MITO E POLfTICA: NOTAS SOBRE 0 CONCEITO DE DESTINO NO I I JOVEM" BENJAMIN


Ernani CHAVES1


RESUMO : 0 conceito de mito e uma das chaves para a compreensao do pensamento de Walter Benjamin. 0 objetivo deste texto e reconstituir a genese deste conceito com base em suas primeiras formular;:iies, tal como apresentadas em Destino e carater, texto escrito em 1919. 0 presente artigo se divide em duas partes : na primeira, reconstituimos os argumentos de Benjamin, a partir da filiar;:ao do conceito de destino ao dominio de uma Teoria do Direito e sua necessaria inserr;:ao em um modo de "temporaJidade" definido pela "repetir;:iio "; a segunda parte pretende demonstrar que as posir;:iies de Benjamin estiio estreitamente ligadas a uma posir;:ao tamMm politica: seu objetivo era, em nome de um anarquismo confesso, se contrapor a todos os "mitos" nacionalistas (que levaram a Alemanha a guerra) e a necessidade de "Jideres", "condutores" (Fuhrer) para 0 povo. Como exemplo dessa perspectiva poJitica, nos baseamos na confrontar;:ao, sempre presente, de Benjamin com 0 Sionismo.

PALAVRAS-CHAVE: Mito; destino; carater ; repetir;:ao ; anarquismo; sionismo.


I


Urn dos aspectos fundamentais da interpreta9ao adorniana de Walter Benjamin, e que tern alimentado os estudos posteriores sobre 0 tema, e a sua insistencia no lugar estrategico, central, decisivo, que a questao do mito representa na obra de Benjamin. Entretanto, sua originalidade nao reside, pura e simplesmente, em apontar esse lugar central, mas em destacar, com precisao, 0 modo e 0 resultado da investigar;ao benjaminiana: seu modo, uma especie de mimesis positiva aos olhos de Adorno, na medida em que para vencer as forr;as do mito Benjamin precisa assemelhar-se a ele, vestir a sua roupagem para melhor combate-lo (Adorno, 1990, p. 30); seu resultado, o de que Benjamin nao se restringe a uma critica do mito no sentido do Iluminismo, para denunciar nele seu conteudo de ilusao, falsidade e eno, mas sim para "compoI", como "nas boas varia90es musicais", 0 quadro de sua "reconciliar;ao": "A reconcilia­ r;ao do mito e 0 tema da filosofia de Benjamin" (p. 1 5). "Reconciliar;ao" aqui nao implica, evidentemente, uma especie de retorno ao mito ou sua revalorizar;ao num plano mais elevado - e neste ponto Benjamin permanece "iluminista", afastado tanto da "ideia de uma nova mitologia" dos primeiros romanticos quanta da "pura com­ preensao estetica do mito" no Nietzsche de 0 Nascimento da Tragedia -, mas na "superar;ao" do dualismo ontol6gico entre mito e sua reconciliar;ao para, enfim, seculariza-Io. Tal procedimento, em seus principios, ja 0 dizia Adorno, supunha uma visada dialetica. Assim, em que pesem os trabalhos publicados sobre 0 tema (Menninghaus, 1986 ; Janz, 1983), que caminham nas sendas abertas pOI Adorno, embora nem sempre de acordo com sua interpretar;ao, a tentativa de compreender a concepr;ao benjaminiana de mito, por revelar-se uma das chaves de acesso a urn "retrato completo" do seu pensamento (Menninghaus, 1986, p. 7), impoe-se continua­ mente aos interpretes. Escolhemos, como objeto de investigar;ao nos limites deste artigo, urn conceito fundamental, quando se trata da concepr;ao benjaminiana de mito : o de "destino". Intentamos apresenta-Io, em suas linhas mais gerais, acompanhando o movimento de sua genese, no momenta decisivo de sua formular;ao no pensamento do assim chamado "jovem" Benjamin : em Destino e caIi3.ter, texto escrito em 1919, quando Benj amin ainda se encontrava na Suir;a, e publicado em 1921. A escolha desse pequeno texto tern suas razoes ; nele podemos encontrar nao apenas a primeira formular;ao mais acabada do conceito de destino, como tambem 0 inicio de urn conjunto de reflexoes que acompanharao a obra de Benjamin a partir dai : sobre as relar;oes entre mito, direito, violencia e poder (em Critica da vioJencia, de 1920- 1); sobre as relar;oes entre mito e verdade, diretamente acoplada a questao de uma teoria da critica literaria (no ensaio sobre As Afinidades eJetivas, de Goethe, concluido em 1922 e publicado em 1924-5) ; sobre as diferenr;as essenciais entre tragedia "antiga" e "moderna", que concluem pela caracterizar;ao do "drama barroco" como "drama do destino" (em Origem do drama barroco aJemao, a famosa Tese de Habilitar;ao recusada em Frankfurt em 1925 e publicada integralmente em 1928) ; ou ainda, a partir de Rua de mao unica e, principalmente em inumeros fragmentos do Passagen- Werk, as relar;oes entre capitalismo e pensamento mitico. Nossa tentativa de circunscrir;ao dos elementos fundamentais que constituem 0 conceito de destino em Benjamin, com base em Destino e cara ter, orienta-se num duplo sentido : primeiro, a partir das relar;oes entre destino e praticas juridicas, e segundo, a partir da considerar;ao de uma "temporalidade" pr6pria ao destino. Procuraremos mostrar que, no limite, a interrup­ r;ao do destino fatidico, interrupr;ao das " forr;as demoniacas", significa, necessaria­ mente, contrapor ao tempo do mito uma outra forma de temporalidade, tal como as primeiras linhas de A vida dos estudantes (1914) ja indicavam (Benjamin, 1991b, p. 75). Utilizando essa via de acesso, buscamos alcanr;ar dois objetivos "estrategicos" que se cruzam e se complementam : 1) mostrar que textos fundamentais da chamada fase da "maturidade", em que tantas vezes os conceitos de mito e destino aparecem, s6 sao compreendidos a luz dos textos da juventude, 0 que nao significa que nao haja nenhuma cesura entre eles, mas que, do mesmo modo, nao se pode reduzir os textos da "juventude" a urn momento embrionario, de pouco valor te6rico ; 2) na contra-mao de Scholem, de Adorno e da maio ria dos interpretes, mostrar que a critica do mito no "jovem" Benjamin tern tamMm urn aspecto proflindamente politico. 2 Trata-se de chamar a discussao 0 seu "anarquismo messianico", destacando, para tal, sua permanente confronta<;ao com 0 sionismo.



II


o ponto de partida de Destino e carater e a critica da interpreta<;ao corrente desses dois conceitos, fundada na interdependencia de ambos por meio de uma liga<;8.o de ordem puramente causal. Nesta perspectiva, 0 carater "e descrito como causa do destino" (1991b, p. 171) : de urn lado, poder- se-ia conhecer 0 carater de uma pessoa em todas as suas particularidades; de outro, os acontecimentos do mundo s6 poderiam ser conhecidos nos dominios em que se referem a esse carater, de tal maneira que se pode afirmar com exatidao "tanto 0 que de cada carater e experimen­ tado de novo, quanto 0 que dele poderia ser consumado". Tanto num caso como no outro, 0 destino e derivado do carater, estabelecendo-se entre eles uma arbitraria rela<;8.o de causalidade, acabando pOI reduzir 0 dominio do carater ao do etico e 0 do destin�, ao religioso (1991b, p. 173). Benjamin considera essa rela<;ao " arbitraria", na medida em que 0 funcionamento do sistema de sinais (Zeichen), num caso e noutro, e bern diferente. Os sinais do carater, por exemplo, sao delimitados pelo cOIpo, tal como nos indica 0 procedimento do hor6scopo; por sua vez, os sinais do destino incluem os corporais e 0 ultrapassam, atingindo os fen6menos da vida exterior. Dai, portanto, que toda tentativa de estabelecer entre esses dois dominios urn nexo de causalidade resulta arbitraria, infrutifera, equivocada. Benjamin analisa com mais vagar - por motivos muito claros, como veremos - a conseqiiencia desastrosa de uma tal conex8.o arbitraria, no campo do destino.

De fato, atrelando-se 0 dominio do destino ao religioso, acaba-se por estabelecer uma outra conexao, nao menos arbitraria: entre destino e culpa. Assim, torna-se usual afirmar que 0 destino infeliz e uma resposta de Deus ou dos deuses a dividas religiosas, de tal modo que uma vida feliz deve ser uma "vida inocente, uma vida sem culpa, sem macula de qualquer especie" (1991b, p. 173 -4). 3 Para contrapor- se a essa concep<;8.o, num procedimento analogo a outros pensadores, Benjamin recorre aos gregos para mostrar que e possivel pensar urn outro conceito de destino : "Na formayao greco- classica da ideia de destino, a felicidade que cabe a uma pessoa nao e compreendida, em hipotese alguma, com a confirmayao de sua vida inocente, mas com a experimentayao do endividamento mais pesado, 0 da hybris. Assim, nao se

encontra no destino nenhuma relayao a inoc€mcia" (1991b, p. 174).4 Descartada a ideia de uma ligayao natural, causal, entre destino e infelicidade, isso nao quer dizer que o seu contrario seja verdadeiro. A argumentayB.o de Benjamin - e nisso consiste, a nosso ver, seu trayo mais caracteristico - caminha justamente para demonstrar que a esfera do destino nao pertence nem a ideia de infelicidade (e para isso serviu a referencia aos gregos), nem as de felicidade ( Glick) e bem- aventuranya (Seligkeit), como 0 querem os "modernos ". Ao contrario, afirma Benjamin, "a felicidade e, muito mais, aquilo que arranca os felizes da estreita ligayao ( Verkettung) ao destino e a teia do proprio destino" (idem).

Afastando-se tanto da concepyao que atribui aos gregos, que separa vida feliz e inocencia, quanto da concepyB.o "moderna", que une destino a infelicidade e a culpa, enraizando de vez a questao do destino no dominio do religioso, Benjamin avanya sua tese de que essa outra ordem, em que de fato se deve buscar 0 dominio que e proprio ao destino, sup6e uma outra "balanya", na qual "bem-aventuranya e inocencia ficaram tao leves, que evaporaram": a "balanya" do direito. Em oposiyao ao reino da justiya ( Gerech tigkeit), a ordem do direito (Recht) e 0 terreno fertil onde podem brotar as sementes da culpa e da infelicidade. Assim, se hoje consideramos que 0 destino per­ tence ao dominio do religioso e porque, no decorrer da historia, houve uma inversao de tal monta que os homens "confundiram" direito com justiya, aquele mascarando-se com esta, conduzindo a humanidade a se enredar cada vez mais nas teias da fatalidade :


Equivocadamente, por causa de sua troca enganosa com 0 mino da justiya, a ordem do direito, que e apenas urn residuo do plano demoniaco da existencia humana, determinou nao apenas suas [a dos homensl relayoes com as normas juridicas, mas tambem com os deuses, conservou-se para alem do tempo em que se inaugurou a vitoria sobre os dem6nios. (1991b, p. 174)


A posiYB.o de Benjamin, esta enfim, mais clara : pode parecer, a primeira vista, que sua critica da ligayao que se estabeleceu entre destino e religiao desembocou numa valorizayao do destino. Nada mais distante de Benj amin que tal ideia. 0 que ele pretendia, de fato, ao desligar destino e religiao, era indicar 0 campo especifico do destino, definido na relayao entre culpa e inocencia, felicidade e infelicidade : 0 campo do direito. Sua critica do direito, portanto, atinge dois alvos ao mesmo tempo : ela serve tanto para desmascarar a "troca enganosa" que nos faz confundir direito e justi9a, quanto nossa cren9a de que 0 direito e uma elevada elabora9ao racional, uma conquista inelutavel da "civilizar;ao", que nele nada mais M de mitico, que 0 direito, enfim, venceu a "luta contra os demonios". Uma teoria do direito s6 po de fundar-se, segundo Benjamin, na conexao necessaria que se estabelece entre a ar;ao do destino, o aparecimento da culpa e a sua indispensavel expiar;ao. Uma tal conexao nao e "arbitraria" - tal como a que se efetua entre destino e dominio do religioso - nem exterior, como uma especie posterior de aplicar;ao de urn esquema a outro, mas 0 conceito de direito, desde sua origem, e tributario do desenvolvimento dos conceitos de destino, culpa e expiar;ao (Menninghaus, 1982, p. 99). Entretanto, a ordem do direito nos engana na medida em que a supomos capaz de "vencer os demonios". Ao contrario, como Benjamin 0 diz, 0 direito "e apenas urn residuo do plano demoniaco da existencia humana". Nao e 0 dominio do direito, portanto, que pode, historicamen­ te, servir de exemplo para demonstrar a vit6ria da humanidade "contra os demonios", contra as forr;as do mito, mas a trag8dia grega. Nesta, "a caber;a do genio se elevou, pela primeira vez, das nevoas da culpa" (Benjamin, 199 1b, p. 174).


A referencia a tragedia grega nos situa, definitivamente, no cerne da concep9ao benj aminiana de destino. Benjamin subverte 0 esquema explicativo mais classico da trag8dia, qual seja, 0 de que 0 her6i postado diante do seu destino luta contra ele para, enfim, sucumbir as suas for9as ; no limite, sucumbir a pr6pria culpa. Em oposi9aO a esse esquema, Benj amin entende a trag8dia como a interruP9ao do fluxo inexoravel do destino, sem que isso venha a significar uma especie de retorno a pureza do homem, uma liberta9ao da culpa e da expia9ao ou ainda uma reconcilia9ao com Deus. Afastando-se de Hegel neste ponto, Benjamin nega toda tentativa de restabelecimento da "ordem etica do mundo" como a promessa cumprida na trag8dia.5 Se - e agora de acordo com Hegel - a esfera da lei e do direito e, para Benjamin, essencialmente estranha a "moralidade substancial" da vida her6ica na epopeia e na trag8dia, ele nao reconhece - como Hegel - que 0 direito seja 0 reino da liberdade realizada (1986b, p. 196), insistindo, como vimos, no pertencimento intimo entre direito e destino. Embora Hegel nao deixe de notar que "violencia e tirania podem ser urn elemento do direito positiv�" (1986b, p. 34-5), remete este fenonemo do mundo empirico ao mundo do acaso, que nao pertence a natureza do direito. Na perspectiva de Benjamin, ao contrario, direito e violencia sao irmaos siameses. Por isso, a trag8dia nao poderia visar a nenhuma especie de reconcilia9ao etica. Antes, ela vive da tentativa feita pelo homem moral "ainda mudo, ainda menor", de se elevar "no estremecimento deste mundo doloroso ". 0 her6i surge, justamente, desse "paradoxo" : " 0 paradoxo do nascimento do genio na mudez moral, a infantilidade moral e 0 sublime da tragedia" (Benjamin, p. 175) 6 Nem inocente, nem culpado (dai sua "infantilidade moral"), 0 homem profano se reconhece, na tragectia, como "melhor que os seus deuses". Ora, a ordem do direito e, em todos os aspectos, a contraposiyao da experiencia do "tragico", pois sua condenayao nao visa, prioritariamente, condenar para a aplicayac:i da pena, mas sim para a produyao da culpa. 0 destin�, neste diapasao, e definido como "a relayao de culpa dos seres vivos" (1991b, p. 175) 7 Sua 16gica e a do mito, isto e, a 16gica que considera a vida como uma condenayao, que a vida, antes de mais nada, e condena9ao para, em seguida, tomar-se culpa (1991b, p. 175). Afastando sua concepyao de destino do "reino vegetal", Benjamin quer fazer a sua "assinalayao hist6rica", quer mostrar como a "16gica do mito" pode ser desmascarada pela sua inseryao " hist6rico- filos6fica".

o direito aparece, portanto, como a perpetuayao da ordem mitica nas sociedades que pensavam te-la eliminado. 0 juiz pode encontrar em todos os atos humanos a ayao inexoravel do destino ; 0 processo de julgamento penal descreve no seu termo nao mais urn homem, mas urn "homem pure e simples", uma " vida simples", "natural", vida entre outras vidas, determinada na sua "aparencia" pela sua participar;:ao "natural" no universo da "culpa" e da "infelicidade" (1991b, p. 175). It justamente essa "naturalizayao" da culpa que toma 0 direito urn "residuo do plano demoniaco da existencia humana". S6 uma operayao de ordem " fil6sofico-hist6rica", tal como Benjamin busca empreender, poderia nos libertar dessa "troca enganosa". Como vemos, longe de repetir a argumentayao iluminista, Benj amin comeya a escrever a "Dialetica do esclarecimento".

Ap6s delimitar 0 dominio do destino na ordem do direito, Benjamin introduz urn segundo aspecto de sua concepyao de destino : 0 de sua "temporalidade". Para isso, recorre ao exemplo da pratica dos videntes. Inicialmente, a "vidente" (a weise Fra u, literalmente "a mulher sabia") age de modo analogo ao procedimento judiciario, na medida em que acopla a vida humana as cartas e aos planetas, introduzindo-a no "conjunto das relayoes que fazem do homem urn culpado", pela "simples tecnica" de, por meio de sinais, encontrar no homem uma " vida natural", conectada com os astros e o cosmos, fazendo parte de seu movimento. Do mesmo modo, aquele que consulta a vidente abdica de qualquer outro tipo de vida em favor daquilo que a torna culpabilizada. 0 argumento utilizado em relayao ao direito toma a se repetir: e a "culpa" que introduz 0 homem no conjunto dos seres vivos, fazendo com que sua vida seja reduzida ao "natural", a semelhanQa do movimento dos astros e dos planetas. Benjamin entende que esse movimento de culpabilizaQao " naturalizadora" constitui uma certa figura temporal, bern diferente de outras temporalidades, seja a da salvaQao, a da musica ou mesmo a da verdade (1991b, p. 176). 0 modus operandi da temporalidade pr6pria ao destino nos e "ensinado" pelas cartomantes e quiromantes. A esse tempo, Benjamin chama de "parasitario" (1991b, p. 176).

o que significa dizer que 0 tempo do destino e "parasitario"? Em primeiro lugar, que esse tempo nao conhece 0 "presente", pois pode, a qualquer momento, ser igualado a urn outro tempo que ja passou. Em segundo lugar, que nao e autonomo, que "parasita" urn outro tempo, 0 tempo de uma " vida superior", que e muito pouco "natural". Enfim, na medida em que nao conhece 0 "presente", estao eliminados os "momentos fatidicos" (a nao ser nos "pessimos romances", afirma Benj amin), podendo-se conhecer do passado e do futuro apenas algumas de suas "variaQoes particulares".


Definindo 0 tempo do destino - e, por conseguinte, 0 do mito - como "parasi­ tario", Benj amin da continuidade as reflexoes iniciadas em A vida dos estudantes - e cuja formulaQao mais importante, ate Destino e can!lter, aparece em Drama barroco e tragedia, outro pequeno texto de 1916, onde germinam as primeiras ideias que, futuramente, serao desenvolvidas na Tese de HabilitaQao ; neste texto, Benjamin se empenha em distinguir diferentes niveis de temporalidade : a "mecanica", cuja imagem preferencial ja e a dos "ponteiros do reI6gio", tempo "homogeneo e vazio", como dira muitos anos depois nas Teses "Sobre 0 conceito de Hist6ria", que nao diz respeito a nenhum acontecimento empirico particular ; a temporalidade propriamente hist6rica, essencialmente " finita", que exige seu termo, sua interruPQao, confundin­ do-se nesse ponto com a temporalidade "messianica"; a temporalidade do "tragico" que, a diferenQa da temporalidade hist6rica, nao diz respeito ao universal, ao geral, ao que e comum a humanidade, mas sim ao individual, ao tempo que e pr6prio do "herOi" e nao de todos, mas que, a semelhanQa do tempo hist6rico, exige tambem seu acabamento, sua interruPQao, relacionando-se, do mesmo modo, ao tempo "messia­ nico". Dessa maneira, construindo uma especie de " fenomenologia do tempo" (Menninghaus, 1982, p. 146, nota 16). Benjamin desde seus primeiros escritos procura afastar-se tanto de uma concepyao de tempo objetivo, que 0 considera mera sucessao de eventos pontuais, interiores e exteriores, como tambem de uma concepyao dirigida pelas regras definidas pelo " formalismo das condiyoes kantianas a priori" (Tiedemann, 1987, p. 95). Neste quadro, "Destino e carater" introduz mais uma possibilidade de se conceber a temporalidade com base no conceito de destino : a temporalidade pr6pria do mito. Podendo tornar-se igual a urn tempo que ja passou, a temporalidade do destino e a da "repetiyao" ou, como Benjamin dira tanto no ensaio sobre As Afinidades eletivas, quanto no Origem do drama barroco alemao ou ainda em urn fragmento do Passagen- Werk, 0 tempo do "Eterno Retorno" (Benjamin, 1991a, p. 137, 313; 1991c, p. 178) ; dependendo de u rn outro tempo, "tempo de uma vida superior" (da divindade e dos seres mitol6gicos em gera!), 0 tempo do destino nao pode alcanQar seu termo, nao pode tornar-se messianico, pois esta voltado a infinita repetic;ao ; desconhecendo o "presente" (pois 0 presente "ja foi'"), impede 0 gesto her6ico, 0 momenta da decisao ou da passividade, 0 momenta do silencio em que 0 her6i, "paradoxalmente", ao assumir a sua "culpa", liberta-se dela ; do mesmo modo, pela repetic;ao infinita que 0 caracteriza, 0 tempo do destino pouco ou nada sabe do passado (pois ele e "igual" ao que vern depois) e pouco ou nada pode dizer do futuro (pois a "predic;ao" e tambem repetic;ao, reiterac;ao do que ja passou). Desse modo, sua nao- autonomia como sinonimo de "repetic;ao" interdita ao tempo do destino toda especie de considerac;ao acerca da liberdade e autodeterminac;ao possiveis aos individuos. Aos que se deixam reger por ele, longe esta a conquista da "maiaridade".

Benjamin afirma que a comprovac;ao dessa ideia de "tempo parasitario" vern do trabalho das cartomantes e quiromantes. Sao elas que consideram a vida humana regida por outras determinac;oes, que nao as impostas pela pr6pria liberdade e autonomia do sujeito. Entretanto, cartomantes e quiromantes possuem uma ambigui­ dade que 0 direito nao tern: de inicio, Benj amin as iguala a ordem do direito, na medida em que introduzem 0 homem no mundo da culpa ; entretanto, diferenciam-se do direito num aspecto fundamental aos olhos de Benjamin : do mesmo modo que a trag8dia grega, mas por outras vias certamente, as praticas da videncia fundam uma noc;ao de destino totalmente desvinculada da de carater, nao estabelecendo entre ambas nenhuma relac;ao de " causalidade"; alem desse aspecto, existe urn outro que faz Benjamin valorizar positivamente as praticas da videncia : e que estas sao vistas como uma "pratica interpretativa" entre outras. Do primeiro ponto de vista - isto e, 0 das relac;6es entre destino e carater - as praticas da videncia, por assumirem integralmente como pressuposto 0 carater "natural" da vida do homem, acabam por aproximarem-se da trag8dia, ja que, ao desvincular os dois termos, destino e carater, de sua conotac;ao religiosa e moral, podem tambem afirmar que somos todos "culpados e inocentes". Deste ponto de vista, 0 que Benjamin esta valarizando na pratica da videncia, em detrimento da pratica juridica, nao e nem 0 que haveria de "irracional" ou "intuitivo" na primeira, em oposic;ao a 16gica do direito, mas 0 fato de este nao reconhecer como seu pressuposto basico a considerac;ao da vida "natural", abrigando-se, indevidamen­ te, sob uma "vestimenta" que nao the cabe. Assim, a ligac;ao que a pratica da videncia acaba realizando entre destino e carater nao aparece como "arbitraria", falsa ou inapropriada para Benjamin, por se reconhecer ancorada na "vida natural", par naD "se vestir" com 0 etico ou 0 religioso. Considerando 0 outro ponto de vista - isto e, D da relac;ao entre praticas de videncia e praticas de interpretac;ao -, se Benjamin, na epoca, declarou que "Uma filosofia que nao inclui a possibilidade do vaticinio pela borra de cafe e nao pode explica-Ia, nao pode ser uma verdadeira filosofia (Scholem, 1989, p. 68), 8 tais palavras nao podem ser entendidas como urn elogio desmesurado, acritico, as praticas da videncia, mas como uma reiterac;ao de sua importEmcia - assim como de todo 0 conjunto das disciplinas mEmticas -, enquanto uma "pratica interpre­ tativa" que poderia reintroduzir na filosofia, tal como 0 Programa de uma Filosofia por vir 0 enunciava, a dimensao da Lehre (doutrina) enquanto " ensinamento", "sabedoria", "instruc;ao", no seu significado original na Tora hebraica, considerando teologia e filosofia nao mais como campos antagonicos. Nao se trata, portanto, como uma leitura demasiado rapida pode sugerir, da formulac;ao de que filosofo e vidente se igualam do ponto de vista do conteudo da reflexao, mas que 0 filosofo "por vir" deve prestar atenc;ao em praticas que, exteriores ao discurso filosofico, podem contribuir para subverter a direc;ao que historicamente the foi dada. Dai a critica dirigida, no texto anteriormente referido, a insuficiencia do conceito kantiano de " experiencia", assim como, anos depois, no "Prefacio" ao Origem do drama barroco alemao a supremacia do "sistema", ambos julgados insuficientes para formular corretamente os problemas de nossa epoca. Como Scholem bern observa, e dentro desta perspectiva que tambem devemos ler os textos sobre 0 haxixe (1989, p 68).

Voltando a Destino e carater, ja se pode ver que tambem nele as "praticas da videncia" aparecem no interior da "Dialetica - benjaminiana - do esclarecimento". Isso quer dizer que praticas manticas, 0 "esoterismo" em geral, nao sao por si so uma vantagem, urn procedimento e uma pratica alternativa a uma reflexao acorrentada a razao. Lembremos apenas que, em Origem do Drama barroco alemao, Benjamin deplora a debilidade da filosofia "derivada do seu contato com 0 esoterismo": uma confianc;a quase cega na "visao", explicitamente referida as doutrinas neo-platonicas do paganismo e a " intuic;ao", tal como concebida pela fenomenologia de sua epoca (Benjamin, 1991a, p. 215).

Com essas considerac;oes, fechamos 0 circulo da argumentac;ao de Benjamin nesta primeira formulac;ao do conceito de destino. Como vimos, criticar sua traduc;ao no religioso implica remeter 0 destino para onde nao parece existir nenhum vestigio seu : uma teoria do direito. Investigar sua eficacia, pOI sua vez, supoe desenhar os contornos da temporalidade que the e propria. Num caso e noutro, Benjamin realiza a sua assinalac;ao historico-filosofica.



III


Nao e ocasional que Destino e carater desenvolva semelhantes ideias. Podemos dizer que 1919, quando este texto foi escrito, e urn ana extremamente importante na vida de Benjamin. Sua permanência na Suíça - onde chegou em julho de 1917, permanecendo até novembro de 1920 - primeiro em Zurique, depois em Berna e Muri, se insere num quadro mais geral que é o da eclosão da Primeira Guerra. Benjamin era, assim, um dos inúmeros refugiados - uma conjunção de várias nacionalidades e diversos matizes ideológicos, espalhados nas grandes cidades suíças - que procura­ vam com a neutralidade suiça expressar seu protesto "pacificista". Durante esse ano, Scholem reside "a dois minutos" dele e de Dora, o que significa intermináveis discussões sobre teologia e mística, além da leitura, por exemplo, do livro de Hermann Cohen sobre o conceito de experiência em Kant; no início do ano conhece Hugo Ball e logo depois, por intermédio dele, Ernst Bloch. Em junho, defende sua tese de doutorado na Universidade de Berna. Apesar de ter presenciado suas longas conversas e discussões com Ball e Bloch, Scholem insiste em reafirmar o pouco interesse de Benjamin pela política. Entretanto, como ele mesmo o testemunha, é por intermédio de Bloch que Benjamin entra em contato com o livro de Sorei. Réflexions sur la violence (Scholem, 1989, p. 92)10 Ora, longe de amenidades ou coisas do gênero, as conversas entre esses três homens giravam também em torno de política. Poderíamos dizer que a obra de Sorel e seu "anarco-sindicalismo" era um ponto comum de interesse entre eles. Sorel, de fato, vinha reforçar o "anarquismo" que o próprio Benjamin atribuía a si mesmo. O impacto das Réflexions pode ser medido não só por Benjamin ter dedicado a ele o ensaio "Crítica da violência", de 1921, como também pela repercussão em toda a sua obra posterior (Kambas, 1992). Por outro lado, como negar um interesse pela política, se o próprio Benjamin planejava escrever uma série de textos que, justamente, tinham a política como tema? De fato, em carta a Scholem, datada aproximadamente de 1.12.1920, ele expunha sua "trilogia" sobre política: uma crítica filosófica de Lesabéndio, o romance fantástico de Paul Scheerbart, intitulada "Der wahre Politiker" (infelizmente perdido), que deveria valer como uma crítica do "ativismo infantil" de Kurt Hiller, velho adversário desde os tempos do Movimento de Juventude; uma "Dissolução da Violência" (provavelmente absorvido em Crítica da Violência) e "Teleologia sem meta final", provavelmente jamais escrito. Estes dois últimos textos teriam um título comum: "Die wahre Politik" (Benjamin, p. 223, 235, 237, 247).11


Esse "anarquismo" confesso, cujos traços a crítica do direito em Destino e caráter deixa entrever, faz parte, como o indicou Lowy (1983), de uma atitude comum a um conjunto de intelectuais judeus, inconformados com os rumos tomados pela social­ democracia e que, por isso, enveredaram por posições anarquistas. Nessa perspectiva, a crítica do Estado e sua intromissão na cultura, a crítica da Universidade, que transformou ciência e pesquisa em profissão e ganha-pão, a crítica da instituição familiar e do casamento como meta necessaria a ser alcanQada pelo jovem, tal como aparecem em A vida dos estudantes, ja conteriam claros sintomas desse " anarquismo" que, segundo Lbwy, deitaria suas raizes, em ultima inst€mcia, no "anticapitalismo romantico". "Anarquismo messianico", bern entendido, porque suporia a existencia de urn paraiso perdido a ser reencontrado, tal como as " imagens ut6picas" do reino messianico ou da RevoluQao Francesa evocadas naquele texto l2 Do mesmo modo, Lbwy destaca as leituras feitas por Benjamin de Gustav Landauer, Strindberg, Nietzsche e a admiraQao por Tolst6i, nomes estritamente vinculados, no comeQo do seculo, as posiQoes dos anarquistas.

Gostariamos de nos deter na discussao de Benjamin com 0 sionismo, na medida em que ela esta diretamente relacionada, a nosso ver, com a sua posiQao critica diante do mito. Vindo de uma familia abastada e assimilada, somente em 1912, quando conhece 0 escritor e sionista Ludwig Strauss e que Benjamin se ve diretamente confrontado com a sua "identidade judaica" e com 0 problema do sionismo. 13 Se podemos dizer que ele se reconcilia com sua "identidade judaica", 0 mesmo nao se pode dizer de sua posiQao diante do sionismo :


Gostaria de dizer uma palavra sobre 0 Sionismo [escreve ele a Strauss]... Nao encontrei principios como os seus no trabalho judaico de nenhum sionista que conheci. Nao achei que os sionistas tornaram a sua vida judaica, que tinham mais do que vagas representagoes do espirito judaico. 0 judaico era seu impulso natural, 0 sionismo, coisa de organiza90es politicas. Sua personalidade nao era determinada interiormente, de modo algum, pelo judaico : propagam a Palestina e bebem como alemaes. (Benjamin, 1991b, p. 838)


Na mesma carta, distinguia entre tres tipos de Sionismo : 0 palestin�, considerado uma "necessidade natural"; 0 alemao, que primava pela "imperfeiQao"; e 0 sionismo cultural, " que enxerga valores judaicos por toda parte e trabalha por eles". E a esse ultimo tipo que Benj amin diz se sentir filiado. Na verdade, ele critica 0 sionismo alernao por desconhecer a ideia de "cosmopolitismo", em tudo oposta ao "nacionalismo" cultivado por seus militantes e que ele, algumas vezes, com mordacidade cruel, chamava de "sionismo agrario", referindo-se a uma especie de recrutamento de trabalhadores e de militantes para seguirem para a Palestina, a tim de trabalhar na agricultura. Segundo 0 testemunho de Scholem, na opiniao de Benjamin 0 sionismo deveria se livrar de tres coisas : "a orientaQao agricola, a ideologia racial e os argumentos de Buber sobre sangue e experiencia" (Scholem, 1989, p. 38).

E o nome de Martin Buber que estabelecera a ligaQao entre anarquismo, sionismo e critica do mito. De fato, Benjamin conclui Destino e carater com a constataQao de que 0 direito e uma "troca enganosa", enquanto 0 her6i tragico, por sua vez, representava 0 momenta na hist6ria da humanidade em que 0 homem venceu as " foryas demoniacas". Expressao "moderna" do pensamento mitico, 0 direito reencena o "drama do destino", conjugando em seus procedimentos e ordenamentos, culpa, pecado e expiayao. Por que no direito e nao, por exemplo, na religiao? It que religiao e conhecimento hist6rico-filos6fico tern, no presente, a funyao de fazer a assinalayao hist6rica do mito e assim, vencer as " foryas demoniacas". Religiao e conhecimento hist6rico- filos6fico representam 0 papel antes desempenhado pelo her6i tragico. A posiyao que Benjamin defende em relayao a religiao e, neste momento, a de Hermann Cohen. Admirador, ouvinte das aulas de Cohen em Berlim e atento leitor de seus livros, Benjamin, seguindo Cohen, concebe as religioes monoteistas da revelayao como opostas ao mito, como tentativas de libertar a religiao das amarras do mito (Cohen, apud Menninghaus, 1986, p. 20). Scholem formulou assim essa questao :


o impulso religioso original inerente ao judaismo, que encontrou sua expressao valida no monoteismo etico dos Profetas de Israel e sua formulaQiio conceitual na filosofia judaica da reJigiiio durante a Idade Media, sempre se caracterizou como uma reaQiio contra a mitologia. Em oposiQiio a unidade panteista, no mito, de Deus, cosmo e homem, e em oposiQiio aos mitos da natureza das reJigioes do Oriente Proximo, 0 judaismo visava uma separaQiio raclical desses tres dominios ; e, acima de tuclo, considerou fundamentalmente intransponivel 0 abismo entre Criador e Sua criatura.

o culto judaico implicava renlincia, ou mesmo rejeiQiio polemica, das imagens e simbolos nos quais 0 mundo mitico encontrava expressiio. 0 judaismo empenhou-se em desbravar uma area, a da revelaQiio monoteista, da qual a mitologia ficaria excluida. Aqueles vestigios de mito que foram aqui e aeola preservaclos, viram-se despojados da sua forQa simboliea primitiva, sendo tomados num sentido puramente metaforieo. (1988, p. 106-7)


o que esta em questao aqui, nesta rejeiyao do mito, e 0 problema teol6gico do mal, que acaba por demarcar os limites entre a perspectiva filos6fica e a mistica. It que para 0 judaismo "racional" (a expressao e de Scholem), solidificado na Idade Media

e que encontra em Cohen urn representante emerito, 0 problema do mal nao tern importancia em si mesmo. A preocupayao maior era com a "pureza" de Deus, cuja preservayao dependia, em primeiro lugar, da luta contra 0 mito e as representayoes antropom6rficas. Para Cohen (apud Scholem, 1972, p. 35) : "0 Mal e inexistente... Urn poder do Mal s6 existe no mito". Em oposiyao aos " fil6sofos" do judaismo " racional", os cabalistas consideravam que 0 problema do Mal deveria ser enfrentado e nao descartado para os confins do pensamento mitico.

Adotando a posiyao de Cohen e da tradiyao do judaismo "racional" (0 que quer dizer que nem sempre Benjamin tomou 0 partido da " mistica", aspecto sempre enfatizado pelos interpretes), Benj amin se alinhava contra Martin Buber, urn dos grandes lideres do movimento sionista. Suas relayoes com Buber sempre foram tensas e Benjamin muito reticente a todas as tentativas de aproximayao, embora tivesse mantido com ele urn permanente dialogo (0 Diano de Moscou, por exemplo, foi publicado na Die Kreatur, revista dirigida por Buber, embora Benjamin sempre tivesse recusado ser colaborador permanente da revista Die Jude, tambem dirigida por Buber).

Mas, de acordo com Scholem, Buber, seguindo uma " forte inspira�ao nietzscheana", acredita que "a predisposi�ao mitica e caracteristica dos judeus desde as origens". Segundo Ze'ev Lewy, a dicotomia "contra ou a favor do mito caracterizou 0 pensa­ mento judaico (principalmente no circulo cultural alemao) nas primeiras decadas deste seculo" (1988, p. 988). Assim, poder- se-ia dividir as fac�6es em tres grupos : 1) a de Cohen, para quem "mito e essencia do judaismo eram, fundamentalmente, opostos urn ao outro"; 2) a de David Neumarks, para quem 0 mito fora apenas uma etapa no desenvolvimento do monoteismo judaico, urn "modo de interpreta�ao primitivo", substituido por uma "amadurecida visao religiosa" ; 3) a de Buber e Franz Rosenzweig, fortes criticos de todas as tendencias que desvalorizavam 0 mito. Buber, por exemplo, considerava "positiva a rela�ao com os elementos mitol6gicos do judaismo" (1988, p. 992).

Certamente este nao e 0 lugar para se examinar de perto se as criticas de Benj amin a Buber sao procedentes, se 0 sionismo tal como Benjamin 0 critica e 0 mesmo professado por Buber. Cabe tao-somente ressaltar que 0 alvo mais imediato de Benjamin, 0 que leva uma posi�ao critica radical em rela�ao a Buber, e a implica9ao entre "rejuvenescimento do judaismo", e "retomada dos elementos mitologicos do judaismo", que se encontra no cerne da obra de Buber. Segundo Anatol Rosenfeld, a "vivencia mitica" significa para Buber a possibilidade de


arrancar 0 fato ou objeto do contexto causal e do tecido das mediac;:6es empiricas, apreendendo-os com toda a paixao da alma na sua concretude singular e relacionando-os, em vez de com causas e efeitos, com seu proprio conteudo e significado, como manifestac;:6es do mundo inefaveL (1993, p. 92)


Vejamos 0 proprio Buber : e dessa "vivencia mitica" que


resulta a intuic;:ao empirica inadequada do homem primitivo... mas, por outro lado, seu sentimento exaltado em face do Irracional na experiencia particular e em face do que nela nao pode ser entendido a base de outros eventos, mas que somente pode ser apreendido em si mesmo como simbolo de urn contexto secreto, supracausal, com 0 signo intangivel do absoluto. Ele instaura tais eventos no mundo do divino: ele os mitiza. (Buber apud Rosenfeld, 1993, p. 92)


Buber ve presente essa tendencia a mitifica�ao nao apenas no homem primitivo, mas ate nas sociedades ditas "civilizadas", surgindo em "tempos de grande tensao e intensidade de experiencia" (Buber falava do seu proprio tempo, sem duvida !), que produzem no homem uma desconfian�a em rela�ao a cadeia de " causalidade" com que os fatos eram explicados, ascendendo para algo significativo " alem da causalida­ de", abrindo, portanto, 0 caminho para 0 Mito :


Mesmo hoje, qualquer homem verdadeiramente vivo encontra-se numa relac;:ao semelhante em face do homem que considera seu heroi. Podendo embora inseri-lo na cadeia causal, tende a mitiza-lo porque a contemplac;:ao mitica abre uma verdade mais profunda e plena que qualquer considerac;:ao de ordem causal. Assim, 0 mito e uma func;:ao eterna da alma. (p. 92-3)

Ora, como vimos, a critica benj aminiana a "cadeia da causalidade" segue em diregao claramente oposta : nao se trata de "redescobrir" a potencia das forgas miticas, mas de demonstrar, com sua assinalagao historico-filosofica, a imbricagao entre "cadeia de causalidade" e " forgas miticas."


Neste diapasao, a ideia de urn " mito judaico" so poderia aparecer como extremamente problematica para Benjamin, como tributaria da ideia de urn "destino" do povo judeu, destino esse com 0 qual sionistas e anti-semitas concordavam plenamente : a realizagao completa do povo judeu e de sua cultura nao poderia se dar em uma terra nao-judaica. Com isso, queremos dizer que 0 fato de Benjamin nao ter seguido para a Palestina para trabalhar na Universidade de Jerusalem, no final dos anos 30, como era desejo de Scholem e como 0 proprio Benjamin havia se compro­ metido formalmente a fazer, nao se deve apenas a paixao por Asja Lacis ou pelas suas inclinagoes marxistas, mas por uma desconfianga enraizada em relagao a ideia do retorno a "terra prometida". Podemos dizer que e essa mesma critica do " mito judaico" que norteia sua critica da interpretagao de Kafka, ja nos anos 30, feita por Max Brod, como vemos em carta a Scholem, de 12 de junho de 1938 : "0 'significado ao mesmo tempo realista-judaico ' do 'Castelo' oculta os tragos repelidos e aterrorizantes com os quais 0 mundo superior em Kafka e equipado, que ja deveria ser suspeito aos sionistas, em prol de uma interpretagao edificante".

Pode-se, portanto, encontrar na critica benjaminiana do mito, tal como e formulada nessa epoca, urn direcionamento politico preciso. A critica do sionismo "oficial" (nao esquegamos, entretanto, que Benjamin nao identifica sionismo e judaismo, ou seja, 0 sionismo nao poderia erigir-se em porta-voz da "cultura judaica") se entrelaga a critica de todos os outros "mitos" que povoavam a Europa e que levaram a Alemanha a guerra, com 0 apoio entusiasmado e extasiado da populagao : 0 nacionalismo exacerbado e a necessidade de urn "Fuhrer", urn "condutor", perigos que nem os sionistas, nem os social- democratas conseguiram exorcizar. A critica do mite implicava, portanto, no plano imediato, a rejeigao dos emblemas justificadores da guerra, e, no plano mediato, reflexiv�, uma concepgao de critica fundada numa filosofia da historia. Critica do mito, concebido como sinonimo de subserviencia ao "destino" e critica dos movimentos politicos "mitificadores" caminhavam de par. 0 "jovem" Benjamin, pretensamente apolitico, abria caminho em diregao ao "materia­ lismo". Em 1921, inspirado em Weber, mas ao mesmo tempo distante dele, escrevia "Capitalismo como religiao", em que fazia uma critica do Capitalismo a partir da sua consideragao como uma especie de "religiao da culpa" elevada ao extrema maximo : "0 Capitalismo - como deve ser provado nao apenas no Calvinismo, mas tambem nas demais orientagoes cristas ortodoxas - se desenvolveu, de forma parasitaria, do Cristianismo no Ocidente,.de tal maneira que, por ultimo e no essencial, a historia do Cristianismo e a historia do seu parasita, 0 Capitalismo" (Benjamin, 1991d, p. 102). A relagao entre capitalismo e " forgas miticas" se fortalecera a partir de Rua de mao unica, de tal maneira que a consideragao de urn contem, necessariamente, 0 outro : "0 Capitalismo foi urn fenomeno natural, com 0 qual chegou urn sono de sonhos na Europa e nele uma reativagao das forgas miticas" ( 199 1c, p. 494). Contra essa reativagao, a ideia de "revolugao" como interrupgao messiEmica, a ideia de urn tempo devastador que instaura a finitude e a morte, rompendo a cadeia da causalidade e toda concepgao de uma infinitude do tempo, tal como 0 conceito de destino preconiza. 14



CHAVES, E. Myth and politics : notes on the concept of destiny in the "young" Benjamin.

TransIFormIAr;ao, Sao Paulo, v. 17, p. 15 -30, 1994.




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1 Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Para - UFPa - 66075- 900 - Belem - PA.