ROSA LUXEMBURG: MARXISMO E HISr6RIA[1]

 

Isabel Maria LOUREIR0[2]

 

RESUMO: Ao interpretar 0 marxismo como unidade entre teoria e pratica, Rosa Luxemburg lanr;a os fundamentos da sua "teoria da ar;ao revolucionaria", palavras com que poderiamos sintetizar 0 seu pensamento politico, elaborado numa polemica ininterrupta com 0 determinismo economicista da II Internacional.

 

UNITERMOS: Marxismo ; relar;ao entre teoria e pratica ; consciencia; determinismo; totalidade.

 

 

A marcha da hist6ria realiza-se certamente de acordo com leis infaliveis. Mas os homens sao portadores dessas leis.

Rosa Luxemburg

 

No comer;o do seculo, Mehring publica os escritos do jovem Marx, que Rosa Luxemburg resenha para 0 Vorwarts3. Nao podemos dizer que a leitura desses textos tenha modificado substancialmente sua anterior visao do marxismo, tal como aparece em Reforma social ou revolw;ao?4, serie de artigos polemicos contra 0 revisionismo, escritos em 1898-99. Mas com certeza reforr;ou a tendencia "ativista" que nela j s. existia em germe. Vejamos por que. o primeiro periodo da obra de Marx analisado par Mehring, culminando na publicar;ao dos Anais Fran co-Alemaes em 1844 e no conhecimento de Engels, mostra-nos, ao mesmo tempo, duas linhas independentes. A primeira manifesta-se na busca da solur;ao do conflito filos6fico entre pensar e ser, entre mundo material e processo de pensamento. A outra linha revela-se nos multiplos contactos com 0 mundo da prs.tica, isto e, com as questoes politicas e econ6micas (escritos sobre a censura e a liberdade de imprensa, sobre 0 roubo de lenha, sobre os vinhateiros do Mosela, sobre a questao judaica).

Na opiniao de Mehring, aceita por Rosa, estes ultimos trabalhos tiveram para Marx urn duplo significado: em primeiro lugar, ao tratar da "miserta alema pratica" (praktische deutsche Misere), ele tomou conhecimento da situar;ao social que acabaria por condenar alguns anos mais tarde. Enquanto seus antigos companheiros da esquerda hegeliana (Bauer, Strauss, Feuerbach) nao saiam do terreno das especula­ r;oes filos6ficas abstratas, Marx " formou-se como combatente (Kampfer) pratico." (Luxemburg, 1979, p. 136). Foi essa ligar;ao com a realidade alema que the permitiu, assim que Feuerbach realizou a emancipar;ao do homem da abstrar;ao, transformar - Rosa cita a In troduC;:Bo a cntica da fil osofia do direito de Hegel - "a critica do ceu (... ) na critica da terra, a critica da religiao na critica do direito, a critica da teologia na critica da polftica" e formular a pergunta: "Onde se encontra a possibilidade positiva da emancipar;ao alema? "

Em segundo lugar, 0 contacto com os problemas praticos mostrou-lhe a insuficiencia da sua concepr;ao idealista, levando-o a busca "de urn ponto de vista geral, a partir de onde todos os problemas parciais da vida pratica e espiritual encontrassem uma elucidar;ao harmonica e uma solur;ao unitaria." (Luxemburg, 1979, p. 137).

Esse "ponto de vista geral" a que Marx chegou e central na leitura que Rosa faz do marxismo e ja aparecera em Reforma social ou revoluc;:Bo? Tal como aqui, fundamentada no Capital, tambem nestas resenhas 0 recurso ao jovem Marx permi­ te-lhe polemizar com 0 revisionismo que, ao eliminar a espinha dorsal do materialismo hist6rico - "a fundamentar;ao hist6rica na necessidade objetiva, assim como a fundamentar;ao cientffica na analise economica" (Luxemburg, 1979, p. 137), - cai num empirismo rasteiro, para 0 qual a mera observar;ao empirica da explorar;ao capitalista e a consciencia da "injustir;a" da distribuir;ao da riqueza bastam para legitimar 0 movimento operario socialista. Rosa frisa que enquanto Marx pensava dessa forma nao aderiu ao socialismo.

Na epoca em que foi redator da Gazeta Renana, desejando submeter 0 comu­ nismo a uma critica de fundo, percebeu nao bastarem os "fatos empiricos" para criar o "socialismo cientifico". Faltava-lhe justamente a "concepr;ao monista, unitaria do mundo fisico e espiritual, do mundo moral e material", isto e, uma concepr;ao cujo fundamento ele encontrou "nas formas sociais da vida" (Luxemburg, 1979, p. 139) e a que chegou pelo caminho da critica te6rica do idealismo hegeliano, nao atraves da observar;ao empirica da miseria.

Em 1898, Rosa ja havia censurado 0 empirismo de Bernstein: este s6 fora capaz de elaborar uma teoria da adaptar;ao do capitalismo porque, ao examinar certos fenomenos empiricos que iam nessa direr;ao (sistema de cr8dito, carteis, fim das crises, permanencia das classes medias), perdera de vista a totalidade do desenvolvimento economico e social: "Nessa teoria, as manifestar;oes todas da vida economica que acabamos de citar nao sao estudadas nas suas relar;oes organicas com 0 conjunto do desenvolvimento capitalista e com todo 0 mecanismo economico, e sim fora dessas relar;oes, como disjecta membra (partes esparsas) de uma maquina sem vida. " (1982, p. 405-6 ; 1970, p. 41). Em outras palavras, a teoria de Bernstein e "mecfmica e antidialetica" (1982, p. 406 ; 1970, p. 42)5, 0 seu ponto de vista 0 do capitalista isolado que " considera cada parte organica do conjunto econ6mico como urn todo inde­ pendente." (1982, p. 407 ; 1970, p. 42)

Em contrapartida, para Luxemburg, Marx p6de decifrar os enigmas da economia capitalista precisamente por te-Ia analisado como fen6meno hist6rico:

 

o segredo da teoria do valor de Marx, de sua analise do dinheiro, de sua teoria do capital, da taxa de lucro e, por conseguinte, de todo 0 sistema economico, esta no carater transitorio da economia capitalista, no seu colapso, portanto - este e apenas 0 outro lado - na finalidade socialista. Justamente e apenas porque Marx considerava em primeiro lugar (von vomherein) como socialista, isto e, de um ponto de vista historico, a economia capitalista, pode decifrar-lhe os hieroglifos, e e porque fez do ponto de vista socialista 0 ponto de partida da anaIise cientifica da sociedade burguesa que pode, por sua vez, dar ao socialismo uma base cientifica.( 1982, p. 416- 17; 1970, p. 50)6

 

Rosa conclui que e a partir do novo ponto de vista totalizante, isto e, revolucio­ nario, que Marx pode desenvolver "urn esquema dedutivo da luta de classes e da vit6ria proletaria !" e s6 entao responder a pergunta sobre "a possibilidade positiva da emancipa9aO alema". (1979, p. 140). Ao mesmo tempo, ao elaborar a n09aO de proletariado como classe universal, na In troduC:;BO a critica da filosofia do direito de Hegel, ele " criou uma deduC:;Bo do socialismo, previu a priori a necessidade da vit6ria e da luta socialistas em vez de agarrar-se ao fato empirico do 'mais produto' e da sua 'injusti9a'." (1979, p. 140)7 A luz da dedu9aO e que todos os "fatos empiricos" apareceram para Marx sob urn novo enfoque, s6 quando tinha nas maos "0 fio de Ariadne do materialismo hist6rico" e que "encontrou, atraves do labirinto dos fatos quotidianos da sociedade atual, 0 caminho para as leis cientificas do seu desenvolvi­ mento e da sua queda."( 1979, p. 141)

Em resumo, 0 marxismo e, para ela, ao mesmo tempo, uma teoria do desenvol­ vimento capitalista e uma " filosofia da hist6ria " (1 979, p. 376), quer dizer, uma teoria na qual 0 conhecimento das leis que regem 0 desenvolvimento capitalista indica necessariamente 0 caminho para a sociedade comunista e que, portanto, nos da a "garantia da vit6ria final, da qual haure, nao apenas 0 impeto, mas tambem a paciencia, a for9a para agir e a coragem para perseverar " (1979, p. 372). Ou seja, uma teoria revolucionaria da transi9aO do capitalismo ao socialismo. Se, do ponto de vista teorico, nao M progresso no marxismo, nao e "porque n6s, na luta pratica, 'superamos' Marx, mas, ao contrario, porque Marx, na sua Cria9aO cientifica, nos superou de antemao como partido de luta pratico, nao porque Marx nao baste mais para as nossas necessidades, mas porque as nossas necessidades ainda nao sao suficientes para 0 aproveitamento das ideias marxistas" (1979, p. 368)8.

Nesta perspectiva, 0 materialismo hist6rico permite a social-democracia, uma vez conhecida a dire9aO do processo econ6mico e politico na atual sociedade, tra9ar o seu programa politico, nao s6 em grandes linhas, como tambem nos detalhes. Ou, em outras palavras, 0 marxismo e uma teoria cientifica que "nos preserva igualmente das surpresas e das ilusoes" (Luxemburg, 1979, p. 372)9. A politica socialista e, nesse sentido, uma politica revolucionaria que, em oposi<;ao a politica burguesa, nao parte do ponto de vista dos " exitos quotidianos materiais", mas do ponto de vista da "tendencia hist6rica do desenvolvimento" (Luxemburg, 1979, p. 373), a qual aponta para 0 colapso do capitalismo. "0 objetivo final socialista e 0 tinico fator decisivo que distingue 0 movimento socialdemocrata da democracia burguesa e do radicalismo burgues, 0 tinico fator que transforma todo 0 movimento operario, de urn intitil trabalho de remendao para salvar a ordem capitalista numa luta de classes contra essa ordem, pela sua supressao." (Luxemburg, 1982, p. 370 ; 1970, p. 8). Ou seja, uma vez conhecida a dinamica hist6rica consignada na teoria, restaria traduzi-la na ar;ao politica 10, espa<;o de decisao no tocante a op<;oes taticas ou estrategicas.

Embora Luxemburg, com razao, critique 0 empirismo de Bernstein, que, aban­ donando as " armadilhas da dialetica", isto e, a categoria da totalidade, considerava fatos empiricos isolados sem conexao entre si, mostrando tao s6 os mecanismos economicos de integra<;ao do capitalismo no presente, negando-lhe as contradi<;oes, e, por conseguinte, a "necessidade economica imanente" da vit6ria do socialismo, ao faze-lo em nome do "objetivo final" socialista como "necessidade hist6rica" a priori, permite ser censurada por dogmatismo 11. Ou seja, 0 materialismo hist6rico que ela procura opor ao empirismo de Bernstein aparece como uma teoria exterior a luta de classes, contendo uma verdade imune as mudan<;as hist6ricas. Rosa por-se-ia, assim, na posi<;ao do te6rico que sabe, de antemao, 0 caminho da hist6ria12 e, a partir desse ponto de Arquimedes da verdade te6rica revolucionaria, alheia a pratica reformista, atacaria 0 revisionismo.

Essa critica tern a sua razao de ser, uma vez que nestes textos 0 marxismo e caracterizado quase exclusivamente como 0 "fio de Ariadne", assegurando a social­ democracia a "vit6ria final", pois, de posse da teoria, ela e 0 tinico partido que "sabe o que faz e por isso faz 0 que quer. " (Luxemburg, 1979, p. 37 1). Desse ponto de vista, o revisionismo deve ser combatido por desnaturar a teoria, desnatura<;ao que, por sua vez, conduz a pratica reformista.

Mas, por outro lado, Rosa percebe que Bernstein e 0 porta-voz te6rico de uma tendencia real no movimento operario. Este, no fito de ir alem da ordem existente, atraves de uma luta no interior dessa pr6pria ordem, navega continuamente entre Cila e Caribdes: entre 0 " abandono do carater de massa" e o "abandono da finalidade", 0 " sectarismo" e a " queda no movimento reformista burgues" (1982, p. 443 ; 1970,

p. 77-8). Nessa perspectiva, 0 revisionismo deixa de ser analisado apenas sob a 6tica da "trai<;ao" ao "objetivo final", para ser entendido como expressao do "desfalecimento momentaneo da classe operaria em ascensao"(1982, p. 445; 1970, p. 79), a qual, de acordo com a crenr;a otimista de Rosa, logo recuperara 0 elan revolucionario passa­ geiramente perdido.

Esta e, sem a mesma sofistica<;ao te6rica, a explica<;ao oferecida por Korsch da teoria de Bernstein, analisada em Marxismo e filosofia como a expressao do "carater real do movimento" (1966, p. 99). Em contrapartida, 0 marxismo OItodoxo de Kautsky (e, acrescentamos nos, 0 de Luxemburg, nesse momento) aparece como uma tentativa puramente ideologica de teoricos prisioneiros de uma doutrina ja totalmente abstrata naquelas circunstEmcias historicas. Alias, a propria Rosa, que nao tinha pOI objetivo ser guardia da OItodoxia, acaba dizendo, urn pouco mais tarde, que 0 papel repre­ sentado pelo marxismo ortodoxo nao a atrai nem urn pouco, ao perceber sua fun<;ao meramente ideologica de preserva<;ao de principios teoricos sem qualquer correspon­ dencia na pratica.

Deve-se, pOIem, frisar outro aspecto. Rosa encara 0 desenvolvimento teorico do jovem Marx, ao adotar "0 ponto de vista historico da classe operaria" (1979, p. 375) ou, segundo Lukacs, 0 ponto de vista da totalidade (Cf. Lukacs, 1975), como uma tentativa bern sucedida de solucionar as antinomias do pensamento burgues. Se a realidade e entendida como totalidade, os problemas econ6micos e ideologicos formam uma unidade, uma totalidade concreta de ser e consciencia, sujeito e objeto, teoria e pratica. Em contrapartida, como bern mostrou 0 proprio Lukacs, 0 marxismo da IIa Internacional reduziu a teoria a urn determinismo que via no fator econ6mico a causa determinante dos fen6menos sociais. Embora Luxemburg, pOI urn lado, se inscreva nesta vertente, ao mesmo tempo, na medida em que interpreta 0 marxismo como unidade de teoria e pratica - salientando a ultima - acaba pOI dar a consciencia de classe papel central na sua teoria politica, afastando-se, assim, do determinismo economicista em redor.

Alguns autores (Cf. Arato, 1973-74 ; Basso, 1976 ; Howard, 1971), na esteira de Lukacs, veem igualmente na categoria da totalidade, "precisamente a essencia do marxismo revolucionario" (Basso, 1976, p. 30), a chave para a compreensao do pensamento da nossa autora. Nessa interpreta<;ao, 0 "objetivo final" que ela defende, na polemica com Bernstein, e compreendido na sua rela<;ao com a totalidade do processo historico, permitindo que cada momenta parcial da luta adquira significado revolucionario. "0 objetivo final e a totalidade do processo pOI meio do qual ele e realizado ; nao e urn estado, mas urn devir." (Howard, 1971, p. 13). Apenas a necessi­ dade do objetivo final permitiria compreender 0 presente como urn processo em movimento, aberto para 0 futuro. Caso contrario, a historia apareceria como uma serie de fatos empiricos descontinuos e fortuitos, sem urn sentido imanente. Porem, se a historia tern sentido, "nasce uma dialetica entre 0 presente, que ainda nao e futuro, e 0 futuro, para 0 qual 0 presente tende. Num presente gravido de futuro, podemos evitar tanto os enos do oportunismo/revisionismo quanta os do utopismo etico" (Howard, 1974, p. 102), quer dizer, do blanquismo.

Vemos, portanto, ja nestes primeiros escritos esbo<;ar-se 0 problema central do pensamento politico de Luxemburg: a rela<;ao entre a consciencia e 0 processo objetivo da historia. Ela retoma, assim, uma questao classica do marxismo, mas fazendo-o avan<;ar em dois planos: primeiro, inova no que diz respeito a rela<;ao reciproca entre espontaneidade e consciencia nas a<;oes de massa; segundo, no que se refere as relaQaes entre 0 processo evolutivo da historia e a aQao revolucionaria (Cf. Tych, 1976, p. 135).

A enfase dada por ela a pratica e a consciencia decorre precisamente da ideia de criatividade historica, presente em quase todos os seus escritos - mesmo que os homens nao faQam a sua historia arbitrariamente, sao eles que a fazem. Podemos ve-la formulada pela primeira vez em 1902 quando, ao resenhar 0 livro organizado por Mehring da correspondencia de Lassalle com Marx e Engels, considera complemen­ tares as suas concepQaes de historia. E mais. Rosa, na esteira de Mehring, acentua 0 acordo e nao a discordancia entre Marx e Lassalle, nao so do ponto de vista teorico, como pratico. Alias, Lassalle tern forte infiuencia sobre ela, que, nas mais diversas ocasiaes, revela viva admiraQao pelo pensamento e pelo exemplo do revolucionario alemao13.

o livro de Mehring, no seu entender, tern 0 grande merito de reabilitar Lassalle contra a versao oficial da social-democracia divulgada por Bernstein que, conhecendo as cartas no original e tendo apenas citado algumas passagens no seu prefacio a ediQao dos escritos de Lassalle, reforQou uma imagem preconcebida a respeito deste, puramente caricatural. Mostra-o - palavras de Bernstein - com "uma autoconfianQa sem limites", "vaidade", "impulso a assombrar todo mundo com suas capacidades extraordinarias", falta de "born gosto e de faculdades morais", "preguiQa", " cinismo". Agora, no prefacio de Mehring, ele surge com todas as suas qualidades: vemos 0 retrato de urn "puro carater antigo: generoso e cristalino na amizade, assim como no fmpeto pelo conhecimento, no desprezo estoico pelas suas proprias dores, assim como no profundo interesse pelo destino alheio." (Luxemburg, 1979, p. 1 50).

Segundo Luxemburg, desde 1849, quando aparece na cena polftica, ate 0 infcio dos anos 60, Lassalle encontra-se em acordo total com Marx nas questaes teoricas e praticas fundamentais. A oposiQao entre eles so comeQa a aparecer de maneira significativa na po18mica sobre 0 drama de Lassalle, Franz von Sickingen (cartas de 6 de marQo e 27 de maio de 1859). A peQa da-Ihes a ocasiao de debater sobre a "ideia tragica formal" e e aqui que se esboQam as diferenQas que mais tarde iraQ separa-Ios14. No que consistiriam essas diferenQas? "Pensamos no espaQo deixado a 'decisao individual' que Lassalle defendia, na sua controversia com Marx e Engels, contra a 'concepQao construtiva da historia de Hegel'. "(Luxemburg, 1979, p. 1 54).

Entretanto, segundo Rosa, Lassalle nao defende a 'decisao individual' em oposic;:ao a necessidade historica, mas como expressao, como meio (Medium) dessa necessidade.(... ) Em todo caso, e certo que Sickingen precisava fracassar - Marx e Engels tinham absoluta razao - no seu empreendimento. Mas a inutilidade desse empreendi­ mento expressa-se, para Lassalle, em ultima instancia, na contradic;:ao interna da ac;:ao de Sickingen. Foram as leis historicas que decidiram aqui, mas elas atuaram por meio (duJch) da 'decisao individual'. A polemica entre Marx e Lassalle nao consiste, parece-nos, na diferenc;:a entre a concepc;:ao idealista e a materialista da historia, mas muito mais na diferenc;:a, no interior desta ultima, captada por ambos nos seus diferentes momentos. Os homens fazem sua propria historia, mas nao arbitrariamente, dizem Marx e Engels defendendo a obra da sua vida, a concepc;:ao materialista da historia de acordo com as leis (gesetzmassige). Os homens nao fazem arbitrariamente a hist6ria, mas fazem-na eles mesmos - enfatiza Lassalle, defendendo a obra da sua vida, a 'decisil.o individual', a 'a9il.o audaz'. (... ) perante a hist6ria, quem acabou tendo razil.o, Marx ou Lassalle? Ambos. Marx teve razil.o pois, em condi90es normais, e para grandes periodos do percurso hist6rico, apenas a sua teoria representa 0 norte que pode levar a emancipa9il.o da classe operaria. Lassalle, porem, acabou tendo razil.o no seu momenta hist6rico pOis, atraves de urn caminho transversal audaz e de urn metoda abreviado, levou a classe operaria ao ataque pela mesma larga via hist6rica em que, desde entil.o, e dirigida pela politica de Marx. (Luxemburg, 1979, p. 155-6).

 

Rosa pergunta-se 0 que teria sucedido se Sickingen-Lassalle nao tivesse come­ tido enos? Se nao tivesse posto como ponto central da sua agita<;ao a ajuda estatal as suas associa<;oes de trabalhadores e 0 sufragio universal? 0 resultado historico teria certamente mudado pouco. A social-democracia na Alemanha, em virtude da "ne­ cessidade de bronze da historia" teria "passado por cima da eficacia das decisoes e atos individuais" e, tambem, mais cedo ou mais tarde, ter-se-ia tornado poderosa.

Mas Lassalle, ligando sua a<;ao aos fatos concretos, as circunst{mcias dadas, sacudiu (riittelte auf) as massas e chamou a classe operaria alema a vida politica, fundando 0 partido 15. "A 'aQao audaz' (kiihn e Ta t) acabou tendo razao perante a 'necessidade de bronze da historia', que, em curtos periodos de tempo, deixa espaQo bastante para desvios de rumo a direita ou a esquerda, para os estereis enos de Sickingen ou os frutiferos enos de Lassalle16. C.. ) E a 'aQao audaz ' so acabou tendo razao perante a 'necessidade de bronze da historia' porque era, no sentido historico­ filosofico, aQao revolucionaria." (Luxemburg, 1979, p. 157-8).

Como vemos, a ideia de criatividade hist6rica aparece neste texto com toda a nitidez. Marx e Engels disseram repetidas vezes que as transformaQoes sociais sao produto das leis imanentes do desenvolvimento social e economico, podendo porem ser aceleradas ou retardadas pela intervenQao dos homens. Rosa procura reforQar ainda mais 0 polo pratico do materialismo historico, reconendo a Lassale, simbolo do homem de aQao.

Para ela - na esteira do SPD -, havia tres pais fundadores da social-democracia alema: Marx, Engels e Lassalle. Enquanto Marx criara 0 materialismo historico - e nisso residia a sua importancia - Lassalle fundara 0 partido, ou seja, pusera em pratica o "sQcialismo cientifico" elaborado por Marx e Engels. Na sua versao, Lassalle e 0 revolucionario audaz, entusiasmado, que, apesar dos equivocos (estatismo, colabora­ Qao com Bismarck), Rosa elege como fonte de inspiraQao revolucionaria para a social-democracia alema (Cf. 1984, p. 183, 208). Alias, na sua leitura, 0 que unia Marx e Lassalle era a "fe na revoluQao" (Gla ube an die Revolution) (1979, p. 419). Com isso, Rosa atacava a desvinculaQao operada pelo SPD entre teoria e pratica.

A unidade entre esses dois polos e, portanto, segundo a nossa autora, consti­ tuinte do materialismo historico. Independentemente da conjuntura e dos alvos polemicos, reafirma sempre que 0 marxismo e composto de dois elementos essenciais: de urn lado, a analise, a critica, 0 metoda hist6rico de pesquisa e, de outro, "a vontade ativa da classe operaria, que constitui 0 elemento revolucionario. Quem nao puser em pnltica senao a analise, a critica, nao representa 0 marxismo, mas uma triste par6dia dessa doutrina." (Luxemburg, 1981, p. 224). 0 que faltou a social-democracia foi justamente "a vontade ativa (tatkraftige) de fazer a hist6ria " (Luxemburg, 1987, p. 31), i sto e, faltou-Ihe a politica revolucionaria. Para contrapor-se ao doutrinarismo de urn Kautsky, afirma freqiientemente que em Marx estavam indissoluvelmente ligados 0 hom em de aQao e 0 te6rico, 0 historiador e 0 revolucionario.

Mesmo no Capital ela busca 0 aspecto pratico, revolucionario. Alias, Rosa considera que, no primeiro volume do Capital, Marx lanc;ou as bases do socialismo, motivo pelo qual 0 movimento socialista s6 levou em conta essa parte da obra. Do ponto de vista da luta de classes, 0 problema te6rico mais importante e 0 da origem da mais-valia, "isto e, a explicaQao cientifica da explorac;ao, aliada a elucidaQao da tendencia para a socializac;ao do processo de produQao, quer dizer, a explicac;ao cientifica do fundamento objetivo da revoluc;ao ( Um walzung) socialista" (1979, p. 336), problemas resolvidos no primeiro volume. Tambem na Introdu9BO a economia politica, diz, no mesmo sentido, que com Marx a economia politica acabou do ponto de vista te6rico. A continuac;ao s6 pode ocorrer no plano da pratica, da ac;ao, isto e, na luta pelo socialismo. "0 ultimo capitulo da doutrina da economia politica e a revoluQao social do proletariado" (1985, p. 592).

Em resumo, a analise do desenvolvimento capitalista mostra que tanto 0 colapso quanto a revoluQao sao "inevitaveis", porem a ac;ao do proletariado e necessaria para desentranhar 0 nuc!eo de racionalidade contido na hist6ria. Caso contrario, esta nao passara de uma possibilidade te6rica. Ou seja, sem a atividade consciente da classe operaria nao h8. socialismo possive!. Ate no momenta mais pessimista da sua carreira politica - 1914-1916 -, quando as esperanQas revolucionarias haviam desaparecido do horizonte pr6ximo, Rosa Luxemburg (e 0 grupo Spartakus) continua a ver na futura aQao revolucionaria das massas 0 eixo da politica socialista, e na presente agitac;ao do partido (0 grupo de oposic;ao) uma forma de desperta-Ias.

Isto posto, 0 que chama a atenQao e a distingue de urn Kautsky, mesmo na epoca em que ambos estavam juntos contra 0 revisionismo, e o peso atribuido a conscien­ cia 17, elemento desprezado pelo marxismo da II Internaciona!. Kautsky - 0 te6rico mais representativo dessa corrente -, como sabemos, interpreta 0 marxismo enquanto teoria da evoluQao social, que mostra os fenomenos sociais regidos por leis semelhan­ tes as da natureza:

"A evoluQao social foi integrada (... ) (por Marx) nos quadros da evoluc;ao natural ; o espirito humano, ate nos seus fenomenos mais complicados e mais elevados, foi representado como parte da natureza ; foi demonstrado que, em todos os terrenos, a sua atividade obedece a leis naturais, e que 0 idealismo filos6fico e 0 dualismo nao tern a menor base s6lida." (Kautsky, 1933, p. 20).

No ambito da evoluc;ao natural, entendida nos moldes darwinistas de luta pela vida, a luta de classes e apenas urn capitulo, uma parte dessa hist6ria natural que se move por oposiQoes. Consequentemente, a revoluQao proletaria nao passa tambem de urn momenta particular da lei geral da evoluc;ao natura!. It portanto inevitavel, necessaria. Como esta na ordem das coisas, nao cabe aos homens impedi-Ia nem apressa-Ia18. No materialismo historico, entendido enquanto " ciencia proletaria" (Kautsky, 1933, p. 22), base da "marcha triunfal"(Kautsky, 1933, p. 62) da social democracia em todo mundo, segundo Kautsky, a consciencia de cIasse tern papel secundario.

Para marcar as diferen9as entre Kautsky e Luxemburg, nunca sera demais enfatizar, contra as interpreta90es da nossa autora como determinista e mesmo fatalista, que a "garantia da vitoria final" nao tern para ela 0 estatuto de uma lei da natureza, na medida em que 0 socialismo apenas sera possivel se as massas se apoderarem da teoria marxista, se houver a uniao entre 0 conhecimento e a classe operaria 19: "A transforma9ao historica formulada na teoria marxista tern como pres­ suposto que essa teoria se tome a forma de consciencia da classe operaria e, como tal, urn elemento da historia. " (Luxemburg, 1979, p. 373). A teoria de Marx e "uma parte do processo historico, logo tambem ela propria urn processo e a revolu9ao social sera 0 capitulo final do Manifesto Comunista." (Luxemburg, 1979, p. 373) Por conseguinte, essa teoria so sera superada "junto com a atual ordem social. " (Luxem­ burg, 1979, p. 377).

Mesmo em obras de forte carater economicista como Re[orma social ou revolu- 9BO?, A acumula9Bo do capital e a An ticritica, onde insiste na teoria do colapso, Luxemburg repete que 0 socialismo nao resulta automaticamente das contradi90es objetivas do capitalismo, que e necessario 0 "conhecimento subjetivo, por parte da classe operaria, da inelutabilidade da supressao da economia capitalista por meio de uma revolu9ao ( Umwa]zung) social" (1982, p. 403). Ou seja, ela compreendeu, desde o inicio da sua carreira politica, que a economia por si so nao levara ao socialism02o.

Justamente por conceber a historia como urn processo em que as leis do desenvol­ vimento historico, isto e, a "tendencia historica do desenvolvimento", a "tendencia para a socializa9ao do processo de produ9ao" nao se separam da "a9ao audaz" - "nao basta que 0 pensamento tenda para a realiza9ao, a realidade deve tender para 0 pensamento -, ou, em outras palavras, que em toda forma9ao social e econ6mica h8. unidade entre fator material e fator espiritual, concep9ao posteriormente enriquecida em Greve de massas, partido e sindicatos por uma analise da rela9ao entre a espontaneidade das massas e a a9ao consciente, e que a sua proposta politica se afasta tanto do reformismo quanto do blanquism021. Rosa salienta constantemente que 0 socialismo precisa ao mesmo tempo de urn solo objetivo - as contradi90es do capitalismo - e da tomada de consciencia da classe operaria quanta a necessidade da revolu9aO. Em tome deste eixo organiza-se 0 seu pensamento politico.

Contudo, malgrado a a9ao revolucionaria (e, por conseguinte, a consciencia) estar sempre presente nos seus textos, no inicio e antes uma ideia vaga, uma orienta9ao do pensamento sem conteudo muito determinado, uma coadjuvante promissora, mas por enquanto apenas coadjuvante. E na analise da rela9ao parti­ do/classe, a9ao consciente/a9ao espontanea que esse conceito vai adquirindo espes­ sura, mais precisamente, a partir de 1904, quando aparece ligado a n09ao de massa, tornando-se doravante 0 protagonista principal. Entretanto, ja urn texto de outubro de 1903, "Geknickte Hoffnungen" (Neue Zeit), citando uma passagem da Sagrada Familia, apontava nesse sentido:

 

Porem - ja escrevia Marx em 1845 -, 'com a profundidade da ar;:ao historica, aumentara tambem 0 volume da massa engajada nessa ar;:ao'. A luta de classe proletaria e a mais 'profunda' de todas as ar;:6es historicas ate hoje, ela abrange a totalidade das camadas inferiores do povo e, desde que existe a sociedade de classes, e a primeira ar;:ao que corresponde ao interesse proprio da massa. Por isso, 0 conhecimento proprio da massa quanto as suas tarefas e caminhos e condir;:ao historica indispensavel para a ar;:ao social-democrata, assim como 0 desconhecimento da massa foi outrora a condir;:ao das ar;:6es das classes dominantes. Assim a oposir;:ao entre os 'chefes' e a maioria que 'vai atras' e abolida, a relar;:ao entre massas e chefes e posta de ponta-caber;:a. 0 unico papel dos pretensos 'chefes' na social-democracia consiste em esclarecer a massa sobre as suas tarefas historicas. (Luxemburg, 1979, p. 396).

 

Rosa volta continuamente ao tema da diferenya entre 0 movimento socialista, que abrange a totalidade dos de baixo exigindo-lhes consciencia, e os grupos de conspiradores blanquistas, cuja tatica consistia no terrorismo e no golpe de Estado, e onde a massa ignorante vivia dominada pelos lideres. Ela percebia claramente que o blanquismo era apenas a contrapartida organizatoria de urn movimento de massas fraco, em que urn punhado de conspiradores "fazia" a revoluyao, "ignorando todas as condiyoes historico-sociais concretas" (1981, p. 329). Em suma, 0 blanquismo era voluntarista, crendo poder modelar 0 mundo a forya, de acordo com seus ideais, sem levar em conta 0 processo objetivo da historia.

Ao contrario, no movimento socialista, as massas alcanyavam, no trabalho politico e sindical, consciencia dos fins e dos meios para atingi-los, 0 que levaria precisamente a uma mudanya na relayao entre dirigentes e dirigidos. 0 papel dos dirigentes consistiria entao em esclarecer a massa sobre os seus interesses historicos, muitas vezes obscurecidos pela ideologia dominante, e nao em comanda-la, com base num saber elaborado fora da classe que, eternamente presa as reivindicayoes imedia­ tas, nunca conseguiria universalizar os seus interesses. 1sso seria apanagio da vanguarda. Contrariamente a essa concepyao autoritaria da politica, propria do blanquismo, Rosa defende "a organizayao e a: ayao aut6noma e direta da massa." (1991, p. 42).

Mas e no famoso artigo polemico contra Lenin, Questoes de organizac;ao da social-democracia russa, que a noyao de massa, ligada a de autonomia, comeya a ter papel central no seu pensamento politico. Opondo-se a ideia leninista de urn partido vanguarda fortemente centralizado e disciplinado, introduzindo de fora a consciencia nas massas passivas, obedientes e desorganizadas, ela mostra como a experiencia historica revela precisamente 0 inverso, a ayao espontanea da classe operaria russa, desde 0 final do seculo XIX, impondo mudanyas taticas ao partido: "Em suas grandes linhas, 2. tatica de luta da social-democracia nao e de modo algum 'inventada', mas e 0 resultado de uma serie ininterrupta de grandes atos criadores da luta de classes experimental, freqlientemente elementar. Tambem aqui 0 inconsciente precede 0 consciente, a logica do processo historico objetivo precede a logica subjetiva dos seus portadores." (Luxemburg, 1991, p. 47).

A massa tern carater dinamico, nao e apenas objeto da a<;:ao do movimento operario organizado, mas sobretudo sujeito desse movimento. Na formula lapidar: "(... ) o unico sujeito a que agora cabe 0 papel de dirigente e 0 eu-massa ( das Massen-Ich) da classe operaria, que em todo lugar insiste em poder fazer os seus proprios enos e aprender por si mesmo a dialetica historica." (Luxemburg, 1991, p. 59).

Entretanto, so em Greve de massas, partido e sinclicatos todas estas ideias sao minimamente sistematizadas. Como sempre ocone na sua obra, a teoria e formulada a partir da analise concreta de uma situa<;:ao concreta. No presente caso, os aconte­ cimentos de 1905- 1906 na Russia oferecern a contribui<;:ao fundamental para a sua teoria da a <;:ao revolucionaria22.

 

Notas

 

1.      0 livro de Mehring intitula-se Aus dem literarischen Nachlass von Karl Marx, Friedrich Engels und Ferdinand Lassalle. Ed. I: Gesammeite Schriften von Karl Marx und Friedrich Engels. Von Marz 1 841 bis Marz 1 844; Ed. II: Von Juli 1 844 bis November 1 84 7; Ed.III: Von Mai 1 848 bis Oktober 1 850; Ed. N: Eriefe von Ferdinand Lassalle an Karl Marx und Friedrich Engels, Stuttgart, 1902. As resenhas tern pOI titulo "Aus dem Nachlass unserer Meister", e foram publicadas entre setembro de 1901 e novembro de 1902 (Cf. Luxemburg, 1979).

2.     Procuramos fugir, neste trabalho, na medida do possivel, ao esquema corriqueiro de apresentar;:ao da obra da autora que comer;:a sempre analisando Reforma social ou revolug80?, deixando na sombra os textos aqui tratados. Como justamente a polemica com Bernstein e bern conhecida, limitamo-nos a menciona-la en passant, dando pOI pressuposto 0 conhecimento do leitor.

3.     0 que para Bernstein e uma virtude e nao urn defeito. A seus olhos, a dialetica e a "armadilha hegeliana" que impede Marx e Engels de terem uma concepr;:ao realista do desenvolvimento capitalista (Cf. Bernstein, 1982, p. 127-32).

4.      Michel Lbwy considera decisiva esta interpretar;:ao do marxismo na elaborar;:ao de uma teoria da praxis revolucionaria (Cf. 1975, p. 98-9). A ideia da unidade entre teoria e pratica repete-se na resenha sobre as Teorias da mais-valia, de Marx (Cf. Luxemburg, 1979, p. 462) e, mais tarde, na In trodug80 a economia politica (Cf. Luxemburg, 1985, p. 587).

5.     Os grifos sao de Rosa Luxemburg.

6.     Korsch, com toda razao, critica a exterioridade entre teoria e pratica que aparece nesta passagem (Cf. 1966, p. 28).

7.     E esse aspecto determinista em Luxemburg que permitiu a vulgata marxista-leninista na ex-RDA interpretar a sua teoria como uma.. Weltanschauung cientifica": "Como Weltans­ chauung do proletariado, 0 marxismo era para Rosa Luxemburg uma ideologia militante que decifrou para 0 proletariado as leis do desenvolvimento social em geral e as leis do movimento da format;ao social capitalista em particular, que revelou ao proletariado a sua missao hist6rica; uma Weltanschauung que, estreitamente ligada a organizat;ao proleta­ ria, transformaria radicalmente 0 mundo no sentido do progresso da humanidade." (Radczum, 1969, p. 52).

8.         Em Re[orma social ou revolugao?, esta ideia de uma teoria pronta, apontando 0 caminho a classe operaria, e assim formulada: "Se nosso programa contem a formulat;ao do desenvolvimento hist6rico da sociedade do capitalismo ao socialismo, entao evidente­ mente deve formular tambem, em todos os trat;os fundamentais, todas as fases transit6rias desse desenvolvimento e, por conseguinte, deve poder indicar ao proletariado, a cada momento, que comportamento lhes deve corresponder, no sentido do encaminhamento para 0 socialismo. " (Luxemburg, 1982, p. 433-4 ; 1970, p. 68).

9.          "0 leitor e fort;ado a perguntar no que consiste 0 principio regulador a priori de toda teoria e pratica socialistas: na historicidade do colapso necessario do capitalismo, na tomada do poder pelo proletariado ou no futuro socialista? Lidamos com uma teoria completa­ mente determinista ou completamente voluntarista? " (Arato, 1973-74, p. 1 5).

10.       Como bern observou Howard: se 0 que distingue 0 socialismo da democracia burguesa e do radicalismo burgues e apenas "esta crent;a aprioristica no 'objetivo final', nao se pode esclarecer a pesquisa paciente e detalhada de Marx na elaborat;ao do Capital: 0 Capital toma-se uma construt;ao. Se 0 marxismo comet;a supondo a necessidade da revolut;ao, e entao uma teoria circular, muito parecida a doutrina crista do 'pecado original' " (1974, p. 101-2).

11.       Rosa segue Mehring na sua interpretat;ao de Lassalle. Para Mehring, 0 idealismo era ao mesmo tempo 0 ponto fraco e 0 ponto forte de Lassalle: dava-lhe a fe inabalavel no poder da ideia, que the permitiu fazer coisas poderosas. "E se, como economista era inferior a Marx, como revolucionario nada tinha a invejar-lhe, a menos que se the queira censurar o fato de que 0 arrebatamento infatigavel de suas energias revolucionarias desbordasse a infatigavel paciencia do investigador cientifico. Todas as suas obras - com a (mica excet;ao do Heraclito - perseguiam uma eficacia pratica imediata." (1957, p. 331) 0 que tanto Rosa Luxemburg quanto Mehring valorizam em Lassalle e 0 seu instinto revolucio­ nario e, sobretudo, sua sede de verdade (Cf. Mehring, 1960, p. 573-619).

12.      Fritz J. Raddatz, na sua introdut;ao a Werka uswahl de Franz Mehring, escreve a respeito do Sickingen: "A tragedia do individuo hist6rico de Lassalle nao s6 faz declaradamente parte da sucessao de Schiller como tambem, no seu esbot;o intelectual, nao pode ser entendida sem Schiller. E 0 prolongamento do idealismo num progressivo utopismo." (1974, p. 47) Ha todo urn debate em tome do Sickingen em que e impossivel entrar (Cf. Lukacs, 1965 ; s.d.). Tambem Mehring estuda 0 Sickingen na sua Historia da social-demo­ cracia alema, nao se detendo no aspecto estetico da obra, que considera fraco: "poesia abstrata e erudita". 0 que the interessa nesse drama, em que catastrofes hist6ricas sao abstratamente concebidas como conflitos de ideias, e precisamente 0 problema da relat;ao entre meios e fins, posto na at;ao revolucionaria. "Por isso, Lassalle perguntava-se: por que e em que Sickingen fracassou? Como transformar pensamento revolucionario em at;6es revolucionarias? Como resolver a contradit;ao, que salta aos olhos, ao primeiro passe pratico do revolucionario, entre a fort;a do entusiasmo, a coerencia radical dos principios, por urn lado, e, por outro, 0 intelecto calculador, a necessaria unilateralidade de toda politica? A profunda contradit;ao dialetica inserida na natureza de toda at;ao e tanto mais da at;:ao revolucionC:lIia, chama Lassalle a ideia tragica formal da sua tragedia hist6ri­ ca. "(Mehring, 1960, p. 598-9).

13.      A mesma ideia aparece mais tarde, em 1913, num artigo intitulado "Lassalles Erbschaft": "Com ou sem Lassalle a social-democracia alema teria nascido, assim como com ou sem Marx e Engels a luta de classes do proletariado internacional ter-se-ia tornado 0 fator dominante da hist6ria moderna. Entretanto, que 0 partido da classe proletaria na Alemanha tenha surgido, com tal esplendor e nobreza, ja M cinquenta anos, duas decadas mais cedo que em todos os outros paises e como modelo para todos os outros, devemo-lo a obra de Lassalle e ao seu 'Eu ousei !'. "(Luxemburg, 1984, p. 220). Embora compreensivel, nao deixa de ser curioso que, ao comemorar os 50 anos de existencia da social-democracia alema, Rosa Luxemburg fat;:a remontar as origens do SPD nao a Bebel e Liebknecht, que, em 1869, em Eisenach, criaram 0 Sozialdemokratische Arbeiterpartei Deutschlands, aJiado de Marx, mas a Lassalle e a sua Allgemeiner Deutscher Arbeiterverein, fundada em 1863, a cujo rigido centralismo Rosa nao faz referencia, neste momento. Mas em 1904, polemizando com Lenin, opusera 0 "centralismo extremado" do partido de Lassalle ao "autonomismo" dos eisenachianos (Luxemburg, 1991, p. 54).

14.      Rosa, alias, refere-se muito rapidamente aos erros de Lassalle (0 estatismo que se transforma em apoio ao Estado prussiano) e men ciona longamente seus acertos: nunca hesitou, pela "at;:ao audaz", em denunciar 0 liberalismo burgues alemao e em mostrar ao proletariado alemao 0 caminho para uma politica de classe independente. Se Lassalle reduziu a sua luta a algumas palavras de ordem - credito estatal, sufragio universal, associat;:6es produtivas - nao foi por acreditar que 0 socialismo poderia ser lentamente introduzido por reformas, mas por impaciencia, por querer encurtar 0 Iongo processo hist6rico e concentrar 0 ataque em poucos pontos. "Assim, mesmo os erros de tatica de Lassalle foram os do revolucionario impetuoso (StUrmer) e nao os do indeciso, do revolucionario destemido, e nao os do diplomata pusiIEmime. " (Luxemburg, 1979, p. 419). Ele, assim como Marx e Engels, viveu na crent;:a profunda da legitimidade e inevitabilidade da revolut;:ao proletaria e, alem disso, compreendeu que a revolut;:ao e obra das massas e nao do parlamento (Cf. Luxemburg, 1979, p. 420). Mehring (e podemos acrescentar tambem RL), como observa Ragionieri, e condescendente com a tatica de Lassalle: acordo com os Junker e 0 Estado prussiano para impor as reivindicat;:6es operarias a burguesia alema. Em contrapartida, Marx e Engels encaravam a possibilidade de uma revolut;:ao democratica na Alemanha em que a classe operaria fizesse avant;:ar a burguesia alema, eliminando assim os restos feudais e alcant;:ando a unidade nacional a partir de baixo e nao por cima (Cf. Ragioniere, p. XLI).

15.       "Rosa Luxemburg foi a primeira te6rica da social- democracia a considerar sistematica­ mente a importancia do fator subjetivo." (Arato, p. 24). Mencione-se, a titulo de curiosidade, que em carta a Leo Jogiches, de 28.3. 1899, Rosa pede-lhe que escreva sobre o papel da consciencia, para inserir nos artigos contra Bernstein. Porem, nao foi possivel, por falta de tempo. Outras cartas de 8 e 12.5. 1899 a Jogiches fazem referencia a urn artigo dificil que esta escrevendo sobre a consciencia (Cf. Luxemburg, 1982- 84).

16.      Diz Kautsky: "Tudo que existe tern, por fort;:a, de sucumbir, hoje ou amanhii, vitirna de urn desequilibrio entre dois principios contrarios. E isto nao e aplicavel somente as plantas e aos animais, mas as sociedades, aos imperios, aos corpos celestes. Por toda parte, 0 progresso do processo geral da evolut;:ao prepara, pelo crescimento insensivel das resistencias, catastrofes momentaneas. (... ) Estas constituem uma fase necessaria da evolur;:ao: nao ha evolur;:ao sem que haja, de tempos a tempos, uma revolur;:ao." (1933, p. 26-27).

17.      No prefacio de 1899, Reforma social ou revolu980?, escreve: "Nao se poderia insultar mais grosseiramente, desprezar mais fortemente 0 operariado (Arbeiterschaft) que pretender que discussoes teoricas sao unicamente coisa de 'intelectuais'. Lassalle ja disse outrora: Unicamente quando a ciencia e 0 operario, esses dois polos opostos da sociedade, se unirem, e que afastarao, com mao de ferro, todos os obstaculos no caminho da civilizar;:ao. Todo 0 poder do movimento operario moderno repousa sobre 0 conhecimento teorico." (1982, p. 371.) A mesma ideia retorna na In trodu98o a economia politica (Cf. 1985, p. 593).

18.       Por isso nao e possivel concordar totalmente com a interpretar;:ao de Marco Aurelio Garcia segundo a qual Rosa, no debate com Bernstein, e tributaria da tese catastrofista - a ideia de que 0 capitalismo sera abatido por suas proprias contradir;:oes (Cf. Garcia, 1991). A nosso ver, ja nesse momento, ela percebe a importancia da consciencia de classe na revolur;:ao. 0 que decorre da sua interpretar;:ao do marxismo como unidade entre teoria e pratica. Nao podemos esquecer que Rosa polemiza com Bernstein, donde a enfase no tator objetivo, totalmente desprezado por ele. Mais tarde, em 1907, no Congresso de Stuttgart, diz: "Para nos, a dialetica historica nao e valida no sentido de que assistimos a ela, de brar;:os cruzados, ate que nos traga frutos maduros. Sou uma partidaria convicta do marxismo e considero justamente como um grande perigo dar ao marxismo aquela forma rigida, tatalista (...)" (1981, p. 237). Rosa, alias, ja na epoca do Bernstein Debatte, refutava a interpretar;:ao economicista do materialismo historico: "se esta fora de duvida que os tatores economico e politico exercem constantemente uma influencia alternativa sobre 0 devir social, e 0 tator economico que, em ultima instancia, permanece caracte­ ristico e determinante e por isso designei-o como 0 'motor' da vida social. Mas no que concerne a 'falsa interpretar;:ao do materialismo', segundo a qual os fatores economicos teriam sido os unicos fundamentos do desenvolvimento, estou persuadida de que ela tem apenas uma existencia mitica na sua imaginar;:ao. Os materialistas que pretendem que 0 desenvolvimento economico corre alegremente sobre a via historica, como uma locomo­ tiva autonoma, e que a politica, a ideologia, etc. contentam-se em trotar atras dela como vagoes de mercadorias desamparados e passivs, voce nao encontrara trar;:o de uma concepr;:ao dessas, mesmo na mais longinqua provincia russa (... ); e se alguma vez voce encontrar um tal prodigio, far;:a-o expor no gabinete das figuras de cera." (carta a Robert Seidel, 15.8. 1898, Gesammelt Briefe).

19.       Contra 0 reformismo, ver Reforma social ou revolu980 ?; contra 0 blanquismo, ver A mem6ria do Proletariat, uma analise do partido polones Proletaria t em que mostra suas origens simultaneamente social- democratas e blanquistas. Ver tambem Quest6es de organiza98o da social-democracia IUssa, contra a concepr;:ao leninista do partido vanguar­ da centralizado. Em 1907, diz Rosa: "Certamente 0 verdadeiro marxismo esta tao longe da superestimar;:ao unilateral do parIamento quanto da concepr;:ao mecanica da revolur;:ao e da superestimar;:ao da assim chamada insurreir;:ao armada. Nisto, meus camaradas poloneses e eu temos opiniao diferente da dos camaradas bolcheviques." (1981. p. 222).

20.       Nett! considera que em Greve de massas, partido e sindicatos, texto analisado em outro capitulo de nossa tese, "todos os elementos importantes da doutrina ja estavam presentes (... ), houve poucas mudanr;:as, ainda menos elementos novos nos escritos posteriores." (1972, p. 487).

 

LOUREIRO, 1. M. Rosa Luxemburg: Marxism and History, Trans/FormIAt;80, Sao Paulo, v. 16, p. 83-98, 1993.

 

 

ABSTRACT: Rosa Luxemburg's interpretation of Marxism as the unity between theory and practice sets the basis of her "theory of revolutionary action". That expression can be said to encapsulate her political thought, which was developed in an uninterrupted polemic with the economicist determinism of the Second International.

KEYWORDS: Marxism; relationship between theory and practice; consciousness; determinism; totality.

 

 

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1.   0 presente artigo e urn capitulo da nossa tese de doutorado Rosa Luxemburg: os dilemas da ac;iio rev01ucionana, defendida na USP em outubro de 1992.

[2] Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e CiEmcias - UNESP - 17525-900 - Marflia - SP.