o
SER
E
0
NA
DA
DE
SA
RTRE
:
UMA "DESCOBERTA"
FILOSOFICA
DOS "TEMPOS MODERNOS"
Cr
istina
Diniz
MENDONÇ
A
1
RESUMO:
Este
artigo
indica
que
0
"Ensaio
de
ontologia
fenomeno16gica
"
de
Sartre,
0
ser
e
0
nada,
poderia
ser
lido
como
uma
recria
C;:
80
filos6fica de uma
ex
periencia
hist6rica crucial
.
PALA
VRAS
-C
HA
VE
: Ontologia
fen
omeno16gica
;
filosofia da
a
C;:
80
;
liberdad
e;
herois
mo;
resist
encia.
Les Veritf1S dites "etemelles" apparaissent dans et par
J'Histoire. Sartre, Camers pour une moraie
Decorridos cinqiienta anos do lanr;amento de
0
ser e 0 nada, ressoa
ainda nos diferentes tipos de balanr;o da obra 0 eco do mesmo refrao entoado
desde os comentadores da primeira hora:
trata-se de urn livro de "pura
reflexao filos6fica", com
por
tas
e
janelas
fe
chadas
para
0
mundo
,
es
crito
,
no
entanto
,
"c
uriosamen
te
" ,
numa
epoca
de
virada
hist6rica
radical
,
durante
a
Segunda
Guerra
Mundial
.
Uma
fi
losofia
de
sobrev
oo,
sem
os
pes
no chao
e
sem
territ6rio
defi
nido
,
semeando
pensam
entos
de
"pura
ausencia"
hist6rica?
Castelos
de
ideias
que,
sem
raizes
sociais,
se
formam
e desmancham
no
ar?
Tal can
ter,
a primeira vista paradoxal de uma obra de
" filosofia
pura" que se distancia da "realidade" num momenta em que,
como se Ie nos Diarios de Guerra do pr6prio Sartre, "a realidade hist6rica
impunha sua presen<;a" aos
contemporEmeos
(1983,
p.
227),
torna-se
tanto
mais
surpreendente
quando
se
pensa que a primeira
elabora<;ao
de
0 seT eo
nada
(SN)
se
encontra justamente
nesses Diarios
de Guerra (cujo prop6sito
deliberado era cap tar a experiencia hist6rica em curso) e
qu
e,
alem
disso
,
1
Departamento de Filosofia
-
Faculdade de Filosofia e Ciencias
-
UNESP
-
17525-900
-
Marilia
-
SP.
intelectuais
que pa
rticipavam
do
movimento
po
litico
de
Resistencia
contra 0 nazismo declaram que 0 livro "tornou nosso universo
transparente". Urn "ensaio de ontologia fenomeno16gica" que torna visivel 0
conteudo de uma experiencia politica? Com efei
to,
u
rn n6
a
ser
desa
tado
-
0
que
implicaria
uma
genealogia
da
obra
,
urn estudo de sua forma
particular e de suas relayoes com a totalidade das manifes-
tayoes
do
mom
enta
hist6rico
em que
ela
emerge
.
Tarefa
de
f6lego
e
paciencia
,
ve-
s
e
logo
,
da
qual
se
quer
os
pr
eambulos poderiam
ser
exp
ostos
no
ambito
acanhado
deste
artigo
.
Tentemos
ao
menos
nos
aproximar
u
rn pouco
desse
classico
da
filosofia
contemporanea (ainda que sem poder transpor 0 limiar
necessario para evitar esque-
mati
zayoes
bruta
is)
,
contentan
do-nos
apenas
em
puxar
alguns
dos
fios que entrela- yam
sua
trama
ontol6gica
.
Ao lei tor atento de SN certamente nao passara despercebida a
arquitetura pec
uliar
da obra
,
assen
tada
em do
is
pIanos
:
0
das
"d
emonstray
oes"
ontol6g
icas
,
isto
e, da descriyao filos6fica na acepyao
tradicional (e e nesse plano que os comentadores
se detem)
;
e 0 plano da
exemplificayao
-
aqui,
as
ilustrayoes,
os
exemplos,
sao
construidos
com
materia
hist6rica
local
,
sao
figuras
com
conte
li
do
hist6rico
definido
(c
omo na
Fen
omenoio
gi
a
do
espi
ri
to
,
dig
a-se
de
pass
agem)
.
E
assim
que
ao
longo
da
leitura de SN vemos passar
sob
nossos olhos,
como
se fossem
meros exemplos
casuais
(nao-
const
itut
iv
os,
por
tanto
,
do
"
ensaio
de
ontologia
fenomenol6gica
")
as
figuras
de
"prisioneiros de guerra " (a
guerra e justamente 0 exemplo privilegiado do livro), de
lideres
po
liti
cos
da
epoca
,
do
oc
upante
al
emao,
do
ju
deu
pers
egui
do,
do
Resisten
te
,
de
uma
cidade em
estado
de
exce
yao
,
sob
toque
de
rec
olh
er.
Simples
registro
da
hora hist6rica, exterior ao fio ontol6gico que esta sendo urdido? Ocorre
que em SN temos urn movimento ininterrupto de passagem de urn plano a
outro (e nesse movim en to de passagem esta 0 lado mais vivo e interessante
da obra),
de tal maneira que a pr6pria reflexao
fil
os
6fi
ca
e
tecida
com
materiais
hist6r
icos
da
epoca
.
Toda
via
0
problema permanece em aberto.
Concedamos que SN, pretendendo apenas descrever essencias
fil
os
6ficas
(pois
nao
e
outro
0
seu
prop6si
to)
,
0
fa
ya
com
figuras
do
mundo
real
.
Mas
em que medida esse registro da hora hist6rica, movendo-se assim num nivel
tao conjunturalmente rente aos fatos,
se articula internamente com as
"demonstrayoes"
ontol6gicas?
Em
que
termos
se
daria
a
reapropriayao
filos6fica
desses
exemplos?
Esse o
ponto
delicado
.
No interior do movimento de vai-e-vem entre os dois pIanos de SN (ao
longo do
qual
se
misturam
materiais
heter6
clito
s:
Husser
l
,
Heidegg
er,
Hegel
,
sem
falar
de
Malraux
,
dos
clas
sicos
do modernismo americana
e
de
Kaf
ka
,
tudo
isso
amalgamado a assuntos da vida cotidiana) se da urn
outro movimento: as figuras que compoem a trama do livro vaG sendo
transformadas (como numa intriga teatral
-
dramatica, no caso) e tal
transformayao vai permitindo a passagem de urn momenta de pura
ne
gativ
idade
,
0
momen
ta
ne
gativo
da alie
naya
o
(q
ue
res
ulta
do
olhar
do
outro
e
da
pr6pria estrutura da consciencia que tern seu ser fora de si
mesma) ao sentido "positivo" da alienayao, outro aspecto da "descoberta"
da figura de uma liberdade que e libertayao.
Nesse duplo sentido da
alienayao esta 0 nervo por onde passam todos os problemas de SN.
o momento negativo da alienayao des creve uma subjetividade
impotente diante da forya das coisas - uma consciencia cujo ser foi jogado
no mundo das coisas: "je suis dehors",
"se metamorphoser en chose"
(1943,
p. 468, 672).
0
interessante e que
nesse
niv
el,
ao
des
crever
esse
estado
de
liq
uidayao do
in
div
iduo
,
as
anal
ises
de
SN,
correndo no sentido do
espirito do tempo, chegam a reproduzir 0 tom (e ate mesmo o
vocabulario) dos relatos de epoca. Naquela conjuntura sombria da guerra e
da
ocup
ayao
da Franya
,
momenta
em
qu
e,
como
dira
Sar
tre
mais tarde
,
"a
pressa
o
historica esmagava"
(1948,
p. 236) e em que a alienayao atinge uma
"situayao-limite"
(na
lingua
gem
de
S
N)
, nada mais
"real
ista" do que
as
des
cri
yoes
,
const
itutivas
do
"e
nsa
io
de
ontologia
"
sa
rtriano
,
de
u
rn
est
ado
de
desi
ntegrayao do
su
je
i
to
e
do
mundo
("Ie monde se desintegre"). Sob
este prisma, poder-se-ia dizer que as "deformayoes" (por assim dizer)
filosoficas da realidade terminariam por descrever, de forma sibilina, urn
estado de coisas "deformado
",
isto
e,
que perdeu sua forma tradiciona!.2
It
como se algo do mundo "concreto" conseguisse romper a muralha
especulativa e impusesse
sua
prese
nya
.
Num
cer
to
sen
tido
(mas
veremos
que
as
analis
es
do
livro
nao
sao
de
mao unica)
,
SN per
mitiria
ser
lido
como
a
forma
log
ico
-
abstr
ata
de
uma
al
ienayao
real
(cuja
ex
periencia-
l
imi
te
,
se
gundo
as
anal
ises
po
ster
io
res
de
Sart
re,
e
0
campo
de
concentra
yao)
.
Se
inver
termos
os
termos
tradicionais
do
probl
ema
,
poderiamos
tal
vez dizer
que SN
e
concreto porque
e
abstra
to
-
a
ab
str
ayao
, naquele
momento
,
ex
poe
urn aspecto da verdade historica, ou
melhor, e a propria realidade social que se tornara abstrata para os homens da
epoca:
"Paris n 'a vait plus qu 'une existen ce abstraite",
escreve Sartre em
seu balanyo sobre a
ocupayao
(1949,
p.
27).
Com
0
objetivo
de
entender 0
abstrato concretamente, 0 autor acabaria captando 0 concreto abstrata-
mente ("nao sao exemplos,
e a propria vida",
confidenciava Sartre a
J.
-
T.
Desanti a respeito das ilustrayoes de
SfV3 ).
Mas se assim for, embora a
primeira vista nada autorize
a
susp
eitar
que
0
fio
que
esta
sendo
tecido
em
SN
nao
e
meramente
ontologico
,
torna-se possivel vislumbrar no interior
da obra rastros do movimento historico real, e, nessa medida, desvelar seu
"conteudo de verdade objetiva e social" (a expressao e de Adorno).
Do corayao do raciocinio especulativo uma janela abre-se para 0
mundo? Sim,
mas 0 que vemos por essa janela nao e 0 mero retrato de " fatos"
historicos, sao retratos
retocados pelo trabalho de recriayao filosofica (no
mesmo sentido que Michelet afirma que os retratos das personagens de sua
Hist6ria da Revolw;ao Fran cesa vaG sendo, como
os
dif
erentes
auto-
retratos
de
Rembrand
t
,
reto
cados
pelo tempo).
Nesse
resul-
tado
filo
sof
ico
,
nesse
retrato
retoca
do,
nao
se
pode mais
distinguir
0
qu
e
e
"real"
e
0 que
e
ficyao
-
trata-se
antes
de
" ficyoes"
necessarias.
(Ja
0
personagem
central
de
Na
usea
,
Roquent
in,
contra
pondo
-se
a
historiog
rafia
tradicional
,
af
irma
que
0
trabalho
de
construyao
,
ou
de
reconstruyao
,
faz
do
passado,
resg
atado
pe
la
memor
ia
,
um
misto
de souvenirs e de fictions
-
mas e justamente na ficyao que a realidade pode ser mais
bern captada,
sugere Roquentin.)
It
ao longo dessa recriayao
filosofica
que
e
construido o
sen
tido
posi
tivo
da alienay
ao
,
res
ultado
do delineamento da
figura
cen
tral
da obra
:
a liberdade.
Com
efeito
,
so
se
compreende
0
duplo
sentido da al
ienayao
em SN
quando
se
tern em mente as condiyoes nas quais a liberdade entra em cena
no livro:
sua figura radiante e luminosa torna-se visivel ao contrastar com 0
fundo escuro e sombrio da nao-liberdade. Mais precisamente:
e 0 estado
viscoso de nao-liberdade que vai secretando a figura da liberdade
-
a
liberdade floresce assim a sombra da nao-liber-
dade
.
Apare
cendo
,
inicialmen
te,
como
res
ultado
inelutavel
de
u
rn
processo
de
al
ienayao
,
a
nao-l
ib
erdade
vai
se
tornando
condiyao
de
pos
sibilidade
do
surgimen
to
da liberdade
-
0 ponto extrema da alienayao coincide com 0 ponto de
nascimento da
nao-a
lienayao.
E
de
dentro
mesmo daquele
estado
de
alienayao
,
de
nao-l
iber
dade
,
impotencia e resignayao nasce a liberdade
como nova figura da fatalidade:
e da ideia de condenayao pelo olhar do
outro (que nos converte em objetos
-
"nous ne pouvons
echapper a
cette
alienation.
..
",
1943,
p.
583)
que
vemos
surgir
0
famoso
"condamnes
a
etre libres". Transformando pOis a condenayao a alienayao em condenayao
a liberdade, as analises de SN fazem assim 0 fatalismo engendrar
-
paradoxalmente
-
a liberdade.
Esse processo de constituiyao da figura da liberdade passa
necessariamente
pe
las
ideias
de
tomada
de
consciencia
(da
nao-l
iberda
de)
,
de
"e
sc
olha"
e
de
mudanya
(changement)
.
Mas
todas
essas
dimensoes
esse
nciais da
lib
erdade
remetem
a
ideia
de
resistenc
ia,
que
se
del
in
eia
,
no
interior
das
analises
de
SN,
como
0
verdadeiro fundamento da liberdade:
"n ne peut y a voir de pour-soi libre que comme engage dans
un m onde
resistant" (1943,
p. 540).
Diziamos que a liberdade nasce das entranhas da nao-
liberdade. Apressemo-nos em
acrescentar:
so
pode
faze-Io,
por
urn
ate
de
resistencia contra 0 estado de nao-liberdade
-
esse movimento que leva a
nao-liber- dade a solicitar sua propria recusa e realizado por urn trabalho
interne de resistencia.
o
doloroso
parto
dessa
liberdade
que
nasce
" dans
l 'angoisse
"(1943,
p.
615)
e
feito
a traves da resistencia aquilo que a cerceia (e nao a despeito
dela).
Numa palavra:
a resistencia e a parteira da liberdade.
Compreendamos 0 sentido desse resultado do processo de inversao
que permite o nascimento da liberdade:
em vez de resignar-se
complacentemente a forya da al
ienayao
,
ao
estado
de
nao-
lib
erda
de,
em
vez
de
eternizar
tal
estado
de
coisas
vigente,
a
anal
ise
de
SN
subverte
os
termos do
pr
oblema
e,
heroicizando
a
consciencia
,
apela
a
luta
,
a
emancipayao:
"
il
y
a
'quelqu
e
chose
'
a
detruire
pou
r
me
lib
erer"
(19
43,
p.
462)
.
Mas
e
aq
ui,
no
corayao
mesmo
dessa
passa
gem
espe
culativa
,
que
faz
a
lib
erd
ade
renascer de urn ate de resistencia capaz de metamorfosear a
impotencia da subjeti- vidade em heroismo da consciencia
,
que
se
poderia
reconhecer
a
pass
agem
historica
:
do " fatalismo
",
da "resignayao" e da
"impotencia" que decorrem da derrota de
1940
(tal como as memorias de
epoca descrevem 0 estado de espirito hegemonico entre os
conte
mporaneos)
ao
heroismo da
Resistencia
.
Essa
subversao
espec
ulativa
(que
reconstroi
filosoficamente uma "subversao" historical so pode ser feita a partir de
materiais extraidos da pratica politica da Resistencia, como mostram os
exemplos usados pelo autor: "le tuyard" versus
"1
'homme qui n3siste"
(1943,
p. 498)
;
"je puis reagir con tre ces
interdictions.
..
"
(1
943, p. 582)
;
"liberer
1a
Po1ogne, 1utter pour
1e
p
ro
let
a
ri
a
t"
(19
43,
p.
609)
.
Essa
lib
erdade
que
,
ap6s
u
rn
longo
periodo
de
inc
ubaQao
,
renasce por urn ate de resistencia
her6ica
(
"projet de supression de cet asservissement
reel"
e
de
"reconqu
e
ri
r
1a
li
berte"
,
19
43,
p.
462)
nao
e
senao
,
se
nossa
leitura
procede
,
a
reconciliaQao
fi
los6f
ica
com
0
espir
ito
da
Resistencia
contra
0
nazismo
.
Ve
-se
assim
que SN
pe
rmitiria
tamb8m
uma
outra
direQao
de
leitura
.
Com efei
to,
haviamos dito que apenas num certo sen tido 0 livro poderia ser
lido como a descriQao
fi
los6fica
de
u
rn
estado
de
alienaQao
real
.
Essa
e
apenas
uma
meia verdade.
Num
outro
senti
do,
a
anal
ise
sa
rt
r
iana,
transformando
°
nega
tivo
em posi
tiv
,
conve
rt
en
do
a
perda
em
ganho
,
vai
tecendo
,
com
de
talh
es
,
a
possi
bil
idade da
"sa
lv
aQao"
no
interior
mesmo
das
relaQoes
que engendram
a
alie
naQao
,
ou
mel
hor,
e
a
pr6pria
al
ienaQao
que
e
transmudada
em
libertaQa0
4
Esse
resultado
positiv
dos
" caminhos
da
liberdade"
em SN - do " con damnes a l'alienation " ao " con
damnes a changer" heroicamente 0
existente - e 0 outro aspecto do
heroismo dramatico da Resistencia (urn "programme Mroique" que "s'est
realise poin tpar poin t sous mes yeux",
conforme dira Sartre mais
tard
e5)
.
Deste
angulo
,
0
livro
pod
eria
ser
lido
como
apelo
a
Resistencia
,
apelo
ao
ate
"libre et vo1on taire" de resistencia (esse apelo ao ate decis6rio,
urn ate
de vontade
real
izado
por
u
rn
suj
eito
liv
re,
res
gata
,
atraves da
filosofia
da
aQao
de
KOjeve
,
0
co
nvite
fichteano
a
lib
erdade
,
a
es
colha
de
uma
humanidade
emancipada).
Encontramos aqui 0 n6 que entrelaQa os verdadeiros problemas do livro:
uma especie de curto-circuito que faz com que suas
nOQoes
abstratas
terminem por captar
u
rn
processo
de
mudanQa
so
cial
.
Compre
ende
-se
mais
claramente agora em que sentido seria possivel dizer que SN nao apenas
descreve urn estado real de coisas,
nao
apenas
registra
a
hora
hist6rica
("
il
su
tti
t
que
j
'
aie
1u
1es
journ
au
x
.
.
.
" ,
1
9
43,
p.
573)
,
mas sobretudo reconstr6i
0 processo de engendramento do mundo da liberdade
her6ica
da
Resistencia
.
Melhor
:
ao
re
criar
filo
sof
icamente
aquele
estado
real
do
mundo
,
as
analises
sartrianas
terminariam
vislumbrando
fl
ashes do
processo
de
gestaQao
do
mundo
novo ainda
nas
entranhas do
velho
.
Distancian
do-se
(ju
stamente
por
tratar- se
de
urn
processo
de
recriaQao)
do
presente
politico,
que
todavia
as
sustenta
,
conseguem
antecipar
sua
superaQao
. Em suma:
0
mesmo
movimento
que
descreve
u
rn
estado
de
coisas
,
capta
0
processo
de
seu
pere
cimento
. E como
se
do fundo de uma
conjuntura hist6rica sombria as analises de SN tivessem conseguido
entrev
er,
atraves
das
fr
estas
daquele
mundo
que
se
quebrava
,
0
delineamento da
i
sionomia
de
uma
nova
epoca,
dos
"T
empos
Moder
nos"
entao em
marcha
,
cuj
o
espirito puderam surpreender (antecipando-se especulativamente):
liberdade
-
ao
fa
ze
-Io
,
tomam
fi
losof
icamente
a
dianteira
do
movimento
politico
de
luta
pe
la liberdade
(0
que
explica
a
recep9ao
do
livro
pelos
intelectuais
da
Resistencia).
Ve-se,
assim,
que em
vez
de
fan
tasmagor
ia,
ou
pura
meta
fi
sica
,
a
filosofia
da
Uberdade
dese
nvolvida
em SN e resposta
a uma determinada circunstancia hist6rica. 0 autor erige uma conjuntura
hist6rica precisa em instancia de demonstra9ao filos6fica
-
e esse vinculo
interno entre abstra9ao filos6fica e situa90es concretas do mundo que
caracteriza 0
livro
.
Numa
pa
lavra
:
0
"v
erdade
iro
cont
eudo"
de
SN
e
a
guerra
,
a
ocupa9ao
e
a
Resisten
cia
.
A
luz
desse
horizonte
hist6r
ico
,
compreende
-se
melhor
0
voluntarismo
e
0
heroismo dramatico que a meu ver caracterizam SN.
Fora do contexto daquela epoca
-
"u
ma
epoca
que
fo
i,
como todos
os
momentos
revolucionar
ios
,
pr
opicia
as
premis
sas
e termos do
voluntarismo" ("houve iniciativas her6icas e atos de vontade entre 1936
e
1946"),
conforme afirma Thompson
(1981,
p. 87),
seria impensavel tal
resposta
voluntarista
do her6i
sa
rtria
no.
(U
rn "her6i
"
na Idade
de
Ka
fk
a?
Recor
de-se
de
que Hegel ja demonstrara a impossibilidade do her6i no
mundo prosaico do capitalismo
-
em
Cer
vantes, por
exemplo
,
ja
temos
0
her6i em par6dia
.)
A
exp
eriencia da guerra
e
da Resistencia (em particular
a batalha her6ica de Stalingrado, exaltada pelos contemporaneos como uma
verdadeira experiencia epica) permitiu uma reativa9ao de temas do
heroismo
classico
(temas
que
Malraux
,
ali
as
,
ja
re
colocara na ordem do
dia
a luz da guerra civil espanhola). E essa luta her6ica da Resistencia
contra 0 nazismo que da sentido a assimila9ao sartriana do heroismo literario
de Malraux e do heroismo
fi
los6f
ico
de
Heidegger
.
Esq
uematizando: SN
capta
(e
mesmo antecipa)
filo
so
fi
camente urn momenta de virada hist6rica:
a partir de Stalingrado a palavra de ordem "Da Resistencia a Revolu9ao"
come9a a se impor
-
a Revolu9aO mundial poderia finalmente sair da guerra
(assim como em SN a liberdade sai de dentro da nao-liberdade).
Na
encruzilhada de dois mundos, 0 "ensaio de ontologia fenomenol6gica" de
Sartre (cujo
final
de
red
a9ao
,
inicio
de
19
43,
coincide
com
a
vit6ria
de
Stalingra
do)
parece
justamente anunciar a supera9ao de urn estado de
nao-liberdade e 0 advento dos
"T
empos
Moder
nos"
-
uma
epoca
marcada pela
"p
uiss
an
ce
de
la
li
be
rt
{
J'
,
(tal como
Sartre define mais tarde
aquela conjuntura de efervescencia revolucionaria que culmina na
insurrei9ao parisiense de 1944
-
esse "Apocalipse da Liberdade", nas
palavras do autor).
0 livro termina justamente com uma apologia da liberdade
- nessa apolog
ia,
nesse
hino
a
lib
erda
de,
podem
-se
ouvir
os
ecos
da
batalha
de
Stalingrado
.
Nesta
perspec
tiva
,
a
obra
es
taria
rees
crevendo
,
de
forma
dramati
ca,
uma
exp
eriencia hist6rica igualmente dramatica (e da
generaliza9ao te6rica dessa experiencia que vira a filosofia sartriana da
Revolu9ao).
E a pr6pria Hist6ria que esta sendo reconstruida la dentro (de
forma mitol6gica, certamente, mas isso nao impede que veicule problemas
reais)
.
Fora
daquele
"mo
nd
e
resis
tan
t"
, para
usar
a
ling
uagem
do
livro
,
nosso
olhar
retrospectivo sobre SN correria 0 risco (e sao muitos os que hoje
por ai derrapam) de anacronis
mo,
e
ma
is,
de
apresen
tar
a
obra como
u
rn
ensaio
de
ontologia
brilhante
,
mas cujo sentido parece inextricavel diante
dos problemas te6ricos colocados pelo
curso
do
mundo
moderno
.
Voltamos assim ao ponto de onde partimos: nao e que a filosofia
elaborada em
SN
nao
tive
sse
os
pes
no chao
,
e
que
0
chao
hist6rico
ac
abara
de
desa
b
ar
:
"
il
no
us
parut que Ie sol allait manquer sous nos pas",
escreve Sartre em seu balanQo daquele periodo (1948, p. 242)
6
Grau zero
da hist6ria, ou "hist6ria em suspenso", segundo a analise de Merleau-Ponty
-
uma epoca privilegiada de transparencia em que "se tamara impossivel
ignorar a materia social, assim como urn doente ja nao pode ignorar
seu
corpo"
(1975,
p.
203).
Momento
de
euforia
e
de
"descoberta"
da
Hist6ria
(como
no inicio da filosofia classica alema diante da RevoluQao Francesa),
do "moderno"
-
"idees, valeurs, tout fu
t
bouscuJe",
afirma Simone de
Beauvoir, referindo-se aquela "gu
erre
qui
a
vait
to
ut
remis
en ques
ti
on
"
(19
63,
p.
10
0)
.
Era
preciso
tudo
reinventar
(0
que
tomou
possi
vel
a
ruptura
com
a
trad
iQao
,
ou
se
ja,
com
0
"id
eal
ismo
"
da
fi
los
ofia
universitaria da Terceira
Republica, contra 0 qual justamente se desencadeia 0 movimento "rumo ao
concreto", palavra de ordem do "existencialismo" em sua fase
ascendente)
.
E
essa
reinven
Qao
,
cuj
o
res
ultado
encarna
a
"i
dade
de
DurO
da
cons
cien
-
cia
hist6r
ica" local
,
que
esta
sendo
pr
eparada
fi
los
oficamente
em SN
-
nao
por
acaso
o
livro
se
fecha apontando
os
limites
da
ontologia
e,
ao
mesmo
tempo
,
ab
rindo
caminho
para a elaboraQao de urn outro metoda de
investigaQao da realidade humana (0 itinerario do pensamento sartriano
nao e senao a busca de uma forma filos6fico-lite- raria que possa dar conta
do tempo presente
-
e sobretudo na forma do ensaio que 0
autor,
ap6s
0
abandono do projeto
de
construir
uma
moral
,
passa
ra
a
fazer
uma
espec
ie
de "critica da filosofia que nao quer abrir mao da filosofia", mas isso ja e
assunto para uma outra conversa).
Fechemos estas notas sobre SN, sublinhando 0 descompasso entre a
intenQao e
a resultado da obra:
Sartre nao
queria
senao
descrever
as
estruturas
universais
da
reali
dade
humana
,
mas
acaba
(incons
cientemente)
es
crevendo para
seus
contem
po-
raneos, escrevendo para sua epoca e sobre
sua epoca (dai 0 sucesso do livro
-
uma
filosofia
da
aQao
e
da
lib
erdade
her6ica
,
como
convinha
ao
espir
ito
daqueles
tempo
s)
.
Mas e justamente
nesse descompasso que esta sua fecundidade.
MENDON<;A. C. D.
Sartre's L 'EtTe
et 1e Nean t:
a philosophical discovery
of "Modern Times".
T
ra
n
slFormlA
t;,:
B0,
Sao
Pau
lo,
v.
17,
p.
105
-111,
19
94
.
ABSTRACT:
This
article
defends
the
vi
ew
th
at
Sartre's
"p
heno
men
ological
ontology
essa
y"
,
L' Etre et
Ie
Neant,
could
be
understood
as
a
philosophical
fe-creation
of
a
crucial
historical
experience
.
KEYWORDS: Ontological phenomenology; philosophy of action; liberty;
heroism; Resistance.
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1
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t.,
2 e
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(
Serie
de
7
artigos
sobre
a
Li
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rta
c,;
ao
de Pari
s).
11
THOM
PSON,
E.
P.
A
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Ri
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Janei
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Zahar
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1981
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