REPRODUQAO E ONTOLOGIA EM
LUKACS
Sergio Lessa
1
RESUMO: Este artigo tern por objetivo expor as n6dulos
ontol6gicos essenciais da categoria social da reproduc;ao, como
delineados na obra p6stuma de Georg Lukacs, Para uma on tolologia
do ser
social
.
PALAVRAS-CHAVE
:
Ontologia
;
replvJuc;ao
social
;
trab
alho
;
Lukacs.
...
uma tentativa de reconduzir
efetivamente 0 pensamento ao ser, no
mundo de hoje, pode ter lugar apenas
com 0
desenvolvimento da ontologia
do marxismo. (Lukacs, 1979b,
p. 33)
No momenta em que d. maior parte dos pensadores descarta a ontologia
como ultrapassada metafisica, em que a quase unanimidade dos especialistas
eleva a epistemologia e 0 positivismo a "doutrinas quase oficiais", Lukacs
ocupa os ultimos anos de sua vida escrevendo Para uma ontologia do ser
social (1976- 1981). Quais as razoes que levaram Lukacs, em urn periodo
em que a ontologia passa a ser tao
desconsiderada
,
a pesquisar a reprodu9ao
social enquanto categoria onto16gica?
Como usualmente ocorre com as questoes fundamentais, as respostas nao
sao simples. Em se tratando de
Lukacs
,
aumenta ainda mais a complexidade
da
resposta
.
o
pensamento lukacsiano e de tal modo articulado com sua
epoca
,
que uma res posta minimamente satisfat6ria envolveria toda uma
1
Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas
-
Macei6/Doutorando no Departa-
mento de Ciencias Sociais da Universidade Estadual de Campinas.
malha de referencias e conexoes cujas raizes se
situam
,
com maiores ou
menores media90es, nos principais
proble
mas
,
dilemas e questionamentos
postos pela evolu9aO da humanidade neste seculo.
Cont
udo
,
de forma
sintetica e preliminar, talvez seja possivel ir ao centro da questao afirmando
que, para Lukacs, a angula9ao onto16gica se impos como a (mica capaz de
resgatar 0 radical carater hist6rico e humano do ser
so
cial
,
de modo a, no
limite e no
essen
cial
,
reafirmar a asser9ao marxiana segundo a qual a
hist6ria
e resultado exclusivo da aC;ao dos homens e que, por isso, esta
ao alcance da humanidade tomar a historia em suas maos. As ressonfmcias
eticas aqui evidentes nao sao casuais
;
de
fato
,
Lukacs concebe a sua On
toiogia como preparatoria a uma Etiea que,
to
davia
,
nao viveu 0 suficiente
para
es
crever
.
Este esboc;o de resposta ja nos indica duas das categorias basicas da
ontologia lukacsiana do ser
so
cial
.
Em primeiro lugar, enquanto categoria
central do mundo dos homens
z
Depois
,
0 carater radicalmente humane
desta historicidade: a trajetoria global do genero humano, sua
historia
,
e
o resultado concreto da
reprodu
C;
ao
so
cial
,
uma sintese peculiar que converte em totalidade e em individualidades
as incontaveis e distintas ac;oes dos individuos singulares (Lukacs, 1976-
1981, v. II,
p. 253-C
L
VI
)
.
3
Para
Lukacs
,
por
tan
to
,
nao ha nada semelhante a uma "natureza"
humana dada a-
historicame
nte
,
de uma vez para
sem
pre
,
nos moldes de
Rousseau ou do senso comum da cotidianidade contemporfmea
(Lukacs
,
1979, p.
14;
1976-
81,
v. II, p. 269- 74/CLXV-CLXXII).
0
homem nao
e necessariamente born ou
mau
,
sua historia nao esta trac;ada a priori por
uma forc;a ou tendencia pertencente a uma sua essencia mais profunda, a
qual apenas de modo superficial e transitorio seria tocada pela
histor
ia
.
Muito pelo contrario. Ao longo de toda sua On toiogia, cada paragrafo e
a reafirmac;ao da radical historicidade e sociabilidade do ser humano.
No interior deste balizamento
basico
,
0 pensador
hungaro
,
a fim de
sustentar seus postulados fundamentais (a historicidade e a sociabilidade
do mundo dos homens), conferiu urn tratamento peculiar ao tradicional
problema ontologico da continuidade.4
A ca teg oria da continuidade foi tradicionalmente abordada a luz da
dualidade essencia-fenomeno. Os trac;os de continuidade seriam aqueles
dados pela essencia e corresponderiam ao
verdade
iro
,
duradouro
.
Por sua vez,
os trac;os de mudanc;a e movimento seriam aqueles oriundos da esfera
fen
omenica
,
necessariamente transito-
ria
,
ef
8mera
.
Essencia e
fenomeno
,
por
tan
to
,
distinguir-se-iam como diferentes niveis do ser, e esta
dif
erencia
C;
ao
seria dada por uma maior ou menor "realidade", por uma
menor ou maior
pa
rtici
pa
C;
ao
no ser. Essencia e
fenomeno
,
continuidade
e historici- dade, ser e
devir
,
deste
modo
,
sao contrapostos enquanto mais
ou menos reais, mais ou menos "essenciais" ou "aparentes".
Lukacs rompe com esta
tradi
C;
ao
.
Postula a substancialidade enquanto
categoria historica. Em poucas palavras, persegue os nodulos centrais
de uma continuidade cujo modo de ser seja
histor
ico
,
associando
intimamente historicidade e continuidade
-
e 0 faz tomando por objeto
primeiro 0 ser
so
cial
.
Ancorado em
Marx
,
concebe uma substancialidade
cuja continuidade nao se contrapae ao devir, cuja permanencia enquanto
ser se constitui em permanente evoluQao do processo de sua auto- explici-
taQao
;
cuja essencia, em
suma
,
se consubstancia no proprio devir do qual e
a essencia
(19
79b
,
p. 78).
Argumenta Lukacs que a continuidade social se distingue da
continuidade apenas natural pelo fato de ser 0 mundo dos homens uma
totalidade sintetica de atos teleologicamente postos. Por isso, 0 ser social
te
rn
,
na consciencia, 0 orgao e 0 medium da sua
continui
dade
.
Em outras
palavras, a continuidade social se constitui num processo de acumulaQao
-
que, por sua essencia, so pode se desdobrar pela mediaQao de urn orgao
como a consciencia
-
no qual as experiencias passadas nao sao apenas
acumu
ladas
,
mas tambem confrontadas com as exigencias e desafios
colocados pelo passado e pelo
pres
ente
,
pelas novas demandas e tarefas
que a
vida
,
sem cessar, coloca aos homens. Por isso, a continuidade social
exibe potencialidades de desen- volvimento absolutamente ineditas em
comparaQao com a
natur
eza
.
Acima de tudo a continuidade social pode
se elevar a urn ser-para-si impossivel a continuidade natural: 0 ser
humane e 0 tinico que pode se reconhecer na sua propria historia, 0
tinico que tern a possibilidade de modifica-la conscientemente (1976-
1981,
v. II, p.
181-
7/LIX-LXI).
Portanto
,
na ontologia
lukacsiana
,
essencia
e
fenom
eno
,
devir e continuidade, substancialidade e historicidade nao
mais se distinguem por uma maior ou menor "realidade", por uma distinta
participaQao no ser, mas sim por diferentes momentos, igualmente reais, da
processualidade
ontologica
.
Nao mais seriam termos antiteticos de uma
relaQao que, no
limi
te
,
terminaria por excluir urn dos palos, mas sim
distintas instElDcias, igualmente reais, articuladas pela inextinguivel
contradito- riedade da auto- explicitaQao do ser.
Fizemos
referencia
,
anteriorme
nte
,
ao fato de que, para 0 filosofo
h
ti
ngaro
,
0 ser social e 0 resultado de uma sintese peculiar que converte
em totalidade os intimeros atos dos individuos singulares
(19
79b
,
p. 95).
Afirmamos,
agora
,
que 0 desenvolvi- mento do ser social
-
a historia
-
e
necessariamente contraditorio. Devemos, pois, antes de nos voltarmos a
problematica da
reproduQao
,
esclarecer a aparente contra- diQao entre a
unidade que 0 conceito de totalidade
sugere
,
e a nossa afirmaQao da
inextinguivel contraditoriedade
do
desenvolvimento
ontolog
ico
.
Unidade e contraditoriedade nao sao categorias excludentes em
Lukacs.
o desenvolvimento do ser social, 0 surgimento de formaQaes sociais
cada vez mais complexas. resulta no crescimento extensivo e intensivo dos
mom en tos de heterogeneidade, multiplicando a quantidade e alterando a
qualidade das contradi- Qaes. Todavia. nao e menos verdadeiro que este
crescimento da heterogeneidade interna do ser social e acompanhado da
intensificaQao e do aumento quantitativo dos laQos objetivos, concretos,
que articulam os destinos de cada individuo aos destinos da
humanid
ade
.
portanto
.
do desenvolvimento da unitariedade intrinseca ao ser soc
ial
.
Pensemos, para nao nos alongarmos, no mercado. Ele surge em urn
determinado estagio do desenvolvimento humano e,
a partir de
entao
,
a cada novo avanQo da sociabilidade se complex
i
fi
ca
,
alarga seu horizonte
de
ayao
,
impulsiona a divisao do
trabai
ho
,
faz convergir para si uma
quantidade cada vez maior de ayoes humanas, ate se converter num
mercado mundial que, hoje, penetra em todos os poros das vidas dos
individuos.
0
mercado e uma articulayao objetiva entre a vida cotidiana de
cada individuo e a
human
idade
,
uma expressao da crescente unidade
real
,
socialmente construida, do genero
;
e, con
comitantemente
,
e uma unidade
que s6 pode ser construida atraves da divisao do
trabai
ho
,
do
desenvolvimento das classes so
ciais
,
da crescente diferenciayao das
ativi
dades
,
dos individuos
etc
.
Ou seja, uma unidade cuja explicitayao requer
0 desenvolvimento de uma sociabilidade crescentemente hetero-
genea
.
0
mercado exemplifica, com
niti
dez
,
como a crescente complexificayao das
formayoes sociais ao longo da hist6ria requer a construyao de relayoes
sociais objetivas que tendem a elevar a unidade biologicamente dada do
genero a uma unidade qualitativamente
nova
,
socialmente
posta
.
Em suma, sempre segundo Lukacs, a crescente unidade objetiva do
mundo dos homens nao se contrapoe
-
antes requer
-
que essa unidade se de
entre elementos crescentemente heterogeneos e internamente
contradit6rios.
0
ser social, dessa forma, se revela como urn autentico
complexo de complexs, uma totalidade cres- centemente unitaria,
heterogenea e
con
tradit6r
ia
.5
Por
tanto
,
para Lukacs, a postulayao da radical historicidade e
sociabilidade do ser social
-
no limite, reafirmando a possibilidade de os
homens conscientemente fazerem a hist6ria
-
esta indissoluvelmente
associada a concepyao da substancia social enquanto portadora de uma
continuidade hist6rica
;
de urn ser cujo processo evolutivo tern por trayo
ontol6gico distintivo a incessante construyao de novos patamares de
so
ciabil
idade
.
0
mundo dos homens se desdobra numa totalidade
crescentemente heterogenea e contradit6ria e, ao mesmo tempo, cada vez
mais fortemente unitaria. Recusa,
assim
,
0 pensador
hungaro
,
toda
concepyao a respeito do humane que, de uma forma ou de
outra
,
se
enraize em
natu
rezas
,
essencias
etc
.
a-hist6ricas. Do mesmo modo, rechaya
0 irracionalismo que toma 0 desenvolvimento objetivo do ser social como
fruto absoluto de acaso. Entre natureza a-hist6rica e casualidade absoluta,
nao submetida a leis, Lukacs propoe seu tertium non da tur: 0 ser humane
enquanto substan cia essencialmente hist6rica e
so
cial
.
Trabalho
:
momenta
fundante
da
reprodu
ao
social
Segundo Lukacs, ap6s Marx, 0 trabalho e a categoria fundante do ser
so
cial
.
1sto significa que e pelo trabalho que 0 ser biol6gico homem se
constr6i enquanto ser
so
cial
.
0
trabalho
,
nesse
sentido
,
e tornado como a
forma mais simples e fundamental de toda atividade humana, nas palavras
de Lukacs, como "protoforma de toda atividade humana"
(19
79b
,
p. 81-
2; 1976- 1981, v.
II,
p.
13511).
Sempre segundo
Luk
acs
,
a estrutura essencial do trabalho e uma peculiar
relac;ao reflexiva entre a teleologia, entre objetivos previamente
delineados na consciencia e a objetividade da natureza e da sociedade. Em
poucas
pa
lavr
as
,
a praxis social se earacteriza pela transformac;ao da
realidade segundo objetivos previamente trac;ados pela consciencia (1976-
1981, v. II, p.
264/XLX)
.
Entre as finalidades teleologicamente postas e as transformac;oes
objetivamente
real
izadas
,
M
uma inextinguivel
tensao
.
Em primeiro
lugar
,
porque, por
principio
,
nao e jamais possivel urn conhecimento absoluto
do setor da realidade sobre 0 qual se age, ja que a realidade esta em
permanente evoluc;ao (1976- 1981, v. II, p. 190!LX
;
19
79b
,
p. 108). Em
segundo
,
porque 0 novo
objeto
,
a nova relac;ao social criada pelo
trabalho
,
adquire uma vida propria, independente
-
em maior ou menor grau
-
do seu
eria
dor
.
Assim, tanto a contradic;ao que ocone entre 0 objetivo almejado e 0
resultado efetivamente
alcan
c;
a
do
,
como tamMm 0 efeito de
retorno
,
sobre 0 ser soc
ial
,
da traj etoria concreta do objeto
cr
iado
,
fornece
elementos que comporao 0 proximo processo de ideac;ao e, dessa forma,
adentrarao no novo ciclo de previa ideac;ao/trans- formac;ao do
real
.
Este e
0 modo de ser bcisico da constante evoluc;ao da relac;ao reflexiva que se
desdobra entre os objetivos previamente idealizados e os resultados
alcanc;ados pelo ate do trabalho
(19
79b
,
p. 52-3).
Tal dialetica teleologia!causalidade remete Lukacs a urn outro
elemento- chave da categoria do
trabalho
.
Nos referimos ao impulso a
generalizar seus resultados e
seus processos (1976- 1981,
v.
II, p. 231-
2!CXX-CXXI).
Este processo
de
generalizac;ao
se desdobra em dois niveis
que, no processo real, sao indissociaveis.
o primeiro nivel diz respeito ao processo de generalizac;ao que
envolve 0 processo de ideac;ao
;
isto e, concernente a
tendencia
,
intrinseca
ao
trabal
ho
,
a generalizar, no nivel da subjetividade, os resultados parciais
das experiencias singu- lares presentes em ca da ate de trabalho enquanto tal.
As experiencias, certamente singulares e
ti
nicas
,
envolvidas na construc;ao
de urn machado, por
exemplo
,
sao generalizadas e convertidas em urn
conhecimento generico que servira a construc;ao de qualquer outro
machado. Com 0 tempo esta generalizac;ao
que
,
na imediaticidade, se
realiza na consciencia de urn tinico
indiv
iduo
,
termina por se generalizar
em urn outro
nivel
:
torna-se cole
tivo
,
eleva-se a conhecimento pertencente
a formac;ao social como urn todo. Esta passagem do conhecimento de urn
caso singular a urn conheci- mento com validade universal, bern como a
passagem de urn conhecimento perten- cente a urn individuo a urn
conhecimento cole
tivo
,
socio-
generico
,
sao passagens espontaneamente
impulsionadas pela dinamica da praxis soc
ial
.
o segundo nivel se refere ao processo pelo qual os resultados do trabalho
sao generalizados pelo fluxo da praxis so
cial
.
Aquisic;oes como urn
machado mais
sofisti
cado
,
uma construc;ao linguistica mais apropriada as
exigencias
cotid
ianas
,
uma tecnica mais adequada a cac;a
etc
.
sao
generalizadas pela propria praxis
so
cial
.
E, apenas apos este processo de
gen
eral
izaQao
,
adquirem seu real significado so
cial
.
De modo
analogo
,
0
crescimento das capacidades humanas em transformar a natureza se
relaciona intimamente a generalizaQao de relaQaes sociais que, com 0
tempo, abrangem uma quantidade cada vez maior de homens
-
ate atingir a
totalidade da humanidade, como ocorre nos dias de hoje
-
em uma malha
social cada vez mais desenvolvida, mais distante do seu primitivo ponto de
pa
rtida
.
Este e 0 fundamento ontologico da genese e desenvolvimento de
relaQaes sociais que crescentemente articulam os individuos ao genero
humano, tornando a substancialidade humana cada vez mais sOcio-
generica.
Este impulso a generalizaQao, nos niveis acima expostos, e responsavel
pela elevaQao do ser humano a patamares
superior
es
,
crescentes, de
so
ciabil
idade
.
E este impulso a raiz do desenvolvimento de relaQaes sociais
que tornam 0 ser humano cada vez mais generico. Em suma, e a essen cia
da
repr
od
ur
;:ao
social. Apos Marx, Lukacs denomina esse processo de
afastamento das barreirqs naturais, de processo de sociabilizaQao.
Todavia, 0 processo de reproduQao social nao se limita ao processo de
trabalho enquanto tal. Indis
cutivelmente
,
sem trabalho nao se pode sequer
imaginar qualquer processo de reproduQao
soc
ial
.
Mas nao e menos
verdadeiro que 0 processo de evoluQao social da origem a necessidades e a
mediaQaes sociais para atender a estas necessidades
que
,
embora tenham suas
geneses no processo de sociabilizaQao desencadeado pelo trabalho, nao se
restringem mais ao processo de trabalho em si. Desse
modo
,
com a
complexificaQao das formaQaes sociais, surgem complexos mediadores
como 0
direito
,
a fala, a filosofia, a arte, a politica,
etc
.
que nao mais
pertencem ao trabalho enquanto
tal
,
embora tenham a sua genese nas
necessidades postas pelo processo de desenvolvimento social
desencadeado pelo trabalho.
E por demais sabido que 0 marxismo vulgar trabalha com extrema
infeli
cidade
,
para dizer 0
minimo
,
os problemas que daqui
emergem
.
E
gritante a sua desconside- raQao para com os complexos sociais
mediadores operantes na reproduQao
soc
ial
.
Num simplismo que
deformou em profundidade 0 pensamento
mar
x
iano
,
a especificidade dos
complexos mediadores foi deformada ate restringi-los a meros epifenome-
nos da reproduQao social - enquanto esta, por sua vez, foi limitada a uma
reproduQao
imediatamente
material
.
Urn dos momentos de evidente ruptura de Lukacs com 0 marxismo
vulgar foi a consideraQao particularizadora que dedicou a este complexo
de mediaQaes sociais.
Entre a categoria do trabalho enquanto tal e a
processualidade social global, compondo a malha de mediaQaes reais que
articulam trabalho e totalidade
soc
ial
,
Lukacs assinala a presenQa de uma
categoria peculiar, que nao se confunde com 0
trabalho
,
ainda que dele se
origine, que e a categoria da reproduQao social.6 om isso chegamos ao
tema do nosso ar
tigo
,
0 processo da reprodu9aO social na ontologia de
Lukacs.
A bipolaridade da reproduao social
Segundo Lukacs, a questao chave no estudo da reprodu9ao do mundo
dos homens e 0 desvelamento da sintese peculiar que, a partir dos atos
singulares dos individuos concretos, funda uma nova
substancial
idade
,
cuja essencia e 0 processo de sociabilizac;ao (1976 -
1981
,
v. II, p. 287-
8/CL
XX
-
VIII), Ja vimos que 0 momenta fundante desta sintese e 0
trabalho
;
que a tendencia a generalizac;ao, inerente ao trabalho, e a genese
da
soc
iabilid
ade
.
Trata-se,
por
tan
to
,
de buscar as articulac;6es ontol6gicas
pelas quais 0 ate singular se consubstancia no elemento fundante, tanto
da individualidade como da totalidade so
cial
.
Lukacs inicia esta busca assinalando que a dialetica
teleologia/causalidade, nodulo essencial do
trabalho
,
faz com que a totalidade
social apenas possa se explicitar categorialmente, tendo por orgao e medium
a cons
ciencia
.
E como a consciencia e
sempre
,
na sua imediaticidade, a
consciencia concreta de urn individuo concreto, a crescente complexificac;ao
das formac;6es sociais requer individualidades cada vez mais ricas e
articuladas, capazes de atos cada vez mais socialmente mediados. Por
isso, 0 processo de acumulac;ao que caracteriza a reproduc;ao social
necessariamente resulta em modificac;ao e complexificac;ao das
individualidades que the servem de medium (1976-1981, v. II, p. 226-
7/CXV-VII, p. 268-9/CLXV).
Em outras
palavras
,
por ter como orgao e medium de sua
continuidade a consciencia dos individuos concretos, 0 desenvolvimento
do ser social tambem requer e favorece 0
des
envolvimento
,
a
comple
xif
ica
c;
ao
,
das
indi
vidualid
ades
.
Estas se dista
nciam
,
cada vez mais,
de sua origem, em que cada individuo muito tenuamente se
distingu
ia
,
na sua vida cotidiana, tanto dos outros individuos, como da totalidade da
formac;ao social a qual
per
ten
cia
.
A continuidade dessa linha de
desenvolvimento resultou na elevac;ao a cons
ciencia
,
em escala
so
cial
,
do
fato de a reproduc;ao social envolver dois momentos distintos, ainda que
inseparaveis: a reprodu9ao do individuo enquanto individualidade
;
e a
reprodu9ao da formac;ao social na sua totalidade. No dizer de
Luk
acs
,
resultou na consciencia do carater bipolar da reproduc;ao
soc
ial
.
Vale ressaltar que, sempre segundo Lukacs, 0 carater bipolar da
reproduyao social e urn trayo ontologico especifico do mundo dos
homens (1976-
1981,
v.
II,
p.
18
2/LV)
.
Tal
e,
na ontologia
lukacs
iana
,
0 trayo ontologico distintivo entre a reproduyao social e a
natural
.
Ao
contrario do que encontramos na natureza, no ser social a constante
superayao do ponto de partida
originar
io
,
apenas em-si, explicita no plano
obj
eti
vo
,
e eleva a consciencia em escala so
cial
,
0 carater bipolar da sua
reproduyao
;
isto
e,
a individuayao e a sociabilidade consubstanciam
momentos distintos de uma mesma processualidade reprodutiva
global
.
Deste
modo
,
ao longo do processo repro
dutivo
,
as individualidades vao
se
compondo
,
ao mesmo tempo, como personalidades crescentemente
particulares e crescentemente genericas.
Isto
posto
,
devemos passar a analise da reproduyao da sociedade
como urn todo e a da individuayao.
A individua
ao
Para
Luk
acs
,
se 0 ser social e a sintese dos atos singulares em tendencias,
foryas
genericas
,
entao a substancia concreta que distingue uma
individualidade das demais (bern como da totalidade social) e dada pela
qual
idade
,
direyao
etc
.
da cadeia de decisoes alternativas que constitui a
sua
ex
istencia
.
E a qualidade das relayoes estabelecidas com 0 mundo que 0
cerca que ontologicamente caracteriza a substan- cialidade de cada individuo
singular (1976- 1981, v. II, p. 261-2/CLVI-
VIII
,
227/CXVI).
Isto significa
que
,
para 0 filosofo
hungaro
,
0 individuo humano se
distingue radicalmente do especime biologico si
ngular
.
Este possui uma
substancialidade dada de uma vez por todas em sua heranya genetica (1976-
1981,
v. II, p. 177- 8/LN-V).
0
individuo humano, pelo
contrario
,
constroi
sua substancialidade social ao longo de sua vida, escolhendo entre as
diferentes alternativas descortinadas pela realidade. A substancialidade do
individuo humano, po
rtan
to
,
nao apenas e radicalmente so
cial
,
como
tamMm historica: nem mesmo as caracteristicas herdadas biologicamente
pelo individuo podem determinar a priori qual sera a dinamica de
evoluyao de sua
personalid
ade
.
Isto tamMm significa que a construyao da personalidade de cada
individuo apenas e possivel em intensa integrayao com a formayao social
a que pertence. A absoluta necessidade desta articulayao com a totalidade
social para que a individua- lidade possa se explicitar categorialmente se
manifesta e se fundamenta, segundo
Lukacs
,
em tres momentos-chave: 0
primeiro momenta corresponde ao fato de ser 0 desenvolvimento objetivo do
ser
soc
ial
,
como urn
todo
,
0 processo de afastamento das barreiras
naturais que, ao mesmo tempo, possibilita e requer 0 desenvolvimento de
personalidades cada vez mais
ricas
,
mediadas e complexas. Por esta
mediayao
,
0 impulso a generidade inerente ao proprio trabalho se constitui
no fundamento ontologico ultimo do processo de
individ
uayao
.
Em suma,
para
Lukacs
,
0 individuo umane apenas tern existencia real enquanto ente
so
cial
.
Fora da sociedade, nao ha
qualquer
indiv
idua
<;:
ao
possivel (1976-
1981, v.
II,
p. 261-2/CLVI-II).
Em segundo lugar, a
individua
<;:
ao
apenas pode se realizar em
sociedade porque a seu elemento fundante, as
a
<;:
oes
dos individuos, apenas
existe enquanto sintese de elementos genericos e particulares. Os elementos
gen8ricos sao dados:
1)
pela demanda especifica, sempre posta pela
sociedade, que esta na raiz de todo ate
;
2) pela
a
<;:
ao
de retorno do
produto criado para 0 seu criador; 3) e, finalmente, pelos ava
n
<;:
os
sociogenericos que sao incorporados as consciencias individuais pelo fluxo
espontaneo da praxis
soc
ial
.
Os elementos particulares, por sua
vez
,
se
originam:
1)
na singularidade de cada
situ
a
<;:
ao
;
2) na singularidade de
cada individualidade
;
3) e, por
fim
,
na singularidade da resposta que
corresponde a alternativa escolhida (1976-
1981,
v. II, p 327 ss).
Salientemos que, em Lukacs, todo ate social e uma unidade sintetica
de elementos genericos e singulares (1976- 1981, v. II, p. 276- 7/CLXXIV-
VI). Os tres momentos anteriormente assinalados, no plano da realidade
obj
etiva
,
substanciam uma unidade sintetica, de tal modo
que
,
apenas
teorica e abstratamente podemos separa-Ios. Na
cotidia
nidade
,
os elementos
genericos e particulares estao de tal forma articulados, que freq(.ientemente
exigem analises cuidadosas para que se distinga urn do outro. Todavia,
esta inseparabilidade dos elementos genericos e particulares nao significa
que eles tenham desaparecido enquanto tais. Pelo contrario, eles apenas
podem contribuir para 0 processo de
par
ticular
iza
<;:
ao que faz cada ate
humane diferente de todos os outros, mas sempre participes da historia, na
medida em que desdobram uma tensao entre a generidade e a
particularidade, tensao esta que permeia a concretude particular de todo
ato
.
Assinala Lukacs que esta tensao entre os elementos genericos e os
particulares cumpre uma
fu
n
<;:
ao
ontologica especifica: e o medium que
per
mite
,
no nivel da praxis
cotid
iana
,
a
percep
<;:
ao
da contraditoriedade
genero humanolindividualidade. E esta tensao que, na escolha das inumeras
alternativas ofertadas pelo real. faz com que 0 individuo tenha que escolher
entre possibilidades mais ou menos
genericas
,
ou mais au menos
particulares.
E esta a conexao na qual se articula 0 terceiro momento da
individu
a
<;:
ao
.
0
desenvolvimento das individualidades apenas e possivel na
presen
<;:
a
de complexas
med
ia
<;:
oes
,
necessariamente genericas, que
permitam ao individuo referir a si proprio as exigencias postas pela
evolu
<;:
ao
do genero humano. E assim que surgem os costumes, 0
direito
,
a etica etc., para atender a necessidade, permanente na repro-
du
<;:
ii.
o
social
de os individuos remeterem a si proprios, como suas, as necessidades postas
pelo desenvolvimento humane generico. Nesta medida, tais
media
<;:
oes
desem- penham um papel fundamental no desenvolvimento interno,
peculiar, a cada indivi-
dualid
ade
.
Como veremos logo a
se
guir
,
neste terceiro momento os valores tern um
peso ontologico que nao deve ser
despreza
do
,
principalmente em se
tratando das socieda-
des
mais
ava
n
<;:
adas
.
Eles
impulsionam
as
individualidades
a
posi<;:oes
teleologicas
mais socialmente
mediadas
,
mais
genencas
,
valorizando positivamente as reais exigencias postas pelo
desenvolvimento da humanidade enquanto genero
ou
,
pelo contrario,
estimulando a adoQao de alternativas centradas na particularidade da
indiv
idua
l
idade
,
que se compreende como
m6nada
.
As consequencias
praticas, imediatas, para a individuaQao sao imediatamente visiveis na
sociedade contempo-
ranea
,
pois a opQao pelos valores genericos pode
elevar a substancialidade de cada individualidade a generidade
-
ou, pelo
co
ntrario
,
a opQao pelos valores meramente particulares pode rebaixar 0
conteudo da sua eXistencia a mesquinhez do universo do bourgeois que se
contrapae/sobrepae a humanidade.
Portanto, para
Lukacs
,
sao tres os nexos onto16gicos fundamentais
que possibi- litam a sintese dos atos singulares em urn processo de
individuaQao: 1) 0 processo de sociabilizaQao e 0 seu impulso fundante e 0
seu momenta predominante
;
2) a contraditoriedade entre os elementos
generico-universais e os particulares, em todo ato
singular
,
contraditoriedade esta potencializada pela explicitaQao categorial da
bipolaridade caracteristica da reproduQao do mundo dos homens, forQa
os individuos a tomarem consciencia da relaQao contradit6ria que permeia a
relaQao individuo/so- ciedade
;
e, 3) 0 desenvolvimento de uma malha de
relaQaes sociais crescentemente generica e 0 fundamento ontol6gico da
necessidade e, ao mesmo tempo, possibilida- de, de, no processo de
repr
oduQao
,
atuarem valores e processos valorativos cada vez mais
genericos (Lukacs pensa, acima de
tudo
,
na etica). Estes tres nexos, segundo
Lukacs, sao 0 fundamento onto16gico ultimo para que a reproduQao do
individuo, ao mesmo tempo em que apenas possa se desdobrar no interior
de relaQaes sociais, explicite uma crescente autonomia ante a reproduQao
social
global
,
na medida em que consubstancia 0 seu para-si.
A sociabilidade
Tal como na individuaQao, a reproduQao da totalidade social exibe,
segundo Lukacs, tres momentos fundamentais.
o primeiro momenta de sintese da totalidade social se enraiza no n6dulo
mais essencial do mundo dos homens, 0 processo de generalizayao inerente
a categoria do trabalho. Esse processo de
general
izayao
,
ao
articular
,
pelo
fluxo da praxis
soc
ial
,
cada ate singular com a processualidade social
global
,
constitui 0 ate singular em elemento primario da totalidade social (1976-
1981, v. II,
p. 26 1-
C
L
VI
)
.
o
segundo nexo, que opera na sintese da substancialidade social
enquanto
total
idade
,
esta intrinsecamente relacionado ao anterior: a
inextinguivel contradito- riedade entre os elementos genericos e particulares.
Ja vimos que, no seu n6dulo mais
esse
ncial
,
0 trabalho produz uma
inextinguivel tensao entre singularidade e univer-
salid
ade
.
Argumentamos,
entao
,
como, pelo
trabalho
,
a singularidade da situaQao concreta se
generaliza tanto ao ser confrontada com 0
passado
e 0
futuro
,
como
tambem ao ser objetivada em urn produto (sempre singular) do
trabal
ho
.
No pr6prio nueleo mais essencial do
trabalho
,
portanto, as esferas da
universalidade e da singularidade estao articuladas em determina90es
reflexivas.
Essa situa9ao originaria,
primaria
,
se des
dobra
,
no fluxo da praxis social
mais
des
envolv
ida
,
em urn outro nivel de contraditoriedade entre os
momentos singulares e os universais. A processualidade social global, no
seu pr6prio movimento
concreto
,
cotid
iano
,
coloca 0 genero humane diante
de alternativas que 0 for9am a escolher entre as necessidades, interesses e
valores humano-genericos e as necessidades, interesses e valores apenas
particulares. Nas sociedades de classe, via de regra essas oP90es se colocam
sob a forma do predominio do interesse de uma elasse sobre os interesses da
totalidade so
cial
.
Ja. vimos, ao tratarmos da
indivi
dua9ao
,
0 papel central que esta
tensao desempenha no processo de eleva9ao da singularidade a
individualidade. No nivel da reprodu9aO soc
ial
,
esta tensao e a base do fato
de todo conflito soc
ial
,
por mais simples, exibir no seu n6dulo mais
essencial esta contraditoriedade entre 0 generico e 0
parti
cular
.
Sendo
breve
,
para
Luk
acs
,
sem esta contraditoriedade nao haveria conflitos
sociais
.
Tal e a base social
obj
etiva
,
0 fundamento
ontol6g
ico
,
para que a
humanidade
,
ao longo da hist6ria, se eleve a patamares superiores de
consciencia da contradito- riedade entre os momentos sociogenericos da
reprodu9ao e aqueles apenas particu- lares
;
e, conseq
uentemen
te
,
para que
explicite a possibilidade de levar avante sua reprodu9ao de maneira
crescentemente consciente.
(1976- 1981, v. II, p. 327 ss.
).
Vimos, ate aqui, dois dos nexos operantes na sintese da
substancialidade social enquanto totalidade:
1)
a generaliza9ao inerente
a categoria do trabalho que torna social (isto
e,
socialmente generico)
todo ate singular:
e,
2)
a inextinguivel tensao entre os elementos
genericos e os particulares, que constitui a base para a eleva9ao a
consciencia, em escala social, do carater generico do ser humano.
Devemos,
agora
,
prosseguir com a analise do ultimo nexo des sa sintese, 0
qual nos
conduzi
ra
,
tal como ocorreu no estudo da
individ
ua9ao
,
a
problematica dos valores e processos valorativos.7
Com 0
desenvolvimento da sociabilidade e a consequente
intensifica9ao e extensao, tanto objetiva quanto
subj
etiva
,
dos conflitos
entre os elementos genericos e os particulares, surge a necessidade de
media90es sociais que ex
plici
tem
,
tao nitidamente quanto possivel, as
exigencias genericas que vaG gradativamente se desenvolvendo
B
E
necessario identificar as necessidades genericas, plasma-las em formas
sociais que sejam visiveis nas mais diversas situa90es, para que elas se tornem
operantes na cotidianidade. Valores como justi9a, igualdade, liberdade etc.
surgem a cada periodo hist6rico como expressoes concretas, historicamente
determi
nadas
,
das necessidades generico- coletivas postas pelo
desenvolvimento da
so
ciabil
idade
.
Cer-
tamente
,
pOI serem expressoes
concret
as
,
hist6ric
as
,
das necessidades humanogene-
ricas
,
0 conteudo desses
valores se altera com 0 passar do tempo. Tais mudanQas introduzem novos
problemas nesse
complexo
,
mas nao alteram 0 fato de que tais valores
sao centrais na elevaQao a cons
ciencia
,
em escala
so
cial
.
da contradiQao
singular/universal. generolindividuo
;
e
que
,
por sua vez, a elevaQao do
patamar de consciencia da contradiQao individuo/genero influencie
decisivamente na identifica- Qao mais precisa das necessidades genericas
historicamente surgidas.
A necessidade social de tais mediaQoes, segundo
Luka
cs
,
e 0
fundamento ontol6gico da genese e desenvolvimento de complexos como a
tradiQao
,
a
mo
ral
,
os
costu
mes
,
0 direito e a
etica
.
Cada urn deles, apesar das
enormes diferenQas que apresentam se comparados entre si, tern como
funQao social atuar no espaQo aberto pela contraditoriedade entre 0
generico e 0
particular
,
de modo a tomar reconhecivel pelos homens
(sempre em escala social) a forma e 0 conteudo que, a cada
mome
nto
,
assume
essa contraditoriedade. E, assim fazendo, permitem aos hom ens
optarem
,
de
modo cada vez mais cons
ciente
,
entre valores que expressam as
necessidades humano- genericas e valores que exprimem os interesses
apenas particulares de individuos ou grupos sociais.
A sociedade burguesa, em par
ticular
,
ao contrapor individuo-
monada/socieda- de- composta-pelos- conflitos- entre individuos, opoe
cotidianamente aos elementos particulares (que frequentemente assumem a
feiQao de interesses "reais" do individuo) os interesses genericos (que via
de regra assumem a aparencia de "obstaculos" ao desenvolvimento do
individuo). E, por esta via, no dia a
dia
,
0 individuo e
for
Qado
,
com
intensidade inectita diante das formaQoes sociais anteriores, a tomar
consciencia dessa contraditoriedade e a fazer opQoes por urn ou outro p6lo.
Sobre essas oPQoes, de maneira cada vez mais pre domin ante, agem os
laQos genericos que articulam, de forma cada vez mais intensa, as vidas
dos individuos ao destino da humanidade. E este 0 fundamento para que
0 desenvolvimento de valores cada vez mais genericos tenha urn peso
crescente na reproduQao da sociedade como urn todo.
Nesse processo de elevaQao da humanidade a generidade, argumenta
Lukacs
,
cabe a etica urn papel de primeira
importancia
.
E
aqui
,
tal como
em outros momentos, ao tratar deste complexo social, 0 fil6sofo hungaro se
limita a apontar sua constituiQao ontol6gica fundamental, remetendo a obra
que escreveria em
se
guida
,
0 seu trata- mento exaustivo. Sucintamente,
para
Luk
acs
,
0 que distingue a etica do costume, do direito
etc
.
e o fato de
que, enquanto estes se movem no interior da contradiQao entre a
particularidade da eXistencia individual e a
generi
dade
,
na etica esta
contraditorie- dade e superada por uma nova sintese: 0 ser-para-si do ser
so
cial
,
que agora se realiza tanto no p610 individual quanto no generico.
Neste contexto, a etica seria a expressao e o instrumento da superaQao do
novo patamar da contradiQao
individuo/
soc
iedade
,
possibilitado pela
formaQao social capitalista
;
seria a mediaQao social especifica que
permitiria, a forma burguesa de individualidade burguesa, que se entende
meramente
particular
,
superar a si
pr6pria
,
se elevando a generidade, se
construindo enquanto individualidade conscientemente participe de urn
genero que se reconhece enquanto
tal (1976- 1981, v.
II,
p.
328/CC
XX
XV
)
.
Frisemos
,
para evitar qualquer
equivo
co
,
que
,
segundo
Luk
acs
,
esta
nova sintese representada pelo ser-para-si do genero nao significa a
eliminac;ao da esfera da particularidade (1976- 1981, v. II, p.
328-
9
/CC
XX
-
VI
).
A
rigor, para 0 filosofo
hli
ngaro
,
a eliminac;ao da
pa
rticular
idade
,
da
indi
vi
dual
idade
,
e uma impossibilidade ontol6gica: 0 ser
social e necessariamente composto por individuos que se desenvol- vern
em individualidades, e, por iSso, a esfera da particularidade e
indes
truti
vel
.
A superac;ao da particularidade a que nos referimos no paragrafo acima,
por
tanto
,
deve ser entendida num sentido muito preciso. It a superac;ao
da forma estranhada como a particularidade emergiu na consciencia dos
homens em escala social durante 0 periodo de ascensao da burguesia ao
poder. It a superac;ao da individualidade que se compreende
-
e,
por
tanto
,
se comporta
-
como contraposta e superior ao
genero
,
que valoriza a sua
esfera especifica de interesses e vontades como superior as necessida- des
postas pelo genero no seu
des
envolvimen
to
,
da individualidade estreita e
mes- quinha que caracteriza 0
bourgeois
.
Vale
salientar
,
ja que 0 marxismo frequentemente e acusado de nao ter
pensado nem a individualidade, nem as questoes relativas a subjetividade,
que a superac;ao da particularidade pensada por Lukacs nao se assemelha
em nada ao padrao etico que tao miseravelmente tern marcado a vida nas
sociedades pos-revolucionarias ou nos partidos ditos comunistas, se
tornados na sua globalidade mais
ampla
.
Nao se trata de menosprezar as
exigencias reais e concretas postas pelo desenvolvimento de cada
individualidade em si mesma, mas sim de liberar as individualidades e seus
processos evolutivos, sempre peculiares, das travas impostas pelos
estranhamentos que brotam da vida sob 0
capital
.
A ontologia lukacsiana, longe de desprezar a esfera da
individualidade, a considera fundamental para 0 desenvolvimento do genero
ao seu ser-para-si (1976-
1981,
v.
II,
p.
256/CL)
;
e,
por isso,
aponta
a
necessidade
de
liberar seu desenvolvimento
dos obstaculos colocados por urn
mundo estranhado que toma 0
capital
,
e nao 0 genero
huma
no
,
como eixo
aglutinador do ser e das atividades humanas. Nesse
contexto
,
a esfera da
subjetividade tern urn peso essenc
ial
.
As generalizac;oes, subjetivamente
realizadas e mantidas, que brotam do fluxo da praxis so
cial
,
nao apenas
fundam 0
mundo dos homens, mas 0
conduzem
,
por relac;oes e processos
valorativos cada vez mais sociais, mais elevados, a uma elevac;ao do nivel
da generidade da reproduc;ao
social
.
Sao determinantes, acima de
tudo
,
no desdobramento concreto da evoluc;ao do genero em direc;ao ao seu
ser-para-si.
Portan
to
,
para
Luk
acs
,
tanto a esfera da individualidade
como da subjetividade sao centrais
-
ao lade da reproduc;ao da totalidade
social e dos produtos objetivos genericos que dela emergem
-
na historia
dos homens.
Que
,
para
Luk
acs
,
0 fundamento ultimo da processualidade de
construc;ao do ser-para-si do genero humane seja 0 desenvolvimento
objetivo dos lac;os que cres-
centemente articulam individuo/humanidade,
e algo que nao necessitamos repetir.
0 que nos interessa realr;:ar agora,
com vigor, e 0 fato de, segundo
Luka
cs
,
nesta construr;:ao do ser-para-si
do
genero
,
os valores jogarem urn peso ontol6gico
notavel
.
A decisao
especifica, novamente em escala
so
cial
,
de se construir na praxis cotidiana
a superar;:ao da dicotomia particularidade/sociabilidade desenvolvida sob
0
capital
,
requer decisoes alternativas que s6 podem vir-a-ser se
impulsionadas por valores e processos valorativos que encarnem e
expressem adequadamente as necessidades reais postas pelo
desenvolvimento do genero. Dai a importancia de uma etica para a
const
itui
r;:
8.
o
de urn genero efetivamente
generico
,
do ser-para-si do
mundo dos homens (1976-1981, v. II, p. 328 -
9
/CC
XX
).
Em
suma
,
os nexos- chave do processo de sintese que constitui a
reprodur;:ao social tern sua genese ontol6gica no
trabalho
,
no processo de
sociabilizar;:ao que ele
desenc
adeia
.
A essencia desse processo, como vimos,
e a elevar;:ao do genero a
gener
idade
,
ao seu ser-para-si, que funda a
polaridade reprodur;:ao do individuo/re- produr;:ao da formar;:8.o social
global
.
o
processo de individuaqao tern seu fundamento ultimo no
desenvolvimento de formar;:oes sociais cada vez mais complexas
que
,
ao
mesmo tempo que
pos
sibilita
,
requer imperativamente 0
desenvolvimento de individualidades dotadas de persona-
lidades cada
vez mais complexas, mais ricamente mediadas do ponto de vista
so
cial
.
o
medium social objetivo que, a partir de urn dado momenta
hist6r
ico
,
na praxis
cotidiana
,
permite a elevar;:ao dos individuos a consciencia do
carater bipolar da reprodur;:8.o soc
ial
,
tern suas raizes no carater complexo
de todo ato humano. Cada ato e uma sintese de elementos genericos e
particulares, sintese esta que, longe de eliminar as esferas da generidade e
da particularidade, as articula objetivamente em uma totalidade concreta
atraves da qual a tens8.o entre generidade e particularidade se explicita
objetivamente. Tal contraditoriedade generidade/particularidade,
repeti-
mos, e 0 medium objetivo que permite que os individuos tomem
consciencia nao apenas do carater bipolar da reprodur;:8.o soc
ial
,
mas
tambem da inseparabilidade ontol6gica individuo/ser
soc
ial
.
Nesse conte
xto
,
se desenvolvem valores e processos valorativos para darem conta das
necessidades que brotam da explicitar;:8.o desta
contraditor
iedade
.
A
trad
i
r;:
ao
,
0 direito, os costumes e a etica sao algumas das mediar;:oes
sociais que surgem para atender aos graves problemas e as igualmente
generosas possibilidades que dai emergem para a hist6ria humana.
o processo de reproduqao do complexo
social
,
por sua vez, tern 0
mesmo
fundamento
que
a
individu
a
r;:
8.
o
,
isto
e,
0
processo
de
socializar;:8.o
desencadeado
pelo
trabalho. Tal como na reprodur;:ao dos
individuos, a genese do capitalismo enquanto primeira formar;:ao
socialmente pura e urn momenta fundamental: ele permite a explicitar;:8.o da
polaridade individuo/sociedade em urn novo
patamar
,
que Lukacs denomina
dualidade generidade/particularidade. Nesta nova dualidade,
a essencia
e a dicotomia citoyen/bourgeois estabelecida pela consciencia do homem
comum submetido a cotidianidade do
capital
.
A superar;:8.o dessa
dualidade estranhada, por sua
vez
,
e
pos
sivel
,
em primeiro
lugar
,
porque
os conflitos sociais forr;:am cotidiana- mente a escolha entre a esfera da
particularidade e a da
gener
idade
,
obrigando os homens a tomarem
consciencia dessa contraditoriedade
;
em segundo
lugar
,
porque o
desenvolvimento objetivo das for9as produtivas origina la90s sociais
genericos cada vez mais intensos entre os individuos
;
e, por fim, porque
0 avan90 da sociabiliza<;ao da origem a valores e complexos valorativos
que impulsionam no sentido generico.
Conclusao
Com isso estao
deline
ados
,
de forma introdut6ria, os n6dulos centrais
operantes na reprodu9ao soc
ial
,
segundo Lukacs. E
neces
sario
,
apenas
,
salientar 0 6bvio: a reprodu<;ao do individuo e a reprodu<;ao da sociedade
como urn todo
sao
,
para
Luk
acs
,
p6los de um mesmo processo reprodutivo
global, p6los estes que desenvolvem entre si uma rela<;ao de
determina9ao
reflexiva
.
Nesse
se
nti
do
,
Lukacs rejeita como falsas
tanto
as teorias que tomam 0 individuo como urn ente ontologicamente
dissociado do complexo
so
cial
,
como tambem as teorias que
compreendem 0 complexo social total como 0 unico momento de
determina<;ao do seu processo repro
dutivo
.
Em sua maxima
gener
al
idade
,
esta situa9ao
corresp
onde
,
no plano
da reprodu- 9ao
so
cial
,
aquilo que Hegel denominou identidade da
identidade e da nao-identidade. Temos aqui uma necessidade originalmente
unitaria, a reprodu<;ao social
que
,
no seu
des
envolvimento
,
ao mesmo
tempo em que origina complexos e media<;oes sociais cada vez mais
desenvolvidas e heterogeneas entre si, tambem desenvolve nexos e conexoes
entre eles que unificam as suas processualidades, sempre especificas, em
totalidade cada vez mais
univo
ca
.
A crescente heterogeneidade entre as
individuali- dades (tanto internamente como entre elas) e a totalidade
soc
ial
,
0 fato de cada uma delas desenvolver uma legalidade especifica cada
vez mais atuante na sua pr6pria evolu<;ao, nada mais e senao a forma
superior de manifesta<;ao da necessidade originaria de reprodu<;ao do
mundo dos homens. Em poucas
pa
lavr
as
,
a forma especificamente social de
consubstancia<;ao da unitariedade ontol6gica do mundo dos homens se
desdobra historicamente no desenvolvimento dos elementos de
heterogeneidade que compoem a totalidade
so
cial
.
Ou, dito de outro
modo
,
a intensifica9ao da presen<;a dos la<;os genericos na reprodu<;ao social
requer 0 desen- volvimento de individualidades cada vez mais
heterogeneas e especificas: justamente a identidade da identidade e da
nao-identidade a que nos referimos anteriormente.
Este rapido delineamento dos n6dulos centrais da reprodu9ao
so
cial
,
segundo
Luk
acs
,
evidencia aquele conjunto de balizamentos ontol6gicos
com 0 qual iniciamos este
artigo
.
Nos referimos a
po
stul
a
<;
ao
,
central na
ontologia lukacsiana, da radical historicidade e sociabilidade do mundo dos
homens. Vimos como a partir da praxis social 0
indiv
iduo
,
ao agir, ao
responder as necessidades postas ao seu desenvolvi- mento pela realidade
que 0 cerca, concomitantemente contribui a constru<;ao do ser social
enquanto genero e a constru9ao da sua individualidade
espe
cif
ica
.
As
contra- di90es entre generidade e particularidade, constituintes essenciais
tanto do ate em sua singularidade como da processualidade social
global
,
compoem as media<;oes sociais reais da elevaQao a consciencia,
em escala soc
ial
,
da bipolaridade individuo/so-
ciedade
.
Vimos como a
partir de urn determinado estagio do desenvolvimento soc
ial
,
dado pelo
capital
ismo
,
esta situaQao ontologica ganha uma nova qualidade,
permitin-
do
,
na praxis cotidiana e de forma bastante concreta, a
es
colha
,
pelas individualidades e pelo genero no seu
todo
,
de urn novo patamar
de existencia
-
isto e, de uma existencia social que tome como centrais
as reais exigencias postas pelo desenvolvi- mento do genero humano,
superando a centralidade do
capital
.
o que desejamos salientar nestes paragrafos conclusivos e a oposiQao
frontal da ontologia lukacsiana a toda interpretaQao do mundo dos homens
que tenha como suporte a concepQao de uma natureza humana que nao
seja construto historico-
s
oc
ial
.
Em suma, para Lukacs, os homens se
constroem homens, a humanidade se constroi enquanto ser social e, por isso,
esta aberta a possibilidade de, a partir de urn dado patamar de
desen
volvimento
,
a humanidade objetivar esta construQao de modo
consciente, teleologicamente posto. Em
suma
,
esta aberta a possibilidade
-
no plano ontologico-historico mais gera!, que certamente nao significa
hoje ou amanha
-
de urn "assalto aos ceus ".
Este e, a nosso
ver
,
0 cerne do carater revolucionario da ontologia
luka
csia
na
.
Ainda que problemas possam ser localizados aqui e
ali
,
e mesmo
pOI ser uma obra postuma 0 que contribui em muito para a presenQa de
lacunas e passagens
obs
curas
,
o ultimo esforQo sistematico do filosofo
hungaro resultou em uma importante reflexao que se contrapoe a mare
montante do pensamento cons
ervador
;
fundamentalmente,
ao buscar
articular ontologicamente, com base na radical historicidade e
sociabilidade do mundo dos homens, como postuladas por
Marx
,
a
possibilidade
-
que nao implica cega necessidade
-
de ruptura com os
estranhamentos emanados do
capital
.
Isto posto, a resposta a pergunta do inicio deste ensaio, sobre a razao
de Lukacs
ter se voltado a ontologia, pode ser melhor compreendida:
explicitar 0 carater ontologico da obra
mar
xi
ana
,
no que ela se contrapoe
a ontologia tradicional (incluindo neste termo abrangente a logica-
ontologica de Hegel) e no que ela e devedora desta mesma ontologia,
constitui, para 0 filosofo
hungaro
,
0 terreno mais adequado para uma
confrontaQao cabal com todas as correntes de pensamento que, no
essenc
ial
,
negam a possibilidade de os homens virem a construir a sua
propria historia de modo
consciente, se libertando dos estranhamentos
responsaveis pela genese e desenvol-
vimento de uma formaQao social cuja
essencia e a negaQao do
humano
.
Tal
e,
acreditamos nos, 0 significado
mais profundo da ontologia de Georg Lukacs.
LESSA, S. Reproduction and ontology in LukflCS. TransIFormIAl ;:iio, Sao
Paulo
,
v. 17, p. 63-79, 1994.
ABSTRACT: This article aims to discuss the most fundamental
nexus of the social category of reproduction, as outlined in Lukacs
posthumous work Per una ontologia dell' essere sociale.
KEYWORDS: Ontology; social reproduction; labour; Lukacs.
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