O LEGADO MARXIANO E 0 PROBLEMA DA DEMOCRACIA[1]

 

 

Dick HOWARD[2]

Traduc;:ao do ingles: Alvaro L. HATTHER[3]

Revisao Especializada: Isabel M. Loureiro[4]

 

1. Dissoniincias cognitivas

Os "eventos" do ana passado deveriam surpreender urn esquerdista serio? Chamo essas mudanr;as macir;as de "eventos", e coloco 0 termo entre aspas, numa alusao a forma como os franceses evitaram ajustar contas com sua propria e aparentemente inexplicavel experiencia em maio de 1968, quando urn protesto estudantil iniciou uma cadeia de ac;:oes e reac;:oes que levou inesperadamente ao quasecolapso de todo poder governamental - que, no entanto, foi seguida por eleic;:oes dando vitoria esmagadora ao partido da ordem. Alem do mais, usa 0 termo "partido da ordem" e nao "da direita" ou "conservador" - muito menos "capitalista" - para recordar 0 fato de que, naquele mesmo ana de 1968, os dirigentes comunistas trouxeram a "ordem" de volta a Praga sobre as pesadas esteiras dos tanques do Pacto de Varsovia. 0 inimigo polimorfico, de muitas cabec;:as, que aterroriza as noites do partido internacional da ordem, nao e a esquerda, 0 socialismo - muito menos 0 " comunismo" -, mas sim a democracia. Esta nao e uma observac;:ao tao banal quanto parece. Afinal de contas, quem se opoe a democracia? Ora, para ser sincero a respeito, muitos de nos da esquerda ocidental 0 fizeram - esquivando-nos de uma postura critica ao dizer que aquilo a que nos opunhamos era apenas a democracia " formal", que denunciavamos como ideologica. Mas 0 destino do "socialismo real" nos forya a repensar nossos proprios valores e metodos politicos. E nao podemos empreender essa refiexao como se f6ssemos virgens em politica. Temos urn passado e vivemos em urn presente ; temos que atuar a partir das dissonancias cognitivas que ambos produzem.

Retiro de meu proprio passado 0 modelo de Rosa Luxemburg, que usarei como fio condutor para entender 0 lugar da politica democratica dentro do movimento da esquerda. Ela foi a critica radical dos aspectos antidemocraticos da tomada do poder pelos bolcheviques em 1917, da mesma maneira que havia criticado a reforma do partido feita por Lenin quase quinze anos antes. E sua condiyao de revolucionaria democratica confirmou-se em seu ultimo artigo, escrito em meio as ruinas do levante Spartakista em janeiro de 1919. 0 titulo desse artigo, "A Ordem Reina em Berlim", nao era meramente retorico, e seu terna permanece atual. 0 titulo, naturalmente, aludia a prociamayao que se seguiu a derrota do levante polones de 1831, mas Rosa Luxemburg tornou claras suas implicayoes contemporaneas: "Dessa forma correm os relatos dos guardioes da 'ordem' a cada meio seculo C.. ) E os 'vencedores' satisfeitos nao percebem que uma 'ordem' que precisa ser mantida periodicamente por meio de chacinas sangrentas aproxima-se inabalavelmente de seu destino historico, de sua destruiyao." Mas Rosa Luxemburg esperava que "a revoluyao" executasse a sentenya da historia. Assassinada no dia seguinte, ela tornou-se 0 primeiro icone para aqueles que se recusaram a identificar 0 leninismo com 0 legado marxiano.5 Mas a relayao pratica e conceitual entre a revoluyao de Rosa Luxemburg e uma politica radical, mas ainda democratica, permaneceu para ser explorada por seus herdeiros.

Buscando herdar 0 legado marxiano, muitos integrantes da esquerda ocidental do pos-guerra experimentaram a dissonancia cognitiva em seus primeiros debates com seus pares socialmente criticos do Leste. Aquilo que pensavamos ser "a esquerda" era para eles 0 suporte das bases ideologicas de sua ordem estabelecida. Aquilo que consideravam "radical" era, para nos, 0 suporte dos principios ideologicos de nossa propria ordem. Urn exemplo bern conhecido ocorreu quando Rudi Dutschke levou uma delegayao do SDS de Berlim para se encontrar com os estudantes rebeldes de Praga no comeyO de 1968. A esquerda ocidental estava ocupada descobrindo 0 marxismo ; os tchecos estavam preocupados com as assim chamadas liberdades "formais", tais como 0 direito de manifestayao publica ou de formar associayoes livres da tutela das autoridades. Apesar do fundamento obvio para mal-entendidos, 0 dialogo aconteceu: inimigos de uma ordem que os depreciava como sendo " anarquistas", ambos os lados buscavam dar vida nova a democracia. Diferiam suas situayoes, e diferiam tamMm suas soluyoes. Isso era de se esperar: a democracia nao e uma forma universal, auto-identica e pura. Embora esse ethos democratico compartilhado tenha aparecido na pratica durante 0 estonteante ana de 1968, ele nao foi formulado teoricamente - pelo menos no Ocidente, onde 0 imperativo romantico e moral chamado "a revoluyao" obscureceu as reivindicayoes democraticas.

Os dois lados poderiam ter tent ado interpretar suas situar,;oes valendo-se de Rosa Luxemburg, outra assim chamada "anarquista". Ela havia descrito a "revolur,;ao" como "a (mica forma de ' guerra' C.. ) na qual a vit6ria final s6 pode ser preparada por uma serie de 'derrotas' ''. Apesar dessa imagem sugestiva, apontando para 0 processo de aprendizado normativo necessario para que a politica seja democratica, Luxemburg nao identificava a "revolur,;ao" com a democracia que obcecava 0 partido da ordem. Ela ainda era uma marxista para quem 0 espectro " obsessivo " era sem duvida 0 de Marx. A teoria de Marx servia-Jhe como uma garantia da pratica revolucionaria. Ela recorre constantemente ao texto de Marx; por exemplo, sua critica ao reformismo de Bernstein satisfaz-se em ter mostrado que "em sua essencia, em suas bases, a pratica oportunista e irreconciliavel com 0 marxismo." De maneira semelhante, nas profun­ dezas de uma guerra mundial, sua Broch ura de Junius insistia que "a teoria marxista deu a classe operaria de todo mundo uma bussola que the permitia encontrar 0 caminho no turbilhao dos acontecimentos quotidianos e fixar sua tatica hora a hora em funr,;ao do objetivo final, imutavel. "6 Pode-se, e claro, apontar outros argumentos te6ricos e praticos menos submissos e mais criativos. Mas a questao aqui e que nao se pode resolver a dissonancia cognitiva invocando-se "democracia", quer como urn passe-partout que esta acima de todas as outras posturas, quer como uma sintese que une, magicamente, politica, sociedade e economia.

 

A "democracia" nao elimina as diferenr,;as reais, mesmo entre seus pr6prios partidarios. Urn outro exemplo de dissonancia cognitiva, de uma outra parte do mundo, atesta a necessidade de aprender a politica democratica. Urn leitor ocidental contemporaneo do New York Times possivelmente nao se surpreenderia com a seguinte passagem em urn artigo recente sobre El Salvador: "Costumavamos marchar cantando, 'Socialismo, Socialismo ' '', disse 0 Rev. Rogelio Ponceele, urn padre cat6lico que viveu e trabalhou com a maior facr,;ao da guerrilha durante quase uma decada, "Agora marchamos cantando, 'Democracia, Democracia !' ''. Mas 0 que esse leitor diria sobre a continuar,;ao do mesmo artigo, onde se explica que, ap6s uma decada de luta, as tropas guerrilheiras nao estao prontas a seguir seus lideres recem-convertidos? 0 Times explica isso como 0 resultado de urn vacuo entre os lideres instruidos e os " camponeses com pouca instrur,;ao que a eles se uniram ap6s sofrerem a repressao direitista."7 Rosa Luxemburg sugeriria uma leitura diferente. A "democracia" e mais do que urn slogan usado para unir os excluidos contra 0 partido da ordem. Em sua polemica contra 0 partido leninista, ela reconheceu que "0 exercito proletario e recrutado primeiro na pr6pria luta", mas acrescentou a qualificar,;ao normativa de que "apenas na luta ele se torna consciente dos objetivos da luta." Essa insistencia nos processos de aprendizado democratico e ate mais explicita em sua defesa do programa da Liga Spartakus em 1919, ao concluir que "As massas precisam aprender a usar 0 poder usando 0 poder."B Tais assertivas podem parecer justificar a critica de "espon­ taneismo" de Luxemburg. Mas elas colocam tambem a pergunta: 0 que se precisa aprender para ser urn democrata herdeiro do legado marxiano?

o partido da ordem acusou a nova Esquerda da decada de 60 de ser " antiinte­ lectual". A busca de uma resposta a essa critica fez brotar urn outro aspecto da dissonancia cognitiva. Enquanto lia Anti-Intellectualism in American Life de Richard Hofstadter, fiquei surpreso com meu repetido alinhamento emocional com a rejeic;ao dos antiintelectuais em relac;ao a uma sociedade ressequida, formal e cada vez mais atomizada que conquistava de maneira incansavel todos os aspectos da vida. Esta resposta instintiva foi reforc;ada pelo encontro inesperado com A Forma(:ao da CJasse Operaria IngJesa de E. P. Thompson e encontrou uma justificativa mais te6rica em The Great Transforma tion de Polanyi. 0 quadro de uma "economia moral" protegen­ do-se da eficiencia invasora do estado modernizador era interessante porque apontava para a fonte de urn radicalismo nativo que promovia valores coletivos diante do individualismo egoista da sociedade de mercado. Parecia tambem oferecer suporte a politica "espontaneista" de Rosa Luxemburg no panfleto Greve de Massas, cujo fundamento era 0 de que "as massas serao 0 cora ativo, e os lideres declamarao apenas algumas partes, sendo os interpretes da vontade das massas. "9 Mas ao seguir 0 conselho de Luxemburg e reler Marx, percebi que essa imagem de uma economia moral e pre-moderna. 0 Manifesto Comunista apresenta urn hino de louvor aquilo que Schumpeter veio a chamar de "destruic;ao criativa " da modernizac;ao capitalista; com esse louvor surgiu uma critica dos sonhos da vida comunal pre- capitalista que pode reproduzir apenas " 0 embrutecimento da vida rural." A critica de Marx ao capitalismo nao queria voltar a urn tempo alegadamente melhor ou mais Simples, anterior a disseminac;ao da conosiva influencia da modernidade. Mas 0 conceito hegeliano de Aufhebung - preservac;ao concomitante a ascensao a urn nivel mais alto - nao explica como ele poderia louvar e criticar 0 que chama de "burguesia revoluciomlria". A magica Aufhebungera apenas urn acrescimo ao meu sentido de dissonancia cognitiva.

 

2.      Ah�m da democracia: totalitarismo?

Por que continuar a reconer a Marx, ou a Rosa Luxemburg, depois das experiencias de 1989? A resposta depende de como definimos os novos desafios diante de n6s. Eles nao podem ser definidos simplesmente como a instituic;ao de uma constituic;ao que protege determinados direitos econ6micos e sociais. Quais direitos? Quem decide? Os paises chamados democraticos tern constituic;oes diferentes e garantem de maneira mais ou menos estavel os direitos politicos de seus cidadaos. E melhor definir esses regimes como liberais, deixando em aberto, por enquanto, a questao mais fundamental da natureza da democracia.10 Direitos que h oje parecem ser essenciais para as sociedades liberais geralmente sao de safra recente - por exemplo, 0 direito das mulheres ao voto. E os mesmos direitos nao estao presentes em todas as sociedades liberais - por exemplo, protec;ao a privacidade ou direito ao aborto. Esses direitos as vezes sao violados: 0 sistema politico nem sempre funciona como a constituiQao promete. A falta de urn ou outro direito, ou ate mesmo a violaQao ocasional de direitos ou de disposiQoes constitucionais, nao significa que esses regimes nao sejam democn'iticos. Nem implica que se deva voltar a critica marxista dos direitos como sendo " formal". Rosa Luxemburg entendeu melhor as implicaQoes do legado manGano quando, ao apresentar 0 programa da Liga Spartakus, insistiu que "Muito mais importante do que aquilo que esta escrito em urn programa e a forma pela qual isso e interpretado na HQao."ll Os direitos sao garantidos apenas em uma luta hist6rica cuja questao central nao e outra senao esses mesmos direitos. A abertura para essa forma de aQao politica e 0 que torna uma sociedade democratica. Alem disso, h8. a implicaQao de que as sociedades democraticas sao hist6ricas e que seu futuro depende da forma como os direitos sao "interpretados na aQao".

Mas nao se pode escapar de Marx tao facilmente. 0 fato de que os direitos liberais formais precisam de proteQao aponta para a necessidade de dar-lhes uma base mais segura e substancial. Mas essa separaQao entre uma base material e os direitos que aquela supostamente garante tern tido, de maneira frequente, consequencias politicas infelizes. Ela sugere que os direitos podem ser suspensos "temporariamente" a fim de se construir a base que possibilitara a todos os cidadaos desfrutar desses mesmos direitos. Isso significa descer 0 primeiro degrau da escada escorregadia que leva, na melhor das hip6teses, ao despotismo esclarecido. Duas alternativas parecem possiveis hoje: 0 "socialismo democratico", como a Terceira Via tao procurada por tantos ; ou 0 retorno ao processo de desenvolvimento aut6ctone pre-totalitario que e construido a partir da hist6ria peculiar de cada naQao. Mas ambas essas opQoes assumem que 0 totalitarismo foi imposto sobre a sociedade de fora, por urn fia t politico externo. No primeiro caso, diz-se que essa imposiQao politica teria sido necessaria devido a incapacidade da burguesia nativa para assumir seu papel ; no segundo caso, a politica totalitaria parece ter interferido em urn desenvolvimento end6geno harmo­ nioso. Os partidarios das duas opQoes fariam bern em lembrar-se da advertencia de Rosa Luxemburg a Liga Spartakus para que nao imitassem "as revolucoes burguesas nas quais bastou derrubar aquele poder oficial no centro e substituir uma meia duzia de pessoas que detinham a autoridade. " 12 A implicaQao e a de que ambas as supostas alternativas partilham uma hip6tese comum acerca da relaQao entre politica e sociedade: a busca por uma Terceira Via transforma a politica na variavel inde­ pendente ; 0 recurso a hist6ria faz da sociedade a determinante primaria. Como podem as duas posturas se unir e de maneira harmoniosa?

Rosa Luxemburg viu 0 problema e sua tentativa de soluciona-lo nos permitira enxergar tanto a fraqueza do marxismo quanto a forQa de Marx. Luxemburg apontou reiteradamente para a necessidade de se navegar entre "0 abandono do carater de massa ou 0 abandono do objetivo final ; a recaida no sectarismo ou no reformismo burgues ; anarquismo ou oportunismo."13 Ela pensava poder sintetizar esses "dois escolhos" na "greve de massas" onde "a luta econ6mica e aquela que conduz a luta politica de urn ponto nodal a outro ; a luta politica e aquela que periodicamente fertiliza o solo para a luta econ6mica. Aqui, causa e efeito trocam constantemente de lugar. " 14

Porem, essa sintese atraente ainda e produzida pelo a crescimo de magoas particulares e protestos individuais. Seu resultado politico aparece na alternativa de Luxemburg a Lenin. Seu partido "torna-se gradualmente 0 refugio dos diferentes elementos insatis­ feitos da sociedade, tornando-se 0 partido do povo oposto a pequena minoria da burguesia dominante."15 Mas essa politica nao e nova: ainda se baseia no protesto imediato e nao em urn debate publico e em uma avaliaQao critica. Aqui Luxemburg continua marxista: ela esta tratando a sociedade como sendo determinada por suas bases econ6micas. Ainda assim, as ideias mais radicais que a tornam parte do legado marxiano basearam-se na suposiQao de uma sociedade democratica.

o ponto de partida para a elaboraQao de conceitos sobre a sociedade democratica pode ser encontrado no jovem Marx. Ele aprendera com Hegel que 0 nascimento de uma "sociedade civil", que nao pode ser redutivel a esfera privada nem e capaz de ser absorvida pelo estado politico, e a marca da modernidade. Embora suas ultimas obras reduzissem sua "anatomia" a meras relaQoes economicas, Marx frequentemente demonstrou ter consciencia de sua complexidade. As duas abordagens podem ser encontradas no Manifesto Comunista. A descriQao de Marx daquilo que chama de empreendimento revolucionario da burguesia nao pode ser reduzida nem a relaQoes economicas nem a imperativos politicos. "Todas as relaQoes fixas, cristalizadas, com seu cortejo de preconceitos e ideias antigas e veneradas sao suprimidas", escreve Marx, "todas as novas relaQoes se tornam antiquadas, antes mesmo de se consolidar. Tudo que e s6lido desmancha no ar, tudo que e sagrado e profanado, e por fim 0 homem e obrigado a encarar com serenidade suas verdadeiras condiQoes de vida e suas relaQoes com a especie." Novas necessidades podem surgir agora; novas formas de comunicaQao produzem uma nova civilizaQao ; as cidades "resgatam" 0 campesi­ nato do "embrutecimento da vida rural". Essas sao as bases para se ler Marx como 0 primeiro modernista.16

o leitor contempor{meo dessas linhas impressiona-se com outro aspecto das consideraQoes de Marx. Alem da costumeira ret6rica, sua analise poderia ter sido escrita por Tocquevile. 17 Mas entao pode-se perguntar por que Marx reduz a revoluQao social que descreveu ao simples resultado de uma contradiQao entre as relaQoes feudais de propriedade e as forQas produtivas que devem ser "despedaQadas". A razao se torna clara quando Marx prontamente generaliza aquele modelo economicista para retratar 0 advento da revoluQao proletaria, segundo as linhas sugeridas pelo "partido do povo" de Luxemburg. Isso leva a consecuQao de dois objetivos: fornece uma base material para a liberdade e os direitos que Marx deseja defender ; e seu embasamento numa filosofia da hist6ria como luta de classes que sera, por fim, superada implica que a transformaQao hist6rica nao mais sera uma ameaQa para a futura sociedade comunista. Mas 0 preQo pago por essa certeza te6rica e grande demais: a suposta garantia material torna desnecessario 0 debate politico democratico, enquanto que a garantia filos6fica de unidade bloqueia a visao de urn futuro aberto sobre 0 qual a sociedade necessitaria discutir. Nesse quadro, nao ha lugar para 0 cntico nem para 0 espac;o publico no qual 0 julgamento pode se formar.

Urn quadro diferente emerge quando a sociedade moderna de Marx e lida pelos olhos de Tocqueville. A "burguesia revolucionaria" e vista como produtara de uma sociedade democra tica. Sua elimina9aO das certezas "solidas" e a profana9aO do "sagrado" assinalam 0 fim de uma sociedade na qual cada urn tern seu lugar e seu papel; 0 individuo moderno nasce e deve enfrentar, com "serenidade", 0 problema de quem ele e e com quem ele ira se relacionar. Marx nao fala sobre direitos nesse contexto parque suas primeiras criticas a Hegel ensinaram-Ihe que tais direitos eram apenas farmais. Mas seu contraste da sociedade feudal e burguesa deveria ter conduzido a uma conclusao diferente. Os "direitos" feudais sao atributivos ; sao impostos de fara sobre a pessoa, par Deus e pela natureza "salida" das coisas. Par outro lado, 0 individuo moderno vive em urn mundo sem fundamentos; se esse individuo tern direitos, os fundamentos desses direitos so podem ser politicos. Eles sao conquistados e garantidos apenas na luta. Isso sugere que 0 revolucionamento constante das rela90es sociais no capitalismo e urn desafio renovado aos recem-con­ quistados direitos do individuo. 1mplica, tambem, que 0 capitalismo nao e apenas urn modo de produ9ao ; a historia das lutas de classes precisa ser reinterpretada como a historia da politica de direitos ; e, con trariam en te a historia economicista, essa historia dos direitos nunca terminara em uma grande unifica9aO. Em uma sociedade demo­ cratica cujo fundamento e 0 individuo moderno, nao pode haver 0 recurso a uma base de direitos material ou transcendente ; a historia permanece aberta e a politica continua sendo necessaria. A demoeracia nao e formal, mas a experiencia vivida de uma luta par direitos nao pode terminar nunca.

Essa interpreta9aO da democracia sugere urn novo modelo para 0 entendimento da emergencia do totalitarismo. A sociedade moderna habitada pelo individuo radicalmente livre e inquietante, homens e mulheres sao atomos, juntos e solitarios naquele espa90 infinito tao temido par Pascal. Embara, e claro, nunca admitissem, eles sabiam que 0 Manifesto estava correto: os direitos que tern hoje, assim como 0 espa90 que ocupam, podem ser "suprimidos" ou "tornarem-se antiquados, antes mesmo de se consolidar." E essa experien cia vivida que faz com que os direitos pare9am meramente farmais, e a democracia urn luxo. A demanda par uma demo­ cracia "real" e/ou par uma verdadeira comunidade cresce ; a divisao social e intolera­ vel, uma amea9a a propria existencia do individuo. Surge a busca par raizes, par algo "solido" e ate mesmo "sagrado"; urn movimento emerge, talvez fascista, talvez comunista.18 Mas esses movimentos saltam para urn momenta qualitativamente novo na historia politica apenas de farma aparente. 0 totalitarismo nao esta aiem da democracia: ele e imanente a logica da democracia - da mesma forma que a " greve de massas" que navega magicamente entre os "dois escolhos" de Rosa Luxemburg. Tanto a democracia quanto 0 totalitarismo emergem da experiencia de divisao social em uma sociedade de individuos alienados ; a democracia busca preservar essa divisao criando um espa90 publico den tro do qual uma politica de direitos (inc1uindo as direitos economicos) pode ocorrer, ao passo que 0 totalitarismo quer superar a divisao por meio de uma nova unidade. Assim, 0 totalitarismo parece ser a solu9aO logica para as tensoes da sociedade democratica. Nesse sentido, 0 totalitarismo e uma antipoli­ tica.19

A afirmac;ao de que 0 totalitarismo e imanente a logica da democracia implica que essa democracia nao e urn estado de coisas ; ela nao e 0 ideal liberal estatico da protec;ao formal dos direitos bc'isicos. A sociedade descrita por Marx e reinterpretada por Tocqueville nao e estavel. Seria preferivel falar em uma dinamica da democrati­ zac;ao, para nos referirmos ao processo cujas origens residem na modernizac;ao que suprime as certezas da antiga ordem 20 Mas 0 totalitarismo nao pode impor unidade a uma sociedade moderna; sua "politica" e aplicada verticalmente, de cima para baixo, buscando constantemente atomizar quaisquer tentativas de formas horizontais de associac;ao que possam criar uma nova esfera publica. Mas exatamente pelo fato de ser imanente as sociedades democraticas modernas, 0 projeto totalitario esta conde­ nado ao fracasso. Nao e de surpreender a rapidez com que caiu. Sua propria logica volta-se contra ele. Se fosse realizado, sua propria base - a sociedade de individuos que tern que buscar constantemente suas proprias raizes e seus proprios direitos - seria obliterada. Nao ha duvida de que politicas autocontraditorias podem ser impostas a forc;a ; mas quando essa pressao externa e retirada, tais politicas entram em colapso, caindo no nada.

o que resta, quando se evita a alternativa totalitaria, ainda precisa ser analisado. Dois seculos atras, James Madison enfrentou urn problema semelhante em sua tentativa de justificar a nova Constituic;ao Americana. Em seu famoso capitulo X de o Federalista, ele afirmava que, para curar a forma de divisao social denominada "facc;ao", podia-se destruir "a liberdade essencial a sua existencia", ou podia-se dar "a todos os cidadaos as mesmas opinioes, as mesmas paixoes e os mesmos interes­ ses." 0 primeiro remedio, continua ele, seria "pior do que a doenc;a", enquanto 0 segundo nao so e "impraticavel", mas tambem uma negac;ao da "primeira finalidade do governo".21 A soluc;ao de Madison era multiplicar 0 numero de facc;oes, de forma que cada uma possa fiscalizar a ameac;a da outra, preservando uma sociedade democratica dentro do modele de uma rep ublica representativa. Devemos prestar atenc;ao nisso: a democracia de Madison nao era baseada na soberania democratica. Seu discernimento dizia-lhe que e necessario urn estado republican 0 representativo a fim de preservar uma sociedade dem ocratica. Madison certamente nao se teria surpreendido com 0 colapso rapido e radical dos estados totalitarios apos 1989.

 

3.      0 Estado moderno/modernizador

 

A rejeic;ao de Madison a soberania democratica tern outra implicac;ao. Se a nova sociedade democratica fosse 0 resultado da ac;ao da burguesia "revolucionaria", 0 economismo marxista ainda poderia fazer sentido. Mas Tocqueville demonstrou que a mesma sociedade democratica emergente era 0 produto de urn estado modernizador, que buscava garantir sua soberania absoluta.22 Claude Lefort argumenta que a negligencia de Marx ern relayao a esse estado modernizador explica sua incapacidade de entender a autonomia da sociedade democratica.23 0 Manifesto Comunista passa do feudalismo ao capitalismo sem considerar 0 estado absolutista, cuja nOyao de soberania permanece conosco ate hoje. Assim, quando Marx analisa a Declarayao dos Direitos do Homem, da Revoluyao Francesa, ele nao consegue entender a importancia desses direitos, que the parecem ser apenas formais. Segudo Marx, a liberdade de fazer tudo aquilo que nao prejudique os outros apenas protege a m6nada egoista ao inves de libertar 0 individuo da sociedade hierarquica e de abrir a possibilidade de formayao de novos layos sociais. 0 mesmo se aplica a distinyao entre as esferas publica e privada, 0 que nao e apenas uma formalidade, como pensa Marx, mas sim a garantia de urn direito que torna 0 individuo livre. Tambem nao sao formais a liberdade de opiniao e de expressao ; elas criam uma esfera publica que assegura que 0 conheci­ mento nao vai se manter como monopolio daqueles que estao no poder. De forma semelhante, 0 direito a seguranya nao pode ser reduzido a proteyao da propriedade capitalista ; ele tambem protege 0 cidadao das ayoes arbitrarias e conseqtientemente afirma a autonomia que permite ao individuo ser urn cidadao corn consciencia critica.

o parcialismo de Marx faz corn que ele ate mesmo ignore a implicayao historica da presunyao da inocencia, que para Lefort e "uma aquisiyao irreversivel do pensamento politico. "24

Entretanto, ao se analisar a relayao entre 0 estado absolutista e a burguesia "revolucionaria" de Marx nas diversas historias nacionais, urn ponto permanece comum. A centralizayao e 0 novo conceito de soberania destruiram 0 cosmo hierar­ quico e ordeiro herdado da sociedade tradicional. Surgiu uma nova matriz: 0 individuo e uma politica de direitos tornaram-se possiveis. A sociedade individualista emergente pode aliar-se ao monarca contra a aristocracia ; ou pode unir-se a aristocracia para atacar 0 monarca. Mais importante do que esses conhecidos campos-de-forya eco­ n6micos e a nova configurayao que opoe a sociedade ao Estado. Esta polarizayao nao deveria ser identificada corn uma historia marxista da luta de classes, cujo objetivo e atingir uma previsivel sintese, ou pelo menos a eliminayao de urn dos palos ern beneficio do outro. Essa visao e mais complexa do que a de Marx, porque a propria sociedade e uma diversidade democratica de individuos cuja unidade e divisao sao estruturadas pelo sistema de direitos assegurados pelo Estado.25 Pelo fato de esses direitos servirem para preservar tanto a diversidade quanto a unidade, sao objeto de uma luta que nunca podera ter fim. 0 estado afirma sua soberania na proteyao desses direitos individuais e tambem na garantia de urn espayo no qual a sociedade possa buscar a afirmayao de novos direitos. Essa era a definiyao norte-americana, de Madison, de "primeira finalidade do governo". Mas tern ascendencia europeia no estado absoluto, cujo primeiro teorico, Jean Bodin, intitulou seu tratado de Os Seis Livros da Republica !

Esse modele permite uma reinterpretayao da historia que produziu tanto 0 capitalismo quanto 0 totalitarismo. 0 estado modernizador - e nao a "burguesia revolucionaria" de Marx - aplica sua nova concepgao de soberania. 0 resultado cria as condigoes para a democratizagao da sociedade. Produz uma sociedade marcada pelo individualismo, pela diferenga e pela divisao. Mas essa sociedade tambem esta a procura de comunidade, identidade e unidade. 0 estado nacional, de forma apenas aparente e por urn breve momenta no sEkulo XIX, fomece essa ligagao. Sua posigao como fiador dos direitos exige que se posicione do lado de fora da sociedade. Se reivindicar ser identico a sociedade, cedo ou tarde ele parece ter inevitavelmente assumido urn lade nas divisoes inerentes a sociedade democratica e deve pagar 0 prego por isso na moeda da perda de legitimidade.26 Pode evitar essa perda apenas por meio de uma tentativa de encamar alguma necessidade ou valor imanen te a sociedade. Entretanto, essa medida 0 coloca no caminho em diregao ao totalitarismo. Sua reivindicagao de identidade com a sociedade nega a diversidade tipica da sociedade democratica recorrendo a uma unidade putativa, provida por urn Volk mistico ou por uma logica do caminho necessario na historia.

Mas 0 totalitarismo nao e 0 (mico caminho pelo qual a sociedade democratica pode buscar unidade. 0 capitalismo faz a mesma reivindica980 no que diz respeito a imanen cia social. 0 mercado neutro substitui 0 estado neutro ; os interesses econ6- micos sao substituidos pelos direitos politicos. Da mesma forma que 0 totalitarismo, o capitalismo e uma an tipolitica. Ele nega sua propria natureza politica. 0 inimigo do capitalismo nao e 0 proletariado, mas a democracia, cuja politica baseia-se nos Direitos do Homem. 0 capitalismo, assim como 0 totalitarismo, procura eliminar a divisao social; a tim de controlar os efeitos de sua constante revolugao das relagoes sociais, ele tern que basicamente reduzi-Ias a uma forma quantita tiva identica. 0 resultado disso e 0 individualismo atomizado, que e incapaz de formular quaisquer normas politicas legitimas porque seu tinico padrao de julgamento e a logica quantitativa de seu proprio individualismo abstrato. A superagao capitalista da divisao social tambem e antipolitica nesse segundo sentido. Ela e incapaz de elaborar qualquer projeto que fomega a sociedade uma imagem positiva de si propria. Conseqtientemente, nao possui normas que possa opor as enormes desigualdades que surgem exatamente na base da logica da igualdade abstrata do mercado.

As lutas que os marxistas cham am de "anticapitalistas" podem ser interpretadas dentro desse modele de democracia. Nao e necessario negar 0 papel do interesse ; a analise de Madison sobre as facgoes reconhecia que "da protegao de capacidades diferentes e desiguais de aquisigao de propriedade resulta imediatamente a desigual­ dade na extensao e natureza da propriedade, " e que "a origem mais comum e duravel das facgoes tern sido a distribuigao diversa e desigual da propriedade. " De fato, para Madison, 0 desenvolvimento dos interesses parecia ser a marca das "nagoes civiliza­ das".27 Mas 0 interesse e mesmo a posse de quantidades desiguais de propriedade nao sao identicos ao capitalismo. Mais exatamente, 0 desafio colocado pelas lutas populares e "anticapitalista" no sentido especitico sugerido aqui: elas poem em discussao a assertiva de que a economia capitalista proporciona essa unidade imanente, destruida pelo nascimento da sociedade democratica, modema e individualista. Esses movimentos afirmam 0 carater aberto e democratico de uma sociedade na qual a luta politica 8 legitima. Sao afirmar;:oes de direitos ou, nas palavras de Lefort, do direito de ter direitos. Nao se conclui a partir dai que todos os movimentos populares devam ser apoiados ; essa decisao 8 0 objetivo do debate publico e dos julgamentos criticos. No entanto, pode-se concluir que devem ser rejeitados quaisquer movimentos que se recusem a fazer parte desse processo democratico, alegando que seus valores ou objetivos representam a verdade ou a unidade imanentes da sociedade.28

 

4.      0 partido da desordem

Esta discussao teve seu ponto de partida no conflito entre 0 "partido da ordem" e os membros da Nova Esquerda a quem chamei de democratas. Usei Rosa Luxem­ burg, a mais rigorosa - e, portanto, a mais contradit6ria - dos marxistas como pano de fundo para uma tentativa de apresentar urn amplo modele no qual 0 legado marxiano - e 0 problema das sociedades p6s-totalitarias - pudesse ser interpretado. A hip6tese sugerida por Claude Lefort, de que tanto 0 capitalismo quanto 0 totalita­ rismo sao tentativas de estabelecer urn fechamento imanen te ou legitimar;:ao para uma sociedade dividida que nao pode reconer a normas transcendentes, permite uma reinterpretar;:ao da hist6ria das lutas populares nos ultimos dois s8culos. Por urn lado, ela sugere que esses movimentos podem - mas nao precisam - mover-se em uma direr;:ao que sustenta a solur;:ao totalitaria. Isso explicaria por que tantos - incluindo os camponeses salvadorenhos e os jovens alemaes de esquerda em visita a Praga que mencionei - podem se perceber aliados a escolhas politicas cujos resultados basicos eles mesmos viriam a deplorar. A hist6ria dos companheiros de viagem, que Lefort deprecia como sendo 0 partido dos bien-pensants, pode ser entendida a partir dessa perspectiva 29 Mas para al8m dessa solur;:ao conceitual para meu enfrentamento com a "dissonancia cognitiva" na onda dos "eventos" de 1989, existe ainda 0 problema emocional suscitado pela tentar;:ao "antiintelectual" de uma "economia moral". Para lidar com ela, introduzirei, por tim, uma outra dissonancia cognitiva: a experiencia da Alemanha Oriental.

Por que aqueles grupos de oposir;:ao, cuja postura corajosa expos a nudez das alegar;:oes totalitarias, foram incapazes de exercer urn papel politico depois do colapso do regime? Parece que, dada a alegar;:ao totalitaria, apenas uma postura moral poderia desatiar sua legitimidade, da mesma forma que foi necessaria uma certeza moral para apoiar a recusa individual em aceitar 0 regime total. Para ser mais do que uma recusa individual, a oposir;:ao teria que assumir estar falando por uma coletividade que fora suprimida e que emergiria depois que a opressao se dissipasse.30 Mas, pensavam alguns, isso seria a substituir;:ao de urn absoluto por outro, de uma totalidade por outra; a oposir;:ao seria a "porta-voz" de uma minoria ainda silenciosa. E, entao, quando 0 regime caiu, e a sociedade se viu sozinha, a oposir;:ao nao conseguiu aceitar a legitimidade de uma politica cujo fundamento e a pluralidade do interesse faccional. A maior forc;:a da oposic;:ao torna-se agora a origem de sua fraqueza. Ela nao conseguia entender 0 materialismo desencadeado no curso da Queda. Mas com que bases a oposic;:ao poderia criticar tal comportamento regido pelos interesses pessoais? Nao teria ela que recorrer, implicita ou explicitamente, a urn conceito de unidade, a ideia de uma sociedade que estaria finalmente, por meio do conhecimento e comportamen­ to adequados, reconciliada consigo mesma para alem das divisoes? Isso entao a torn aria, apesar dela mesma, uma parte do partido da ordem? 0 seu objetivo implicito seria nao s6 a substituic;:ao da velha ordem, mas a criac;:ao de uma nova ordem moral?

Embora seu recurso ao Acordo de Helsinque the propiciasse urn importante componente democratico, a orientac;:ao moral da oposic;:ao no Leste foi fortalecida pela forma de interpretac;:ao dos principios de Helsinque. Os direitos que estes ratificavam foram concebidos dentro do modele daquilo que foi definido acima como sendo liberalismo; nao eram os direitos que definem 0 espac;:o publico de uma sociedade democratica, na qual a politica e a luta por direitos que tern como (mica garantia 0 processo politico pelo qual foram conquistados e reafirmados. Tais direitos estaveis podem tornar-se a materia-prima do moralismo. Eles contribuem para a impressao de que a representac;:ao politica e a batalha entre os partidos concorrentes sao urn degrau em direc;:ao ao caminho da perdic;:ao, na medida em que destroem a harmonia e a ordem da sociedade que esta bus cando afirmar-se contra 0 estado. Dessa forma, 0dualismo estatico que caracterizou a busca pela Terceira Via, ou 0 retorno a hist6ria nacional aut6ctone, substitui a dinamica da politica democratica. 0 ressurgimento dessa estrutura sugere que, mais uma vez, 0 desafio a ser enfrentado e a manutenc;:ao da dinamica da democracia contra a tentac;:ao de por urn fim a sua interminavel e dolorosa falta de certezas. It claro que as novas sociedades do Leste - assim como as do Ocidente - nao sao tao democraticas quanto gostariamos que fossem ; mas sao mais democraticas do que gostariam muitos daqueles que foram forc;:ados a ajudar em sua criac;:ao. E, 0 que e mais importante, elas podem tomar-se mais democraticas, se esse for realmente 0 objetivo que almejamos.

o dialogo renovado entre 0 Leste e 0 Ocidente permite aos dois lados redescobrir aquilo que tornou "de esquerda" suas politicas. Da mesma forma que em 1968, os radicais do Leste e do Ocidente podem encontrar uma base comum somente em torno do desafio de realizar a democracia. Tambem como em 1968, eles sao 0 "partido da desordem". Mas agora a critica do totalitarismo feita pelo Leste e a critica do capitalismo feita pelo Ocidente podem atuar em serie: 0 Ocidente pode aprender com o Leste que sua democracia nao e apenas urn sistema estatico de direitos liberais, enquanto que 0 Leste pode aprender com 0 Ocidente que 0 capitalismo e apenas uma outra forma de reduzir a neutralidade quantitativa do mercado as diferenc;:as qualita­ tivas produzidas dentro das sociedades democraticas. Os dois sistemas sao inimigos da democracia. Por sua vez, a democracia possui agora uma base hist6rica e te6rica que evita a acusac;:ao de formalismo e de abstrac;:ao que contribuiram para 0 atrativo do Marxismo. Agora que a hist6ria nao nos fornece mais 0 vetor da verdade, e agora que os direitos estao sendo constantemente desafiados, nao existe nenhuma "postura politicamente correta ": existe apenas a politica. De maneira paradoxal, no Ocidente, isso tern conduzido a urn endurecimento de posigoes ; a ideologia parece contar mais do que a critica ; aqui deve-se afirmar a propria identidade, e valida-la estando "do lado correto". No Leste, a mesma logica paradoxal assume uma forma diferente: busca-se colo car uma nova ciencia no lugar da ideologia, e acaba-se transformando em fetiche a nogao de "necessidade". 0 velho voluntarismo e substituido pOI urn novo positivismo que igualmente nao possui base politica.

o "partido da desOIdem" defende a prioridade do politico, no Ocidente e no Leste. Sua percepgao basica e a de que a politica define aquilo que conta como necessario, aquilo que uma sociedade empreende ou modifica, bern como aquilo que ela deixa para seguir seu proprio curso natural. Ele aceita a distingao de Andre Gorz entre uma "logica do capital" e uma "logica do capitalismo" e tenta fazer com que a primeira nao seja imposta involuntariamente sobre a segunda31. E claro que 0 "partido da desOIdem" tern seus programas. Ele vai as mas, ao palanque, ao espago publico porque tern objetivos concretos e argumentos para defende-los. Sabe que a sociedade precisa ser governada, que decisoes tern que ser tomadas, que recursos tern que ser alocados. Mas sabe tambem que essas sao escolhas politicas, nao respostas a " charada da historia" de Marx ou as necessidades impostas pela logica abstrata do mercado. Mas a politica so e defensavel pOI meio de discussoes, programas e praticas. Devido a sua insistencia no forum publico, onde as opiniOes se chocam e 0 julgamento emerge a partir do debate critico, 0 partido da desordem nao rejeita as dissonancias cognitivas, mas amadurece a partir delas. Talvez seja pOI isso que, no final das contas, ele permanega, criticamente, dentro do legado marxiano.

 

Notas

 

5.   0 artigo de Luxemburg esta traduzido em Selected Political Wri tings of Rosa Luxemburg,  editado por Dick Howard (Nova York: Monthly Review Press, 1971). Meu entendimento da noc;:ao de "legado marxiano", que prefiro ao conceito "Marxismo Ocidental", de Merleau-Ponty, frequentemente usado, esta delineado em meu pr6prio livro com aquele titulo, onde 0 primeiro capitulo apresenta 0 carater contradit6rio daqueJe Jegado por meio de urn reexame da vida e do pensamento de Luxemburg de forma rnais critica do que aqueJe que apresentei na Introduc;:ao a seus Escritos. Cf. The Marxian Legacy, 2. ed., Mineapolis: University of Minnesota Press Londres: Macmillan, 1987. Vou usar Luxem­ burg como uma especie de baliza para as reflex6es da primeira parte deste ensaio porque- de maneira oposta a Marx, para quem uma teoria politica aut6noma e impossivel no capitalismo e desnecessaria no socialismo - eJa defende aqueJe aspecto da tradic;:ao marxiana que ao menos percebia a necessidade de uma teoria politica adequada, ainda que suas suposic;:6es te6ricas tornassem impossiveJ a sua eJaborac;:ao.

6.Citac;:6es de op. cit., p. 120 e 325.

7.Lindsey Gruson, "Among Salvadora Rebels, A Split Over Rights Accord ", The New York Times, 11 de agosto de 1990, p. 2.

8. A primeira citaQao foi retirada de Greve de massas, partido e sin dica tos, ibid., p. 270 ; a segunda citaQao e de Nosso Programa e a Situa r;80 Politica, ibid., p. 406. As citaQaes poderiam se multiplicar, com contra-exemplos sendo apresentados, como fiz em The Marxian Legacy. No presente contexto, 0 ponto a ser salientado, e ao qual voltarei, e 0 de que esse processo tern dupla implicaQao: a raiva particular torna-se uma reivindicaQao publica que, por estar agora representada no forum publico, deve respeitar sua propria diferenQa em relaQao a outras reivindicaQaes tambem presentes nesse mesmo forum. Isso possibilitara ao novo poder democratico evitar a tentaQao de tornar-se simplesmente uma outra variante do velho "partido da ordem".

9.   Greve de massas, partido e sindicatos, in: op. cit., p. 270.

10.Essa distinQao e salientada em Jean Cohen em "Discourse Ethics and Civil Society", Philosophy and Social criticism, v. 14, n. 3-4, p. 315-37, 1988.

11. Nosso Programa e a situar;80 politica, ibid., p. 380.

12. Nosso Programa e a situar;80 politica, ibid., p. 380.

13. "Militia and Militarism", ibid., p. 142 ; e novamente em "Questaes de organizaQao da social-democracia russa", ibid., p. 304.

14. Greve de massas, partido e sin dica tos, op. cit., p. 241.

15.  "Questaes de organizaQao da social- democracia russa", ibid., p. 303.

16. Tentei mostrar essa ideia em "The Politics of Modernism: From Marx to Kant ", reimpresso em The Politics of Critique e em outros ensaios. Cf. tbm. Marshall Berman, All that is Solid Melts in the Air, reimpresso em Irving Howe, ed., 25 Years of Dissent, Nova York: Methue, 1979.

17.                           A anaIise de Tocqueville da democracia como uma estrutura social e sua tentativa de formular uma teoria politica que permitisse desdobramentos ferteis, evitando, ao mesmotempo, suas possibilidades negativas admitem uma releitura hoje - como demonstram pensadores franceses como Claude Lefort, FranQois Furet e Marcel Gauchet. No presente contexto, devemos nos lembrar de que a tarefa de Tocqueville, no curso da RevoluQao de 1830 em A Democra cia na America, e na esteira dos acontecimentos da RevoluQao de 1848 e do coup de Bonaparte em 1851 em 0 An tigo Regime e a Revolur;8o, era entender de que maneira as vitorias sociais alcanQadas em 1789 podiam ser preservadas por meios politicos. Aqueles que se deparam com os resultados das revoluQaes democraticas de 1989 podem le-Io com proveito.

18.                             A questao do nacionalismo tambem poderia ser inserida nesse modelo gera!. No entanto, teriamos que distinguir entre a forma de nacionalismo que surgiu no seculo XIX, como sendo uma resposta aos desafios sociais apresentados pela burguesia "revolucionaria", eos nacionalismos do seculo XX que surgem para enfrentar a erosao desencadeada pelos processos econ6micos do capitalismo. 0 ressurgimento do nacionalismo nas sociedadespos-totalitarias representaria uma terceira variante dentro desse modelo.

19.                            0 totalitarismo nao e 0 tipo de "antipolitica" que os oposicionistas do Leste Europeu, tais como G. Konrad, procuraram teorizar como sendo uma nova postura politica dentro e contra 0 totalitarismo. Essa antipolitica e urn exemplo daquilo que considero aqui uma politica democratica de direitos. De fato, 0 totalitarismo nao pode impor unidade a sociedade; suas ac;:oes "politicas" atomizam verticalmente quaisquer tentativas de grupos dentro de uma sociedade civil que tentam se constituir horizontalmente. Como veremos em breve, 0 capitalismo produz urn efeito semelhante por meio da operac;:ao quantitativa e sua l6gica de mercado. Isso explica a reivindicac;:ao dos radicais tchecos em seu enfrentamento com 0 SDS alemao em 1968 pelo direito de livre reuniao, assim como a capacidade dos alemaes de entender intuitiva, quando nao conceitualmente, os tchecos.Entretanto, 0 problema hoje e que esse tipo de politica oposicionista alcanc;:ou 0 poder e tern que identificar e enfrentar necessidades sociais e econ6micas dificeis de serem integradas a politica de direitos. Voltarei a esse problema em minhas conclusoes.

20.                            Para evitar qualquer mal-entendido hist6rico, devo salientar que 0 totalitarismo tende a apresentar-se como uma possibilidade em situac;:oes nas quais 0 processo democratico esta comer;ando a se instaurar. Poder-se-ia citar exemplos como a Russia, a Alemanha de Weimar, a Espanha republicana, talvez ate a China de Sun Yatsen. Por outro lado, mesmo dentro de sociedades onde a democracia se tornou uma forma instruida de comportamento politico, os movimentos radicais que se autodenominam "de esquerda" tern constantemente enfrentado 0 fato de se acharem denunciando liberdades " formais ", manipulac;:oes ideol6gicas e 0 cotidiano da busca da politica eleitoral por u rn "centro" mitico. Democracias estabelecidas, como a Franc;:a e a Italia, ou mesmo os Estados Unidos durante a Depressao, podem dar a luz movimentos cuja tendencia seja totalitaria. Pode-se tentar distinguir, por exemplo, entre "direitos sociais" e "cidadania social" e sugerir quea segunda nao e suficiente. 0 terreno aqui e escorregadio porque a sociedade democratica nao e urn estado de coisas, mas urn de!3afio constantemente repetido que nunca pode ser abandonado em func;:ao da descoberta ou produc;:ao de fundamentos basicos. Deus, de fato, esta morto.

21.                            Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, The Federalist, Jacob E. Cooke, ed., Middletow, Connecticut: Wesleyan University Press, 1961, p. 61. Sobre a singularidade da experiencia norte-americana, e sua relevancia para os debates atuais, cf. Dick Howard, The Birth of American Political Though t, David Curtis, trad., Londres: Macmillan e Minneapolis: University of Minnesota Press, 1990.

22.  A demonstrac;:ao de Tocqueville sobre essa questao pode ser encontrada, e claro, em 0 An tigo Regime e a Revo1ur;80 e nao em A Democra cia na America. A relac;:ao dos conceitos de democracia nessas duas obras mereceria urn estudo a parte. No presente contexto, a consulta a obra de Claude Lefort devera bastar.

23.  Devo reconhecer meu debito para com Lefort pelo esboc;:o anterior da relac;:ao entre sociedade democratica e totalitarismo. Para detalhes e referencias, cf. The Marxian Lega cy, op. cit., Capitulo 7, e o Posfacio a segunda edic;:ao.

24.  Claude Lefort, L 'invention democratique. Les lirnites de 1a domina tion totalitaire, Paris: Fayard, 1981, p. 61.

25.                            Enfrentamos essa polaridade entre sociedade e Estado na busca politica de uma Terceira Via, ou a tentativa de voltar a uma forma de desenvolvimento hist6rico aut6ctone. It ai que encontramos suas raizes te6ricas. It importante salientar 0 aparente paradoxo segundo 0 qual 0 nascimento do individuo soberano e aut6nomo coincide com, e e logicamente correlato a emergencia do estado nacional soberano. Se pretendermos buscar formas "p6s- modernas" do estado nacional, novos tipos de confederac;:oes e assim pord iante, precis amos ter em mente essa relar; ao com 0 individuo aut6nomo e pesar 0 custo de nossas novas escolhas institucionais para a autonomia individual.

26.  1sso e, sem duvida, mais agudo no que diz respeito ao tratamento das popular;6es minoritarias, como tern demonstrado a historia recente.

27. Hamilton, Madison e Jay, op. cit., p. 58-9.

28.                          E por isso que 0 Federalista insiste na forma republicana, argumentando constantemente contra os excessos da democracia. Ao analisar 0 perigo das " facr;6es", Madison definiu-ascomo "uma maioria ou uma minoria", e esta claro que ele se preocupava mais com a primeira do que com a segunda. Para outra discussao, cf. meu ensaio "The Political Origins of Democracy", onde a primeira parte intitula-se "Politics after 'the' Revolution", e cuja preocupar;ao e articular uma "politica pos-revolucionaria" por meio do desenvolvimento da relar;ao entre a politica republicana e a sociedade democratica. 0 ensaio encontra-se em Defining the Political, Londres: Macmillan Minneapolis: University of Minnesota Press, 1989, capitulo 15.

29.                         Lefort empresta 0 termo de Arquipelago Gulag de Soljenitsin, o nde esm aplicado aos residentes ainda ortodoxos dos campos, estendendo-o tambem aqueles intelectuais do Ocidente cuja obsessao por sistemas disciplinados para evitar zonas sombrias combina bern com urn desejo moral de pensar bern de si proprios. Cf. Un h omme en trap, Paris: Editions du Seuil, 1976, e The Marxian Legacy para 0 contexto interpretativo. Urn aspecto urn tanto diferente do mesmo fen6meno assume a forma de urn deslize da recusa justificada de "culpar a vitima" por seu sofrimento em direr; ao ao desejo injustificado (e, com frequencia, hipocrita e masoquista) de colocar-se a servir;o da vitima, como se 0 sofrimento de alguma forma tambem desse a vitima 0 conhecimento para saber como escapar.

30. Essa afirmativa, baseada na experiencia da Alemanha Oriental, nao pode ser generalizada para toda a oposir; ao do Leste Europeu. A "antipolitica" de Konrad pensava-se como uma moralidade de participar;ao ; 0 proprio nome da oposir;ao polonesa, "Solidariedade", aponta na mesma direr; ao. 0 objetivo, em ambos os casos, era a criar;ao de uma sociedade civilaut6noma. Entretanto, a dificuldade e a de que as duas estrategias foram concebidas dentro do modelo de estado totalitario (enfraquecido ou "Helsinquizado"). Nao esta claro como podem se desenvolver no novo contexto pos-totalitario. Outro aspecto do problema e 0 fato de a suposir;ao de que h8. uma coletividade suprimida, que surgiria apos 0 fim da repressao, fazer uso de uma imagem tomada do arsenal da teoria do marxismo.

31.  Gorz, A. Und Jetzt Wohin ? Berlin: Rotbuch, 1 991.



[1] A primeira versao foi publicada na Revista Praxis International, v. 10, n. 3/4, october 1990-january 1991, p. 193-204. Este artigo foi retrabalhado para urn Jivro, Russia and America in the 21st Century: Perspectives of Russian and American Philosophers, arganizado par Bill Gay & Tatjana Alekseeva, a ser pubJicada pela editara Rowman and Littlefield em 1993.

1.           Prof. do Departamento de FiJosofia da State University of New York at Stony Brook.

Autar dos seguintes Jivros: From Marx to Kant, Tile Marxian Legacy, Defining the Political, The Politics of Critique. Escreve frequentemente em: Esprit; Etudes, Libera tion, Neue Gesellschaft-FrankfuIter Hefte.

[3] Oficina de TradUl;:ao - !BILCE - Instituto de Bioci{mcias, Letras e Cii'mcias Exatas - UN ESP - 15054-000 - Sao Jose do Rio Preto - SP.

[4] Faculdade de FiJosofia e Ciencias - UNESP - 17525-900 - Marflia - SP.