MANTENDO PRATICAS NAo-RACIONALIZADAS: CORPO-MENTE, PODER E ETICA SITUACIONAL: UMA ENTREVISTA COM HUBERT & STUART DREYFUS[1]

 

Bent F LYVBJERG[2]

Traduyao do ingles: Alvaro L. HATTHER[3] Revisao Especializada: Maria E. Q. Gonzales[4]

 

Quando eu estava em Frankfurt e apresentei 0 modele de habilidades em cinco estagios, Habermas disse, 'Voce esta falando sobre habilidades como martelar e jogar xadrez, mas 0 que voce realmente quer fazer e enfraque­ cer a sociedade ocidentaJ'. Eu disse 'Voce esta certo, esse e exatamente 0 meu objetivo'.

Hubert Dreyfus

 

Hubert & Stuart Dreyfus

 

Ao examinar uma grande variedade de habilidades tao diferentes quanto dirigir urn carro ou jogar xadrez, os Dreyfus descobriram que h8. urn padrao comum associado ao aperfeiyoamento de habilidades, que pode ser esquematizado em uma sequencia de desenvolvimento. Ha cinco estagios cuja ordem de ocorrencia e invariavel: aprendiz, principiante avanyado, competencia, proficiencia e pericia.

Os aprendizes buscam trac;os independentes de contexte os quais interpretam com base em regras. Motoristas novatos olham para 0 painel do carro para verificar a velocidade ou as IOtac;oes do motor e seguem regras para troca de marchas. Enxadristas novatos avaliam suas pec;as por valor numerico e aplicam a regra " Sempre troque se 0 valor total das pec;as capturadas exceder 0 valor das pec;as perdidas". A medida que adquire experiencia, 0 principiante avanc;ado pode comec;ar a selecionar "dicas" situacionais, tais como 0 som que 0 carro faz quando a marcha precisa ser mudada ou a ocorrencia de uma "lateral desprotegida do rei" ou de uma " forte estrutura de peoes ". As maximas baseadas na capacidade de se reconhecer tais dicas situacionais servem, entao, para instruir 0 individuo a mudar a marcha em resposta a urn "som de motor acelerado" ou a atacar a lateral desprotegida do rei.

Ao nivel da competencia, pode-se organizar uma grande quantidade de dados a respeito de uma situac;ao por meio de categorizac;ao. Dessa forma, podem-se focalizar pontos especificos que requeiram atenc;ao transformando-os em pontos de destaque colocados contra urn entendimento de base da situac;ao como urn todo. A ac;ao e 0 produto de deliberac;ao concentrada sobre alternativas a luz dos pontos de destaque; e urn ulterior envolvimento emocional com 0 resultado e 0 subproduto de urn fluxo de ac;ao que e sentido como produzindo 0 julgamento individual. Urn motorista competente, que se percebe fazendo uma curva em uma estrada escorre­ gadia em alta velocidade, escolhe cautelosamente se deve pisar no freio ou apenas tirar 0 pe do acelerador. Ele experimenta 0 resultado de sua escolha de forma mais pessoal do que urn principiante. Urn enxadrista competente reconhece urn rei desprotegido como sendo a situac;ao de destaque a seu alcance e planeja seu ataque sem se distrair com quaisquer outras caracteristicas do tabuleiro ou com consequen­ cias que sao secundarias a seu plano de ac;ao.

Ao nivel da proficiencia nao ha momento de imparcialidade no qual uma situac;ao seja avaliada e categorizada. 0 "encanto do envolvimento" nao e quebrado, mas, ao inves disso, ha a perplexidade pelo tipo de situac;ao em que se encontra. Entretanto, o encanto e quebrado no momenta de se selecionar uma resposta, que se torna sujeita a ponderac;ao.

Por fim, quando se atinge a pericia, pode-se imediatamente perceber a natureza da situac;ao e "saber" 0 que precisa ser feito. 0 motorista perito percebe quando e necessario diminuir a velocidade e "sabe" como executar a ac;ao sem calcular e comparar as alternativas. 0 enxadrista perito, considerado urn mestre ou grao-mestre internacional, geralmente pode jogar de forma a nao admitir a possibilidade de analise e comparac;ao de alternativas. A capacidade do perito em xadrez de jogar por intuic;ao e demonstrada por uma experiencia conduzida pelos Dreyfus na qual contavam com urn mestre internacional jogando uma partida extremamente rapida ao mesmo tempo que rapidamente somava numeros. Ele ainda era capaz de "se aguentar" contra urn jogador de mesmo nivel, ainda que obviamente privado de qualquer oportunidade de ponderac;ao.

P: Conceitos como corpo, poder e etica tem ocupado um 1ugar fundamental na obra de Hubert Dreyfus, em especial em re1a r;ao a Fouca1t, Heidegger e Mer1ea u-Ponty. Estou impressiona do pe1a ausen cia virtual desses con ceitos em sua obra sobre aprendizagem. Vam os fa1ar sobre 0 corpo primeiro. Voce fez um re1ato bastante abrangente do modelo de cin co estagios de aprendizagem em Mind Over Machine (1 988). No titulo do livro e em suas afirmagoes gerais sobre aprendizagem, a m en te e enfa tizada. Con tudo, parece-me que m uitos exemp10s que voce e Stuart forn ecem dependem de apren dizagem f1sica, ainda que voces nao tenham afirmado isso de maneira explicita. Nos u1timos anos tem surgido a discussao sobre 0 pape1 do corpo na fi10sofia e na reflexao social. Como 0 corpo en tra em seu mode10 de aprendizagem e como isso se rela ciona com a an tiga divisao en tre corpo e mente no pensamen to ociden tal?

 

HD: Mind Over Machine nao era 0 nosso titulo, pois, 0 corpo e tao importante quanto a mente. Nossa ideia ultrapassa essa distinQao. E por isso que falamos muito sobre xadrez e dirigir veiculos. 0 xadrez e uma habilidade mental, enquanto dirigir urn carro e uma habilidade corporal. E, conforme dissemos, voce passa pelos mesmos cinco estagios em qualquer uma dessas habilidades. Pode-se pensar que a habilidade holistica de fazer coisas de maneira intuitiva esta, basicamente, no corpo. Mas nao creio que isso seja correto, porque 0 xadrez e uma atividade bastante desincorporada. Assim, a habilidade parece ultrapassar a distinQao corpo/mente e 0 titulo enganador

do livro e muito infeliz. Deveria ser algo como Body-Mind Over Machine.

 

P: A intuir;ao e fundamen tal em seu modelo. Onde reside a intuir;ao no que voce caracterizou de corpo-men te ?

 

HD: Acredito que haveria uma tendencia a se pensar no corpo. Meu filosofo favorito e Merleau-Ponty, que escreve sobre as habilidades corporais e 0 corpo holistico promovendo a gestalt do mundo. Mas parece-me claro que seria impossivel pensar que a intuiQao no xadrez tenha algo a ver com 0 corpo. A intuiQao nao esta presente no corpo ou na mente. Na verdade, ela reside no fato de 0 cerebro poder armazenar gestalts inteiros. 0 xadrez e urn exemplo perfeito, porque voce nao precisa nem mesmo de percepQao. Uma pessoa cega pode tornar-se urn mestre no xadrez. E uma atividade totalmente mental. A distinQao entre corpo e mente e importante pelo fato de que a mente pode ser analitica, sendo, portanto, contraria ao corpo, pois nao creio que este possa ser analitico. Assim, se h8. algum problema e sempre a mente que 0 causa. Se voce nao se torna intuitivo, deve ser porque a mente se interpos. Mas se voce se torna intuitivo, isso nao acontece porque a mente deixou de se interpor e permite ao corpo fazer as coisas. Parece-me que e porque a mente analitica deixou de se interpor e permitiu que a mente intuitiva atuasse.

P: Quando e que um jogador de xadrez sente que um movimento esta certo?

Qual e a sensa(:ao e onde esta localizada, se e que esta localizada ?

 

SD: No corpo inteiro. Na boca do estomago. Isso e igual a perguntar onde voce sente que esta com fome, quando esta com fome. Voce nao pode dizer que e seu cerebro que pensa que esta com fome. Voce vivencia seu corpo todo com desejo e 0 jogador de xadrez tern 0 mesmo tipo de experiencia. Como pode ver, eu discordo de Hubert. Quando urn jogador de xadrez faz uma jogada em urn segundo, 0 que e realmente uma jogada rapida, eu os tenho ouvido descrever uma sensa<;ao engra<;ada

. de que a mao e que joga e nao eles. Eles falam desse jeito. A mao deles esta apenas movimentando as pe<;as tao rapidamente, e eles quase sentem como se seu cerebro, separado, olhasse suas maos jogarem xadrez. Portanto, 0 corpo todo esta nesse quadro.

 

HD: 0 que entra no xadrez sao as emo<;oes. Voce tern que se envolver no jogo. Tern que se interessar por ele. Mas nao sei exatamente onde as emo<;oes estao corporificadas. Elas nao podem estar na mente entendida como mente analitica e objetiva separada, que e 0 modo Cartesiano mais comum de compreender a mente.

 

SD: Basicamente, meu trabalho esta me levando a rejeitar a divisao entre mente e corpo. Essa divisao causou muitos problemas para a cultura ocidental e nos levou a acreditar em racionalidade e coisas semelhantes. Meu trabalho com redes neurais e conexionismo esta me levando a perceber muito sobre 0 comportamento habil como uma atividade na qual nao ha qualquer papel para a mente da forma como e geralmente definida. Tudo e "corpo", se pensarmos nos neuronios como sendo parte do corpo e nao da mente.

 

P: 0 que significa, mais especificamente, "neur6nios sendo parte do corpo e nao da m ente "?

 

SD: A tradi<;ao acha que a mente e uma coisa separada. Ela situa-se num plano separado do mundo, que observa e pensa sobre 0 mundo. A tradi<;ao julga que 0 corpo esta sempre no mundo. Voce nao pode separar seu corpo do mundo, mas pode separar sua mente, e, portanto, a concep<;ao tradicional de corpo/mente exige que se veja uma mente separada manipulando urn corpo no mundo. Em oposi<;ao a isto, a concep<;ao conexionista ve a mente de urn especialista tao envolvida quanto 0 corpo. Ambos atuam sobre estimulos que vern do mundo, sem qualquer grau de interpreta­

<;ao. Outra maneira de dizer isso e que a no<;ao comum de mente considera 0 que chega aos sentidos como dados brutos e ve a mente como interpretando esses dados por meio da manipula<;ao de suas representa<;oes. 0 ponto de vista conexionista e 0 de que a mente de urn especialista nao faz isto, e se voce fizer, nao sera urn especialista. Voce apenas tern que reagir aos estimulos. Os neur6nios no cerebro produzem uma resposta quando os estimulos ocorrem de determinada maneira. Trata-se de uma interpreta9aO muito mais fisica.

 

P: Aiem do corpo, poder e etica sao os conceitos que me parecem essenciais para uma compreensao das habilidades e do processo de in capa cidade, isto e, pessoas que perdem a capacidade e a intuigao para processos de trabalho mecanizado. Por que voce nao enfa tiza esses con ceitos em sua obra sobre aprendizagem ?

 

HD: Fomos constantemente for9ados a falar sobre etica e politica de conheci­ mento implicito por Tom Athanasiou, que estava nos ajudando a escrever Mind Over Machine. Nossa norma sempre foi a de falarmos sobre 0 que sabemos, e pelo menos uma coisa ficou clara: se voce nao entende 0 que e habilidade e conhecimento implicito, nao pode nem mesmo discutir, de urn modo inteligente, questoes sobre movimento trabalhista, social e politico, questoes relacionadas a poder etc. Perde-se tempo com a preOCUpa9aO sobre 0 que fazer se os computadores e os sistemas especializados substituirem peritos e trabalhadores, quando esse nao e 0 verdadeiro problema, pois eles nao podem fazer isso. Portanto, nao falamos sobre os problemas sociais. Presumo que havera urn tipo de Taylorismo semelhante a desCri9aO de Foucault sobre corpos d6ceis que seria a ciencia do comportamento eficiente. Alguem tentaria disciplinar as habilidades especializadas. Pelo que sei, Foucault nao fala sobre urn ponto importante: que os corpos disciplinados nao serao bons para fazerem 0 que fazem, sendo intuitivos. Eles podem ser bons em outras coisas, sendo mais organizdos, seguros, controlaveis, e mesmo mais intensos m sentido social, mas nao serao tao habilidosos. Os sindicatos sabem disso. Ha poder no conhecimento implicito dos trabalhadores ou das pessoas capazes, que a rela9aO poder/conhecimento nao consegue controlar.

 

P: Seria possivel haver uma cien cia dessas habilidades?

 

HD: Nao, e exatamente por isso que poder e conhecimento nao podem controlar as habilidades. Voce nao pode ter uma ciencia dessas habilidades e, portanto, elas sao urn tipo de poder contrario. E a isso que Foucault se refere quando fala sobre conhecimento marginalizado, 0 conhecimento dos marginalizados dispersos. Acho que M urn conhecimento que qualquer pessoa que seja habilitada em alguma coisa tern, e que e externo a todo 0 complexo de ciencia e poder. Os sindicatos da Suecia refletem sobre 0 que e 0 conhecimento implicito e como preserva-Io e amplia-Io.

 

P: Se ampliarmos essa questao das habilidades para abranger as praticas h umanas em geral, parece-me que a quilo que voce a cabou de descrever a cerca dos trabalhadores correspon de de perto, a um conceito ao qual voce se referiu resumidamen te em diversos con textos, isto e, 0 conceito das assim chamadas pra ticas marginais ou nao-racionalizadas. Voce poderia expandir esse conceito?

 

HD: Atualmente, 0 exemplo favorito parece ser a amizade. As pessoas tern varias formas de apoiar, escolher e abandonar seus amigos, mas a filosofia nao as estuda nem tenta criar principios a esse respeito, sendo que isso nao se tomou parte da ordenaQao tecnol6gica eficaz das coisas. As pessoas nao saem dizendo que deveria­ mos tomar a amizade mais eficaz, mais produtiva e assim por diante, portanto ela existe como urn tipo de pratica nao-racionalizada.

 

P: Voce poderia m encionar ou tros domfnios das praticas marginais ou nao­ racionalizadas ?

 

HD: Meus outros dois exemplos favoritos sao a enfermagem e 0 ensino. Ha urn livro chamado The Prima cy of Caring [A Primazia do A tendimen tol. escrito por uma enfermeira que costumava frequentar os nossos cursos sobre Heidegger e Kierkegaard. Nesse livro ela mostra que cuidar das pessoas e uma pratica que as enfermeiras tern e que todos temos porque a her damos do Cristianismo (Benner, 1989). Mas nao e uma pratica racionalizada no sentido de que nao a fazemos sobre principios e nem tentamos organiza-la no interesse da eficiencia. E urn tipo de pratica que ela acredita nao poder ser organizada em termos de eficiencia. Ela acha que as enfermeiras a tern e os medicos tendem a nao teL Eles querem apenas deixar as pessoas saudaveis e produtivas, mas nao querem ter que cuidar delas. Na verdade, ela acha que se voce nao cuida das pessoas, nao pode trata-las muito bern medicamente.

Existem pessoas em nossa cultura que se tomam professores secundarios, alguns deles porque e 0 tinico emprego que conseguem, mas, outros, suponho que seja porque, para eles, nao h8. nada mais importante que educar os jovens e as pessoas. E outro tipo de pratica, neste caso, herdada dos gregos. Penso no cuidar como uma pratica crista marginal que ja foi fundamental e hoje nao e mais, porque 0 Cristianismo nao e mais uma parte viva do que Hegel chamou nossa sittlichkeit, nossos costumes e praticas sociais compartilhados; pelo menos nao e a parte fundamental deles. As praticas ligadas a educaQao eram a coisa mais importante para os gregos, pelo menos para as pessoas ao redor de Platao e S6crates. Hoje, entretanto, elas nao tern mais a importancia institucional que possuiam naquela epoca. Ora, nao se ganha qualquer reconhecimento por ser professor secundario, nao se ganha muito dinheiro nem muito prestigio. Entao, por que algumas pessoas fazem isso se sao inteligentes 0 bastante para fazerem qualquer outra coisa? Se realmente existem pessoas que fazem isto, muito embora sejam inteligentes e trabalhadoras 0 bastante para fazerem algo diferente, deve ser porque e importante para elas e essa importancia deve ser do tipo marginal.

P: Nao se poderia clizer que 0 que esta acontecendo com a amizade, cuidado etc., na sociedade moderna, e exa tamente que estao sendo racionalizados? Por exemplo, se voce quiser ter sucesso no mundo academico ou empresarial pode ser importan te ter os amigos certos e as pessoas podem passar a escolher amigos fundamentalmente nessas bases.

 

HD: As pn1ticas marginais sempre correm 0 risco de serem assumidas pela compreensao racional e tecnologica e tornadas eficazes e produtivas. Acho que foi minha ex-aluna, Jane Rubin, que me contou que ouviu uma propaganda no radio dizendo que ter amigos e saudavel. No momenta em que voce tern amigos para sua saude e sua carreira, voce tern urn tipo de amizade que e do tipo racional-tecnologico. Isto sempre pode acontecer, e suponho que este novo tipo de amizade poderia substituir urn outro tipo de amizade. As pessoas nem saberiam mais 0 que seria uma verdadeira amizade. Isto e perigoso e e por isso que e necessario fortalecer 0 que chama de praticas em extinC;ao. Penso que Heidegger e Foucault tambem acreditam nisso.

a amor romantico que Kierkegaard estava tentando salvar e outra dessas praticas. E, por falar nisso, 0 mesmo se da com os direitos dos animais. Ha pouco tempo muitos ativistas dos direitos dos animais invadiram urn predio e entraram em conflito com a policia da universidade [a Universidade da California, Berkeley]. Primeiro, pensei, "ah, mais fanaticos loucos ", mas depois percebi, nao, essas pessoas representam uma versao de outro tipo de pratica marginal, alguem que se sente em comunhao com os animais e nao pensa que estes sejam tao diferentes dos seres humanos que possam ser sacrificados e sofrer para nos tornar mais saudaveis e para que vivamos mais. Todas essas praticas deveriam ser preservadas e deveriam estar constantemente em pauta, para questionar a hegemonia, como dizem as pessoas atualmente, sobre eficiencia humana, produtividade, saude e bem-estar.

 

P: Como se pode defender essas praticas marginais, fortalece-las e multiplica-las para contrapor-se a racionaliza r,:ao?

 

HD: Nao tenho a menor ideia. Heidegger diz que se deve preservar a forc;a salvadora das coisas simples, mas nao diz como fazer isso. Bob Dylan manda fortalecer as coisas que ficam. T. S. Eliot diz: sustentar os fragmentos contra nossa ruina. as poetas falaram sobre essas coisas, mas, pelo que sei, ninguem fez nada a respeito. Acho que se pode dizer que nao se deve tentar racionalizar e moderniza-las, nem se deve julga-las como sendo triviais e insignificantes simplesmente porque nao podem ser racionalizadas. Ao inves disso, seria melhor praticar tantas vezes quanto parecesse natural, e nao se preocupar com 0 fato de que, no dominio vigente da compreensao da realidade, elas parecem ser, no maximo, triviais, e, no minimo, contraproducentes. au seja, pode parecer que voce tenha perdido seu tempo fazendo alguma coisa para se aperfeiQoar e ai esta voce, brincando com seus filhos, conversando com os amigos ou acariciando os animais e olhando em seus olhos. Algumas pessoas poderiam dizer que voce esta perdendo seu tempo, que voce nao esta tirando 0 melhor da vida, mas voce deve resistir a isso.

 

P: Voce falou sobre os poetas. Ha um papel para 0 fil 6sofo profissional e para 0 pensador social n esse tipo de questao?

 

HD: Suponho que nao, se por fil6sofos profissionais voce entender pessoas na linha de Platao, via Kant ate Habermas. Mas as pessoas nos departamentos de filosofia poderiam escrever livros como The Prima cy of Caring, que ocorreu de ter sido escrito por uma professora de enfermagem, mas que foi muito influenciada por fil6sofos. Presumo que alguem poderia escrever urn livro sobre amizade que fosse 0 tipo errado de livro, pois teria perguntas tais como "quais as condiQoes necessarias e suficientes para confiar em alguem como amigo? ", ou "quais os principios fundamentais que dizem 0 que se deve fazer com os amigos?", 0 que seria terrivel. Mas pode-se escrever urn livro de filosofia que descreva a pratica da amizade ao longo da hist6ria ou mesmo da forma como se manifesta hoje. Os fil6sofos nao se preocupam em escrever livros desse tipo. Zen and the Art of Motorcycle Main tenance e urn livro que nao foi escrito por fil6sofo (1974, 1984). A coisa mais pr6xima de urn livro como esse, escrito por urn fil6sofo em urn departamento de filosofia e Techn ology and The Character of Contem­ porary Life por Albert Borgmann (1984). Ele fala sobre praticas focais, que e 0 nome que da para uma subclasse das praticas marginais. Ele ve como a tecnologia dispersa e destr6i essas praticas, porque a tecnologia facilita a obtenQao de resultados sem qualquer esforQo e focalizaQao. Por exemplo, para ouvir musica voce pode simples­ mente ligar urn aparelho de som. Borgmann contrasta isto com 0 aprendizado de urn instrumento, juntando pessoas, praticando, e, por fim, tocando em grupo. Isto foi uma conquista focal, colocar todas essas pessoas e coisas juntas. E como Heidegger falando sobre as pessoas sentadas em circulo com uma jarra de vinho. Borgmann diz que voce tern de resistir a maneira pela qual a tecnologia Ihe da 0 resultado sem qualquer esforQo, porque dessa forma voce nao tera a experiencia focal. Isto e muito interes­ sante. Outra pratica, para ele, e a refeiQao familiar. Toda a familia reunida para urn jantar que todos realmente ajudaram a preparar, e nao cada urn deles comendo a pr6pria refeiQao numa bandeja diante da televisao em c6modos separados. Estamos perdendo esta pratica focal. GraQas a tecnologia e a comida congelada, as pessoas nao tern mais que prepara-las, nem come-las no mesmo horario.

 

 

P: Voce esta dando exemplos de como podemos agir individualmente contra a racionaliza9ao. Na Escandinavia fomos acostumados a questionar, alem disso, 0 que pode ser feito ao nivel social, coletiva e politicamente?

D: Meus exemplos nao se referem apenas ao que podemos fazer como individuos mas tambem como grupo: dois amigos, uma familia ou quatro pessoas. Mas voce esta querendo algo maior. 0 que voce realmente deseja saber, na condi9aO de escandinavo, e como as praticas de salvamento podem ser legisladas. Sua pergunta e tipicamente escandinava, e fascinante e intrigante. Se sao tao boas para todos, queremos preserva-Ias, entao devemos ter algum tipo de movimento politico e criar leis que as preservem. Nao consigo imaginar com 0 que isso iria se parecer, leis que preservassem a amizade, 0 cartnho, 0 ato de educar, as refei90es familiares e pessoas tocando mu.sica juntas, ou mesmo leis que evitassem as formas pelas quais essas coisas estao sendo corroidas. Pelo menos podemos anular 0 que esta pondo essas praticas em perigo, 0 que serta uma ideia escandinava. Nao vejo como, ja que 0 que esta pondo essas praticas em perigo nao e algo que se possa anular, e racionalidade, eficiencia. Quero dizer, por que deveriamos tocar mu.sica juntos se cada urn de nos pode ligar urn aparelho de som? Por que perder tempo com amigos - com 0 que costumavamos chamar de amigos - se voce pode jogar golfe com 0 chefe da empresa? Isso e fascinante. Eu nao sei de que lado voce esta quando faz esta pergunta como urn escandinavo, mas eu diria que e onde 0 verdadeiro problema reside, no caso da abordagem escandinava. Faz parte da postura de racionaliza9aO pensar que se pode legislar sobre tudo 0 que seja valioso.

 

 

P: Por outro lado, m uitas pessoaspodem achar um tanto desesperador nao poder fazer algo maior, coletivamente, no que diz respeito aquilo que voce ve como um problema maior, ou seja, a racionalizac;ao, nao e mesmo?

 

HD: E verdade. Soa desesperador, e as pessoas acusam Heidegger e Foucault de serem versoes diferentes de urn tipo de pacifismo. Heidegger era explicitamente passivo. Ele dizia que nao se pode fazer absolutamente nada organizado quanta a racionaliza9aO. Somente na sua propria vida voce pode preservar as pequenas coisas e esperar que surja urn novo paradigma que as tomara mais poderosas. Foucault era muito mais ativo e tentou lutar ao lado do conhecimento marginal. Voce pode envolver-se naquilo em que ele estava envolvido, os direitos dos homossexuais e outras atividades desse tipo. Se voce encontrar algum tipo de pratica marginal contra a qual a lei esteja atuando, por exemplo, impedindo que antivivisseccionistas fa9am manifesta90es diante de laboratorios, entao lute contra ela. Se voce fosse Foucault, certamente gostaria de dizer que, se pas sasse por isso, se juntaria as pessoas que lutam pelos direitos dos animais. Voce nao zombaria delas porque nao podem fomecer nenhuma base racional eficiente para 0 fato de pensarem que os animais sao tao importantes quanto as pessoas, e voce certamente nao teria leis que agissem contra elas, dizendo que esta escrito na Constitui9aO que as pessoas tern direitos e os animais ao, e, portanto, voce nao tern direito de lutar pelos animais.

 

Mas isso ainda e muito pouco. Parece que nao e 0 tipo de coisa que se possa buscar politicamente. Heidegger e explicito a esse respeito. Ele diz que no momenta em que se tenta fazer da preservac;:ao das praticas marginais uma meta politica, positiva, a tecnologia e trazida para a questao e destr6i exatamente aquilo que se esta tentando fazer. Eu nunca tinha entendido isso ate que the contei a hist6ria sobre a Escandinavia, e agora entendo porque ele diz isso. Deseja-se legislar sobre a qualidade de vida e ananja-se urn problema curioso, ou seja, os aspectos espont{meos, receptivos da qualidade de vida estariam perdidos se sobre ela inconesse alguma legislac;:ao. Felizmente M uma area intermediaria onde M muito 0 que fazer. Isso mantem os escandinavos felizes e os toma interessantes. Quero dizer, voce certamente poderia legislar contra nao matar, por exemplo. As pessoas na Suecia se preocupam com isso. Esta e uma area em que algo deve ser feito.

 

P: Algumas pessoas, provavelm en te incluindo Jiirgen Habermas, considerariam essa atitude minimalista como conservadora e individualista.

 

HD: E verdade, Habermas realmente nao gostaria disso. E Heidegger diria sobre pessoas como Habermas que elas pensam na tecnologia como uma pratica que deveriamos controlar e usar para boas finalidades. Mas essa e uma maneira tecnol6- gica de se pensar a este respeito, diria Heidegger. Para Foucault, e a universalidade de principios subjacentes a tal tentativa que seria repugnante e perigosa, enquanto que para Heidegger e a tentativa de ganhar con trole politico sobre nossas vidas que seria 0 problema. Mas M urn tipo de conservadorismo necessario nesta visao, em especial no sentido de conservar praticas que sao marginais e antigas em nossa cultura. Mas eu nao chamaria isso de conservadorismo, ja que pode ser bastante radical, e voce nao parecera conservador quando lutar por algumas dessas praticas.

 

P: Se voltarmos e olharmos para esta problema tica das praticas racionalizadas versus as nao-ra cionalizadas, com uma dimensao ligeiramen te diferen te daquela da politica e da iegisiar;ilo, a saber, a da etica, pergun to-me: que tipo de etica estaria implicada em sua posir;ao? Parece-me que sua posir;ao, incluindo 0 modo de apren­ dizagem em cin co estagios, e an titetica em relar;ao a busca da teoria, das regras e dos universais que estao na essencia da maioria das obras sobre etica.

 

SD: Eu ministro urn curso chamado "As Aplicac;:i5es Sociais da Tecnologia". Ele e co-ministrado por varios professores. A primeira professora ensinou aos alunos as ideias filos6ficas ocidentais tradicionais acerca de como tomar decisi5es eticas. Ela falou sobre utilitarismo, direitos, regras e principios e disse a classe, basicamente, que, ao se tomar decisi5es sociais referentes a tecnologia, e preciso ter valores bern definidos e raciocinar a partir de preceitos primarios. A tese da professora era a de que nao se pode decidir racionalmente se 0 preceito primario A ou 0 preceito primario Be 0 certo, mas pode-se raciocinar a partir de qualquer uma dessas perspectivas. Ela estava ensinando a racionalidade no sentido de que pelo menos alguem deveria ser capaz de defender suas pr6prias conclusoes, baseado em sua pr6pria perspectiva.

Baseado no modelo de habilidades de cinco estagios, passei as tIes pr6ximas conferencias do curso tentando mostrar aos alunos que aquilo era perda de tempo. Em primeiro lugar, essa tese e polarizadora e nao deixa nenhum espago para discussao, e argumento se uma pessoa diz que meu preceito e A e portanto eu concluo B, e uma outra disser que meus preceitos partem de C e portanto eu concluo D. Em segundo lugar, esse nao e 0 modo como as pessoas realmente tomam decisoes quando tern experiencia em uma area. As decisoes sao tomadas com base em experiencia previa que se revelou ser boa ou ruim, bern ou malsucedida. Argumentei que nao se deve tentar objetivar a questao, mas, ao contrario, discutir 0 precedente hist6rico de forma produtiva e nao polarizadora. Isto e uma transformagao total da questao do que seja comportamento etico ou moral partindo-se de uma visao baseada em principios universais para uma outra baseada em hist6ria e narrativa.

 

P: Voce poderia me dar um exemplo disso?

 

SD: Sim, s6 a estrutura da questao quanto ao que seja 0 problema ja e meia resposta, e ninguem pensa que se pode definir racionalmente 0 que e 0 problema. Neste pais, por exemplo, voce pode ver 0 nosso maior problema como sendo a criminalidade ou voce poderia ve-Io como sendo a pobreza. Se voce ve 0 problema como pobreza, voce diz que tratando da pobreza a criminalidade desaparecera. Voce ve a criminalidade como resultado do fato de existir uma classe empobrecida. Por outro lado, se voce ve 0 problema como criminalidade, nao se preocupa em cuidar do problema da pobreza. Tenta construir prisoes e contratar mais policiais. Sua experien­ cia dita 0 que voce ve como problema. It somente 0 acumulo da minha experiencia de vida que me faz querer ver 0 problema como pobreza e nao como criminalidade. Tenho certeza de que alguem que teve a experiencia de urn crime contra sua familia o vera como criminalidade e nao pobreza. Portanto percebe-se que a etica baseia-se na experiencia e nao no racional ou em urn principio.

 

P: Voce tem um n ome para este tipo de 8tica ?

 

HD: Poderiamos chama-Ia "etica situacional". ·

 

P: Embora historiadores da cien cia argumentem con vincen temente que 0 cres­ cimento do pensamen to cien tifico nao ocorre baseado em um grupo de prin cipios fixos, uma cren9a nos padroes universais tem um grande poder de perrnanencia porque a alterna tiva gera 0 que Richard Bernstein chamou de "Ansiedade Cartesiana " - um sen tim en to de que a ciencia poderia ser minada pelo subjetivismo e pela interpreta9aO arbitraria. Como voce responde a acusac;ao de que a etica situacional esta propensa a tal rela tivismo?

 

SD: A etica situacional certamente nao me parece arbitraria. E, sem duvida, subjetiva e interpretativa como uma funr;ao da nossa pr6pria hist6ria pessoal, mas h8. espar;o para se discutir se aquilo que mencionamos como sendo hist6ria relevante e realmente relevante. Se voce for arbitrario dira "Por causa desta experiencia eu concluo isto e nao vejo necessidade de defende-lo". Eu acho que e necessario defender as interpretar;aes que se tern baseadas em exemplos hist6ricos e experiencias.

 

HD: Mas ficara irredutivelmente subjetivo pelo fato de nao haver resposta certa. Voce poderia chegar ao ponto onde pessoas diferentes com experiencias e pontos de vista diferentes, ap6s terem discutido e discutido, veriam 0 problema cada uma a sua maneira.

 

SD: Os fil6sofos antigos sempre tentaram estabelecer sua visao daquilo que era certo.

 

HD:... em alguma coisa: Deus, a natureza da racionalidade, a natureza do born ou a natureza do organismo humano. E, para Habermas, na natureza da comunicar;ao.

 

SD: E preciso reconhecer que e impossivel basear nossas decisaes morais nessa perspectiva. Nao h8. escapat6ria a esse mal-estar, e 0 que estamos sugerindo e uma maneira mais sensivel de se viver com ele.

 

P: Algum tempo a tras eu estava lendo a Etica a Nic6maco e estive pensando: como os con ceitos aristotelicos techne e phronesis estao relacionados ao modelo de cin co estagios e a etica situa cional?

 

HD: Phronesis e 0 nome que Arist6teles deu a sabedoria e experiencia e n6s nos consideramos aristotelicos. Arist6teles diz 0 seguinte, opondo-se a Platao: "Se voce quer saber qual e a coisa certa a ser feita nao procure principios - consulte urn homem velho e sabio." E isso 0 que pensamos tambem.

 

P: Em um trabalho recente (1 988) voce faz uma analogia en tre techne e phronesis, considerando, ou assim me parece, phronesis como um caso de techne. Em minha interpretac;ao, Arist6teles distingue os dois cuidadosamente e salienta a impoItancia de nao considerar phronesis como uma techne, como por exemplo no "Livro VI" da Etica a Nic6maco. Nele Arist6teles define techne como aIte e oficio e phronesis como prudencia ou sabedoria pra tica, enfatizando que phronesis e mais importante do que techne e episteme para 0 funcionamento de familias e Estados. Feita esta interpretaç;ao, pergunto se e seguro considerar phronesis como techne?

 

HD: Sei que considero que techne e phronesis estao estreitamente relacionadas, e em seu trabalho elas sao categorias m uito diferentes. Eu sempre considerei techne apenas como habilidade, que e muitas vezes a maneira como e traduzida, e entao phronesis seria apenas urn caso de habilidade aplicada a vida cotidiana, em interaoes com pessoas na politica, pOI exemplo. Mas se alguem as define a seu modo, entao certamente elas estao separadas. Uma delas tern a ver com pessoas, a outra, com a maneira como as coisas sao feitas. Entretanto, deve haver urn outro nivel de discussao. Eu nao sei se e Arist6teles ou apenas eu, Stuart e Heidegger. Precisamos de uma noao de habilidade que seja intermediaria a estas duas. Habilidade e 0 que voce precisa para realizar sua arte e oticio, para fazer coisas a partir de coisas. E habilidade e 0 que voce precisa para tratar com as outras pessoas e govemar. Eu nao sei qual seria a palavra para habilidade em grego, porque parece nao haver palavras suficientes. Mas parece, de fato, que phronesis e techne sao duas subcategorias de habilidade.

 

P: E possivel tra tar as duas como uma, simplesm en te como "habilidade "?

 

HD: Nao, e eu nunca disse isso. Eu as considerei em conjunto simplesmente porque, ao nivel em que se tenta descrever 0 que e comportar-se habilmente em qualquer dominio, quer isto represente fazer alguma coisa, jogar xadrez ou ser uma pessoa etica, 0 nosso modele de habilidade sustenta que se esta respondendo a uma situaao (mica. Isso nao deve tomar iguais 0 oticio e a etica, mas sim fazer com que as coisas sejam iguais dos dois lados do tabuleiro. 0 que me interessa e 0 que faz a diferena entre a experiencia e a nao-experiencia nessas areas, e voce esta mais interessado em distinguir estes dois dominios.

 

 

P: Apenas se eles precisarem ser distinguidos. Falando em especialidade, parece haver um modo correto para se jogar xadrez, a saber, aquele pelo qual se ganha, ao passo que me parece m uito mais dilicil definir especialidade etica desta maneira. Ha um modo correto de ser um perito em etica ?

 

HD: Arist6teles diz que apenas 0 homem born pode reconhecer quais ayoes sao boas e quais nao sao. Ser born em etica e fazer 0 que e considerado born em sua cultura, ou seja, 0 que as pessoas de sua cultura assim consideram na condiyao de pessoas sabias, pessoas que sabem 0 que e born, que consideram aquilo que e feito como sendo a coisa certa. Ha urn certo tipo de circularidade nisso. Assim sendo, e diferente do jogo de xadrez.

SD: Nao, 0 xadrez nao e totalmente diferente disso. Contanto que haja urn ganhador ou urn perdedor em urn jogo de xadrez. Mas se voce quer saber se uma determinada jogada foi boa ou nao, basta perguntar a urn jogador de xadrez experiente se aquela foi a jogada que 0 fez perder 0 jogo ou se ela foi excelente, e alguma outra jogada causou a derrota. Portanto, tanto no xadrez quanto na etica e muito dWcll dizer que M. uma defini<;:ao objetiva que estabele<;:a se uma determinada jogada em uma determinada posi<;:ao e boa ou ruim.

 

P: Fazer a jogada certa e fazer a jogada que as pessoas que sao consideradas as melhores fariam naqu ela situa gao?

 

SD: Exatamente, e as especialistas em xadrez 0 veem como uma coisa social. o que e considerado como sendo a jogada certa em xadrez s6 0 e devido a hist6ria do jogo de xadrez. Quando os computadores jogam xadrez, de vez em quando fazem jogadas que sao melhores do que a jogada aceita - melhor mesmo do que urn mestre poderia fazer - porque a hist6ria social do xadrez faz com que nem mesmo urn mestre enxergue todas as possibilidades.

 

P: En tao, 0 que significa "m elb r"?

 

SD: Urn lance do computador seria considerado melhor do que 0 de urn grande e reconhecido mestre se, ap6s 0 jogo, peritos concordassem que a jogada do computador levou a uma situa<;:ao mais desejavel.

 

 

P: Ainda assim, parece-me que M um criterio mais rigoroso no xadrez do que na eUca para avaliar se uma decisao e valida, nao e mesmo?

 

SD: Ha algo diferente, e obvio, no sentido de que no final do jogo voce tern urn resultado do jogo. Mas supondo que no mundo real houvesse urn Deus e urn julgamento ap6s a vida, e que as pessoas vivas soubessem qual seria 0 julgamento de suas vidas. Isso teria muito efeito sobre a etica? Nao. Especialistas em ciencias humanas teriam que avaliar subjetivamente quais atos durante sua vida levaram aquele julgamento.

 

 

P: A questao aqui e 0 feedback? Voce tem um Upo diferen te de feedback numa situagao de jogo de xadrez e numa situagao que envolve a tomada de uma decisao eUca?

HD: Stuart acha que nao. Em ambos os casos voce tern 0 feedba ck de alguem que e uma autoridade reconhecida e capaz de dizer qual e e qual nao e a coisa certa a fazer, em qualquer jogada especifica, em qualquer situac;ao especifica.

 

SD: Voce pode perder 0 jogo com 99% de jogadas inteligentes e, se nao for suficientemente born, nao sabera qual delas 0 fez perder 0 jogo. Entao urn grande mestre vern e diz, voce perdeu por isso e por aquilo, e aponta para uma certa jogada, mas esta pessoa e apenas inteligente e nao consegue explicar porque diz aquilo, alem de poder nao estar certo, embora geralmente esteja.

 

HD: A (mica diferenc;a que vejo e que eu nao sei como as pessoas sabias da cultura sao selecionadas ou auto-selecionadas, enquanto que as pessoas que no xadrez tern 0 direito de manifestar opiniOes sensatas sao pessoas que tern alta qualificaC;ao no jogo, e isto e objetivo. Seja la como for a seleC;ao das pessoas sabias da cultura, esta nao e objetiva como e a seleC;ao no xadrez.

 

SD: Nao estou certo que seja verdade que entre as varias centenas de especia­ listas, 0 melhor jogador do mundo seria a pessoa mais indicada para dizer as outras pessoas onde elas erraram e 0 porque. Certamente os melhores instrutores nao sao os melhores jogadores.

 

HD: Entendo agora que haja dois padroes diferentes no nos so conceito de sabedoria na etica. Em nosso trabalho nao tratamos do feedba ck que vern da aprovac;ao ou desaprovaC;ao das pessoas sabias. Falamos do feedba ck que vern se voce se sente mal ou nao quanta a sua atitude, se voce a lamenta ou esta orgulhoso dela. Se 0 feedba ck principal esta em voce se lamentar ou nao, talvez aquilo que as pessoas sabias pensem nao seja realmente importante. Concordamos com Arist6teles em nosso trabalho que se voce quiser saber 0 que fazer, pergunte a urn homem velho e sabio. Mas tambem dizemos, 0 que parece ser uma contradiC;ao, que duas situac;oes nunca sao semelhantes, e a maneira pela qual voce entrou na situaC;ao, suas experiencias passadas e em que ordem voce as teve e que vai determinar, por assim dizer, qual a coisa certa a fazer. Entao, qual e a vantagem do homem velho e sabio? Ele apenas podera Ihe dizer, de acordo com 0 que pensa da situaC;ao, 0 que eie faria. Talvez ele possa servir de tutor enquanto voce ainda e urn principiante.

 

SD: Supondo que a situaC;ao seja muito simpl6ria, do tipo "devo entregar meu pai como assassino", como no dialogo Eutifron de Platao, de forma que a outra pessoa possa entende-la, entao parece-me irrelevante 0 fato de sua experiencia levar a pensar que voce deve fazer 0 que deve fazer, comparado com 0 que uma pessoa com uma experiencia bern maior acha que deveria ser feito.

HD: Mas isto tamMm nao estaria errado em relagao a hist6ria de Eutifron? Usando 0 modele de Carol Gilligan, urn homem diria, sim, a questao quanto a se Eutifron entregaria seu pai, e simplesmente uma questao de principios, alguem entregaria seu pai par matar urn escravo? Mas, as mulheres perguntariam, 0 pai maltratava freqtientemente seus escravos? Foi par acidente que ele deixou seu escravo no fossa para morrer ou ele deixou outros escravos morrerem? E comegara parecer que nao e absolutamente uma questao de principios, mas 0 que fazer com esse determinado pai, que teve urn determinado tipo de passado.

 

SD: Sim, pessoas velhas e sabias nao deveriam ter simplesmente principios, mas sim 0 maiar numero possivel de informagoes de base.

 

P: Por que a situa9ao tem que ser simples?

 

SD: Se voce nao consegue articular suficientemente uma situagao ou responder perguntas sobre ela, entao nao pode pedir conselhos a uma pessoa velha e sabia. Talvez a situagao nao tenha que ser simples, mas acho que nao pode ser complicada ou matizada demais para que seja articulada adequadamente, parque, neste caso, voce nao podera ir a uma pessoa sabia fazer perguntas, obter respostas e investigar a situagao.

 

P: Como eles se in ter-relacionam, i. e., seu proprio sen tim en to de insa tisfa9ao ou sa tisfa 9ao diante de um a con tecimento e 0 feedback de uma pessoa sabia dian te do a contecimento? Esta parece ser uma tensao nao resolvida ?

 

SD: Acho que estou dando prioridade ao feedba ck da pessoa sabia...

 

HD:... par basear-se em suas insatisfagoes passadas bern como na auto-aprova­ gao e na soma total de varias delas...

 

SD:... que voce dificilmente conseguira ter, mas se pudesse obte-Ias e ouvi-Ias de uma maneira envolvida e internalizada que realmente 0 afetasse...

 

HD:... e se ele pudesse pensar sabre as insatisfagoes e satisfagoes que faram relevantes para a situagao real em que voce se encontra...

 

SD:... entao voce aperfeigoaria seu desempenho no futuro mais do que apenas observando se, com base em sua experiencia, voce ficaria insatisfeito ou nao.

 

HD: 0 problema e que as suas pr6prias insatisfagoes e satisfagoes tern que ser aculturadas porque urn mesmo acontecimento poderia em uma cultura ser motivo de insatisfa9aO enquanto que em outra poderia ser motivo de satisfa9aO. E apenas uma pessoa sabia que cresceu nessa cultura poderia ajuda-Io a desenvolver a sensibilidade correta, uma n09aO tipicamente aristotelica.

 

P: Entao voces desejam buscar 0 feedback das pessoas mais experientes para tomar-se um perito etico, mas, ao mesmo tempo, voce parece estar dizendo que esse tipo de feedback raramen te esta disponivel?

 

SD: Se nao M feedba ck algum, nao vejo como voce poderia adquirir habilidade etica. Se voce nao tern feedba ck da cultura ao seu redor, nao vejo como aprende-Ia.

 

HD: Voce nao cresceria para ser etico em nenhum modo etico de qualquer cultura em particular.

 

SD: Assim, a maior parte da aprendizagem e, de alguma forma, feedba ck, feedba ck indireto da cultura ao seu redor. Penso que, para haver uma aprendizagem mais rapida, seria preferivel se voce pudesse obter feedba ck de uma pessoa velha e sabia 0 tempo todo, 0 que nem sempre e possivel.

 

P: Agora, voltando a questao original, 0 tipo de aprendizagem e feedback de que estamos falando e 0 mesmo na techne e na phronesis, ou, se quiser usar os termos de Weber, e 0 mesmo na racionalidade instrumental e na racionalidade de valor (Wertrationalitat)?

 

HD: Eu realmente nao acredito nessa distin9aO. Racionalidade de valor e urn modo estranho de se falar sobre etica. Nao e como Aristoteles a trataria, e Heidegger pensa que "valor" e apenas mais urn termo instrumental porque objetiva totalmente a a9aO moral. 0 que e urn valor? Urn valor e apenas uma outra qualidade dos bons atos, que os bons atos tern e que os maus atos nao tern, mas atos nao surgem com qualidades como esta, de acordo com 0 que pensamos. Em nossa historia, e na de Aristoteles tambem, penso que 0 mesmo ato em situa90es diferentes, realizado por pessoas com experiencias diferentes e assim por diante, poderia ou nao ser born ou ruim, e portanto todo 0 vocabulario de valor esta errado, e a racionalidade de valor nao e importante. Racionalidade instrumental versus racionalidade de valor, aonde se pretende chegar com isso? Eu diria que 0 que importa, e novamente aposto que isto esta proximo a Aristoteles, e tratar habilmente com coisas versus tratar habilmente com pessoas. Nao sao dois tipos de racionalidade, e e urn mau sinal se Weber e Habermas as consideram assim. Heidegger diz, finalizando uma piada, depois desta longa discussao sobre valores: "Ninguem morre por valores". Valores sao apenas propriedades objetivas sem sentido. As pessoas morrem por seus compromissos e ideais. De acordo com Weber e Habermas, as pessoas usam a razao instrumental para alcangar seus propositos. A critica a racionalidade instrumental so faz sentido quando se opoe a uma racionalidade boa, 0 que significa determinar quais deveriam ser os propositos das pessoas. A racionalidade instrumental define-se, entao, como uma tentativa de realizagao de propositos em oposigao a uma tentativa de decidir quais propositos realizar. Mas uma vez que Stuart e eu nao acreditamos que, de maneira geral, haja qualquer meio racional para descobrir, em detalhe, quais sao os propositos certos a se realizar, mas apenas sabedoria, nao opomos nenhum tipo de alta racionalidade a racionalidade instrumental. Voltemos agora a Aristoteles, que perce­ beu que as pessoas estao sempre tentando realizar propositos. Aristoteles e zwecrationalitat do comego ao fim. Na vida voce busca felicidade, quando esta construindo urn barco voce tenta conseguir que ele flutue. Voce sempre esta tentando realizar algo.

 

 

P: Antes falavamos de con texto depen dente e especifico versus con trole e legislac;ao na relac;ao com as praticas marginais. Voce argumentava que legislar em defesa de tais pra ticas e bastante problema tico e que 0 respeito pelo especifico e pela dependencia contextual e antitetico em rela c;ao ao con trole estatal. Vam os voltar a essa questao, agora sob a luz do conceito de phronesis. Arist6teles diz, "A Sabedoria [Phronesis], no que se refere ao estado, tem dois aspectos: um, con trolador e direto, e a cien cia legisla tiva; o outro, que tra ta de circunstancias especificas (...) e pratico e deliberativo". (Arist6teles, 1 966) Parece que Arist6teles reforc;a tanto 0 coletivo como 0 particular, 0 con trole e a circunstancia, 0 poder soberano e 0 poder individual em seu conceito de phronesis. E me parece que a partir de Arist6teles desen volveu-se, na filosofia e no pensamento social, uma divisao infeliz, para nao dizer tragica, de duas tra dic;oes separadas, cada uma represen tando um dos dois lados por ele salientados. Uma tradic;ao se desenvolveu a partir de S6crates e Pla tao via Hobbes e Kant a te chegar a Habermas, dando enfase, e claro, ao prim eiro dos dois lados. A outra, talvez parcialmente aristotelica e parcialmen te sotista na origem, se desenvolveu via Ma quia­ vel a te Nietzsche, Fou ca ult e Derrida e talvez ate voce. Atualmen te as duas tradic;oes vivem vidas separadas, com excec;ao dos a ta ques tipicamente ret6ricos e ocasionais dos pensadores de uma tradic;ao para os pensadores da outra, sendo a critica feita por Habermas a Fou cault e DeJrida em The Philosophical Discourse on Modernity um caso em discussao. Na minha interpretac;ao, Arist6teles insistiu, no entanto, que 0 que interessa para a compreensao e para a praxis §.o que a contece quando os dois lados agora separados se interseccionam, e que este ponto de intersecc;ao e 0 simbolo geometrico, por assim dizer, da a tividade "prhonetica" apropria da.

 

HD: Isso parece promissor. Nos tendemos a deixar 0 lado legislativo para Habermas. Se a habilidade consiste em responder a situagoes unicas, entao, 0 universal e Q imparcial nao se enquadram ai. Voce nao fara necessariamente a mesma coisa na mesma situagao como outra pessoa, e mesmo assim ambas as respostas podem estar moralmente corretas. E possivel que nem mesmo voce faga a mesma coisa na mesma situagao em uma proxima vez. E 0 que ocone com a sabedoria. Mas a legislagao tern que ser universal, imparcial e justa. Pelo menos e 0 que nossa tradigao julga. E uma vez que Stuart e eu nao ternos nada a dizer sobre 0 universal, 0 imparcial eo justo - nao ate agora - nos deixamos isso para os teoricos da moral. Assim, estamos nos movendo em dois caminhos diferentes, e nao vejo como junta-los. Ha toda uma historia em Aristoteles de que existem formas universais nas coisas, e de que existem princfpios basicos, e de que M bases racionais. Aristoteles pode combina-los todos, porque ele aceita tudo: a lei natural, a base racional, a habilidade e tudo mais. E uma questao interessante saber se alguem poderia ser urn aristotelico pos-metaffsico e manter juntas estas coisas.

 

 

P: Como exemplo, consideremos uma pessoa, ou, de preferencia, uma institui9BO - 0 ombudsman - que foi desenvolvido para operar onde 0 especifico enfrenta 0 coletivo, onde as circunstancias enfren tam 0 con trole, onde 0 individuo e, na verdade, as pessoas ou organiza90es marginais enfrentam 0 sistema administrativo-legal. Na Escan dina via, onde tal institui9BO se originou, 0 ombudsman e uma figura nacional indicada pelo parlamen to para supervisionar a administra 9Bo municipal e estadual. A institui9BO ombudsman foi estabelecida devido a preocupa9BO com os direitos do individuo diante de um sistema administra tivo forte e em amplia9Bo. Existe um ombudsman para todo 0 pais na Dinamarca, e creio que dois na Suecia. Comparada a outras institui90es de supervisBo, ha um elem ento pessoal substancial na institui9BO ombudsman e, na pratica, um extenso campo para mu dan9as de a cordo com as tenden cias sociais de mu dan9a. Como pessoa, 0 ombudsman e escolhido de a cordo com 0 modelo do velho sabio aristotelico, i. e., uma pessoa prudente, de repu ta 9BO publica imaculada, com larga experien cia em quest6es de administra 9Bo legal e nas formas como estas se rela cionam com os individuos. 0 ombudsman trabalha com base em casos especificos e e uma infusBo, no sistema a dministrativo-legal baseado em regras, de alguem que, com autoridade, pode exercer um julgamen to prudente quanto aos diferentes procedimentos de caso para caso. E in teressante notar n este contexto que 0 ombudsman, mms freqien temente do que os tribunais, tenta con tornar casos na lei administra tiva, i. e., casos que requerem uma grande quan tidade de julgamento. No geral, 0 ombudsman julga, em certo sentido, casos que os tribunais raramente, ou nun ca, julgam. Alem disso, 0 dominio dos casos tra tados pelo ombudsman e geral­ men te maior do que 0 dominio dos casos julgados nos tribunais. Em suma, 0 ombudsman forn ece 0 feedback em rela 9Bo aos procedimentos e m ostra como eles poderiam ser modificados para funcionar melhor.

 

HD: Ha duas historias diferentes, entao, que dizem respeito ao papel do ombudsperson. Uma, que pode ser fascinante, e a de que 0 ombudsperson ve como a legislagao-universal, em casos particulares, causa 0 oposto do que se quer causar,no espirito da lei, e chama a atenc;ao dos legisladores quanto a isto para que possam reformular a lei. Esta e a sua hist6ria. Ao passo que, neste pais, 0 ombudsperson e simplesmente alguem que defende os individuos que foram apanhados pela burocracia de tal forma que seu caso particular nao p6de ser ouvido.

 

SD: 0 ombudsman aqui assegura que as regras e os principios sejam adequa­ damente implementados. 0 ombudsman conhece as regras e principios e sabe como implementa-los.

 

HD: Voce vai ao ombudsman exigir seus direitos. SD: Nao h8. sabedoria envolvida.

HD: Voce nao vai procura-lo somente quando 0 sistema sucumbe em virtude do modo como 0 universal se encaixa no particular. It s6 alguem ser apanhado pela maquina de algum modo infeliz, e 0 ombudsman e chamado para resgata-lo.

 

P: Entao nao se pressupoe que 0 ombudsman nos Estados Unidos questione e desen volva 0 processo a dministra tivo-legal?

 

HD: Acho que nao.

 

P: Na pratica, esse e, em parte, 0 papel dele ou dela na Escan dfnavia. Admite-se, no sistema politico-parlamentar, que a maquina adminfstra tiva-legal nao pode, por sf s6, ser responsavel pela resolw;:ao de todos os problemas, sen do que, na verda de, ela podera a te mesm o vir a criar problemas. Assim sendo, a monitorac;ao [efta por esses "velh os sabios" e tfda como necessaria.

 

HD: No meu entendimento, ele e sabio pelo fato de, valendo-se de determinados universais legais, sugerir como mudar esses universais de forma a torna-los ajustaveis aquilo que uma pessoa sabia faria nos casos especificos. Parece que ele ajuda 0 legislativo a obter principios universais a partir da sabedoria. Coloquei dessa forma porque sei que Stuart ficara preocupado com isso, uma vez que parece uma tarefa impossivel.

 

SD: Bern, ele nao esta articulando principios, ao que parece. Ele esta julgando casos que podem se destacar como precedentes. Isto e urn pouco melhor do que articular principios.

HD: Sim, isso e melhor, mas se suas decisoes voltam aos legisladores, alguem tern que se mover em direr;ao aos principios. E nesse movimento eles perderao algo importante.

 

SD: As decisoes do ombudsman voltam para os legisladores?

 

P: As decisoes sao apresen tadas aos legisladores, mas 0 ombudsman nao tem nenhuma autoridade para impor mudan9as as leis. Suas decisoes sao balizas que ganham influen cia pelo respeito geral e pelo prestigio associado a institui9ao do ombudsman. A interpreta980 das leis em vigor, e, desse modo, em pratica, pode mu dar baseada nas decisoes em rela980 a casos eprocedimentos individuais do ombudsman?

 

SD: De certa forma e parecido com 0 que a Corte Suprema faz neste pais. Normalmente ela nao recorre a ninguem para mudar nada. Suas decisoes mudam as coisas por si proprias.

 

HD: Entao isto traz 0 universal, que nunca captars. de forma completa as intuir;oes sobre 0 que e certo no particular, mais proximo ao particular, estabelecendo precedentes sobre como aplicar os universais ao particular. Isto e born. Voces tern direito consuetudins.rio ou jurisprudencia na Escandins.via?

 

P: Tem os as duas.

 

HD: As leis de codigo tentam tanto quanto possivel explicitar tudo, esse e 0 sistema napoleonico. 0 direito ingles nao tenta explicitar tudo, pois, sabe que isso e impossivel. Entao, quando voce discute urn caso, voce discute se esse caso e mais ou menos semelhante aos casos anteriores onde as decisoes js. foram tomadas. A questao e com qual caso este e mais parecido, e, ao encontrar este caso, deve-se tomar a decisao que js. foi tomada. Agora, 0 que isto significa? Bern, 0 direito consuetudins.rio e certamente bern melhor para 0 caso do modelo de habilidades, porque preserva muito da intuir;ao ao considerar 0 caso corrente como semelhante a alguns casos anteriores, com os quais voce j s. sabe lidar. De forma que voce nao precisa de urn ombudsperson no sistema ingles, js. que aquilo que 0 juiz ests. fazendo 0 tempo todo e tentar ver como aplicar a lei com base em precedentes. Talvez seja por isso que 0 ombudsman tenha urn papel mais importante em seu sistema do que no nosso. Mas eu ainda acho que esse e urn born exemplo. Entretanto, 0 verdadeiro problema em relar;ao a juntar os dois lados de Aristoteles consiste em saber 0 que fazer quando se tern que criar a legislar;ao, porque entao e preciso fazer algo universal. 0 ombudsman, direta ou indiretamente, da a opiniao ao poder legislativo para que este far;a uma legislar;ao universal.

 

P: 0 poder legislativo sabe em primeira mao que suas leis nao funcionarao sem m onitorac;ao. Dai a existen cia do ombudsman.

 

HD: Entao h8. urn tipo de cicIo?

 

P: Exatamente. Na realidade voce precisa dos dais e nao existe um sem a outro. Entao, talvez este exemplo possa ser usado para ilustrar que nao e necessaria a ceitar a divisao en tre a particular e a legislac;ao da qual falamos. Aborrece-me ter que deixar a legislac;ao, como voces parecem fazer, para a tradic;ao Pla tao-Hobbes-Kan t-Haber­ mas, i. e., para as racionalistas. A legislac;ao e importante demais para isso. E a cho que a tradic;ao do particular, de caso e de contexto, tem m uito a que contribuir com a legisla c;ao para anu18-la dessa forma. Par fim, a cho que Aristoteles insistiu n essa ideia, mas foi esquecido au ignorado pelas duas tradic;oes.

 

HD: Gosto disso.

 

P: Recen temente eu esta va andando par Copenhague com um professor ameri­ cana da area de plan ejam en to. Andamos de um lado a outro de Copenhague parbelos parques, discutindo a reievancia do que voces tem escrita para a pianejamento da cidade, do meio ambiente etc. A prin cipia, este professor rejeitou qualquer relevan cia, devido a natureza particuiansta das idelBs que voces apresen tam.

 

HD: E a que eu teria dito tambem.

 

P: En tao eu ciJsse, oihe para todas as praticas nao racionahZadas au praticas marginais, comec;ando exa tamente a qui onde estamos andando: piqueniques familia­ res, crianc;as brincando, pessoas olhando os cisnes e alimen tando as patos, nu distas tomando banho de sol, pessoas espiando as banhistas nus, pipas voando, pessoas olhando as plantas nos jardins botanicos, joggers - eu sei que voce pode nao querer chamar 0 jogging de pratica marginal - e pessoas saindo para caminhar. Voce pode nomear as primeiras cinqiien ta pra ticas marginais diferen tes, todas acon tecendo nesses parques num dia de sol, mas os proprios parques, servin do como ponto de partida para tudo isso, tornando tudo isso possivel - considere a simples fato de um parque estar ligado ao proximo por toda Copenhague -, sao a resultado de uma legislac;ao e planejamen to racionais. Novamente, isto me parece ser um exemplo de que as dois lados nao estao separados, mas estao interagindo, cada um dando ao outro conteudo, de fato, qualidade.

 

HD: Sim, acho que a ligac;ao crucial que voce faz sobre a legislac;ao e esses dois exemplos seria algo assim: no quadro racionalista, a legislac;ao esta tentando captar a universalidade e a justic;a comum; idealmente ela deveria torna-Ias 0 mais pr6ximo possivel; quanto mais ela aproximar a universalidade e a justir;a comum tanto melhor. Isso significa Rawls, 0 liberalismo etc. 0 que estamos dizendo e que, infelizmente, a legislar;ao e forr;ada a pensar em termos de universalidade e justir;a. Mas h8. algo intrinsecamente errado com isto. 0 estabelecimento do ombudsman de forma a faze-Io interagir com 0 sistema administrativo-Iegal e reconhecer esse aspecto. 0 objetivo deixa de ser a universalidade e a justir;a comum, que passam a ser realmente irrelevantes para uma situar;ao fora do comum, de forma que voce tern que consertar constantemente esta universalidade e justir;a comum. Este e urn modo muito diferente de se encarar a legislar;ao. 0 que e importante ter em mente - importante porque e muito dificil se acostumar a isso - e que tanto a universalidade quanto a justir;a comum nao sao virtudes positivas, como se fossem urn tipo de posir;ao de retrocesso quando nao se tern a sabedoria. Isto faz tudo parecer mais diferente do que e para pessoas como Habermas e para os kantianos. Mas posso considerar a sua colocar;ao de que a legislar;ao e a justir;a comum sao importantes demais para que nao tenhamos uma opiniao a seu respeito, simplesmente passando-as aos racionalistas, como fizemos em nosso ultimo texto. Gostaria de retomar isso agora e dizer que sim, precisamos de legislar;ao, universalidade e justir;a comum, mas nao porque a universalidade e a justir;a comum sao outros principios morais igualmente importantes. Precisamos deles porque nao se pode legislar sobre todo 0 caso especifico; ainda assim, seria melhor se pudessemos; pois perde-se algo quando nao podemos faze-Io.

 

P: Com unidade parece ser a palavra magica a qui.

 

HD: Certo. Se h8. universalidade, ela e a sensibilidade compartilhada e 0 senso de responsabilidade que as pessoas tern ou nao tern. It com isso que pensadores como Robert Bellah e Charles Taylor estao preocupados. As pessoas querem cada vez mais dizer que a primeira coisa a resolver e como superar 0 individualismo - cada urn tentando maximizar a sua propria felicidade, sem se preocupar com 0 resto. Isso e urn problema tao grande que pode-se ficar atolado nele. Nao e problema nosso, portanto nao estamos atolados nele. 0 que quero dizer e que nao e nosso problema filosofico, e 0 problema pessoal de todo mundo.

 

P: Mais uma vez eu poderia ver esta posir;8o como uma ca usa real da ansiedade cartesiana em algumas partes, e m uitas pessoas, incJuindo provavelmen te Habermas de novo, veriam inegavelmente tenden cias elitistas e antidemocraticas tan to no seu modelo quanto na enfase em phronesis. Como voces veem sua posir;8o em relar;8o a democracia e a etica democratica ?

 

HD: Quando eu estava em Frankfurt e apresentei 0 modele de cinco estagios de habilidades, Habermas disse, "Voce esta falando sobre habilidades como martelar e jogar xadrez, mas 0 que voce realmente quer fazer e enfraquecer a sociedade ocidental". Eu disse "Voce esta certo, esse e exatamente 0 meu objetivo". ComeQa-se com uma descriQao simples sobre pericia e acaba-se falando como acabamos de fazer. Os racionalistas dizem que e preciso ser capaz de articular os principios subjacentes a qualquer decisao racional. Nos dizemos nao, a menos que voce os insira em sua definiQao de racional. Se voce quer dizer que qualquer urn deve ser capaz de articular os principios subjacentes a uma decisao que tiver tornado, e que essa decisao se revela ser uma boa decisao com base em experiencias passadas e, talvez, ate mesmo a melhor decisao, como a de se terminar urn jogo ou de se fazer uma autopsia, entao e falso - urn eno que comeQa com Socrates e PIatao - sustentar que tal decisao faz alguem articular seus principios. 0 racionalista contra-argumenta que, se voce nao puder fazer isso, a discussao democratica das decisoes, que requer a decisao sobre a aceitaQao ou nao dos principios sobre os quais essas decisoes sao tomadas, e impossivel. Nos responderiamos, voce tern uma escolha. Ou voce reestrutura sua ideia de discussao democratica em tome de pessoas contando historias e venda qual narrativa e mais aceitavel ou voce pode optar por decisoes competentes ao inves de especializadas e manter sua analise democratica.

Ao contar historias, as pessoas, incluindo os politicos, usam retorica, mas mesmo a retorica nao e arbitraria, porque algumas retoricas funcionam e outras nao, como diria alguem como Foucault. Se sua ret6rica funciona - se as pessoas usam seu vocabulario e a sua historia - isso significa que voce esta falando no interesse das pessoas sobre algo que realmente as interessa. 0 teste para saber se voce esta em alguma coisa certa e ver se ela ressoa junto as pessoas. E claro que os cabelos de Habermas imediatamente ficam de pe quando ele se lembra de Hitler. A retorica de Hitler ressoou junto aquilo que 0 povo alemao queria, e isso e assustador. Nao se pode descartar isto facilmente; 0 que se quer e ser capaz de, se nao controlar os politicos, pelo menos ser capaz de dizer que a retorica desse homem e perigosa.

 

P: 0 que voces veem como um baluarte con tra este tipo de ret6rica perigosa ?

 

 

HD: Creio que a forma atual de se colocar a questao no cenario filosofico e a questao de se estar do lado da m oralita t ou sittlichkeit, para usar os termos de Hegel. Estas sao as duas altemativas - 0 certo versus 0 bom. Sittlichkeit sao os costumes que as pessoas compartilham, que lhes da 0 senso de prioridade de bens, por exemplo, e o que sao os problemas correntes. E 0 unico baluarte contra Hitler, se esta for a historia certa, seria a sittlichkeit do povo alemao. Eles aceitaram a retorica perigosa sobre a superioridade da Alemanha, mas as praticas preservadas das tradiQoes gregas e cristas resistiram ao assassinate de seis milhoes de pessoas. Quando os alemaes estavam matando os judeus e atacando a Po16nia, nao estavam fazendo isso em nome do senso comum moral da Alemanha. A Alemanha era urn estado policial e toda discussao fora paralisada, toda a resistencia fora trancafiada ou assassinada, e muitas pessoas nem mesmo sabiam 0 que estava acontecendo. Se pode haver uma sociedade na qual a maioria apoiasse livremente essas atrocidades, eu nao saberia 0 que dizer.

 

P: Nos conhecemos tal sociedade?

 

HD: Nao, nao creio, mas se houvesse tais praticas compartilhadas, dizer a eles que a sua sociedade estava condenada pelos principios morais universais nao os deteria.

 

P: Voce mencionou an teriormen te 0 fa to de Habermas ter dito que voce quer enfraquecer a sociedade ocidental com 0 modelo de cinco estagios, e voce respondeu que ele esta certo. Que tipo de sociedade voce gostaria de ver surgir da atual sociedade ociden tal?

 

HD: Nao quero uma sociedade que ve 0 homem como urn animal racional, ou mesmo que encontre os primeiros principios ou entre no tipo de ansiedade em relar;ao ao relativismo de que falamos, mas de fato uma sociedade que possa viver com a ideia de que tudo 0 que temos e nossa sittlichkeit, nossas praticas, de forma que essas pessoas concordarao com 0 que e mais humano e assim preservarao mais do que 0 que voce chamaria de dignidade humana. Tudo isso e uma pratica relacionada e alem dos principios.

 

Refer€mcias bibliogrcificas

 

 

ARISTOTELES. The Nicomachean Ethics. Harmondsworth: Penguin Classics, London: Oxford University Press, 1966. 1141 b8- 27.

BENNER, P. Th e primacy of caring: stress and coping in health and illness. Menho Park: AddisonlWesley, 1989. BORGMANN, A Technology and the character of con temporany life: a philosophical inquiry.

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DREYFUS, H., DREYFUS, S. Towards a ph en om en ology of ethical expertise. (No pre]o)

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PIRSING, R. M. Zen e a arte de manu ten r;Bo de motocicletas: uma investigar;ao de valores. Trad. Celia C. Cavalcanti. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

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[1] A maior parte desta entrevista foi feita em maio de 1989 e junho de 1990 em tres encontros, dois com Hubert e Stuart Dreyfus e urn com Hubert Dreyfus. 0 material dessas tres entrevistas foi complementado com material de outras duas, realizadas em 1987, uma com Hubert Dreyfus e a outra com Stuart Dreyfus. Todas elas foram realizadas na University of California, Berkeley. A pesquisa para as entrevistas recebeu 0 apoio do Conselho Dinamarques de Pesquisa em Ciencia Social e do Conselho Nacional de Pesquisa da Dinamarca. Neal Richman, Research Fellow na University of Aalborg, auxiliou na ediyao da entrevista.

[2] Departamento de Desenvolvimento e Planejamento da Universidade de Aalborg.

[3] Oficina de Traduyao do !BILCE - Instituto de Biociencias, Letras e Ciencias Exatas - UNESP - 15054-000 - Sao Jose do Rio Preto - SP. Colaboraram na traduyao: Alexandrina A. L. de Oliveira, Elaine Ap. Vieira, Maria Paula P. Vianna (Oficina de Traduyao, UNESP - S.J. do Rio Preto).

[4] Departamento de Filosofia - Faculdade de Filosofia e Ciencias - UNESP - 17525-900 - Marilia - SP.