o TEMPO VERTICAL E A DIMENS.AO DO POETICO NA OBRA DE CLARICE LISPECTOR: UMA LEITURA BACHELARDIANA[1]

 

Maria Elisa de OLNEIR[2]

 

RESUMO: A presen«a marcante de uma prosa-poetica na produ«ao ficcional de Clarice Lispector possibilitou-nos exemplificar algumas no«oes centrais (tempo vertical e instante poetico) na rica e sugestiva reflexao de Gaston Bachelard acerca do universo poetico

UNITERMOS: Tempo vertical; tempo presente; instante poetico; prosa-poetico; literatura

 

Embora Gaston Bachelard afirme que algumas "sintese de objetos", tao bern realizadas pela dimensao do poetico, estariam impossibilitadas de se exprimirem na linguagem da prosa (1989, p. 79), no caso da prosa clariceana acreditamos, segura­ mente, que ela e tamMm capaz de oferecer ao leitor "uma grande alegria de palavras", tanto quanto 0 poeta. Com isto, podemos afirmar que a prosa-poetica de Clarice Lispector3 esta povoada de "imagens-frases"4, no dizer do pensador frances, que VaG contra aquilo que e comumente aceito, os lugares comuns, criando assim express6es novas. Sua escritura5 confirmaria, igualmente, urn aspecto que e particular a poesia e que foi assinalado por Bachelard, ou seja, 0 come90 e a novidade (1989, p. 75).

A linguagem de Clarice e capaz portanto de, como a poesia e a pr6pria filosofia, provocar admirac;ao, vindo ao encontro, mais uma vez, das palavras de Bachelard, para quem "A poesia e uma admirac;ao, exatamente ao nivel da palavra, na palavra e pela palavra" (1989, p. 79).

o emprego, por exemplo, do oximoro e do paradoxo - figuras amplamente encontradas no estilo de Clarice - nao ofereceria pois a oportunidade de entrarmos em contato com essas "sintese de objetos" que, pela estranheza e contraste, abalariam o leitor, arrancando-o do seu torpor?

o que dizer entao, apenas como exemplo, desta poetica passagem, colhida ao acaso, e que da titulo ao segundo romance da autora brasileira - 0 lustre:

 

Havia o lustre. A grande aranha escandescia. Olhava-o imóvel, inquieta, parecia pressentir uma vida terrível. Aquela existência de gelo. Uma vez! uma vez a um relance - o lustre se espargia em crisântemos e alegria. Outra vez - enquanto ela corria atravessando a sala - ele era uma castE semente (Lispector, 1976, p. 14).

 

Na verdade, Clarice não compara o lustre com a aranha, já que se fosse assim não teríamos uma imagem (Bachelard, 1989, p. 74) e sim explicações e aproximações

que fariam diminuir, segundo Bachelard, o impulso de uma imaginação. Aqui, ao contrário, há fusão, união entre o lustre e a aranha, entre o lustre e a flor! Recordamos aqui, a propósito, as palavras de Octávio Paz: "A imagem nunca quer dizer isto ou aquilo. Sucede justamente o contrário, C.. ): a imagem diz isto e aquilo ao mesmo tempo. E mais ainda: isto é aquilo" (1982, p. 231). Eis aí a inauguração de um "reino das imagens decisivas, das decisões poéticas (Bachelard, 1989, p. 35)" na prosa-poé­ tica clariceana. Audácia da poesia apenas, única a saber unir, numa imagem, dois objetos? Não: a prosa-poética de Clarice também consegue reinar no domínio da imaginação, livre e criativa, proporcionando a fusão entre "lustre e aranha", "lustre e flor ", fazendo o leitor sonhar e, sobretudo, entrar nos castelos do devaneio 6.

Após apontarmos o elemento de poesia, na obra ficcional de Clarice Lispector, é possível, como decorrência, destacar uma "perspectiva vertical que paira sobre o instante poético", de que fala ainda Bachelard (1932, p. 105), e que pode ser entendida tanto no sentido da profundeza quanto da altura7.

Mas, que tempo é este que se define e se qualifica como sendo, afinal, um tempo raro e complexo, que nada tem que ver com a duração comum, visto que esta última se dispersa, incessantemente? Na concepção bachelardiana, trata-se de um tempo que, ao contrário, é capaz de "transportar o ser para fora da duração comum" (1932, p. 109), colocando-o assim num outro eixo - vertical. Para isso é preciso, segundo ainda o pensador francês, trabalhar o tempo, de tal maneira, que se consiga converter a contradição em ambivalência e o sucessivo em simultâneo, características aliás da imagem poética (Paz, 1982, p. 119-138). Nas palavras de Bachelard: "o instante poétiCO é a consciência de uma ambivalência (1932, p. 104)", ou, ainda, "no instante poétiCO o ser sobe ou desce, sem aceitar o tempo do mundo C..)" (1932, p. 104).

Ora, não é difícil encontrar uma certa "perspectiva vertical" na obra de Clarice Lispector, e um exame um pouco mais demorado do quinto romance da autora brasileira - A paixão segundo G. H., de 1964 - poderá ilustrar a afirmação que acabamos de fazer. No entanto, esta escolha não indica exclusividade; outros romances poderiam, igualmente, servir para o mesmo propósito. O aspecto de romance-poema de A paixão, como alguns o chamaram8, significando pois uma marcante "fusão entre prosa e poesia", foi-nos, todavia, determinante.

Vejamos então como pode se dar a inscrição material desta "perspectiva vertical", no texto em questão.

Antes, porém, de examinarmos a presença de uma verticalidade temporal em A paixão, devemos insistir no aspecto essencialmente verbal do tempo, como um elemento que se realiza e se materializa na e pela linguagem.

A paixao segundo G. H., narrada na primeira pessoa, e urn longo e intense mon61ogo interior a procura de uma compreensao. A narrativa abre e fecha com seis travessoes indicando, nas palavras de Massaud-Moises (1991, p. 5), a "circularidade de urn poema", fazendo assim com que 0 inicio coincida com 0 final, a semeIhanQa entao de uma serpente que engolisse a pr6pria cauda9. Aqui, tudo se transfigura para darlugar a uma "perspectiva vertical". 0 emprego dos recursossintaticos e semanticos produzem urn eieito incomum, como se "0 iantastico tosse a Iealidade do mundo, a dimensao propriamente humana e nao outra qualquer, transcendente" (Lispector, s.d., p. 5). Com isto, espa90 e tempo sofrem uma profunda transformaQao, criando uma atmosfera transfigurada onde, afinal, se processa a aQao e tambem a auto-descoberta da personagem protagonista. Na verdade, todo romance e uma grande metMora da peregrina<;:ao de G. H. ao encontro do seu nucleo interno. It interessante observar que a experiencia ins6lita, vivida por G. H. (0 confronto com 0 inseto-barata, esmagado na porta do guarda-roupa, no quarto de empregada), se passa no ultimo andar de urn edificio, mais exatamente numa "cobertura". 0 local sugere ja urn sentido de verticalidade, que se estende ate atingir 0 quarto de empregada, onde a personagem­ protagonista, G. H., vive uma profunda metamorfose:

 

Forcei-me a me lembrar que tambem aquele quarto era posse minha, e dentro de minha casa: pois, sem sair desta, sem descer nem subir, eu havia caminhado para 0 quarto. A menos que tivesse havido urn modo de cair num poco mesmo em sentido horizontal, como se houvessem entortado ligeiramente 0 edificio e eu, deslizando, tivesse sido despejada de portas a portas para aquela mais alta (Lispector, 1977, p. 49).

 

Em outras passagens, G. H. se refere ao quarto de empregada como "quarto­ minarete", "orat6rio", e a sensa<;:ao de que ele esta ainda mais alto ou, ate mesmo, desligado do resto do edificio, onde ela se situa e, frequentemente, registrada:

 

o quarto parecia estar em nivel incomparavelmente acima do pr6prio apartamento. Como urn minarete. Comecara entao a minha primeira impressao de minarete, solto acima de uma extensao ilimitada (Lispector, 1977, p. 49).

Nao ser inteiramente regular nos seus angulos dava-lhe uma impressao de fragilidade de base como se 0 quarto-minarete nao estivesse incrustado no apartamento nem no edificio (Lispector, 1977, p. 41).

 

Nesta outra passagem: "'ah, quero voltar para minha casa', pedi-me de subito, pois a lua umida me dera saudade de minha vida. Mas daquela plataforma eu nao conseguia nenhum momenta de escuridao e lua" (Lispector, 1977, p. 126), 0 usa de uma linguagem plurissignificativa permite que a protagonista se refira ainda ao quarto de empregada como urn local suspenso10. Neste mesmo quarto-minarete sentimos ressoar 0 aspecto da ambivaJencia, de que fala Bachelard11, sem 0 qual nao podemos entender as no<;:oes de instante poetico e tempo vertical. Mencionando a fusao dos sentimentos vividos por G. H., por ocasiao do confronto com 0 inseto, Benedito Nunes formula 0 seguinte comentario:

 

Projetam-se diante dela [G. H.1. em figuras mutaveis, os contrastes inconciliaveis da existencia­ amar e odio, a9ao, violencia e mansidao, crueldade e piedade, santidade e pecado, esperan9a e desespero, sanidade e loucura, salva9ao e dana9ao, pureza e impureza, liberdade e servidao, ° belo e ° grotesco, ° humano e ° divino, ° estado natural e 0 estado de gra9a, 0 sofrimento e a reden9ao, 0 inferno e 0 paraiso. Cada urn desses polos se confunde com 0 seu oposto, na visao abismal que reduz as diferen9as e tende a suprimi-las. Alegria e dar se interpenetram; presente e futuro tornam-se momentos indivisiveis da existencia em ato, identica, abolindo a separa9ao e a divisao (1989, p. 59).

 

Podemos enfim dizer que G. H. experimenta todos esses sentimentos, juntos, sem que se possa afirmar ainda que urn viria antes ou sucederia 0 outro. Nas palavras de Bachelard:

 

Tal ambivalencia nao pode ser descrita nos tempos sucessivos, como urn balan90 vulgar de alegrias e pesares passageiros. Contrarios tao vivos [como os de, por exemplo, A paixao 1. tao fundamentais, dependem de uma metafisica imediata. Vive-se a oscila9ao num unico instante, par extases e quedas que podem ate estar em oposi9ao aos acontecimentos: 0 desgosto de viver se apodera de nos no gozo, tao fatalmente quanto a altivez na infelicidade (1932, p. 188).

 

as dois p610s (0 da descida e 0 da subida do ser (1932, p. 105) se acham presentes em A paixao, reforc;ando assim urn outro aspecto do instante poetico, conforme entende Bachelard. No primeiro caso, bastaria lembrar 0 gesto extrema e ultimo da personagem-protagonista quando, ao levar a mao a boca, ela come da materia viva (par6dia da comunhao) representada pela barata, vivendo assim as "piores penas", intensa e profundamente (1932, p. 107). No segundo caso, 0 p6lo da subida, vale lembrar 0 comentario de Bachelard:

 

Sobre 0 tempo vertical - ao subir - e que se consolida a consola9ao sem esperan9a, essa estranha consolar;:ao autoctone, sem protetor. Em suma, tudo que nos afasta da causa e da recompensa, tudo que nega a historia intima e 0 proprio desejo, tudo que desvalariza ao mesmo tempo 0 passado e o futuro encontra-se no instante poetico (1932, p. 187).

 

Ora, em A paixao segundo G. H. assistimos crescer a importEmcia do tempo presen te e, dentro deste, 0 tempo atual, a atualidade, apesar da profunda sensac;8.o de que este tempo e, de algum modo, inalcanc;avel:

 

Eu me contorr;:o para conseguir alcanr;:ar 0 tempo atual que me rodeia, mas continuo remota em relar;:ao a este mesmo instante. 0 futuro, ai de mim, me e mais proximo que 0 instante ja (Lispectar, 1977, p. 146)12

 

No seu arroubo e 8xtase G. H. atinge ainda urn tempo vertical, que nao reconhece o valor do passado e do futuro mas que se condensa no "hoje" e no "agora-ja":

 

C.. ): quero encontrar a redenr;:ao no hoje, no ja, na realidade que esta sendo e nao na promessa, quero encontrar a alegria neste instante - quero 0 Deus naquilo que sai do ventre da barata - mesmo que isto, em meus antigos termos humanos, signifique 0 piar, e, em termos humanos, 0 infernal (Lispectar, 1977, p. 97).

 

Pela ferida ou aberturalfresta do inseto - provocada pelo esmagamento do inseto na porta do guarda-roupa - G. H. tern entao a oportunidade de ver "0 outro lado" do ser, do seu ser, resultado tambem da ruptura do espa<;o e do tempo e que, neste momento, rompem-se. Tern inicio, a partir dai, uma serie de vertigens, cujo desfecho culmina no contato intimo (manduca<;ao da barata) entre a materia-prima e a personagem-protagonista.

Se, por outro lado, atentarmos para a opiniao de Benedito Nunes, segundo a qual, Agua viva "traz a mesma obsessao da materia primordial [0 it] com que nos deparamos em A paixao segundo G. H." (1989, p. 158), veremos que a presen<;a de urn tempo vetical poetico se faz aqui, igualmente, presente. 0 embate entre duas realidades distintas designadas pela personagem-narradora, alias, sem nome, sugere a import{mcia de urn tempo vertical, em contraste com urn tempo e uma realidade comum e ordinaria:

 

Sera que passei sem sentir para 0 outro lado? 0 outro lado e uma vida latejantemente infernal. Mas ha a transfigura9ao do meu terror: entao entrego-me a uma pesada vida toda em simbolos pesados como frutas maduras. Escolho parecen9as erradas mas que me arrastam pelo enovelado. Uma parte minima de lembran9as do born senso de meu passado me mantern ro9ando ainda 0 lado de ca. C.. )

Mas ninguem pode me dar a mao para eu sair: tenho que usar a grande for9a - e no pesadelo em arranco subito caio enfim de bru90s no lado de ca. Deixo-me fixar jogada no chao agreste, exausta, o cora9ao ainda pula doido, respiro as golfadas. Estou a salvo? Enxugo a testa molhada (Lispector, s.d., p. 21-2).

Todavia, a no<;ao de verticalidade do instante poetico nao pode deixar de estar ligada, particularmente na obra de Clarice Lispector, a questao da cliscursividade da linguagem. Nao devemos esquecer que os grandes temas encontrados na produ<;ao ficcional de Clarice - a morte, 0 tempo, a precariedade da vida, apenas para citar alguns - nao se desvinculam das suas "preocupa<;oes com a linguagem e a natureza especifica da fic<;ao da vida" (Sa, 1979, p. 87). Quanto a Bachelard, nao percebemos que 0 autor tenha dispensado, ao analisar e investigar a genese poetica e a no<;ao de tempo vertical13, urn tratamento mais amplo as questoes da linguagem propriamente dita, ou, mesmo, a natureza especifica da fic<;ao. Ora, no caso da autora brasileira essa abordagem e indispensaVeP4.

Assim, urn dos problemas que devemos enfrentar na prosa-poetica de Clarice e a concilia<;ao entre a verticalidade, caracteristicas do instante poetico, instan taneo e pleno e 0 tempo do discurso. Em outras palavras, como " fundir"o instante poetico (vertical), com a capacidade de dar, instantaneamen te, uma visao do universo e 0 segredo/misterio de uma alma, e a discursividade (linear) da linguagem ou, enfim, como dizer 0 instan te. A propria Clarice, lamentando 0 aspecto da "discursividade limitadora" da liguagem, confessa:

 

Novo instante em que vejo 0 que vai se seguir. Embora para falar do instante de visao eu tenha

que ser mais discursiva que 0 instante: muitos instantes passarao antes que eu desdobre e esgote a complexidade uma e rapida de urn relance (Lispector, s.d., p. 64).

 

Urn recurso para fazer face a essa insuficiencia seria, como observa Olga de Sa, "C.. ) desejar para a linguagem, os processos da pintura e ate a fotografia C.. )" (1979, p. 158), como acontece em Agua viva. Neste texto, escrito em primeira pessoa, a pintora-narradora comenta:

 

Tambem tenho que te escrever porque tua seara e a das palavras discursivas e nao 0 direto de minha pintura (Lispector, s.d., p. 10-1). Escrevo-te como exercicio de esbo<;:os antes de pintar. Vejo palavras. 0 que falo e puro presente e este livro e uma linha reta no espa<;:o. E sempre atual, e 0 fot6metro de uma maquina fotografica se abre e imediatamente fecha, mas guardando em si 0 flash (Lispector, s.d., p. 19).

 

Texto profundamente dramatico, nas palavras de Benedito Nunes, escritura - alias, "dura escritura", como declara a personagem-pintora de Agua viva - "criayao de sobrevida e aproximayao da morte" (1 989, p. 1 56) e fluido quanto a materia, Agua viva nao tern outra hist6ria senao a do fluxo de uma meditayao erradia, apaixonada, ao sabor da variayao de certos temas gerais (1 989, p. 1 57). Sem enredo e sem personagens, podemos dizer que 0 texto narra as oscilayoes internas, vividas pela personagem-narradora-pintora, por extases e quedas, segundo motivos aparentemen­ te desconexos, entre eles, 0 tempo, a morte, paisagens hipoteticas, Deus, suscitando urn bailado de imagens e ideias-sensayoes, onde 0 devaneio e 0 sonho funcionam como " fantasia protetora". Este texto-improviso, como foi qualificado pela protago­ nista, foi, tambem por ela, associado a urn caleidosc6pio:

 

Urn instante me leva insensivelmente a outro e 0 tema atematico vai se desenrolando sem plano mas geometrico como as figuras sucessivas num caleidosc6pio (Lispector, s.d. p. 14).

 

Sujeita a linearidade do signo lingulstico e ao carater consecutivo da linguagem verbal, a nanativa de Agua viva, que conta com uma poderosa forya do imaginario, pode representar a fulgura r;ao da " chispa temporal do instan te", na ordem sucessiva, como ponderou Benedito Nunes (1989, p. 159). A intenyao declarada pela persona­ gem-pintora de Agua viva de reter uma subita iluminayao ou epifania, num presente im6vel ou, ao menos, num tempo detido (vertical) e estabilizado encontra, contudo, no ate de nanar ou na escritura, uma dupla dificuldade: a sua expansao no tempo (hOrizontal, linear) e a necessidade de ser lida, temporalmente. E neste sentido que se pode dizer, com Olga de Sa, que a personagem-narradora de Agua viva procurou, com seu discurso, no papel tela-bloco de pedra, desenhar, pintar e esculpir ou, enfim, "fotografar uma escritura atemporal" (1979, p. 96).

Mas, para isto seria necessario abandonar 0 estar liberto das formas plenas e do circulo fechado do pensar e se entregar a uma nova plenitude (Almeida, 1935, p. 6) inaugurando assim uma linguagem "redonda ", "enovelada" e "tepida" (Lispector, s.d. p. 9) ; uma linguagem onde predominem as formas desmolduradas, libertas do discurso (linear) e do narrativo que seguiria urn plano, previamente elaborado; urn texto- calei­ doscopio onde mais do que descrever fatos e acontecimentos apresente, ao inves, "as cintila90es de uma linguagem" (Motta Pessanha, 1986, p. xiii) que acompanhasse as vicissitudes de urn tempo pontilhado de instantes unicos e que "nao seguem a medida".

A importancia do plano da narra9ao, do ponto de vista do ate de narrar, em Agua viva, adquire urn grande interesse devido a redu9ao do enredo e a apresentaQao aleatoria dos varios temas. Trata-se de urn texto que foi considerado pOI Benedito Nunes "urn caso extrema da experiencia temporal na arte de narraI" (1988, p. 66), num anseio por fundir 0 tempo do enredo e 0 tempo da narraQao. Recusando a todo momenta qualquer enredo ou historia que poderia limitar 0 seu texto a uma construQao previa e dependente, a personagem, num dado momento, reconhece que sua escritura e "(... ) atravessada de ponta a ponta por urn fragil fio condutor - qual? 0 do mergulho na materia da palavra? 0 da paixao? Fio luxurioso, sopro que aquece 0 decorrer das silabas" (Lispector, s.d., p. 30). Com isto, nomeamos 0 grande tema nao apenas de Agua viva mas de toda a obra de Clarice Lispector: a preocupa9ao sempre com a propria natureza da linguagem. No entanto, 0 reconhecimento deste grande tema (0 mergulh o na ma teria da palavra) equivaleria a aceitar 0 aspecto discursivo da linguagem e a dificuldade de reproduzir em palavras certos momentos-epifanicos:

 

E tao dificil falar e dizer coisas que nao podem ser ditas. E tao silencioso. Como traduzir 0 silencio do encontro real entre n6s dois? Dificilimo contar: olhei para voce fixamente por uns instantes. Tais momentos sao meu segredo. Eu chama isto de estado agudo de felicidade (Lispector, s.d., p. 63). Atras do pensamento atinjo um estado. Recuso-me a dividi-Io em palavras - e 0 que nao posso e nao quero exprimir fica sendo 0 mais secreta dos meus segredos (Lispector, s.d., p. 63).

 

Todavia, e preciso notar que, embora a personagem-narradora declare a dificul­ dade em "dizer coisas que nao podem ser ditas", ela, efetivamente, ja 0 diz.

o impeto enfim da personagem-narradora em transformar a propria palavra em 3lgo que seja urn marco/posse (imagem de verticalidade) que seja capaz de atingir e fixar a essencia/halo das coisas evidencia-se ainda nesta bela passagem:

 

o halo e vertiginoso. Finco a palavra no vazio descampado: e uma palavra como fino bloco monolitico que projeta sombra (Lispector, s. d., p 56).

 

A linha perpendicular representada pela palavra (" fino bloco monolitico"), fincada no "vazio descampado" (horizon talida de), nao significaria, afinal, a dimensao poetica ( vertical) de uma fala criativa e inaugurante, capaz de oferecer ao homem a possibilidade de veneer 0 tempo que escorre e foge inexoravelmente para urn fim (mOIte)? Agua viva, mais do que tudo, vive, simultaneamente, a "voluptuosidade em ir criando 0 que dizer" e "a cerimonia da iniciaQao da palavra e meus gestos sao hieraticos [Rainha egipcia !j e triangulares " (Motta Pessanha, 1986, p. 19).

 

Notas

 

1.   Gilda de Mello e Souza, num artigo citado por Olga de Sa (1979, p. 32), ressalta 0 fato dE que Clarice, nao respeitando 0 principio da limitac;:ao dos generos, usa, na ficc;:ao, o processos da poesia (linguagem animica, violentac;:ao do sentido logico da frase, anotac;:ac do excepcional).

2.   Bachelard designa essas "imagens-frases de sentenr;:as poeticas, e nao fragmentos" ja que para 0 autor, " 0 nome de fragmentos, utilizado pelos fragmentaristas, prejudica-os. NadE e partido numa imagem que encontra forc;:a em sua condensac;:ao" (1989, p. 75).

3.   Olga de Sa em (1979) analisou, magistralmente, a escritura clariceana apontando E "metMora estranhada" como a caracteristica mais evidente da escritura de ClaricE Lispector. Enfatizemos pois lembrando que a metatora ocupa urn lugar privilegiado DE escritura clariceana.

4.   A partir de 1938, Bachelard ira se debruc;:ar sobre os fundamentos da legitimidade de devaneio e do sonho, como atividades imprescindiveis, nao so para a arte mas para E propria vida. Nas palavras de Motta Pessanha, 0 pensador frances conquista 0 direito dE sonhar (1986, p. xi), 0 que deu titulo a uma colet[mea postuma Le droit de rever. Ver, E este respeito, Motta Pessanha (1986).

5.   A sugestao de transcendencia que pode advir dai, foi entendida por Benedito Nunes especialmente em se tratando de A paixBo segundo G. H. de Clarice Lispector, come "trans-descendencia". Ver, a este respeito, do autor paraense (1976, p. 138).

6.   Ver, a este respeito, 0 artigo de Massaud-Moises (1991, p. 5-6).

7.    Cirlot, no seu Dicionario de simbolos (1984, p. 57), comenta, entre outras interpretac;:6es o aspecto de sintese que se pode aplicar ouroboros, ou seja, a uniao entre dois principios: ct6nico (serpente) e 0 celeste (passaro). Em sentido geral, esta imagem, segundo 0 autor, simbolizaria 0 tempo e a con tin uidade da vida.

8.       Ao lado desta palavra, outras ainda foram usadas (" oratorio", "escrinio", "sarcofago", "camara-ardente"), num esforc;:o revelado pela protagonista-narradora para exprimir E polivalencia das sensac;:6es da personagem G. H., com relac;:ao ao quarto de empregada.

9.       Ver, a este respeito, Bachelard (1 932).

10.    Esta con torr;:Bo se opera em nivel da linguagem e e perceptivel na sintaxe dos texto clariceanos, particularmente em A paixBo. Eis alguns exemplos: "0 mundo se me olha. Tudo olha para tudo, tudo vive 0 outro ; neste deserto, as coisas sabem as coisas" (Lispector, 1977, p. 25).

11. Estamos nos referindo, basicamente, a obra (1932) de Bachelard, fundamental para a compreensao da noc;:ao bachelardiana de tempo vertical.

12. A leitura das obras de Benedito Nunes, em especial (1989), e de Olga de Sa (1979) E fundamental para a compreensao da questao da linguagem, em Clarice Lispector.

 

OLIVEIRA, M. E. de. The vertical and the poetic's dimension in Clarice Lispector's fictional artistic creation: a bachelardian analysis. TranslFormlA9Bo, Sao Paulo, v. 6, p. 53-61, 1993.

 

ABSTRACT: The remarkable presence of a poetic-prose in Clarice Lispector 's fictional artistic creation gave us the possibility of exemplifying some central aspects, as vertical time and poetic instant, in Gaston Bachelard 's rich and suggestive reflexion about the poetic universe.

KEYWORDS: Vertical time; present time; poetic instant; poetic-prose literature.

 

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[1] Este artigo e dedicado ao Alvaro (in memorian) e constitui uma versiio modificada da palestra apresentada no 32 Congresso da Abralic, realizado em agosto de 1992, na UFF Niter6i.

[2] Departamento de Filosofia - Faculdade de Filosofia e Ciencias - UNESP - 17525-900 - Marilia - SP.