ROSA LUXEMBURG:
BREVE PERFIL DE UMA
REVOLUCIONARIA
Isabel Maria LOUREIRO
1
RESUMO:
0 presente texto,
que serve de apresentac;:ao a serie de cartas
traduzidas pela A.
e publicadas
a
seguir
junt
o
ao
original
alemao
(Karl
Kraus),
esbo
c;
:a
em
f
<l
pidos
tra
c;:
os
a
personalidade
de
Rosa
Luxemburg,
tendo como pano de fu ndo a cultura do seu tempo. Procura-se sugerir que se
Rosa e uma
pers
onagem
tao
rica
e
interessante,
isso
deve
-se
ao
amalgama,
existente
na
sua
fo
rma
c;:
ao,
entre
a
Bildungsburgertum e a atmosfera
revolucionaria proveniente da Russia.
PALAVRAS-CHAVE:
Social- democracia
alema
;
Bildungsburgertum
;
literatura
c1assica
alema;
socia-
Iismo
democratico
.
Apresentaao
Ao chegar a Berlim pela primeira vez, vinda de Zurique, em maio de
1898, Rosa
Luxemburg
te
rn
u
rn
mau
pressa
g
io
.
Como
se
ela
sou
besse
que
na cidade eleita para a sua carreira politica, nessa detestada capital da
Prussia a que lentamente se
acostu
mou
,
re
ceber
ia
0
batismo
de
fogo
ao
entrar
na
social-
democracia
al
ema
-
cenario de lutas constantes,
interminaveis,
quase todas ingl6rias
-
e que ali seus dias
terminariam
de
maneira
brutal
,
marcando para
se
mpre
a
traj
et6r
ia
da
esq
uerda no
seculo
xx
.
Fazer carreira na social- democracia alema representava, para a jovem
judia
polonesa, com urn brilhante doutorado sobre "0 desenvolvimento
economico da Polonia", recem-concluido na Universidade de Zurique, urn
desafio inevitavel posta
pela
luta
revolucionaria
.
Era
da
maior
im
por
tan
cia
,
para
quem
qu
isesse
ter
u
rn papel
politico
relevante na
esq
uerda
,
militar
no
partido
ale
mao
qu
e,
como
se
sa
be,
formava
a mais
poderosa organiza9ao operaria da Europa.
Rosa porem deu-se conta rapidamente de que esse partido, modelo da
1
Professora clo Departamento cle Filosofia cia
UNESP -
17525-900
-
Marilia
- SP.
esquerda na
epoca
,
nao
passava,
na
real
idade
,
de
uma
grande organ
iza9ao
buro
crat
ica,
adepta
de
u
rn
marxi
sm
o
de
fach
ada,
que
os
respeitados
lideres
soc
ia
l- democratas eram
,
na
verdade, pusilânimes e
medíocres, escreviam num estilo "convencional, rígido,
estereotipado",2 mas - e nisso consistia o problema - com enorme
penetração nas
massas trabalhadoras. Era portanto necessário
empurrar esse partido para a esquerda,
trabalho a que se dedicou
incansavelmente até a guerra.
Após um ano de militância na social-democracia alemã, Rosa
traça seu plano de combate, comunicando-o a Leo Jogiches
(Luxemburg, 1971), mentor, amante e companheiro polítiCO:
dentro de um, dois anos, as intrigas, os temores, os ciúmes, nada
disso terá importância, e eu ocuparei uma das primeiras
posições dentro do partido... Não tenho a mínima intenção de
limitar-me à crítica; ao contrário, tenho intenção e vontade de
empurrar positivamente, não as pessoas, mas o movimento na
sua totalidade, de rever todo o nosso trabalho, a agitação, a
prática, indicar caminhos novos... combater a rotina etc., em
suma, de dar continuamente impulso ao movimento... pois a
suprema mtio a que cheguei através de toda a minha
experiência revolucio- nária polonesa e alemã é de sermos
sempre nós mesmos sem levar em conta o que nos circunda e
os outros. Ora, eu sou e quero permanecer idealista, tanto no
movimento alemão, quanto no polonês.
Sua notória intransigência (teimosia?) ou idealismo, fundada
num forte traço de personalidade, reconhecida por todos, admirada
por uns como força de caráter, detestada por outros como sectarismo
e por ela mesma proclamada em inúmeras cartas aos amigos,
acentua-se nas lutas políticas travadas no partido alemão, sobre-
tudo a partir da guerra. Em tom cortante, declara, da prisão, a uma
amiga, que começa a fraquejar: "... doravante, não farei a menor
concessão, nem em política, nem na escolha dos meus amigos...
assim que puder pôr o nariz para fora, vou perseguir e caçar o vosso
bando de rãs, ao som da trompa, a chicotadas, lançando sobre ele
meus molossos
-
ia escrever, tal Pentesilea
-
mas por Deus, vocês
não são Aquiles!". 3
Essa intransigência política e moral deu origem à imagem de
uma Rosa pétroleuse, sanguinária, imagem criada pela imprensa
burguesa e social-democrata
para desmoralizá-la. Representação
distorcida a que passou a opor-se mais tarde a da Rosa autora
epistolar, irradiante de lirismo e de amor à natureza. Luise Kautsky,
numa homenagem à amiga assassinada, foi a primeira a publicar as
cartas endereça- das aos Kautsky, buscando assim contrapor à
revolucionária radical a mulher huma- nista, fiel aos valores da
Bildungsbürgertum, generosa e compassiva, sempre disposta a
consolar os amigos, divertida e espontânea. Capaz de em uma frase
- muito mais que uma boutade - expor lapidarmente sua essência
conflituosa: "no fundo, fui feita
para cuidar dos gansos e se giro no
turbilhão da história do mundo é por engano"4 (Luxemburg,
1984).
Na verdade, tanto as cartas aos amigos,
quanto as dirigidas a Leo
Jogiches,
na juventude
e,
na
maturid
ade
,
a
seu
novo aman
te,
Kostia
Zetk
in,
revelam
uma
mulher
dilacerada
entre
0
am
or,
a
vida
simpl
es
,
pac
i
fi
ca
,
e
a
causa
politi
ca.
Seu
maior
desejo sempre
fora
nao
se
parar
politica
e
felicidade
priv
ada
.
Donde
as
etemas
criti
cas
e
brigas
com
Leo
,
que
s6
tinha
olhos para
a
"causa"
.
Ali
as
,
quando
a
jo
vem
Ro
sa,
antes
de
ir
para
Berlim
,
ve
diante
de
si
a
obrigagao
de
es
colher entre
feli
cidade
indi
vidua
l
e
dever
poli
tico
,
conf
essa
espon
taneamente
sua
opgao
pela
pr
imeira
:
"S
e
ap6s
refietir
longa
-
mente
,
chegar
a
conclusao
de
que estou
pe
rante
a
alternativa
de
me afastar do movimento
operar
io,
vive
ndo em
paz
contigo
em
qualquer
buraco
,
ou
agir
na
arena
publica separando-me de
ti
-
escolherei a primeira"5 (1971).
Nao
0
fe
z .
U
rn
tanto
a
contragosto
tomou
0
outro
ru
mo
,
sacr
if
icando
a
vida
pessoal
,
decisao
que deu
origem
a
continuas
dores
e
amarguras.
Tinha
,
porem
,
plena
c
on
sciencia
de
que
num
mundo
dilacerado
nao
havia
saida
.
A
fuga
para
0
doce
reman
so
da
vida
burg
uesa,
muitas
vezes
almej
ada
,
era
impossivel
e
ela
sabia
di
sso
.
Acima do tranquilo isolamento
do "ego bern amado", encontrava-se a busca da
verdad
e,
tanto
no plano
pessoal,
quanto
no
soc
ial
.
Nesse
sen
tido
,
Rosa
identific
a-se
com
Toist
oi,
pois
ele
orienta-se para aquelas formas de vida e existencia que possam
concordar com 0 ideal da
moraJidade
(Siulichkeit
).
Mas
0
seu
Ide
Toistoi!
ideal
moral
(sitt
lich)
e
de
natureza
puramente
soci
al
:
igualdade
e solidariedade entre todos os membros do genero humano, baseado no
dever geral de
trabalhar
.
..
A
hist6ria
da
arte
tolstoiana
e
uma busca
de
como eliminar
a
contradir;:ao
entre
0
ideal
e
as
rela
r;:
oes
sociais
existent
es
.
Ele
nao
quis,
por
nenhum
pre
r;:
o,
renegar
esse
ideal
durant
e
toda
sua
longa
vida,
nem
nunca
admitiu
0
menor
compromisso
com
a
ordem
estabelecida.
(1
984d,
p. 186)
o ideal etico de Toistoi e, de certa forma, 0 seu: superar a cisao entre
0 divino
e
0
mundo
,
porem atraves da "l
uta
de
clas
ses
revolucionaria
do
proletariado
" .
Da
i
0 dever
de
dedica
r-se
a
revol
ugao
.
En
tretan
to
,
malgrado
essa
forte
conscienc
ia
do
dever,
Rosa nao deixa de lamentar com amargura
a desumanidade de uma vida exclusiva- mente consagrada a politica, como
podemos ver pelo seguinte trecho de uma carta a Leo:
Ontem a nOite, por uma estranha coincidencia, peguei a caixa com
as ultimas cartas de
mamae e papai e cartas antigas de Andzia e J6zio
lirmaosl. Li-as todas, chorei ate os olhrn ficarem
inchados e tui para a
cama desejando nunca mais acordar. Particuiannente odiosa tomou-
se-me
toda a 'poJitica'. Por causa dela.
..
nao respondia as
cartas
de
mamae
e
papai durante semanas inteiras
.
Nunca
tinha
tempo
para
eles
.
por
causa
destes
t
ra
balhos
de
abalar
0 mu
ndo
(e
isso
continua
ate
hoje).
Meu
6dio
voltou-se
contra
ti.
porque
toste
tu
que
me
acorrentaste
para
sempre
a
esta
maldita politica
.
(Lemb
ro-me
de
ter
seguido
0
teu
conselho
para
nao
deixar
a
sra.
Lubeck ir a Weggis. pois poderia perturbar 0
acabamento de um artigo de marcar epoca para os Sozialistische
Monatshefte. e ela vinha com a noticia da morte da minha mae
!).
Digo-te tudo ista
de corayao aberto. Hoje passeei ao sol e sin to-me um
pouco melhor. Ontem estava quase a desistir.
para sempre, de toda esta maldita politica, ou melhor, da cruel
paródia da nossa vida 'política', e mandar o mundo para o
inferno. A política é um servir a Baal idiota, em que toda a
existência humana, vítima do seu próprio dilaceramento, da sua
atrofia espiritual, se sacrifica. Se eu acreditasse em Deus,
estaria convencida de que ele nos castigaria severamente por
este tormento.6 (1984b)
Como vemos, trata-se de um protesto veemente contra uma
vida estritamente
política, pobre do ponto de vista afetivo e
espiritual, contra a falta de influência de
suas idéias sobre as
massas, contra a modorra reformista em que vegeta a social-de-
mocracia alemã. Mas não é isso. Rosa tem sempre presente o
sonho de uma outra vida, bela, harmoniosa, ideal inatingível,
continuamente perseguido:
Dentro de mim sinto-me bem mais em casa num pequeno
canto de jardim como aqui, ou no campo, sentada na grama,
cercada de zângâos que... num congresso do partido. Posso
dizer-lhe tudo isto tranqüilamente, você nâo vai desconfiar de
que estou traindo o socialismo. Você sabe, espero, apesar de
tudo, morrer no meu posto, numa batalha de rua ou nos
trabalhos forçados. Mas o meu eu mais profundo pertence antes
aos meus pardais que aos "camaradas"7 (1985)
Poderíamos multiplicar os exemplos, mas basta mais um, do
Natal de 1914:
Aliás, como sempre na vida, estou em marcante
contradição com o que faço. Como pretendo fundar novamente
o jornal, tenho cinco reuniões por semana e trabalho pela futura
organização. Mas apesar disso, por dentro, nada mais quero a
não ser calma e renúncia, para sempre, a toda esta enorme
atividade sem sentidoB (1985).
Manifestações assim, tão tipicamente femininas, são constantes
na correspon- dência, na qual podia revelar seus estados de alma aos
amigos, sem medo de ser censurada. Sob este aspecto, Rosa nada
tem de excepcional. É uma mulher dedicada à política revolucionária
que, ao mesmo tempo, revela seu lado sensível, "feminino",
lamentando gastar a vida tão somente na luta árdua para tornar o
mundo belo, justo, harmonioso. Por que não conciliar as duas
coisas, a política e a felicidade pessoal?
Era precisamente esse o seu desejo, tanto que sua amiga e biógrafa
Henriette Roland Holst chega a dizer, e com razão, que: "Ela não era
uma pura natureza política, simplista, como os grandes dirigentes
polítiCOS e revolucionários de todos os tempos, Cromwell,
Robespierre, Marat ou Lenin" (1937, p 34).
Mas no que consistiria a diferença entre ela e os seres
estritamente políticos?
Embora correndo o risco da simplificação, talvez possamos
considerar que aquilo que a torna uma personalidade única nos
meios de esquerda da época seja a maneira particular como assimila
a cultura "burguesa" passada e presente, o que tentarei delinear em
grandes traços. A literatura alemã, francesa, russa, Tolstoi em
primeiro lugar, têm papel fundamental na sua formação humanista,
além do poeta romântico
polones Adam Mickiewicz que, segundo
Ettinger (1989, p. 36), "personificou 0 drama de seu pais
-
dividido entre 0
Oriente e 0 Ocidente, entre a emOC;ao e a razao".
Mickiewicz
teria
sido
,
muito
antes
de
Rosa
conhecer
Marx
,
a
sua
fo
nte
inspirad
ora
,
revelan
do-
!
he
a
obriga
C;
ao
mora
l
de
lutar
por
u
rn sistema
soc
ial
mais justo
e
leva
nd
o-
a
a confiar na sabedoria instintiva dos traba!hadores (p.
34).
Os comentadores sao unanimes ao descrever Rosa como uma pessoa
cultivada, produto de urn tempo caracterizado pelo universalismo dos
interesses.
"A profunda
necessidade
de
cultu
ra
,
a
liga
c;
ao
aos
seus
va
lores
,
0
amor
a
nat
ureza
sao
parte
integrante da existencia quotidiana da
'Bildungsbiirgertum
'"
(Haupt, 1977, p. 23).
Rosa
L
ux
emburg
corresponde
sem
duvida
a
esse
per
fil
:
nela
en
contramos
amalg
amados
u
rn
genuino
in
teresse
pela
literat
ura
,
pintu
ra,
musica
,
botan
ica,
geologia
e
u
rn amor
profundo
a
natu
reza
.
Nada do que
torna
u
rn
ser
humane
mais refinado
do
ponto
de
vista espiritual esta excluido do seu horizonte: "0
universalismo do classicismo alemao
e
seu
modelo
,
seu
ideal"
(p
.
23)
. Ideal
que podemos ver
exp
osto
numa
carta
a
Luise Kautsky, criticando-a por
deixar-se influenciar pela dificil conjuntura do tempo da guerra:
Repara, por exemplo, como urn Goethe se mantcve frio
c
sereno,
acima das coisas. Pensa pelo que teve de passar: a grande Revoluc;iio
Francesa que certamente, vista de perto, parecia
uma farsa sanguinaria,
totalmente sem sentido ; e a seguir, de 1793 a 1815, uma cadeia de guerras
ini
nterru
pta
,
em
que
0
mundo,
de
novo,
parecia
um
manicomio
desenf
rea
do.
Com
que
calma
, com
que
equilibria espiritual fez ele,
ao
mesmo
tempo,
seus
estudos sabre a
metamorfose
das plantas, sabre
a
teoria
das
cores,
sabre
mil
cois
as.
Nao
exijo
que
fa
<;:
as
poesia
como
Goethe,
mas
sua
concep
<;:
E
IO
da
vida
-
a
universalidade
dos
interesses,
a
harmonia
interior
-,
todos
podem
fa
ze-l
a sua
au
,
pelo
menos,
esfor
<;:
ar-se
para
isso.
(Luxembu
rg,
1984c,
p.
533)
De
gosto
cons
ervador
e
classico
,
Rosa
afastou
-se,
por
u
rn la
do,
dos
es
critores
moder
nos,
os
quais
nao
compreendia ou
nao
conhecia
e,
por
outro
,
uma
cultura
proletaria aut6noma sempre !he foi estranha, nao se
interessando pelas tentativas de alguns circulos socialistas de produzirem
cantos e poesias proletarias. Entre os
escritores
alem
aes
,
Rosa
preferia
Go
ethe
,
Marike
e
Lessing
,
em
vir
tude
de
sua
"grande
e nobre
visao
do
mundo".
Em
seguida,
os
classicos
franceses,
Stendhal
principalmen-
teo
De
Schiller nao gostava (ate que durante a guerra, na prisao, Luise Kautsky
levou-a a admira-lo),
em parte devido a seu idealismo, em parte pelo culto que
os social-de-
mo
cratas the dedic
avam
.
Tanto Rosa quanto Mehring se opunham as tentativas da social-
democracia de
transformar
Sc
hiller
em poeta
revolu
cionar
io
.
Ao
res
enhar
u
rn
ensaio
de
Mehring
sobre
o poeta alemao (1979, p. 533), ela
denunciava a interpretac;ao materialista grosseira que buscava a todo custo
separar 0 Schiller revolucionario do Schiller burgues.
Rosa entendia a obra
do poeta como uma "vigorosa manifestac;ao da cultura burguesa" que
os
operarios
precisa
vam
as
similar
enq
uanto
tal
.
Poderiamos
fa
zer
aqui
uma
analog
i
a
com a famosa tese de Engels sobre 0 proletariado como herdeiro
da filosofia classica alema,
mas alargando-lhe 0 alcance:
Rosa ve no
proletariado 0 herdeiro da grande
cultura
burg
uesa
na
sua
total
idade
,
espec
ialmente
da
literatura
cl
assica
alema
.
Ideia que expoe numa carta a
Mehring, de 27.
2. 1916:
Se 0 proletariado alemao e, segundo Marx e Engels, 0
herdeiro
hist6rico da filosofia classica
alema, voce [oi 0 executor desse
testamento. Voce salvou do campo da burguesia e nos trouxe, ao
campo dos deserdados socialmente, tudo 0 que restara dos maravilhosos
tesouros da cultura intelectual
passada
da
burg
uesia
.
Com
os
seus
livros
e
artigos
,
voce
uniu,
por
liames
indissoluveis
,
o proletariado alemao,
nao somente a filosofia classica alema, mas tambem a literatura
classica,
nao somente a Kant e Hegel,
mas tambem a Lessing, Schiller e
Goethe. Cada linha da sua pena
maravilhosa ensinou aos nossos operarios
que 0 socialismo nao e uma questao material [Messer-
und-Gabel Frage],
mas urn movimento civilizador, uma
visao
de
mundo
grande
e
orgulhosa.
(Luxemburg, 1984c)
He
nriette
Roland
Holst
,
inclusi
ve
,
na
tentativa
de
compreender
a
espe
cif
icidade da concepQao socialista de Rosa, observa que a sua relaQao
com a cultura burguesa
era
bem
diferente
da
de
Lenin
.
Este
,
par
exemplo
,
nas
suas
cartas
a
Gorki
,
dizia que
nao
se
deve
ouvir
Be
ethoven
"t
ao
fre
quentemen
te".
Rosa
,
em
contrap
arti
da,
"d
urante
sua vida, foi
francamente receptiva aos valores esteticos e eticos da cultura burguesa,
valo
res
que
incorporou
e
as
similou
,
sendo
-I
hes
gratamente
reconhec
ida
ate
se
us
ultim
os
dias
"
(Roland
Holst
,
1937,
p.
25),
acres
centando que
ela
distinguia
a
"c
ultura"
burg
uesa
,
com
suas
ideias
de
ju
stiQa
e
igua
ldade
,
da
"
c
ivil
izaQao
"
capital
ista
.9
Como sabemos, os socialistas da Segunda Internacional estavam
profundamente envolvidos por esse universo da Kultur e Luxemburg, apesar
de suas posiQoes
esq
uerdistas
,
nao
con
stitui
caso
a
pa
rte
.
Para
ela
,
a
revolu
Qao
proletar
ia,
ao
emanc
i
Pl
o
homem
al
ienado do
capital
ismo
,
seria
0
meio
de
reali
zar
concretamente
os
ideais
univers
alistas
burg
ueses
que permanece
ram
abstratos.
Por
is
so
mesmo
,
sua
mira dirige
-se
ao
homem
e
nao
a
grupos par
ti
cula
res
,
como
os
jud
eus
.
Nesse
se
ntido
es
creve:
"E
preciso
sempre,
antes
de
mais nada
,
viver
como
um
ser
humano
total
.
. .
nao
tenho
,
para
0
gueto
,
nenhum
lugar
espec
ial
no
coraQao
.
Sinto
-me
em
casa
no vasto
mundo
onde
ha
nuvens
,
passaros
e
lagrimas
.
"
l
o
Alem disso, sua visceral ligaQao com a literatura russa, voltada para as
questoes sociais,
veio fortalecer 0 que aprendera com Mickiewicz na
juventude:
a confianQa na
sabedor
ia
insti
ntiva
do povo
,
11
tambem
pres
ente
em
Do
stoievski
,
Toistoi
e
Korolenko,
cujo
roman
ce,
a
Hi
st6
ri
a
de
meu
con
tempor
{meo,
traduziu
na prisao
,
no
decor
rer da
guerra. Durante anos,
Rosa
procurou
mostrar
aos
social- democratas
alemaes
a
importi'mcia dos
romancistas russos do seculo passado, mas a maior parte das vezes
enfrentava
uma
incompreensao que
a
enc
hia
de
furia
(N
ettl
,
19
72
,
p.
39)
.
EIa
,
em
contrapar
tida
,
criada no entrecruzamento
de
duas
culturas
,
conseg
ue
unir,
na
sua
visao
de
mundo
,
0
universalismo da
B
il
dunsbur
gertum
ao
futuro
so
cialista
que
nas
cia
na Russia. Embora
apresentada muito sucintamente, nisto consistiria a particularidade
a
que
antes me referi na
assi
milagao da
cultura
burg
uesa
por
parte
de
Rosa
.
Por
em,
se,
sob
u
rn
cer
to
aspec
to
,
vir
de
u
rn
mundo
atr
asado
e
pobre
,
cultor
da rebeldia, the permitiu horizontes amplos, muito alem da mesquinha
estreiteza euro-
centrista
de
seus
colegas
soc
ial-demo
crat
as
,
sob
outro
aspec
to
,
Rosa
pagou
u
rn
prego
pOI
viver
na
encruzilhada
entre
dois
universos
geograticos,
culturais,
temporais:
Oriente
e
Oc
iden
te
;
mulher
de
educagao
burg
uesa
que
,
em
luta
contra
urn
destino
tipicamente feminin
,
escolhe nao s6 a carreira politica, mas a causa
proletaria
;
revolucionaria
tipica
do
sec
ulo
XIX
,
por todos
os
seus
valo
res
(donde
uma
cer
ta
sensagao de
anacronismo ao lermos as cartas), que, com a guerra, ve desmoronar 0 mundo
que the era familiar, Rosa vive constantemente dilacerada. Entre outras coisas
porque
sendo
revolucionaria
,
OIadora
e
jor
nalista
,
ao
fa
zer
uso
publico
da
palavra
,
ocupa
u
rn
lugar
tradicionalmente
mas
cul
in
,
situagao que
,
ao
mesmo
tem
po,
lhe
agrada
-
visto significar emancipagao
-
e the pesa, pois
exclui a dogura e tranquilidade
da
vida fe
minina
entre
quatro
pared
es
.
Ali
8.
s,
se
Rosa
fa
scinou
tantos
escr
ito
res
,
tendo-se
tornado
tema
de
varias
obras
literarias,
deve-se,
nao
s6
ao
seu
destino
tragico
,
mas
tambem
a
sua
perso
nalidade
multif
acetada
,
em que
a
paixao
e
0
desejo de nunca
deixar de ter a sua "ragao diaria
de
felicidade"
12
dominam
e
que,
pOI
isso
mesmo
,
sof
ria
com
0
rame-rame
quotidiano
da
politica
partidar
ia.
A sua alma ardente de Sturmer und Dranger sempre a fez ver no
trabalho
burocrati
co
,
de
rotina
den
tro
da
organi
zagao
uma
corveia
insupor
tav
el.
Seu
espir
ito
arrebatado fora
,
assim
como
0
de
Lassal
le,
talhado
para
os
gran
des
atos
her6ic
os.
Tanto
e
verdade
qu
e
nas
epo
cas
revolu
cionarias
vive
intensamente
,
e
nos
periodos
de
calmaria
sente
-se
vegetar
.
E
se
ex
iste algo
de
que
se
arrep
ende
,
a
crermos
nas
suas
palav
ras
,
foi
"d
e
nao
ter
mos
trado
tres
vezes
mais audacia
! "
1
3
Por
isso
mesmo
,
escreve da prisao a sua amiga Clara Zetkin, a primeiro de janeiro de 1917:
"sabes 0 que decidi? Depois da guerra simplesmente nao te permitirei mais
participar de
reuni6es
e,
da
minha
parte,
acabei para
sempre
com todas essas
reuni6es.
Quero
ficar
ali onde ha
gran
des
coisas
,
onde
se
ouve
0
bramir
do
vento
,
no meio da
turbulencia
;
da rotina quotidiana estou farta e tu
tambem, com certeza." (1984c).
Rosa
e
0
oposto
inequivoco
do
burocrata
de
par
tid
o,
meticu
loso
,
unicamente
preocupado com a manutengao da maquina da qual depende,
que nunca quer arriscar
nada,
pendan
t
exato
do
fu
ncionario
publico
mediocre
,
amigo
da ord
em,
agarrado
a
pequena e mesquinha seguranc;a
quotidiana. A sua compreensao da vida
-
"Viver em
pe
rigo
e
pe
rigo
samen
te"
(K
autsky
,
s.d.,
p.
54)
-,
0
seu
universo
feito
de
gra
ndes
ideais gener
osos
,
e
a
luta
con
stante
para ver reali
zada
uma
"p
olftica
mora
l"
,
fu
ndada em
princi
pios revolucionarios
in
fi
exive
is
,
eram
u
rn
brado
de
repudio
contra
"os
velhos
e
bern
compor
tados companheiros da
soc
ial-
democracia def
unta
,
para
quem
os
carnes de
fil
ia
c;
ao
sao
tu
do
,
os
homens
e
o
espi
ri
to,
nada
"
(L
uxem
burg,
19
87,
p.
406)
.
Rosa Luxemburg ficou conhecida como a te6rica pioneira do socialismo
demo-
crati
co
,
em
virtude
de
sua
def
esa
intransigente
da
autonomia
criadora
das
mass
as
contra
0
buro
crati
smo
paralisante
das
organi
za
c;
aes
.
Alem
das
outras
razaes
anterior-
mente
ex
postas
,
0
elan
antiburocratico
e
libertario
de
sua
teo
ria
-
e
de
sua
persona-
lidade
-
explica 0 fascinio
que ela continua a exercer sobre os espiritos insubmissos,
e
tambem
0
6dio
mor
tal
que
sem
pre
sus
citou
nos
amigos da ordem
.
Os
dois
tipos
de
rea
c;
ao
podem
ser
cons
tatados na
pe
qu
ena
serie
de
cart
as
publicada
a
seguir
.
LOUR
EIRO
,
!'
M. Rosa
Luxem
burg:
short
profile
of
a
revolutionary
.
T
ra
ns
/F
orml
A
C;
8o,
Sao
Paulo
,
v.
17,
p.
81-1
03,
1994
.
ABSTRACT: This paper, intended as an introduction to the series of
letters that follows it, is a summary sketch of Rosa Luxemburg's
personality, drawn against the background of the culture of her time.
It
suggests that
if
Rosa is a character so rich and in teresting, this is due
to the combination, present in her upbringing, of the Bildungsbiirgertum
with the revolutionary atmosphere coming from Russia.
KEYVORDS: German Social Democracy; BiJdungsbiirgertum; classical
German literature; democratic
socialism
.
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Berlin:
Dietz
,
198
4a.
v.
1 .
9
.
Gesammelte
B
ri
ere
.
Berlin:
Dietz
,
19
84b
.
v.
2.
10
.
Gesammelte
B
ri
er
e.
Berl
in
:
Dietz
,
19
84c.
v.
5.
11
.
Gesammelte
Wer
ke
.
Berlin:
Dietz
,
19
84d
.
v.
3.
12
.
Gesammelte
Wer
ke
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Ber
lin
:
Dietz
,
1985.
v.
5.
13
LUXEMBURG,
R.
Gesammelte
Wer
ke
.
Be
rlin
: Die
tz
,
19
87
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L
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