CHARLES SANDERS PEmCE E A CONTEMPORANEA FILOSOFIA DA CIENCIA: UMA DIFicIL CONVERSAC;AO[1]

 

Lauro Frederico Barbosa da SILVElRA[2]

 

RESUMO: As cada vez mais frequentes referencias ao pensamento de Peirce feitas pela contemporanea filosofia da ciencia nao tern sido capazes de esconder a dificuldade encontrada de assumi-lo em sua integridade. A maior parte das citacoes e parcial e contradiz 0 conjunto da doutrina. Parece ser mais faci! chamar para conversacao William James e John Dewey do que chamar seu inspirador comum. A razao ultima deste desafio parece se encontrar na radicalidade do realismo falibilista, dificilmente aceitavel pela maioria das filosofias atuais.

 

UNITERMOS: Falibilismo; realismo; semi6tica; conversacao filos6fica.

 

Lembrando de que a filosofia e uma ciencia baseada na experiencia diaria... (nela) nao devemos comecar falando sobre ideias puras - pensamentos vagabundos que per­ correm estradas desabitadas - mas devemos come9ar [alando a respeito dos homens e de sua conversa9{1O.

(Texto extraido dos Collected Papers o[ Charles S. Peirce.

v. 8, § 112) (Orifo nosso.)

 

 

As referencias ao pensamento peirceano encontradas em textos de Filosofia da Ciencia, embora ainda raras, sao cada vez mais frequentes. Costumam decorrer do reconhecimento do carater original e renovador daquele pensamento em defesa do carater realista do conhecimento cientifico e ao permitir a superayao de impasses decorrentes da adoyao de teses herdadas do positivismo sem exigir que se aceite uma postma irracionalista. Em sua maioria, tais referencias atribuem ao pensamento peirceano 0 merito de conferir a experimentayao e a pratica cientifica urn lugar pr6prio na determinayao da Verdade e nao desacreditar na possibilidade da representayao formal de relayoes reais constitutivas do universo fenomenico.

Entretanto, uma teoria e urn metoda que pretendam respeitar a experiencia como fundante do proprio processo logico e ontologico do conhecimento - e nao, simples­ mente, de sua genese psicologica - e como determinante da Verdade deste ultimo, tern que assumi-lo como intrinsecamente falivel sob pena de cair em contradir;ao ou de cometer urn flagrante anacronismo diante dos paradigmas vigentes da ciencia. Seria contraditorio afirmar a base experimental do conhecimento e nega-la ao faze-Io indiferente a fragilidade propria de qualquer busca nao ficticia; e seria desconhecer 0 proprio significado atual de experiencia cientifica, recolh8-la ao dominio do inefavel, conferindo a sua dimensao empirica urn carater originariamente ilusorio.

As hipoteses necessarias para sustentar esta teoria e este metodo, respeitadas a consistencia dos conceitos por elas construidos e a coerencia dos procedimentos preconizados, iraQ se apresentar extremamente audazes ao se referirem a constituir;ao do real e do pensamento, podendo mesmo vir a exigir a ador;ao de urn monismo psiquico3 que viesse fundamentar, em ultima instancia, a lei, a materia e 0 proprio acaso.

Ao reconhecimento da oportunidade de urn realismo cientifico altamente elabo­ rado vern, assim, contrapor-se 0 receio dos riscos decorrentes da ador;ao de uma doutrina logico-metafisica que possa comprometer demasiadamente as opr;oes ulti­ mas da ciencia e da filosofia.

No presente artigo, procurar-se-a partir de uma amostragem nao exaustiva dessas referencias, apontar aspectos da filosofia peirceana de dificil aceitar;ao pelos atuais filosofos da ciencia e procurar identificar as ideias centrais daquela filosofia que serviriam de base para qualquer conversar;ao proficua que com ela quisesse se estabelecer.

 

I

 

A tese pragmatista foi e continua sendo 0 grande foco de atrar;ao do texto peirceano, quando evocado pela filosofia da ciencia. A questao da concepr;ao diagramatica do pensamento; a especificidade do argumento abdutivo, ou retrodutivo, na construr;ao teorica; e a abordagem epistemologica e ontologica da probabilidade e de seu tratamento estatistico tambem vern recebendo 0 reconhecimento de varios autores, reconhecimento, contudo, acompanhado de velada restrir;ao ao conjunto teorico ao qual pertencem.

Ainda em vida, varias vezes, sabe-se que Peirce sentiu-se constrangido a se opor aos seus melhores amigos (James, Schiller e Dewey, entre outros) para caracterizaJ bern sua propria doutrina e nao permitir que se desviasse para 0 ambito do subjeti­ vismo pSicologico, sociologico ou religioso e ai encontrar 0 fundamento da crenr;a. Entre aqueles que procuraram dar prosseguimento a tese pragmatista apos 0 faleci· mento de Peirce, situa-se Charles Morris4, que daquela tese elaborou uma leiturc: comportamentalista. Os niveis sintatico, semantico e pragmatico entao propostm acabaram gerando tres supostas areas de conhecimento frequentemente conflitante entre si. Aqueles que adotam, mesmo que extrapolando os dominios logico e matematico onde tern origem, a recursividade semantica de Tarski, opoe-se especial­ mente Karl-Otto Apel5, que julga encontrar na pragmatica de uma comunidade futura de interpretagao a base original da transcendentalidade para 0 conhecimento cienti­ fico e eticamente comprometido. Ha logicos que, embora aceitem, ao lade do verdadeiro e do falso, urn valor indeterminado de verdade, restringem-se a aceitagao das teses de Tarski e desqualificam 0 dominio pragmatico de qualquer pertinencia formal. Uma decisao desta natureza suporia, talvez, que se verificasse a compatibili­ dade dos dominios da logica formal e da semiotica de Morris. A mesma operagao deveria ser realizada com 0 da semiotica peirceana que, como adiante sera visto, difere explicitamente do da logica, entao denominada matematica.

Contrastando com esta posigao, encontra-se nas obras mais recentes de Hilary Putnam a aceitagao do carater eminentemente pragmatico da verdade das repre­ sentagoes teoricas do real, quando assume como sua a tese por ele denominada de "Realismo Interno". Em Representation and Reality chega 0 autor a declarar que, melhor do que "Interno", 0 realismo oposto ao metafisico deveria denominar-se "pragmatico"6. Acontece, porem, que a posigao defendida esvazia os signos de qualquer capacidade de representar 0 real, assim como de corresponder a alguma estrutura a priori da parte de quem conhece. Colocado nesses termos, 0 signo designa tao-somente porque e usado.

A aceitagao do pragmatismo e a multiplicidade de interpretagoes que dele sao dadas segue-se de perto 0 reconhecimento da validade e da oportunidade da adogao das construgoes diagramaticas para representar a realidade e construir 0 conhecimen­ to cientifico. Contemporaneamente a Peirce, assim como nos anos que se seguiram a sua morte, nao somente a filosofia analitica conferia ao simbolismo formal total preferencia face a qualquer recurso a imaginagao, como todo 0 positivismo e a filosofia da ciencia nele baseada, destituiam 0 diagrama de qualquer valor demonstrativo. A importancia conferida por Peirce a heranga kantiana quanto ao trabalho da imaginagao na sintese do conhecimento 0 afasta, por exemplo, da posigao assumida por Henri Poincare e por Pierre Duhem7, a qual nao conferia sequer a algebra urn papel epistemologicamente fundante do discurso cientifico.

Nao faltaram, porem, aqueles que, como 0 primeiro Wittgenstein, conferiam a linguagem, e especialmente a linguagem formal, a fungao de construir a imagem do Mundo; como aqueles que aceitavam 0 peso das demonstragoes ostensivas por meio de figuras e de diagramas como recurso intuitivo, independentemente da aceitagao do poder representativo das demonstragoes formais. 0 proprio, segundo Wittgenstein, critico de si mesmo nas Investiga r,;:oes Filos6ficas, confere valor significativo (pragma­ tico, poder-se-ia dizer) as demonstragoes ostensivas, embora nem a elas confira urn substrato inquestionavel de validade para as conclusoes delas decorrentes.

Richard Rorty, em Philosophy and the Mirror of Natures, reconhece em William James, Dewey, Nietzsche, Sartre e nos ultimos Heidegger e Wittgenstein filosofos  edificantes" inovadores de questoes, mas isentos da pretensao de soluciona-Ias. Em Descartes, Kant, Husserl e Russell, reconhece fil6sofos "sistematicos", que assumem a tarefa de construir discursos explicativos do real. Se os primeiros tendem a urn fazer filos6fico dialogante e instigador, aos ultimos caberia a sistematizar;ao e a elaborar;ao de quadros categoriais que, com a depurar;ao da linguagem e a clareza dos conceitos, apresentassem, para 0 seu tempo ou para todos os tempos, no espelho do discurso, a imagem essencial do mundo. Peirce talvez fosse colocado entre estes ultimos, mas o texto, nesse momento, dele nao faz menr;ao. Menciona-o, sim, exatamente recor­ rendo a seu definitivo quadro categorial, ao assumir a Secundidade para representar o carater irredutivel e elementar da alteridade como fatualidade9. It de se perguntar se as categorias fenomenologicamente geradas pela teoria mais madura de Peirce incorreriam na pretensao de subjugar 0 mundo a Razao filosofante: caso incorressem, como entao utiliza-Ias para expressar 0 que de si a elas se oporia - a fatualidade? Peirce estaria, entao, nao mais entre os "sistematicos", mas, com William James e John Dewey, entre os fil6sofos "edificantes". Como, no entanto, isto se daria, se ele s6 fez crescer ao Iongo de sua trajet6ria intelectual 0 prop6sito de construir urn sistema geral das ciencias? Quando, porem, a obra de Rorty mais explicitamente 0 menciona, o faz como a urn terceiro ao qual Putnam e Sellars se referem como a alguem cuja filosofia tern a cora gem de estabelecer ao nivel da idealidade, 0 fundamento do realismo. Malgrado a dificuldade de sua aceitar;ao pelo pensador contemporaneo, preocupado em continuar compartilhando das tematicas da epistemologia e da ontologia que lhes sao mais pr6ximas, parece impor-se tal filosofia como aquela da qual nao pode escapar, por via realista, quem quiser ser coerente com as exigencias da pr6pria construr;ao te6rica10. Considerar;ao semelhante ja podia ter sido encontrada, referindo-se ao idealismo transcendental; nao parece claro, porem, que 0 realismo peirceano sob ele se localizasse, pois a subjetividade intrinseca do primeiro infirmaria o recurso, ja constatado, a categoria de Secundidadell Em seu pr6prio falibilismo, ao se opor ao necessitarismo, a pretensao realista do texto peircerano nao e posta em questao. Parece, contudo, exigir que se aceite uma tao intensa polarizar;ao para a racionalidade que esta s6 se satisfaria plenamente ao se realizar na figura de uma comunidade futura localizada alem dos limites da humanidade.

o reconhecimento do trabalho de Peirce na definir;ao do argumento abdutivo ou retrodutivo como distinto da indur;ao e, desde h8. muito, expresso publicamente por autores que adotam a construr;ao de hip6teses como urn momenta originario do pensamento te6rico. Norwood Hanson e urn exemplo notavel dentre esses autores pois, em Patterns of Discovery12, desenvolve, com explicita menr;ao a Peirce, toda a fundamentar;ao epistemol6gica da retrodur;ao nos quadros da 16gica da descoberta. Retoma, inclusive, 0 exemplo tao caro a Peirce da atribuir;ao por Kepler da forma eliptica da 6rbita dos planetas como urn caso notavel, e mesmo dramatico, de construr;ao diagramatica de hip6teses. Aos olhos de Peirce e de Hanson, 0 drama decorreria do fato de que tal conjectura se confrontava com as profundas convicr;oes plat6nicas sobre 0 universo, compartilhadas pelo famoso astr6nomo13.

Noam Chomsky, no dialogo mantido com Mitsou Ronat14, embora de passagem, manifesta 0 mesmo reconhecimento a Peirce, dizendo te-Io quase parafraseado em suas obras, quando necessitava tratar do levantamento de hipoteses teoricas. Valori­ zar, contudo, a contribuir;ao trazida por Peirce ao argumento hipotetico sem reconhe­ cer igualmente a originalidade de sua concepr;ao dos argumentos dedutivo e indutivo permite que se suspeite nao ter 0 pensamento originario sido integralmente compreen­ dido. Na proposta peirceana, os tres tipos de argumentos sao inseparaveis e se sustentam num fundamento comum que e a propria semiose. Por mais que tenha havido uma evolur;ao em sua conceituar;ao e fundamentar;ao ao longo da genese do pensamento peirceano, os tres tipos de argumentos sempre foram tratados solidaria­ mente, nao havendo progresso no esclarecimento de urn deles, sem que os outros tambem se beneficiassem15.

A incorporar;ao da nor;ao de probabilidade pela filosofia aos niveis da logica, da epistemologia e da ontologia - inclusive, assumindo 0 papel a ser exercido pelo tratamento estatistico -, e tao rara mesmo na mais recente atualidade, que a iniciativa de Peirce neste sentido nao pode deixar de ser reconhecida por quem se preocupa com tal questao. Patrick Suppes16, consciente dele proprio estar avanr;ando urn trabalho pioneiro, declara que so em Peirce p6de encontrar urn verdadeiro predeces­ sor. Reconhece em, no minimo, duas passagens do texto a abordagem desmistificada do conhecimento cientifico adotada por Peirce, a saber: quando assume 0 eno inerente ao processo de mensurar;ao, nao como decorrente de uma imperfeir;ao tecnica ou de uma desatenr;ao humana - ambas em principio superaveis -, mas da inexoravel tendencia de toda medida e que cresce quanto mais precisas forem as condir;oes de mensurar;ao17; e quando se afasta da concepr;ao cientifica como a aproximar;ao de urn quadro de verdades eternas, para reconhece-la como essencialmente instrumental e intrinsecamente falive]18.

Assumir 0 acaso numa metafisica voltada para 0 proprio exercicio da ciencia, dedara Suppes na introdur;ao ao seu livro 19, so Peirce 0 fez anteriormente. E se pretende estender aquela proposta a dominios, a seu ver, nao trabalhados por Peirce, como 0 linguistico, nao tenciona sequer a ele constantemente comparar-se, pois seu esforr;o sera 0 de enfrentar a metafisica tradicional e, assim, referir-se com maior frequencia a Aristoteles, Descartes ou Kant.

Caberia, neste caso, perguntar se Peirce ja nao teria enfrentado tal tradir;ao, propondo exatamente a inserr;ao do acaso e da probabilidade nas proprias hipoteses sobre a tessitura do mundo. Por que, sem mais, declarar a intenr;ao de nao manter uma comparar;ao mais assidua com Peirce, autor que ele mesmo reconhece como seu mais proximo predecessor?

 

II

 

Continuar insistindo em justificar a atitude furtiva dos filosofos voltados para 0 conhecimento cientifico no pouco acesso a obra peirceana ou a dificuldade encontrada em recuperar a substEmcia de seu pensamento parece nao mais valer para escritos tao recentes quanto a maioria dos aqui citados. Mais ainda, os autores dos referidos textos sao quase todos norte-americanos, plenamente conhecedores da obra peircea­ na publicada, como a de seus inumeros comentadores.

A dificuldade que se procurou detectar caracteriza-se provavelmente pela descontextualizar;ao de determinadas proposir;oes, para assumi-Ias na discussao e na resolur;ao de problemas que, frequentemente, teriam sido melhor encaminhados pelo conjunto mais integral do pensamento peirceano. 8em intentar dirimi-Ia, ainda mais que nao se pode afirmar que seja a unica dificuldade ou que seja ela compartilhada por tao diferentes autores e em tao diferentes contextos, seria interessante retomar, embora sumariamente, 0 quadro da filosofia peirceana, especialmente aquele que dos ultimos anos do sEkulo XIX aos primeiros do sEkulo XX consolidou-se, ja que e a ele que remete a quase totalidade das contribuir;oes reconhecidas pelos autores. Poderao ressaltar-se, entao, embora como meras sugestoes, alguns aspectos dificilmente aceitaveis por aqueles questionamentos.

Alem dos pr6prios textos peirceanos publicados e de inumeros artigos que, ao longo dos Ultirnos anos, tern analisado com rigor multipIos aspectos daquela obra, trabalhos baseados na analise dos manuscritos agora disponiveis, como 0 livro de Joseph Esposito, Evolutionazy Metaphysics20 e 0 de Berveley Kent, Ch. S. Peirce-Logic and the Classi­ fication of SCien ces21, permitem que se vislumbre a problematica levantada por Peirce nao s6 na artificial embora interessante unidade dos Collected Papers, mas perseguin­ do-Ihe alguns veios, em seu constante fazer-se. Torna-se possivel, deste modo, libertar-se das caracterizar;oes com as quais Peirce vern sendo identificado: do detentor de urn extrema imobilismo intelectual, ao qual 0 trabalho de toda uma vida nao foi capaz de superar, ao de urn autor fragmentado por diversas tendencias mutuamente conflitantes, as quais se manifestariam sucessiva ou simultaneamente.

o trabalho atento de comparar;8.o dos textos como, por exemplo, 0 de Fred Michael a respeito da reformular;8.o sofrida pelo conjunto do pensamento de Peirce a respeito da natureza do significado dos termos gerais a partir de 1883, com repercus­ soes no conceito de realismo desde cedo adotad022, permite que se perceba, para varios temas centrais da obra peirceana, uma preocupar;8.0 constante com a busca de uma fundamentar;8.o te6rica satisfat6ria da realidade do conhecimento.

A formar;8.o das categorias cenopitag6ricas23 e sua produr;8.o no interior da Fenomenologia, assim como a inserr;8.0 desta ultima na classificar;ao geral das ciencias, vern a consolidar para 0 pr6prio autor uma concepr;8.0 especifica de ciencia como conduta racional do homem no universo. A repercussao deste feito s6 pode ser plenamente avaliada depois de se acompanhar, com a ajuda de Berveley Kent, 0 Iongo percurso iniciado pelo autor por volta de 1866. Percebe-se como 0 estatuto da 16gica enquanto semi6tica agora instaurado permite inseri-Ia no conjunto das Ciencias Normativas. Como ciencia geral da representar;8.0 para a conduta racional no universe fenom€mico, a 16gica ou semi6tica nao necessita colocar em questao a corresponden­ cia de seus enunciados com 0 real para fundamentar sua verdade e nem necessita refugiar-se numa semantica formal, excludente de qualquer relar;ao com urn mundo exterior ao discurso. Para a filosofia peirceana, a estrita formalidade pertence origina­ riamente a matematica e aquela logica que a ela se reduz, as quais nao necessitam referir-se a urn universo de aparencias para construir seus objetos. Tais ciencias, contudo, so se inserirao na conduta diante do mundo fenomenico atraves da contri­ buir;ao que trazem as ciencias normativas. Sem a presenr;a destas ultimas, elas necessitam compartilhar seu dominio com 0 de intuir;oes imprecisas de objetos fenomenicos.

A possivel configurar;ao do Mundo capaz de suportar tal conduta e tais repre­ sentar;oes cabera a metafisica descrever, tendo sempre em vista as objer;oes que lhe poderao fazer as ciencias especiais em seu constante processo de investigar 0 modo proprio de ser das diversas classes de fen6menos experimentais24

No interior da propria semiotica, a aplicar;ao das categorias cenopitagoricas permitira urn desdobramento de conseq1iencias antes inacessiveis. Sera possivel, por exemplo, explicitar de modo sistematico a potencia representativa do signo. Em 1903, p6de-se deduzir da definir;ao de signo uma lista de dez classes distintas e logicamente validas de suas possiveis realizar;oes, depois ampliada para sessenta e seis25. Dada a genuina universalidade das categorias, permitiu-se aplicar a nor;ao triactica de signo a totalidade do universo da experiencia e promover sua verificar;ao indutiva. 0 signo sera distintamente atribuivel desde a mera qualidade ate as formas eminentemente simbolicas dos argumentos. Poder-se-ao tamMm excluir a priori os casos incompati­ veis com 0 dominic da experiencia possivel. Tal exclusao nao seria possivel de se realizar pela simples dedur;ao matematica ou logico-matematica se nao se recorresse a recursos extra-sistemicos decorrentes do senso comum ou, por uma petir;ao de principio, as convicr;oes das ciencias especiais. 0 grau de abstrar;ao caractenstico da matematica e da logica matematica nao lhes permitiria representar urn mundo real da experiencia, mesmo que somente ao nivel de possibilidade.

Projetada num universo fenomenico anterior a qualquer distinr;ao entre verda­ deiro e falso e entre real e ficticio, e responsabilizada por somente definir as condir;oes gerais da representatividade de urn objeto futuro da conduta racional, a Semiotica supoe 0 trabalho da Fenomenologia, da Estetica e da Etica, alem do da Matematica, para constituir seu objeto. Este, com efeito, para ser representado, necessita pertencer ao universo da experiencia, ser potencialmente admiravel e ser efetivamente querido como a urn fim.

Nenhum procedimento semiotico encontra-se excluido do dominio da raciona­ lidade e da ciencia, se por esta se entender a aprendizagem atraves da experiencia, gerando urn h8.bito permanente de conduta26. Tensiona-se desde 0 inicio 0 processo do pensamento para urn futuro, ja que pela representar;ao que 0 determina ele e essencialmente generalizante. Esta generalizar;ao, contudo, supoe urn continuo em que 0 processo se efetiva, 0 qual nao admite ruptura em qualquer momenta de sua realizar;ao sob pena de seu imediato aniquilamento.

Nao se pode, portanto, supr urn ser que nao seja de algum modo semiotico, nao constituindo apanagio de alguns 0 processo de pensamento ou, mesmo, alguma forma de ciencia. Nao se exige; tampouco, a postulaQao do incognoscivel, se por ele se entender 0 que de direito escapa a possibilidade do conhecimento, seja devido a uma materialidade localizada aquem de qualquer representatividade ou uma trans­ cendencia inatingivel por qualquer representaQao. Nao sao propostos 0 Eu transcen­ dental ou a Coisa-em-si. Tudo 0 que e, e fenomeno, seja ele potencial, existente ou geral, e somente como tal torna-se sujeito e objeto de admiraQao, voliQao e conheci­ mento. Somente Deus, formal e nao metaforicamente considerado, devido a infinita perfeiQao que the e essencial, nao se constitui num ser semiotico. 0 pensamento divino seria imediato, excluindo 0 recurso a qualquer especie de sign027.

A amplitude conferida ao dominio do pensamento nao desfigura, porem, cada uma de suas possiveis realizaQaes ou as destitui de qualquer caracteristica que lhes seja essencial. 0 estrito elaborar cientifico e filosofico, ao qual se refere 0 pragmatismo como metodo geral de investigaQao, encontra-se plenamente preservado ao nivel das realizaQaes possiveis do interpretante logico e do dominio propriamente conceitual28. o trabalho particular exigido para a elaboraQao da ciencia e da filosofia, como 0 dominio do codigo lingtiistico, a manipulaQao de aparelhos e ferramentas, as constru­ Qaes graficas e a propria escrita, nao necessita ser colocado a parte da elaboraQao do pensamento cientifico: a abstraQao constitutiva do simbolo nao 0 torna indiferente as suas realizaQaes concretas, estando elas indissociavelmente presentes no proprio ate do experiment029. A experiencia como interaQao com 0 Mundo, a recusa em isolar 0 pensamento numa regiao obscura do cerebro e a incorporaQao das pontas dos dedos no pensamento realizado no laboratorio sao confirmadas por Peirce como componen­ tes essenciais do fazer cientifico. Entretanto, tambem 0 e 0 carater diagramatico, teorico e geral do pensamento do quimico, por exemplo, que experimenta mental­ mente suas hipoteses a respeito da estrutura molecular da materia, enquanto manipula calculadamente amostras das substi'mcias representadas a espera de verificar, na pratica, uma reaQao prevista. De tal modo e este 0 procedimento do cientista que, tao logo obtenha a reaQao esperada, e capaz de lanQar fora 0 produto obtido como ja destituido de qualquer significado ulterior3o.

Ao nIvel da determinaQao geral da conduta cientifica, a logica enquanto semiotica completa 0 quadro das ciencias. Sua articulaQao sistematica com as diversas cH'mcias especiais nao se faz, todavia, sem que se delineie uma hipotese sobre a constituiQao do Mundo como urn geral real. Insiste, com efeito, Peirce em distinguir uma ciencia geral cujo objeto e como devem ser todas as representaQaes para uma inteligencia capaz de aprender com base na experiencia e que se insere totalmente num universo de mediaQaes, daquelas ciencias que representam seus objetos como modos especiais de ser e que, considerados nao somente como aparencias ou como simples determinadores da conduta que os procura - modos como sao tratados, respectivamente, pela fenomenologia e pelas Ciencias Normativas -, surgem como seres pura e simplesmente.

il

 

As ciencias especiais procedem a formalizaao logica e matematica sem colocar a questao da possibilidade e da legitimidade de assim proceder. Aceitam 0 pressu­ posta da possibilidade de interpretar logica e matematicamente os fenomenos par elas observados e da adequaao radical de suas representa6es aos proprios fenomenos, desde que se respeitem os ditames formais e metodologicos da cientificidade.

As ciencias nao se colo cam diante do dilema de adotar posi6es nominalistas au realistas; no m8.xi.mo, discutem a preferencia por modelos dependentes de uma ou da outra posiao. A filosofia, entretanto, nao pode deixar de se colocar a questao da definiao do estatuto epistemologico e ontologico do conhecimento, e, quando se omite ern coloca-Ia, tal atitude nao sera jamais desprovida de significado. Os filosofos "sistematicos", para retomar a terminologia de Rarty, colocam a questao de modo explicito e procuram obter-Ihe uma resposta positiva. Os proprios filosofos "edifican­ tes", ao se recusarem a enveredar na tarefa de representar 0 real, nao 0 fazem sem se posicionar diante da mesma. Definem-se, frequentemente, pela inconveniencia de tal investimento ou pela denuncia do carater ilusorio e enganadar que ele assume. Reconhecem, contudo, corn frequencia, a validade de uma ciencia cujo objeto e uma classe especial de fenomenos, opondo-se somente ao uso dogmatico e metafisico dos conceitos, 0 qual pretende enfeixar a totalidade do real num julgamento a partir de criterios absolutos de verdade ou de eticidade.

Peirce sempre buscou elabarar uma filosofia sistematica, e seu texto, que parece para muitos incoerente corn tal proposito, revela-se cada vez mais urn paciente construir de urn quadro conceitual, exigente quanto a consistencia logica mas, sobretudo, sensivel a representaao de uma realidade dinamica e multifacetada. A unidade do discurso deveria ser alcanada sem qualquer prejuizo da infinita variedade do objeto e da integridade absoluta da verdade. A sucessao de quadros categoriais elabarados ao longo dos anos dedicados a filosofia31, de sistematiza6es das ciencias32 e a mudana da postura assumida diante do nominalismo e do realism033, corn importantes consequencias para 0 significado da proposta pragmatista, parecem suficientes para viabilizar esta tese. A tais exemplos poderiam acrescentar-se outros, tais como 0 das transfarma6es ocorridas no dominio das investiga6es logicas levadas a cabo par Peirce. 0 interesse inicialmente centrado nas figuras silogisticas desloca-se para a construao diagramatica e, dentro dela, da algebra para os grafos34. A articulaao desses diversos temas e a propria aproximaao das datas ern que tais modifica6es ocorreram indicam urn rumo comum daquela filosofia ern busca de uma visao unificada mas nao dogmatica de ciencia.

A adoao peirceana de uma posiao critica diante de todos os projetos teoricos, comeando pelo seu proprio, fez-se exatamente no interior da preocupaao de nao proceder a duvidas radicais que pretendessem iniciar ab ovo uma nova filosofia, como tamMm de nao romper deliberadamente corn a tradiao. A tese do continuo do pensamento adotada par Peirce entraria ern contradiao com tais rupturas. Estas, caso ocorram, serao devidas nao a uma estrategia deliberada ou a urn preconceito contra o saber dos antigos, mas somente se exigidas pelo real a ser investigado. Todo saber evolui pela interferencia da duvida, mas somente de duvidas reais que impoem ao pensador a procura de novas explicaQoes.

A unica pressuposiQao do projeto filosofico de Peirce, a de que a Razao nao pode, sob pena de suicidio, propor 0 incognoscivel entre seus objetos, alia-se a concepQao falibilista do conhecimento e evolucionaria de todo 0 real. Rejeita 0 necessitarismo sob todas as suas formas e, mais concretamente, qualquer instancia indubitavel no dominio do pensamento. Deste modo, e perfeitamente compreensivel a preocupaQao peirceana com a construQao sistematica da ciencia teorica, nela incluidas especial­ mente a matematica e a filosofia. Entende-se, tambem, a reiteraQao dos problemas conjuntamente com suas soluQoes, e a retomada de uma terminologia tradicional - as vezes, colhida no proprio texto grego ou latino - ao lado de uma proliferaQao de termos novos e frequentemente bizarros em sua erudiQao. Ambas as preocupaQoes nao raro dificultam a leitura de urn texto incessantemente preocupado em aprimorar a clareza conceitual.

 

IV

 

 

Nao surpreende que as abordagens teoricas dos fen6menos como determinados modos de ser assumam tanto 0 quadro categorial, instaurado pela Fenomenologia peirceana, quanto os conceitos semioticos, e elaborem suas hipoteses integrando-os ao seu proprio questionar. Podem igualmente colher no metoda pragmaticista diretri­ zes para a conduta em suas investigaQoes. Construir uma ciencia como semiotica e urn teste de singular importancia para a teoria geral, que so ai pode ver apontadas suas possiveis infidelidades ao pensamento e a realidade, quer enquanto afetam a conduta em geral, quer, indiretamente, enquanto modos gerais de ser. Nao se deve exigir que as ciencias especiais deem explicitamente conta da integralidade do sistema geral no qual se inspiram. Exigir-Ihes tal posicionamento poderia desvia-Ias de seus proprios objetos de investigaQao e faze-las extrapolar 0 metoda que lhes e proprio.

Quando e a abordagem filosofica que toma emprestado aspectos do pensamento peirceano e deixa na obscuridade a rede de relaQoes em que eles se inserem e onde encontram seu pleno significado, a questao se torna mais delicada. Todo 0 posicio­ namento adotado, seja 0 da incorporaQao de propostas peirceanas, seja 0 de contra­ posiQao a elas, e de grande interesse. Deve-se, contudo, ressalvar que se tais posicionamentos supuserem a decontextualizaQao das mesmas, elas assumirao 0 significado decorrente do contexto em que iraQ se inserir, nao necessariamente coincidente com aquele de que originalmente eram dotadas. Estas formas de empres­ timo de todo modo permitem que 0 dialogo filosofico se prolongue, tendo Peirce como interlocutor e conviva.

Assumir, contudo, 0 pensamento peirceano de modo mais integral sem se restringir a tarefa do comentador, nao parece facil. Pretender guardar a autonomia de seu proprio questionamento e encetar urn amplo dialogo com Peirce sup6e dispor-se a correr 0 risco de ver abalados alguns pressupostos teoricos bas tante arraigados no pensamento contemporaneo, sustentaculos freqiientes do discurso produzido nos circulos logicos, epistemologicos e metafisicos.

Nao he. como situar-se no dominic do realismo peirceano sem aceitar, em principio, a validade de certas teses ou de certas atitudes, tais como as que serao, em seguida, enumeradas.

1.     Aceitar como valido urn espirito de sistema falibilista constantemente ajus­ tado a seu objeto por via indutiva e que nao procura tomar qualquer instancia transcendental na origem de sua elaborar;ao. Nao pretender, contudo, recorrer a uma classificar;ao como urn mero expediente para obter uma clareza expositiva, como poderiam aceitar 0 empirismo e uma filosofia indutivista. Aceitar, com efeito, que a montagem laboriosa e experimental do sistema tenha por intuito primeiro explicitar a arquitetonica do pensamento como fenomeno geral e real.

2.     Excluir do sistema qualquer instancia incognoscivel, assumisse ela a forma do sujeito ou do objeto de conhecimento. Procedendo desta maneira, no entanto, nao desacreditar da possibilidade de urn conhecimento efetivo da realidade e, conseqiien­ temente, nao concluir pelo carater ilusorio das relar;6es objetivas, quando entao 0 pensamento seria aceito como urn simples desdobramento superficial de signos desprovidos de qualquer funr;ao representativa, somente movido por uma instancia pulsional.

3.    Aceitar que 0 Mundo possa ser concebido como uma forma em continuo processo evolucionario de crescimento e diversificar;ao, onde potencia, existencia e generalidade compartilhem do ser e definam constantemente urn "telos" a ser alcanr;ado. Aceitar a hipotese de que a realidade do Mundo seja da natureza do pensamento na qual toda a semiose encontra seu pleroma. Aceitar, conseqiientemen­ te, a hipotese de que 0 pensamento a nada se oponha na constituir;ao do Mundo e nao se constitua em atributo exclusivo de alguma classe privilegiada de seres.

4.     Nao conferir qualquer precedencia ao signo lingiiistico ao se considerar 0 objeto da Semiotica, quando esta for tom ada como uma ciencia geral. Nao conferir ao signo em geral 0 que e especifico do signo lingiiistico. Nao reduzir, sequer, ao dominio do simbolico os demais dominios em que os signos possam se realizar. Ao se pensar a semiose, nao desprezar qualquer forma de mediac;ao que permita a conduta inteligente orientar-se para seu fim. Na perspectiva peirceana, ao simbolico cabe realizar a generalidade e a continuidade explicitas, somente a ele sendo possivel determinar outros simbolos como series infinitas de interpretantes logicos. Nao pode ele, contudo, prescindir de signos de existencia e de possibilidade nem absorve-los dialeticamente35. Estas duas outras especies de signos compartilham com 0 simbolico o dominio do pensamento e do real - ambos, nesta altura, ja compreendidos como sinonimos - sem nele desaparecerem ou se tornarem urn residuo nao semiotico. Natureza e cultura, nesta concepgao, nao se contrapdem, nao cabendo ao homem urn poder soberano sobre 0 Universo ou 0 privilegio de deter consigo a mais perfeita chave da interpretagao do real.

Frequentemente, os problemas que sustentam 0 discurso filos6fico e Ihe confe­ rem credito ou os que radicalmente 0 desacreditam decorrem daqueles pressupostos que 0 pensamento de Peirce nao assume como seus. Este pensamento apresenta, a bern da verdade, altemativas que os relativizam, superando impasses aparentemente intransponiveis. Ja em 1878, com a primeira proposta da maxima pragmatista exposta em " How to Make our Ideas Clear"36, muitos destes angustiantes problemas ja eram desmistificados como meros jogos de palavras capazes de encobrir significados passiveis de verificagao experimental e, deste modo, nao mais inefaveis. Em 1905, amadurecidas aquelas teses em "What Pragmatism is''37, 0 carater falsamente meta­ fisico daqueles problemas e denunciado como hip6stases de relagdes com aparencia substantiva. Seria 0 caso, por exemplo, de substantivos como Verdade e Falsidade, que nao existiriam como realidades em si mas somente relativamente a crenga racional a qual se reduzem e na qual podem ser experimentalmente verificados. A verdade seria a expressao da fixagao do Mbito de uma conduta racional, enquanto a falsidade de uma crenga anteriormente possuida decorreria da duvida provocada por urn fato adverso.

Devido ao carater matricialmente circulat6rio, interpretativo e evolucionario que a Semi6tica, trabalhada pela triade categorial, confere ao pensamento, os impasses encontrados no tratamento de questdes tais como as das relagdes entre pensamento e realidade, entre 0 Eu e 0 Mundo e, mesmo entre a lei e 0 acaso, como a frente se pretendera apresentar, parecem se aliviar. Por seu lado, a adogao da 16gica das relagdes (ou dos relativs, como preferia Peirce), em substituigao a 16gica centrada nas proposigdes e em seus termos, permitiu estender 0 modele tri8.dico do signo para urn dominic ilimitadamente amplo de relagdes semi6ticas. Tais relagdes, dado 0 remetimento continuo e evolutivo que entre si man tern 0 representamen, 0 objeto e o interpretante, deixam de polarizar-se primordialmente em diregao ao sujeito e ao predicado, para desdobrarem-se em redes indefinidamente complexas dos correlatos tri8.dicos, como 0 amplo numero de classes legitimas de signos, apontado anterior­ mente, permite verificar. 0 paradigma linguistico e gramatical que se encontrava na base, desde os antigos gregos, dos quadros categoriais, finalmente e substituido pelo do diagrama de modelo topo16gico (gr8.fico ou algebrico). Descentralizou-se 0 estudo do signo e, com ele, do pensamento, tomando-se possivel abordar qualquer dominio de representagao, sem faze-lo derivar da linguagem "verbal" e carregar consigo a matriz dicotomica, que tradicionalmente e atribuida aquela classe especial de signos.

Urn sujeito transcendental ou psico16gico nao e pressuposto como agente anterior a sintese cognitiva nem 0 Mundo e representado como oposto a quem, naquela sintese, 0 representa. 0 constante remetimento de uns aos outros dos tres correlatos do signo relativiza a potencialidade, a existencia - e com ela, a alteridade - e a generalidade, apresentada sob a forma de lei ou de Mbito. Nao e possivel conferir realidade a uma delas, sem dimensiona-la em relagao as outras duas. A realidade e concebida como pertencendo a ordem do pensamento, nao porque seja negado 0 impacto constitutivo do fato bruto mas porque este mesmo fato permite manifesta­ rem-se qualidades que 0 constituem, as quais podem aparecer livremente e, porque sao afeitas a ele, propiciam que, por elas, ele venha a ser representado. Esta afeic;ao podera ser representada na determinac;ao de uma ideia que, interpretando-a em sua relac;ao com 0 fato, fica tambem no lugar do fato, passa a representa-lo enquanto afeta aquela qualidade e e representado por ela. Na potencialidade espontfmea da qualida­ de, antes da presenc;a de qualquer sujeito dotado de transcendentalidade ou de qualquer modo de existencia que defina a relac;ao de objeto e diga de que modo efetivamente este estara representado no signo, encontra-se 0 fundamento primeiro da representatividade. Esta ultima, porem, s6 se completa num cicIo semi6tico quando for interpretada e, por conseguinte, generalizada. Se a existencia se liga a materia e a interpretac;ao, 0 pensamento, sem quebra na relac;ao entre eles, ja que ambos supaem a potencialidade que os precede e os sustenta, nao M porque opo-los de modo antagonico ou redutor. Deve-se, todavia, verificar, pela infinita diversidade de qualidades caracteristica da potencialidade, quais aquelas que se concretizam na existencia como objeto do signo e quais as que constituirao representac;aes gerais determinantes para 0 futuro, sob a forma de series de interpretantes, dos Mbitos inteligentes de conduta38.

Sustentando-se na espontaneidade como potencialidade positiva, a semiose inicia-se antes de qualquer relac;ao necessitante e a ela nao se limita. A primeira necessitac;ao decorre da concretude dos fatos, os quais s6 serao objeto de conheci­ mento ao verem ressaltadas as potencialidades que compartilham com 0 repre­ sentamen em seu fundamento e, consequentemente, virem relativizadas pela poten­ cialidade do representamen as barreiras que os individualizam. Por outro lado, a necessidade decorrente da apoditicidade determinante de interpretantes l6gicos, considerando-se que todas as outras determinac;aes de interpretantes sao logicamente mais fracas do que esta, projeta para 0 futuro as potencialidades presentes, sempre que no continuo das interpreta<;aes urn signo puder representar 0 objeto como classe determinada de fenomenos experimentais. Com efeito, a necessidade 16gica ou a lei nao excluem 0 acaso. Ao direcionarem a conduta ou, cosmologicamente, determina­ rem 0 rumo do pr6prio Universo, ela 0 faz num processo de constante expansao e crescimento do qual as leis necessitaristas da mecfmica classica nao poderao dar suficiente conta. Pela lei semi6tica e metafisica da aquisic;ao de Mbitos, toda inteligencia tende para a classe de objetos representada em sua semiose, podendo percorrer, no entanto, series disjuntas e nao necessariamente excludentes de inter­ pretac;ao. A generalidade do objeto, que em ultima instEmcia tende a se identificar com 0 Cosmos, podera ser alcan<;ada por infinitas series de interpretantes numa convergencia nao necessariamente redutora, dado 0 carater sempre conjectural das. hip6teses por elas desenvolvidas.

Semioticamente, a poiesis parece ser urn processo de desconstru<;ao de Mbitos que transforma num objeto, num gesto ou num evento singular e original, 0 que antes seria a réplica ou exemplar de uma lei geral ou de um costume. Se assim o for, a potencialidade capaz de instaurar o contínuo processo do pensamento será obtida por via poética, ao recuperar, nas estratificações já adquiridas ou em vias de aquisição, o elemento qualitativo que, no representamen, poderá ser determinado pelo objeto. Nenhuma relação no universo semiótico é suficientemente necessitada para impedir que se expresse em sua potência poética. Desta potência poderão ocorrer novas escolhas de objetos a serem procurados pelas inteligências como fins a serem alcançados no futuro. Como representação desses objetos no futuro, novos hábitos se estabelecerão e com eles novas ciências. O acaso, presença ubíqua da espontaneidade, não se perderá, assim como não se desvanecerá a admirabilidade originária do Cosmos.

Assumir com autonomia a filosofia peirceana exige não somente o reconheci­ mento da oportunidade de várias de suas teses, mas a adoção de um núcleo identificador de todo um pensamento. Este núcleo compõe-se de hipóteses básicas que podem e, certamente, devem sofrer desdobramentos críticos, acarretando mu­ danças no conjunto das teses que integram aquela filosofia. Talvez as próprias hipóteses possam vir a sofrer modificações, sem com isto desfigurar o pensamento original. No entanto, a poética que a elas subjaz e que se traduz, parece, na aposta da pOSSibilidade irrestrita da Razão desconstruir os hábitos do Mundo, inclusive os seus próprios, terá que ser afeiçoadamente assumida. Abraçar a postura peirceana jamais consistirá na reprodução de teses de algum sistema passado ou em sua rejeição a priori; consistirá, contudo, no aprofundamento da confiança na Razão sem estabe­ lecer-lhe qualquer limite que a impeça de expandir-se a todas as dimensões do Cosmos.

Tal adoção toma a forma de conversão intelectual, por exemplo, no caso da filósofa da matemática, Susan Haack, como relata em um seu recente artig039. A autora mostra naquele escrito como o realismo de Peirce, cuja originalidade o distingue em última instância de todo pensamento contemporâneo, a fez abandonar os pressupostos nominalistas tão arraigados na filosofia atual e dos quais ela sempre compartilhara. Ao término do texto, declara aquilo que provavelmente acontecerá com todo aquele que se deixar honestamente tomar pelo pensamento peirceano:

 

Ouando pela primeira vez li Peirce fiquei intrigada, e, mesmo divertida, pela ubiqüidade e paixão de seu criticismo diante do nominalismo. Fui levada a ver sua fidelidade ao realismo escolástico na melhor das hipóteses como pitoresca e, na pior, como francamente não pragmática. Agora suspeito que ele esteja à frente de nosso tempo, assim como esteve do seu.

 

Talvez, possa-se concluir que a conversação com Peirce só será proveitosa quando seus interlocutores conseguirem transpor a barreira de um texto de difícil acesso, no qual as mais avançadas hipóteses se entretecem com preocupações sistemáticas e expositivas nitidamente inatuais. Mais do que tudo isto, no entanto, deverão sensibilizar-se por uma Razão de tal modo inocente diante do Mundo e de si mesma, que é capaz de lançar-se com todos os recursos disponíveis na decifração de urn enigma que s6 no infinitamente futuro podera ser resolvido: urn universo de ideias em constante gera9ao e evolu9ao, no qual a unidade e a diversidade respondem como duas faces do mesmo real.

A maior dificuldade para que se efetive esta sensibiliza9ao, sem a qual 0 cerne da filosofia peirceana nao sera atingido, parece encontrar-se no logocentrismo da cultura filos6fica atual. Tomada a palavra como centro, 0 homem sempre se apresen­ tara como 0 paradigma da realidade. Em tais condi90es, a radicalidade de uma filosofa estruturalmente excentrica, pois originariamente semi6tica, jamais sera compreendida e integralmente assumida.

Uma conversa9ao c6smica que satisfa9a na base a busca falibilista da Verdade s6 sera alcan9ada cumpridas as exigencias que se tentou aqui apresentar. A partir dai, Peirce encontrara no banquete filos6fico seu verdadeiro lugar.

 

Notas

 

1.     Por monismo psiquico se estaria entendendo urn sistema metafisico que pretendesse fundamentar, em ultima instancia, todo 0 real, exclusivamente nas leis do pensamento.

2.      Charles Morris explicitamente Ie Peirce e a ele se contrapoe como urn comportamentalista a urn metafisico, tanto em Founda tions of the Theory of Signs, de 1938, quanto em Signs, Language and Behavior, de 1946. Pre ten de constituir a Semiotica como uma ciencia experimental, remetendo-a a psicologia humana ou animal. Nesse contexto, por exemplo, rejeita 0 emprego de "meaning" como funr;:ao primordial do signo e de "conduct" como interpretante daquela funr;:ao. Prefere substitui-Ios por conceitos, a seu ver, menos ambiguos e de melhor verificar;:ao experimental. A "meaning", substituirao dois conjuntos de termos: 0 primeiro e polarizado por "significatum" como processo signico e, 0 segundo, por termos denotativos do valor implicado no uso do signo (Morris, Ch., Wri tings on the General Theory of Signs, Paris Mouton: The Hague, 1971. p. 95, 128). Morris prefere, tambem, substituir 0 termo "conduct" por "behavior" - 0 que nem sempre e respeitado nas tradur;:oes -, determinando precisamente 0 dominio psicologico em que propoe fundamentar a Semiotica ( Wri tings, p. 92-3, 360). Em Sign, Language and Behavior ( Wri tings, p. 337-40), Morris posiciona-se explicitamente diante de Peirce e, embora reconhecendo a contribuir;:ao que aquele autor trouxe para a Semiotica, exige que esta perca 0 sentido geral e cosmico de que era dotada para transformar-se propriamente numa ciencia experimental. 0 conceito agora proposto de ciencia e de experiencia nitidamente nao rnais coincide com 0 assumido por Peirce, vindo a restringir-se ao dominio do que seriam as ciencias especiais ou idioscopias (Peirce, Charles S., Collected Papers of Ch.S. Peirce. Cambridge, MA The Belknap Press of Harvard University. 1931-35. v. 1. §§ 238-83). Em obras posteriores, como em Significa tion and Significance (Morris, Ch. Significa tion and Significan ce. A study of the relations of signs and values. Cambridge, MA MIT Press. 1964), volta-se especialmente para questoes de uso e valorizar;:ao dos signos sem, no entanto, rejeitar as bases estabelecidas nas obras anteriores. Assume a divisao, desde cedo proposta, entre a Sintaxe, a Semantica e a Pragmatica, e trabalha especialmente esta ultima. Nesta, com efeito, a estetico, a etico e a verdadeiro - como as tres fontes dos valores - mais nitidamente se manifestariam ao integrarem a semiose.

3.     Ape!, Karl- Otto, La Transforma ci6n de 1a Fi1osofia. Madrid. Taurus. 1985. v. 1. p. 134-42, 235, 300-1; v. 2, p. 155-72, 288-99. Ver tambem, Apel, K- O. "Charles Sanders Peirce and the post-tarskian problem of an adequate explication of the meaning of truth: toward a transcendental theory". Part I, The Monist. La Salle, IL., v. 63, p. 386-407, 1980, Part II, Transactions of the Charles S. Peirce Society, Buffalo, NY. v. 18, n. 1, p. 3-17, 1982.

4.     Putnam, H. Representation and Reality, Cambridge, MA.: MIT Press. 1989. p. 108.

5.     Tiles, J. E. "Iconic Thought and the Scientific Imagination", Transactions of the Charles S. Peirce Society. v. 24, n. 2, p. 161-78, 1988.

6.      Rorty, Richard Philosophy and the Mirror of Na ture, Princeton, N. J.: Princeton University Press. 1979. Trad. port. Lisboa, Don Quixote, 1988. As referencias neste artigo seguirao a paginac;:ao da traduc;:ao portuguesa.

7.                            A Secundidade (Secondness) compartilha com a Primeiridade (Firstness) e a Terceiridade (Thirdness) do quadro das categorias universais adotado por Peirce, desde os primeiros anos do seculo XX. Embora apJique em sua constituic;:ao formal as propriedades mutua­ mente irredutiveis das monadas, das diadas e das triadas estabelecidas na 16gica das relac;:6es, 0 quadro categorial agora adotado nao deriva de uma analise 16gica, como derivavam a quadro categorial kantiano ou 0 proposto por Peirce em 1867, em "The List of Categories " (Collected Papers, v. 1, §§ 545- 67). Decorre, com efeito, da observac;:ao atenta de toda e qualquer aparEmcia (fenomenon ou faneron). As tres categorias corres­ pondem aos elementos mutuamente irredutiveis que comporiam tados os fenomenos e por cuja aplicac;:ao, num numero ilimitado de vezes, seria possivel classifica-Ios como realizac;:6es do universo da experiencia possive!. A Primeiridade ou a propriedade elemen­ tar de ser Primeiro corresponderiam os predicados de Jiberdade, potenciaJidade positiva (e nao, indeterminada) e liberdade. A ela corresponderiam, tambem, as qualidades de sentimento. A Secundidade, como propriedade elementar de ser Segundo ou de ser Outro, corresponderiam a fatualidade, a alteridade, a existEmcia bruta, as relac;:6es mutuas de a c;:ao e reac;:ao, os esforc;:os e as resistencias. A Teceiridade, como propriedade elementar de ser Terceiro au de ser Meio (Medium), corresponderiam a mediac;:ao, a lei, a habito e o pensamento. Ao fazer com que a cada categoria corresponda urn dos tres primeiros numeros ordinais (Primeiro, Segundo e Terceiro) e permitindo que eles organizem a totalidade do universo da experiencia, nele incluido tudo que e mais comum e generali­ zado, Peirce homenageia aos antigos gregos, quando atribuiam aos numeros urn papel fundamental na constituic;:ao do rea!. Confere, pois, as tres categorias a denominac;:ao de "cenopitag6ricas", ja que par suas propriedades numericas elas ordenam de modo operacional e recursivo a totalidade do real fenomenico (Cf. Collected Papers, v. 1, § 351, v. 5, § 43, v. 8, § 328; Eisele, Carolyn (Ed.) The New Elemen ts of Mathematics by Charles S. Peirce, v. 4. The Hague, Paris. Mouton. p. 307- 9, 331-34). Quanta a referencia de Richard Rorty a Secundidade, cf. Rorty, R Op. cit. p. 290s.

8.         Rorty, R op. cit. p. 231s.

9.         Rorty, R op. cit. p. 230.

10.      Hanson, Norwood R, Patterns ofDiscovery, an inquiry into the conceptual foundations of science, Cambridge, UK. Cambridge at the University Press. 195811977.

 

11.      Roberta Kelvenson, ao contrario, considera que a proposta da forma eliptica para a orbita dos planetas seria concorde com 0 platonismo de Kepler, ja que tal forma poderia ser considerada perfeita no interior daquela doutrina. Kelvenson, Roberta, Charles S. Peirce's Method of Methods, AmsterdamlPhiladelphia: John Benjamins Publishing Co. 1987,

p. XII.

12.      Chomsky, Noam, Dialogue avec Mitsou Ronat, Paris: Flammarion, 1977. p. 87s.

13.      A solidariedade dos tres tipos de argumentos no desenvolvimento do pensamento de Peirce fica especialmente patente nas transformac;:oes que experimentam quando 0 diagrama fund ado na logica das relac;:oes (ou dos relativos) substitui 0 silogismo como paradigma formal da argumentac;:ao cientifica. Ate 1902, os argumentos hipotetico, indutivo e dedutivo eram apresentados como as seguintes transformac;:oes do silogismo: Hipotese - Regra - Todos os feijoes deste saco sao brancos.

Resultad6 - Estes feijoes sao brancos. Caso - Estes feijoes sao deste saco.

Induc;:ao - Caso - Estes feijoes sao deste saco.

Resultado - Estes feijoes sao brancos.

Regra - Todos os feijoes deste saco sao brancos. Deduc;:ao - Regra - Todos os feijoes deste saco sao brancos.

Caso - Estes feijoes sao deste saco. Resultado - Estes feijoes sao brancos,

(Collected Papers, V. 2, § 623.)

A partir de 1903, com a constituic;:ao da Semiotica de base diagramatica, a Abduc;:ao ou Retroduc;:ao, como logica do levantamento de hipoteses, fornecera os dados iniciais ou premissas do diagrama, cabendo a Deduc;:ao completar a construc;:ao, quer corolariamente, pela simples constatac;:ao de propriedades contidas no diagrama mas nao enunciadas na hipotese, quer teorematicamente, pelo recurso as construc;:oes realizadas no diagrama e por ele sustentadas. Cabera, POI sua vez, a induc;:ao produzir as estrategias de verificac;:ao experimental das conclusoes obtidas no diagrama. Distinguir-se-ao a induc;:ao ordinaria, ou por simples ausencia de indices opostos as conclusoes obtidas pela deduc;:ao; a induc;:ao qualitativa, valida para valores, dir-se-iam, analogicos ou nao denumeraveis; e a induc;:ao quantitativa, que, em sua forma mais desenvolvida, recorre a correlac;:ao estatistica das variaveis. (Cf. Collected Papers, V. 2, §§ 267-70; V. 8, §§ 227-29.

14.      Suppes, Patrick, Probabilistic Metaphysics, Oxford: Basil Blackwell, 1984.

15.      Suppes, P., op. cit. p. 83s.

16.      Suppes, P., op. cit. p. 116.

17.      Suppes, P., op. cit. p. lOs.

18.      Esposito, Joseph, Evolu tionary Metaphysics. The development of Peirce's theory of categories, Athens, OH.: Ohio University Press, 1980.

19.      Kent, Berveley, Charles S. Peirce, Logic and the Classification of Sciences, Kingston and Montreal: Mc GiII - Queen's University Press, 1987.

20.       Michael, Fred., "Two forms of scholastic realism", Transactions of the Charles S. Peirce Society, v. 24. n. 3, p. 317-48, 1988.

21.       Quanto a caracterizac;:ao das categorias cenopitag6ricas e a justificativa de sua denomi­ nac;:ao, conferir a nota 7.

22.      Para uma abordagem minuciosa do pensamento metafisico de Peirce, consultar Ibri, Ivo Assad, K6smos Noet6s, a arquitetura metafisica de Charles S. Peirce, Sao Paulo: Perspec­ tiva, 1992.

25. Peirce, Ch. S. Collected Papers, v. 1, §§ 291; v. 2, §§ 233-64; v. 4, § 530.

26.    Para a filosofia peirceana e especialmente para a Semi6tica, 0 dominio da racionalidade e o da ciencia nao se reduzem a produc;:ao simb6lica e, menos ainda, a razao humana. Todo processo de mediac;:ao e reconhecido como racional (reasonable) e todo Mbito por ele determinado pode ser denominado "cientifico". Em 1902, por exemplo, Peirce declara caber a Semiotica propr de maneira formal, embora eminentemente falivel, como devem ser os signos para uma inteligencia "cientifica", isto e, para toda inteligencia capaz de aprender com base na experiencia. (Cf. Collected Papers, v. 2, 227).

27.    Peirce, Ch. S. Collected Papers, v. 2, § 227 e Silveira, Lauro F. B. da. "Cosmos Evolutivo e Plano da Criac;:ao", Translformlar;ao. v. 8, p. 1- 24, 1985.

28.    Na concepc;:ao triadica de signo proposta por Peirce, 0 interpretante e urn Terceiro que se determina relativamente ao objeto do signo atraves do representamen. 0 representamen caracteriza-se por sua capacidade de colocar-se no lugar de urn Outro, 0 qual exerce 0 papel de objeto ao se impor no universe fenomenico e ao se contrapor de algum modo ao representamen. 0 objeto, como Outro e Segundo, se opora tambem ao interpretante que, por sua vez, explicitara como 0 representamen e ele proprio ficarao no lugar do objeto ao representa-Io. Esta representac;:ao podera ser meramente potencial, como uma cor que por semelhanc;:a podera ficar no lugar de qualquer objeto que igualmente a possua, dele representando precisamente a cor; como uma definic;:ao, signo de essencia, que podera caber para uma classe de objetos que sejam dotados das caracteristicas nela expressas; ou mesmo, de urn diagrama matematico que podera ser aplicado a qualquer classe de objetos matematicos ou fisicos que mantiverem entre os elementos que os comp6em 0 mesmo conjunto de relac;:6es que caracterizam 0 diagrama. Pod era a representac;:ao ser existencial, se a relac;:ao que mantiver com 0 objeto for de interac;:ao. Neste caso, 0 interpretante testemunhara os efeitos provocados ou sofridos pelo objeto em confronto com 0 representamen. Valem, como exemplos, a fumac;:a relativamente ao fogo, a resposta a urn comando, a fotografia instantanea relativamente ao objeto fotografado, os indices no diagrama relativamente aos cOl:nponentes homologos no objeto representado, assim como os pronomes demonstrativos nas asserc;:6es para com os sujeitos designados, papel semelhante exercendo os nomes pr6prios. Podera, finalmente, a representac;:ao ser geral ou, convencional, caso 0 representamen e 0 interpretante estejam no lugar do objeto em razao de uma lei ou de uma convenc;:ao. 0 objeto, neste caso, sera necessariamente uma classe geral de fen6menos experimentais, ja que sera representado por uma lei gera!. As inferencias logicas serao urn caso tipico e 0 melhor definido desta classe de representac;:6es e seus interpretantes constituirao a classe dos argumentos. Neste ultimo caso, todos os interpretantes serao interpretantes logicos e serao da natureza dos simbolos. Estes decorrem sempre de outros simbolos que se interpretam uns aos outros tendendo a constituirem series infinitas de interpretac;:ao. Somente os interpretantes 16gicos sao


necessitados no interior da semiose, sendo, pOis, dotados de apoditicidade. Os demais interpretantes sempre exigirao, para sua determina<;:ao, a interven<;:ao de urn articulador nao geral que permita a interpreta<;:ao da rela<;:ao do representamen, e a fortiori do proprio interpretante, com 0 objeto. A experiencia e exigida no interpretante existencial para conferir sua verdade, e, no interpretante potencial, a rela<;:ao da verdade ainda nao se coloca. Neste caso, a rela<;:ao determinante e a afei<;:ao para com 0 representamen e 0 objeto, dada a comunhao dos tres em alguma qualidade comum. Para uma analise aprofundada da rela<;:ao de interpretante, consultar Thibaud, Pierre, "La notion peirceenne d' interpretant", Dialectica, v. 37, n. 1, p. 3-33, 1981; Shapiro, Michael, The Sense of Grammar, Language as semeiotic. Boomington, IN.: Indiana University Press, 1983, p. 45-65; e Silveira, Lauro F. B. da, "Na Origem esta 0 Signo", Translformla9Bo, v. 14, p. 45-52, 1991, com suas respectivas referencias ao texto peirceano e a demais bibliografia.

29.    Peirce, Ch. S. Collected Papers, v. 5, § 424.

30.    Peirce, Ch. S., Collected Papers, v. 4, § 530; v. 5, §§ 363, 425.

31.    Esposito, J., op. cit.

32.    Kent, B., op. cit.

33.    Michael, F., op. cit.

34.    Thibaud, Pierre, La Logique de Charles S. Peirce, de l' Algebre aux Graphes, Aix-en-Pro­ vence: Eds. de l' Universite de Provence, 1975.

35.    Quanto ao carater nao dialetico da semiose em Peirce, consultar Silveira, Lauro F. B. da, "Charles S. Peirce: Ciencia enquanto Semiotica ", Translformla9Bo. v. 12, p. 71 -84, 1989, nota C.

36.    Peirce, Ch. S., Collected Papers. v. 5, §§ 388-4 10.

37.    Peirce, Ch. S., Collected Papers. v. 5, §§ 411-437.

38.    Procura-se aqui explicitar, recorrendo as categorias cenopitagoricas, caracterizadas res­ pectivamente pela potencialidade, a existencia e a generalidade, a exigencia da semi6tica peirceana de que todo signo seja urn leone ou contenha urn leone, para poder representar (Peirce, Ch. S., Collected Papers. v. 2, § 278). Este carater originariamente ic6nico de todo signo permitira a Roman Jakobson fundamentar, modalizando a tendencia dominante da tradi<;:ao saussureana favoravel a arbitrariedade do signo linguistico, a proposta do carater motivado daquela classe de signos e introduzir 0 criterio da presen<;:a ou nao de marcas para organiza-la dicotomicamente (Jakobson, Roman, Lingiiistica e Comunica9Bo, Sao

Paulo. Cultrix, 1969. A Procura da Essencia da Linguagem, p. 98-117 e, Jakobson, Roman e K. Pomorska, Dialogos, Sao Paulo: Cultrix, 1980. Cap. IX, 0 Tempo na Sistematica dos Signos. p. 91-2. Cap. X, 0 Conceito de Marca, p. 93-8). Para urn estudo aprofundado das possiveis contribui<;:6es da Semi6tica peirceana para a teoria linguistica, inclusive quanto a necessaria iconicidade do signo linguistico, consultar a obra anteriormente mencionada de Michael Shapiro, The Sense of Grammar.

39.    Haack, Susan, " Extreme Scholastic Realism: its relevance to philosophy of science today",

Transactions of the Charles S. Peirce Society, v. 28, n. 1, p. 19-43, 1992.

 

SILVEIRA, L. F. B. da. Charles S. Peirce and the Contemporary Philosophy of Science: an uneasy conversation. Trans/FormlAr;8o, Sao Paulo, v. 16, p. 63-82, 1993.

 

ABSTRACT: The increasingly frequent references to Peirce 's thought made by the contemporary Philosophy of Science are not able to conceal the diffi culty found in assuming that thought in its entireness. The most part of the quotations made are partial and contradict the whole of the doctIine. It seems easier to call James and Deweyto conversation than to call their common inspirer. The ultimate reason for this challenge seems to lie in the radicality of the fallibilist realism, hardly acceptable by almost all the present philosophical currents.

KEYWORDS: Fallibilism; realism; semiotics; philosophical conversation.



[1] Uma primeira versao deste texto foi apresentada no seminfuio "Semi6tica e Interdisciplinaridade", patrocinado pelo Programa de P6s-0raduacao em Semi6tica e Comunicacao da Pontificia Universidade Cat6lica de Sao Paulo, em 16 de junho de 1992. Parte significativa da bibliografia utilizada foi adquirida pelo programa de AUXJlio Pesquisa Individual do CNPq.

[2] Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciencias - UNESP - 17525-900 - MarHia - SP.