moral
e
o meio para a obtenao
da felicidade de todos os homens enquanto individuos: " nao
hci
quem
nao
deseje
tornar-se
feliz",
diz
ele
;
0 problema
e
que
"muitos
nao
conhecem o
meio" (DA m, p. 600).
19
E 0 meio e 0 conhecimento de
algumas
poucas
verdades
acessiveis a qualquer homem de bon sens, mesmo aquele que nao queira
trilhar 0 arduo caminho do conhecimento cientifico.
Fora esses poucos
conhecimentos
-
que permitem traar a fronteira entre 0 que depende de
mim e 0 que nao depende -, todo o resto do trabalho e da vontade, que faz
com que desenvolvamos hcibitos adequados e uma tecnica para monitorar
os desejos (0 que Descartes diz, nas Passions, ser a
"p
rincipal
utilid
ade
da
moral"
-
d.
PA
,
art
.
14
4)
.
A
sagesse
ganha
,
por
tan
to
,
u
rn sentido
,
digamos
assim
,
mais laico.
Compreen
de-se
agora por que
0
fil6sofo
pe
rfila
Med
ici
na,
Mecanica
e
Moral
,
todas elas tecnicas enraizadas na Metafisica e na Fisica
;
e por que a
Politica nao se enquadra na
imagem
da arvo
re
.
E verdade que a Medicina e a Mecanica nao enfrentam 0 problema da
uniao substancial
,
pois
seus
obj
etos
sao
corpos
puros
;
enq
uanto
a
Moral
diz
resp
eito
ao
corpo
apenas
unido
a
alma
.
E,
por
tanto
,
0
entendimen
to
pure
te
rn
maior
possi
bil
idade de interferencia sobre os primeiros, ja que
voltamos a encontrar pelo menos uma ideia clara e distinta (a da extensao).
Podemos conhecer perfeitamente as causas do movimento dos corpos
inanimados e do funcionamento do corpo humane (considerado agora
estritamente como animal-machine) e, por experiencias adequadas,
produzir
deste
conhecimento
causal
os
efeitos que
desej
arm
os
.
Neste
sen
tido
,
sao
tecnicas que
pr
oc
uram
diminuir
a
ze
ro
a
dependencia
com
0
fortuito
e
0
casual
.
E
nos encaminham,
com
seguran
a,
para a obten
ao
de
meios
que
"permitiriam
gozar,
sem
qualqu
er
custo
,
os
frutos
da terra
e
todas
as
comodidades que
nela
se
acham
(DA
I,
p.
634)
. Contudo, guardada
essa
dif
eren
a
de
nivel
epistemico
,
Medicina
,
Me
canica
e
Moral
VaG
se
encon
trar
no plano
antropo16g
ico
,
quando
entra
em
cena
a
ideia da
felicidade enquanto "gozo do espirito". Pois nao e justamente esse 0 objeto
de sua
Moral
,
mesmo que no
limite
-
isto
e,
quando
nao
for
possi
vel
gozar
senao
0
uso
do livre- arbitrio
-
Descartes tenha que compatibilizar
felicidade com resignaao ou
conformismo? Por mais paradoxal que
isso
pare
a,
0 vies est6ico
da
moral
cartesiana
acaba
cru
zando
com
0
ideal
epicurista
da
a
ao
tecnica
.
Uma leitura atenta da correspondencia com a princesa sobre a moral
vai
constat
ar,
por
exemplo
,
uma
preocupa9ao
basica
com
0
gozo
resu
ltante
da
posse
do Bern Supremo. Vemo-Io entao distinguir Bern
Soberano e beatitude: "a beatitude nao
eo soberano bern
;
mas 0 pressupoe,
e ela e 0 contentamento ou satisfa9ao do espirito
que vern do
fato
de
0
pos
suirmos
" .
Ora,
quanto
ao
tim
de
nossas
a90es
,
diz
,
"pode-se entender
urn e outro",
ja que,
embora
0 Bern
Soberano
seja
0
"escopo
de todas as
nossas a90es", 0 contentamento do espirito e " 0 atrativo que nos incita
a procura-Io"
(DA
III
,
p.
59
2-8).
Sim
,
a
pratica
da
vir
tude
e
impres
cindivel
a
feli
ci
dade
;
mas
po
rque
possibilita a maximiza9ao do "contentamento"
nesta vida.20
Eis
como
Des
cartes
consegue
en
contrar
,
no campo da
a9ao
,
da
mistura
insepa-
ravel da alma e do corpo, urn lugar (por mais estreito que
seja) para 0 usa seguro da razao
-
urn usa que nao fruste e, ao mesmo tempo,
dependa de cada um
;
que
pos
sibili
te,
enf
im
,
u
rn ref
ugio
tranquilo
,
mesmo na mais
terrivel
tempestade
dos
negocios humanos.
Eis tambem por que Descartes, apesar de nao considerar sua moral uma
ciencia no sentido estrito, p6de integra-Ia a sua
fil
osofia.
Quanto a etica, parece-me que a principal dificuldade que encontra para
dar-Ihe status filosofico e a mesma que 0 leva a estipular uma das maximas
da "moral provisoria" do Discours, isto e, a constata9ao da enorme variedade
de "leis e costumes"
ex
istentes no
mundo
,
sem
que
se
possa
apontar
u
rn
sistema
privilegiado
ou
u
rn
fu
ndamento
comum
:
"t
odos
esses
que
te
rn
se
ntimen
tos
muito
contrarios
aos
nossos
,
nem
por
isso
sao
barbaros ou
se
lvag
ens
,
mas
muitos
usam da
razao
,
tanto
ou mais que nos" (DA
I,
p.
583). Dai 0 filosofo poder ter encontrado urn " fundamento " para a
necessidade de se viver em sociedade e sob governos e, ao mesmo tempo,
ter deixado na completa indetermina9ao qual ou quais devem ser os tipos de
governo e quais devem ser os seus principios legais. Esta seria uma tarefa
que Deus abandonara aos
habitan
tes
dos
diferentes
pai
ses
,
e
que nen
hum
filosofo pod
eria
avocar para
si
, no sentido de universaliza-Ia, sem que
acabasse vitirna de seus proprios preconceitos.
Ja
a
a9ao
politica
(em
sen
tido
est
rit
o),
ao
contrario
da
moral
,
nos
atira
ao
"i
mperio
da
fortuna
" .
Mesmo
que tenhamos
certeza
da
concatena9ao
universal
das
coisas
,
aventurar-se nela implica uma vincula9ao a a9ao dos
outros e a acontecimentos
raramente dependentes de nosso controle:
em rela9ao
as maximas dessa materia, diz
Descartes numa carta a princesa (maio de 1646),
vale melhor se regrar sobre a experiencia que sobre a razao,
pois que raramenLe pode-se tratar com pessoas
perfeitamente razoaveis, assim como Lodos os homens
deveriam ser, a ri m de que
se possa julgar sobre 0 que farao,
apenas pela considerac;:ao do que deveriam fazer
;
e frequente-
mente os melhores conselhos nao sao os mais felizes. Por
isso se e constrangido a arriscar
(hasarder) e se colocar ao poder da fortu na. (DA
Ill,
p.
653-4)
Em sintese, a ac;ao politica dilui a fronteira entre 0 que depende e 0 que
nao
depende
de
mim
.
Or
a,
obst
ruir
esse
conhecimento
e
obstr
uir
a
pr6pria
a
c;
ao
ditada
pela vraie raison.
Aqui esta 0 ponto:
Descartes faz urn
recorte no interior do campo
pratico
que
lhe
pe
rmite
definir
uma
racionalidade
(d
iferen
te
,
e
claro
,
da racionalidade no dominio
especulativo), mesmo quando 0 entendimento nao tern diante de si senao
"ideias confusas":
eo recorte entre a ac;ao
voltada para a
" felicidade"
e
a
ac;ao
entregue
ao "imperio da fortuna".
A "verdadeira razao" dita que cada
qual deve buscar sua pr6pria felicidade. E a felicidade depende do
conhecimento dos fins, ao qual estao
assoc
iados
a
distin
c;
ao
entre
0
que
depende
e
0
que
nao
depende
de
mim
,
0
controle
da vontade sobre 0 desejo, 0 " contentamento" obtido pelo exercicio da
virtude etc. A ac;ao entregue ao "imperio da fortuna" pode ate ser "razoavel"
ou "eficaz" no sentido de adequar convenientemente meios a urn fim
qualquer. Mas nao e isso que Descartes
te
rn em
vista
.
Po
is
a
a
c;
ao
moral
leva
a
fel
icid
ade
,
mesmo
quando
nao
e
eficaz
,
assim
como
a
a
c;
ao
do
prinCipe
pode
ter
ef
icacia
,
sem
que
isso
signifique
dar
u
rn
s6
passe
rumo
ao Bern Supremo.
Nao
e
casual
,
por
tanto
,
que
0
fil
6sofo
procure
mo
strar
a
princesa que
a
condi
c;
ao
privada a que ela se viu reduzida com a Guerra dos Trinta Anos,
ao contrario de
dificul
tar
,
facilito
u-I
he
en
contrar
0
caminho
da "v
ida
fel
iz"
:
Nao
poderia
ir
a
ur
n
tempo
mais vant
aj
oso
para
me fa
zer
bern
reconhecer
a
fe
licidade
da vida tranqiiila e retirada,
e a riqueza das mais
mediocres fortunas. Se Vossa Alteza compara sua condi
c;:
ao
com
a
das
rainhas
e
outras
prin
cesas da
Europa,
encontra
ni.
a
mesma
diferen
c;:
a
que
entre
esses que estao no porto, onde repousam, e esses que estao em
pleno mar, agitados pelos ventos de uma tempestade. (DA III, p. 867-8)
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ABSTRACT: In this paper two Descartes' letters on Machia velli
are examined. Firstly, [allowing the philosopher's own
suggestions in the letters, Descartes
'
and Machiavelli's thoughts
are contrasted, from which a distinction between Morals and
Politics (in Descartes) arises. Next, the Cartesian Morals is
explained in order to point out the roots of this distinction.
KEYlNORDS: Descartes; Machia velli; Morals; virtue; Politics;
fortune.
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