NOTAS SOBRE A "CARENCIA DE FUNDAMENTACAo" NA FILOSOFIA DE THEODOR W. ADORNO



Rodrigo Antonio de Paiva DUARTE1





A difusao, entre nos, do chamado "paradigma linguistico", conexo a Teoria da agao comunicativa de Jurgen Habermas, no qual a capacidade humana de comuni­ cagao argumentativa e entendida como a priori transcendental, dispensa maiOIes comentarios acerca da possibilidade, da fertilidade - e mesmo da necessidade - da colocagao da linguagem como fundamentagao transcendental do agir humano.

Tal difusao, no entanto, foi tambem mediada pOI uma critica de Habermas ao que se entende por "razao negativa",2 principalmente expressa na obra conjunta de Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, Diaietica do esciarecimen to. Antes de se apontar para os indicios de uma fundamentagao transcendental insuspeitadamente

rica no modelo da razao negativa, sobretudo na obra de Theodor W. Adorno, resumir-se-ao, nas linhas que seguem, os pontos nodais da critica habermasiana 3

Segundo Habermas, 0 pano de fundo da aporia a que chegam Horkheimer & Adorno e 0 processo de racionalizagao, descrito por Max Weber, que culmina com a chamada separa<;ao e autonomiza<;ao das esferas axiol6gicas (cf. Habermas, 1998, p. 225ss. e 456). Para aquele,


... so quando a cifmcia, moral e arte sao especializadas, cada uma em uma pre ten sao a validade, seguem respectivamente sua propria logica, e sao purificadas dos restolhos cosmologicos, teologicos e culturais; so enta� pode surgir a suspeita de que a autonomia da vaJidade que uma teoria almeja, seja ela, entao, empirica ou normativa, e aparencia, porque nos seus poros se alojaram ocultos interesses e pretensoes ao poder. (1 989a, p. 140)


Procedendo dessa forma, 0 esclarecimento torna-se por uma primeira vez reflexivo ; ele se realiza, portanto, sobre seus pr6prios produtos - sobre teorias. Esse e, de acordo com Habermas, 0 momenta de apari<;ao de uma critica da ideologia, tal como pode ser encontrada em Marx: 0 ponto de vista revolucionario, encarnado potencialmente pelo proletariado, serve de base a uma critica das representa<;oes abstratas como ferramentas de domina<;ao por parte da burguesia. A percep<;ao de que os esfor<;os tit{micos desta ultima no sentido de, por urn lado, integrar 0 proletariado, e, pOI outro, de experimentar formas de domina<;ao antes inexistentes, como os totalitarismos e a industria cultural, leva a uma desconfian<;a em rela<;ao ao fundamento da versao "tradicional" da critica das ideologias:


... e se as foryas produtivas entram com as relayoes sociais de produyao, que as primeiras deveriam fazer explodir, numa perversa simbiose, nao ha mais qualquer dinamica sobre a qual a critica poderia depositar suns esperanyas. Adorno & Horkheimer veem abalados os fundamentos da critica das ideologias - e gostariam, entretanto, de se ater a figura fundamental do esclarecimento. (p. 143)


Ocone aqui, entao, 0 que Habermas chama de reflexao segunda: 0 voltar-se sobre si mesma da teoria, que a critica das ideologias realizava - sobre a base do ponto de vista de uma classe revolucionaria - deve-se voltar mais uma vez sobre si mesma, dessa vez, desprovida de urn fundamento. Segundo Habermas (1989a, p. 141), "a Dialetica do esc1arecimento da esse passe - ela independentiza a critica, mesmo que contra os pr6prios fundamentos ".

Com isso, chega-se ao cerne da critica de Habermas a Adorno & Horkheimer. Segundo Habermas, esses autores se encontram na mesma dificuldade que Nietzsche: "se eles nao querem abrir mao do efeito de urn desvelamento ultimo e querem continuar a critica, eles devem conservar, para sua declara<;ao da corrup<;ao de todos os padroes racionais, entretanto, um intocado" (1989a, p. 153). Tal posicionamento de Habermas fica mais claro ainda no trecho que se segue:


Adorno & Horkheimer encontram uma outra opyao, atiyando e mantendo aberta n contra­ diyao performativa de uma critica ideologica que se aplica sobre si mesma, se eles nao querem mnis ultrapassa-la teoricamente. Depois do fato de que - no nivel alcanc;ado pela refiexao - toda tentativa de estruturar uma teoria deveria fiutuar no vazio, eles abrem mao da teoria e praticam ad hoc a negac;ao determinada, estabelecendo, com isso, uma fusao de razao e poder, que preenche todas as fendas. (p. 154)

A confusao de Habermas, aqui, e clara: ele atribui "uma fusao de razao e poder, que preenche todas as lacunas" a um modelo de racionalidade que se mostra exatamente como uma alternativa a tal estado de coisas.

Mas as confusoes nao param af: uma das principais contribui<;:oes de Horkheimer & Adorno, a determina<;:ao da hipertrofia do elemento, na razao, conexo aos meios de sobrevivencia fisica, explicitada no conceito de razao instrumental, e reduzida, por Habermas, a uma descren<;:a na razao como um todo, que, no limite, ofuscaria toda e qualquer distinQao entre 0 verdadeiro e o falso. Segundo ele,


Esse conceito deve tambem lembrar que a difundida racionalidade-meio faz retrair a diferenciaQ80 entre aquilo que pretende validade e aquilo que serve a autoconservaQ80 e, com isso, demole aquelas barreiras entre validade e poder, torna sem efeito aquela diferenciaQ80 de fu ndamentaQ80 conceitual, que a compreens80 moderna do mundo acreditava dever a uma superac;:ao definitiva do mito. (p. 145)


Habermas sugere que a critica da racionalidade que aponta para a tendencia de sua auto-anulaQao, em virtude da sobrecarga do seu momenta de meio para a autoconservaQao, anula, ela propria, a distinQao entre razao e mito, e, com isso, ele instaura uma noite em que todos os gatos sao pardos. Pois a alternativa que ele parece propor aqui - um programatico interdito a critica da racionalidade instrumental, sob a alegaQao de que ela nao deixa intacta a razao como um todo -, permite que esta ultima se degener-e livremente. Uma injusti<;:a gritante chega a se configurar a partir de uma outra colocaQao de Habermas, em que ele ve na critica da racionalidade, empreendida por Horkheimer & Adorno, uma especie de conivencia com as forQas cuj a monstruosidade eles proprios foram os primeiros a denunciar: "A critica, ante­ riormente praticada, as inversoes meta- eticas da moral, transforma-se numa con cor­ dancia sarcastica com 0 ceticismo etico" (1989a, p. 136).

A impossibilidade de tamanha miopia, num filosofo com a competencia de Habermas, chega mesmo a levantar suspeitas sobre a conivencia com 0 subsistente - nao por parte de Horkheimer & Adorno, mas do proprio autor das acusaQoes. Isso porque Habermas tira sua drastica conclusao de um trecho da DiaJetica do esciareci­ mento, que, a meu ver, nao implica, de modo algum, a mesma. Transcrevo-o aqui:



A impossibilidade de produzir, a partir da raz80, um argumento fundamental contra 0 assassinato, nao encoberta, mas declarada a todo 0 mundo, acendeu 0 6dio, com a qual, ainda hoje, os progressivos perseguem Sade e Nietzsche... Eles nao recuaram diante do fato de que a raZ80 formalista teria uma relaQ80 mais intima com a moral do que com a imoraJidade.4 (Adorno & Horkheimer, 1981, p. 139 -40)


Urn ponto de vista desprovido de preconceitos vera aqui apenas uma tentativa de penetrar os pressupostos e consequencias de uma razao, cujo processo de se tornar formal e concomitante aquele da hip6stase da autoconserva9ao ; nunca uma "concor­ dancia sarcastica com 0 ceticismo etico". Algo semelhante ocorre na abordagem que Habermas faz da critica de Horkheimer & Adorno a industria cultural.


A critica, anteriormente praticada, ao elemento merumente afinnativo da cultura burguesa, aumenta numa furia impotente sobre a jllstiya ironica daqueJe juizo, pretensamente irrespondivel, que a cultura de massa executa em uma arte que sempre foi ideologica. (Habermas, 19S9a, p. 136)


No trecho acima, Habermas toca tambem, ainda que de modo - de novo - totalmente incorreto, numa outra contribui9ao importante delineada pela Diaietica do esciarecimento, a saber, a ambigtiidade do fen6meno estetico em rela9ao a sua origem de classe, da qual se segue sua potencialidade como depositario de uma verdade que estaria alem da divisao da sociedade em classes. 5 Em outra passagem sobre 0 mesmo tema, Habermas explicita sua compreensao do posicionamento de Horkheimer & Adorno, demonstrando maior preocupa9ao na insistencia sobre 0 seu pr6prio ponto de vista - da a9ao comunicativa - do que sobre a verdade do seu enunciado:


Essa situayflo aproxima-se da suposiyao de que Adorno & Horkheimer percebem a modernidade cultural a partir de urn horizonte similar de experiencia, com a mesma sensibilidade aumentada, e tambem com a mesma otica estrita, que se torna insensivel diante dos indicios e das formas existentes de racionalidade comllnicativa. (Habermas, 19S9a, p. 155)


Na verdade, os indiscutiveis "indicios e formas existentes de racionalidade comunicativa" nao autorizam 0 abandono dos pressupostos da razao negativa em beneficio de uma teoria afirmativa do subsistente: eles apenas justificam uma proje¢o da possibilidade de urn futuro mais humano, proje9ao esta - como se mostrara adiante

- amplamente assumida e compartilhada por Theodor W. Adorno G


Para Habermas, entretanto, sobressai apenas 0 carater necessariamente para­ doxal de uma filosofia que pretende, "contra Wittgenstein, dizer 0 que nao se deixa dizer" (Adorno, 1998, p. 21), associando, aquele, essa posi9aO a urn "defaitismo" da razao, a uma resigna9ao existencial e politica, que, a meu ver, inexistem em Adorno. A esse respeito, diz Habermas:


Quem insiste num paradoxo num local em que a Filosofia urn dia se estabeleceu com suas fundamentar;6es ultimas, assume nao apenas uma posir;ao desconfortavel ; ele s6 pode preservar essa posir;ao, se e possivel tomar pelo menos plausivel que nao haja saida. Tambem 0 retorno de uma situar;ao aporetica deve estar bloqueado, senao hci urn caminho, a saber, 0 de volta. Esse, segundo penso, e o caso. (Habermas, 1989a, p. 155)


Quanto a iSso, M que se mencionar que inexiste, nao s6 na Diaietica do esciarecimen to, mas tambem em qualquer outra obra de Adorno, a declara9ao de que nao M saida ; menos ainda a inten9ao de demonstrar a necessidade 16gica disso. 0 que ha e a implacavel denuncia de urn processo em curso que, no limite, podera aniquilar a razao. Essa denuncia s6 tern sentido, eVidentemente, num m omen ta anterior a consuma9ao desse processo. Habermas finge nao ver isso, no meu entender, com 0 exclusivo objetivo de tentar legitimar a introdu9ao do seu pr6prio modelo, associado ao paradigma linguistico, no qual a argumenta9ao assume 0 lugar outrora ocupado pela praxis radicalmente transformadora da realidade 7 Ja na Teoria da a 9ao com unicativa, constava:


A critica a racionalidade instrumental se entende como uma critica da reificar;ao que se conecta a recepr;ao de Weber por Lukacs, sem que as (aqui apenas mencionadas) conseqiiencias de uma filosofia objetivista da hist6ria tenham sido levadas a serio. Nessa tentativa, Horkheimer e Adorno, por sua parte, se envolvem em aporias, das quais aprendemos e podemos ler razOes para uma mudam;:a de paradigma na teoria social. (1988a, t. J, p. 489)


Uma vez que pretendo enfocar neste texto a obra posterior de Adorno, gostaria ainda de chamar a aten9ao para urn outro aspecto do equivoco de Habermas concernente a obra tardia do seu antigo professor em Frankfurt. Segundo ele, "Adorno permaneceu fiel ao impulso filos6fico nos vinte e cinco anos desde 0 terminG da Dialetica do esc1arecimento, e nao se esquivou da estrutura paradoxal de urn pensamento da cntica totalizada" (1989a, p. 145). Ou, ainda: "Adorno estava perfeitamente consciente dessa contradi9ao performativa da cntica totalizada" (p. 145). 8 Se a critica fosse de fato totalizada (e totalizavel), incorrer-se-ia realmente numa contradi9ao performativa. Mas nao e 0 caso, pois a pr6pria ideia de totalidade e radicalmente problematizada na obra de Adorno, 0 que impediria - na pior das hip6teses - uma totaliza9ao tao imediata da crltica, como a que e imputada por Habermas a Adorno, muitas passagens da obra de Adorno poderiam exemplifica-lo ; neste trabalho, dou destaque a Minima moralia, pela forma cristalina com que algumas das questoes colocadas por Habermas sao respondidas (ou equacionadas).9 Cito aqui urn trecho dessa obra, em que Adorno combate explicitamente 0 que ele chama de absolutismo da nega9ao:


Atraves do absolutismo da negac;:ao, 0 movimento do pensamento, como 0 da hist6ria, segundo 0 esquema da oposic;:ao imanente, torna-se univoco, exclusiv�, trac;:ado com inarredavel positividade. Tudo e subsumido sob as fases economicas principais, historicamente determinantes na sociedade como um todo, e de seus desdobramentos. (Adorno, 1987a, p. 199)


Muitas outras obje90es poderiam ser levantadas contra a crltica de Habermas a razao negativa. Mas isso afastar-se-ia do meu ponto, que e 0 seguinte: a critica habermasiana prejudicou grandemente a percep9ao de que 0 elemento transcendental que esta na base da atitude pratica do ser humane nao e a competencia comunicativa, mas algo que the antecede: urn desejo - racionalmente mediado - de que tudo seja radicalmente diferente do que e, 0 que pode ser denominado "impulso emancipat6rio", sendo a capacidade de linguagem apenas urn epifenomeno seu. Se de fato existe tal impulso emancipat6rio, a versao classica da teoria critica - anterior ao paradigma linguistico - adquire, entao, subitamente, urn potencial de verdade, que precisa ser mais bern conhecido e integrado ao corpus de uma racionalidade que se pretende alternativa a racional desrazao dominante. Sem concordar com a posi9aO de Habermas de que a DiaJetica do esc1arecimento incorre numa contradi9ao performativa, por pretender usar a razao na constata9ao de sua irreversivel degenera9ao, admito, entretanto, que essa obra nao e a mais adequada para a indica9ao do elemento transcendental sui genen's que acredito residir na obra da gerac;ao da Teoria Critica anterior a Habermas, principalmente na de Theodor W. Adorno. 10 E na obra deste ultimo - sobretudo em Minima moralia - que se encontra a explicitac;ao mais clara das caracteristicas do a priori transcendental que essa vontade de libertac;ao - 0 impulso emancipat6rio - adquire.

Nessa caracterizac;ao, e preciso, no entanto, estar atento aos trac;os especificos que a pr6pria ideia de a priori transcendental forc;osamente assume em Theodor W. Adorno: falta, antes de tudo, a apoditicidade, a universalidade e a objetividade que possui em Kant. E isso ocorre na medida em que fica sugerido, em varios pontos da imensa obra de Adorno, que a sociedade, enquanto sistema aberto, potencialmente subordinado a contigencias de varias ordens, e 0 verdadeiro sujeito transcendental, com 0 que a pr6pria ideia de subjetividade transcendental termina por ficar enrique­ cida. Segundo Adorno,


Onticamente mediado e nao apenas 0 eu pura pelo eu empirico, que aparece claramente enquanto modelo da primeira versao da dedu�;ao dos conceitos puros do entendimento, mas 0 proprio principio transcendental, no qual a Filosofia acredita possuir 0 seu primum diante do ente. Alfred Sohn- Rethel foi 0 primeira a chamar a aten<;:ao para 0 fato de que, nele, na atividade universal e necessaria do espirito, esconde-se inapelavelmente 0 trabalho social.(1988, P. 178)


E isso pode ser detectado ja na forma presente - alienada - de sociedade, em que a contraparte do trabalho social, sua apropriac;ao privada, consolidada no lucro, se apresenta como condic;ao a priori da possibilidade da pr6pria produc;ao em geral. Tal ideia fica indicada num trecho de Minima moralia, 0 qual transcrevo a seguir:


A vantagem imediata de cada um no ato da traca, au seja, aquilo que e subjetivamente mais limitado, praibe a expressao subjetiva. A possibilidade do lucra, 0 a priori da pradu<;:ao consequentemente voltada para 0 mercac1o, nao deixa mais aparecer a necessidade esponti1nea par aquela expressao, pela coisa mesma. (1 987a, p. 260)


Tal concepC;ao, entretanto, serve apenas de pano de fundo para uma outra mais importante em vista dos objetivos imediatos deste trabalho, ou seja, a medida que a praxis social - elemento transcendental originario - tende a se concentrar em determinadas atitudes de urn sujeito empirico individual. em razao do ja mencionado bloqueio atual das possibilidades de uma ac;ao revolucionaria eficaz, no sentido tradicional. Nessa situac;ao, a atividade te6rica do intelectual responsavel pode perfeitamente adquirir as caracteristicas de uma praxis transformadora da realidade, desde que ele se mantenha fiel a certos principios, dentre os quais Adorno destaca uma disposic;ao de nao transigir em vista dos apelos - onipresentes na sociedade de massas, dominada pela industria cultural - a compreensibilidade e a comunicabilidade do que ele teria a dizer:


Enquanto escritor, far-se-a a experiencia de que, quanto rnais precisa, conscienciosa e adequadamente se expressa, 0 resultado literario sera avaliado como mais dificilmente compreen­ sivel ; enquanto, tao logo se expressa de modo relaxado e irresponsavel, se e recompensado com uma certa compreensao... Contemplar, na expressao, a coisa, em vez de a comunicac;:ao, e suspeito: 0 que e especifico, ainda nao tornado emprestado ao esquematismo, parece brutal, urn sintoma de extravagfmcia, quase de confusao. (Adorno, 1987a, p. 128)


Embutida aqui esta a ideia - certamente polemica - de que as concessoes, as simplifica<;:oes intencionais com urn objetivo pedag6gico que tern em vista os desfavorecidos sao, no fundo, uma acomoda<;:ao resignada ao status quo. 0 desenvol­ vimento exponencial das possibilidades da linguagem, tarefa historicamente levada a cabo pelas classes dominantes, e positivamente avaliado por Adorno como uma reaproxima<;:ao da pr6pria origem da linguagem, a qual, segundo 0 postulado de Walter Benjamin (Benjamin, 1987, p. 17 sS.; 1990, p. 10 ss), estaria no ate divino de - simultaneamente - criar e nomear as coisas. Segundo Adorno,


oCio, ate mesmo vaidade e arrogancia, emprestaram ao discurso da classe superior algo de independencia e autodisciplina. Em virtude disso ela e trazida a oposic;:ao ao seu proprio ambito social. Ela se volta contra os senhores que dela abusam para 0 comando, querendo comanda-los, e recusa-se a continuar a seu servic;:o. Na linguagem dos reprimidos, porem, somente a dominac;:ao deixou seus rastros e a rouba da justic;:a, que a palavra autonoma, integra, promete a todos aqueles que sao suficientemente livres para dize-la sem rancor. (1 987a, p. 129)


Estaria, entao, Adorno defendendo urn resignado recolhimento do escritor as filigranas lingiiisticas, com 0 intuito de se consolar do seu fracasso na tentativa de "realizar" na pratica a filosofia, de transformar 0 mundo ao inves de simplesmente "interpreta-Io"? A meu ver, absolutamente nao. Adorno chama, aqui, a aten<;:ao para a potencialidade dialetica da linguagem, que - como ocorre tamMm com a arte -, levada as ultimas conseqiiencias, se torna independente de sua origem de classe, e se volta contra a domina<;:ao em geral e, portanto, contra os interesses da classe opressora. Cabe aqui observar que, apesar de 0 exercicio da escrita ser em ultima analise individual, nele se plasmam as aspira<;:oes e necessidades da humanidade como urn todo, 0 que vern tambem a caracteriza-Io como 0 elemento transcendental sui generis supramencionado. Ou<;:amos 0 pr6prio Adorno:


Essas forc;:as, que aparecem como aquelas da resistencia individual, nao sao, no entanto, de modo algum, de urn tipo meramente individual. A consciencia intelectual, na qual elas se concentram, tern um momento social, tanto quanto 0 superego moral. Ela se forma a partir de uma representac;:ao da sociedade correta e de seus cidadaos. (1 987a, p. 27)


Contudo - e aqui a influencia de Hegel e mais sensivel que a de Kant -, a constitui<;:ao do a priori transcendental s6 pode se dar no plano de uma confluencia entre aquelas esferas que Kant, a bern da coerencia sistematica, separou, inapelavel­ mente: a gnoseol6gica, a etica e a estetica. Segundo Adorno:


o sonho de uma existencia sem vexame, ao qual a paixao da linguagem se apega, se pinta-Io como conteudo, estEl, de fato, proibido, deve ser estrangulado com perfida alegria. 0 escritor nao pode aceitar a distinc;ao entre a expressao bela e a expressao adequada ao assunto. (1987a, p. 107)


Inumeras passagens da obra posterior de Adorno, nas quais se expressa a necessidade dessa confluencia entre 0 saber, a praxis e a arte, poderiam ser mencio­ nadas aqui, 0 que se torna impossivel por razoes de economia do texto.ll

Entretanto, algo separa inapelavelmente Adorno tanto de Kant, quanto de Hegel, como tambem de Marx: 0 alto teor de incerteza quanto as possibilidades de a humanidade se humanizar definitivamente, superando 0 Iongo tempo de pre-hist6ria em que ela tern estado imersa. Nao M, como em Hegel, a fe inabalavel num espfrito absoluto, que - no tempo certo - aparara todas as arestas do existente. Nao pode haver mais, por motivos mencionados acima, a crenQa marxiana no proletariado como - na condiQao de anticlasse por excelencia - condutor da humanidade a sociedade sem exploraQao. Nem mesmo a apoditicidade do a priori transcendental kantiano pode mais ser garantida, uma vez que a superaQao do carater individual do impulso emancipat6rio se da em virtude de sua media<;:ao social, 0 que para Kant seria uma "antropologiza<;:ao" indebita do elemento transcendental em questao. A incerteza que envolve esse exercicio, que busca nas origens absolutas da linguagem a proje<;:ao de uma reconcilia<;:ao futura da humanidade, leva Adorno a qualifica-Io de quixotesco, sem que haja nesse termo uma desvaloriza<;:ao daquele:


o quixotismo lingLiistico tornou-se urn mandamento (Gebot), porque cada periodo contribui para a decisao sobre se a linguagem como tal, ambigua desde tempos imemoriais, cai vltima da empresa e da mentira consagrada que dela faz parte, ou se ela se prepara para 0 texto sagrado, enrijecendo-se contra 0 elemento sagrado, do qual ela vive. (1987a, p. 297)


Para terminar, deve-se ter em mente que esse exercicio de linguagem, no qual se expressa claramente 0 que chamamos impulso emancipat6rio - essencialmente diferente da competencia comunicativa defendida por Habermas -, coincide com a experiencia filos6fica, cujo poder antecipat6rio de urn estado de coisas reconciliado e inumeras vezes apontado por Adorno. Segue-se urn exemplo de Minima moralia:


Filosofia, como ela deve ser responsabilizada apenas ainda diante do desespero, seria a tentativa de considerar todas as coisas como elas se representassem a partir do ponto de vista da redenc;ao. 0 conhecimento nao tern qualquer luz, a nao ser aquela que brilha sobre 0 mundo a partir da redenc;ao: tudo 0 mais se eSQota na reconstruc;ao e permanece urn pedac;o da tecnica. (1987a, p. 333)


Ainda nesse aforismo, surge uma bela caracterizac;ao do modelo adorniano de a priori transcendental, 0 qual, nao por acaso, encerra Minima moralia:


Quanto mais apaixonadamente 0 pensamento se veda contra 0 seu estar condicionado, em prol do incondicionado, rnais inconscionte e, com isso, rnais funestamonte ele cai vitima do mundo. Mesmo sua propria impossibiJidade ele precisa conceituar, em prol da possibilidade. Diante da exig€mcia, que, com isso, se apresenta a ele, a questao sobre a realidade ou irrealidade da propria redenr;ao e, porem, quase indiferente. (1987a, p. 334)


Aqui se reafirma, primeiramente, a necessidade daquela "intransigencia da teoria", da qual dependeria a verdadeira pr8.xis, do reconhecimento do condiciona­ mento como condic;ao para sua possivel superac;ao. Em seguida, insinua-se - nunca mais do que isso - a ideia nuclear dessa inserc;ao transcendental adorniana: 0 atingir do momento da experiencia filos6fica coloca 0 seu participe na posic;ao de represen­ tante virtual de uma humanidade reconciliada. A realidade des sa reconciliac;ao dependeria de urn crescimento exponencial no numero daqueles capazes de exercitar a experiencia filos6fica no sentido estrito. Mas nem mesmo a nao-realizac;ao da emancipac;ao tira do pensador responsavel a capacidade do exercicio antecipat6rio da mesma, que deve caracterizar 0 seu trabalho. Isso porque 0 sentido da pergunta pela reconciliac;ao tern algo de absoluto, pois ignora-Ia, persistir no caminho contrario a sua realizac;ao, leva, de fato, a urn estado em que ela certamente sera totalmente desprovida de sentido.



DUARTE, R. A. de P. Notes on the "lack of foundation" in Theodor W. Adorno philosophy.

TransIFormIAc;:ao: Sao Paulo, v. 17, p. 39-49, 1994.


mediated transcendental a priori must be searched not in Dialectics of enlightenment but in Minima

moralia.



Refer€mcias bibliograficas


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  11. ROUANET, S. P. Razao negativa e razao comunicativa. In: As Razoes do iluminismo. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1987.

1 Professor clo Departamento cle Filosofia - UFMG - Belo Horizonte - MG