Referência do artigo comentado: Freitas, v. f. A ciência da política de David Hume. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 347 –370, 2021.
Como sabe até o mais desavisado dos leitores da obra de Hume, o subtítulo do primeiro livro publicado pelo autor, o Tratado da Natureza Humana, é “Uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais”. Como outros autores da modernidade, o filósofo escocês se mostra preocupado com a situação das ciências, em seu tempo, que percebe como absolutamente desoladora. O conhecimento experimental da natureza humana, então, seria importante, porque é “[...] evidente que todas as ciências têm uma relação, maior ou menor, com a natureza humana.”[2] (HUME, 2007, p. 4). Isso seria verdade, mesmo no caso das matemáticas, da filosofia natural e da religião natural. Desse modo, não causa qualquer surpresa que o autor considere as pretensões que nortearão todo o livro importantes para o desenvolvimento de áreas como a lógica, a crítica, a moral e a política, ciências “[...] cuja conexão com a natureza humana é mais próxima e íntima.” (HUME, 2007, p. 4).
Evidentemente, o projeto de uma ciência da natureza humana envolve certas complicações. A “filosofia moral”, lembra Hume, não pode formular experimentos de maneira premeditada, proposital. Por isso, depende de “uma observação cuidadosa da vida humana”, de modo a considerar experiências “[...] tais como aparecem no curso comum do mundo, pelo comportamento dos homens em companhia, em seus afazeres e em seus prazeres.” (HUME, 2007, p. 6). Fica evidente, portanto, que o recurso a exemplos da vida comum e da história será de enorme importância para o projeto filosófico do autor.
Sobre a história, em particular, Hume escreveria, anos depois, em Uma Investigação sobre o Entendimento Humano, que tem como principal utilidade “[...] mostrar os princípios constantes e universais da natureza humana” (HUME, 1999, p. 150), e que “[...] registros de guerras, intrigas, facções e revoluções são apenas muitas coleções de experimentos pelos quais o filósofo político ou moral fixa os princípios de sua ciência” (HUME, 1999, p. 150), do mesmo modo que um filósofo natural se ocuparia de plantas ou minerais.
Desde o início, por conseguinte, parece que a política, entendida como o campo do conhecimento que “[...] considera os homens como estando unidos em sociedade, e como dependentes uns dos outros” (HUME, 2007, p. 4), teria sido considerada por Hume como uma ciência. Mais do que isso, se está intimamente ligada a uma “ciência da natureza humana” que deve, ela própria, ser considerada à luz da experiência, e se diz respeito a coisas que se dão efetivamente no mundo, a política provavelmente será arrolada entre os tipos de conhecimento, os quais, em Uma Investigação sobre o Entendimento Humano, receberão o nome de questões de fato.
Em outras palavras, é de se esperar que o conhecimento sobre a política dependa da experiência e, pois, de considerações sobre a relação de causa e efeito. Isso parece ainda mais evidente, quando se atenta para a consideração de que se pode conceber sem entraves o contrário de qualquer questão de fato, o que não acontece nas relações de ideias, as quais são o outro tipo de “[...] objetos da razão ou investigação humana” (HUME, 1999, p. 108) e incluem, por exemplo, as matemáticas.
O leitor de obras como o Tratado da Natureza Humana e Uma Investigação sobre os Princípios da Moral se depara com uma limitação considerável: nesses textos, não há grandes subsídios para entender quais seriam os princípios que Hume atribuiria a uma ciência da política. Sabe-se que ele pretendia publicar outros volumes de seu Tratado, além dos três que efetivamente escreveu (acredita-se que um desses volumes que não chegaram a ser escritos seria dedicado à política), mas teria sido desencorajado pela recepção da obra. A Parte 2 do Livro 3 do Tratado, bem como a Seção 3 de Uma Investigação sobre os Princípios da Moral, são dedicadas a considerações sobre a justiça concebida como uma virtude. É verdade que tratam, sempre se levando em conta o que a experiência permite dizer (ou, por vezes, recorrendo ao que, posteriormente, viria a ser chamado de história conjectural), de temas caros a filósofos modernos da política, como a origem das regras de propriedade, a origem do Estado e a obrigação de obediência ao governo, entre outros. Ainda assim, esses textos não devem ser lidos de maneira a perder de vista que estão inseridos, ao fim e ao cabo, em uma teoria moral.
É principalmente em parte dos Ensaios Morais, Políticos e Literários que podem ser encontradas considerações explicitamente ligadas a temas políticos. Textos como “Of Parties in General”, “Of Civil Liberty”, “Of Some Remarkable Customs”, entre outros, deixam clara a preocupação do autor de pensar instituições e práticas à luz da experiência e, por conseguinte, de condições bastante concretas, resultando em máximas que parecem depender, em alguma medida, do contexto. Merece atenção, assim, que, em um ensaio que parece bastante atípico, chamado “That Politics May Be Reduced to A Science”, Hume pretenda estabelecer princípios quase tão certos como aqueles que as matemáticas podem nos fornecer. Mais ainda, merece atenção o fato de Hume afirmar, a propósito de uma comparação entre a aristocracia veneziana e a polonesa, que as tendências de cada uma “[...] poderiam ser tornadas aparentes até mesmo a priori.”
É verdade que “That Politics May Be Reduced to A Science” é apenas um ensaio entre vários outros, mas esse tipo de afirmação, especialmente por parte de um autor que se esmerou em estabelecer grandes diferenças entre o conhecimento a priori das matemáticas e aquele em que consistem as questões de fato, merece ser analisada a sério. Hume, afinal, é bastante enfático ao fazer afirmações como “Parece-me que os únicos objetos das ciências abstratas, ou de demonstração, são a quantidade e o número, e todas as tentativas de estender esse conhecimento mais perfeito para além desses limites são mera sofistaria e ilusão.” (HUME, 1999, p. 209). Discutir a possibilidade de axiomas políticos que podem ser conhecidos “até mesmo a priori”, nesse contexto, causa inevitável estranheza.
Mais do que isso, esse ensaio cria problemas interpretativos interessantes: haverá mais de um modo de se considerar a política em Hume? Pode-se falar em dois níveis diferentes da ciência política para o autor, um que diz respeito a axiomas gerais sobre formas de governo, como em “That Politics May Be Reduced to A Science”, e outro que considera as interações políticas de forma experimental e que dependeria de condições específicas ou de um contexto? É possível compatibilizar, de alguma forma, o que é dito nesse ensaio e as teses que Hume desenvolve em outros pontos de sua obra, de modo a constituir uma ciência política consistente? Finalmente, quais os impactos que esse ensaio tem, quanto às dificuldades de sistematizar o pensamento humiano sobre a política?
São questões difíceis, as quais têm atraído a atenção de comentadores de peso. O artigo de Vinícius França Freitas, que ensejou este texto, oferece uma tentativa interessante de sistematização de conceitos relevantes e constitui uma boa porta de entrada para os leitores de Hume que estiverem interessados nesses quebra-cabeças.
REFERÊNCIAS
Freitas, v. f. A ciência da política de David Hume. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 347–370, 2021.
HUME, David. Essays Moral, Political and Literary. Indianapolis: Liberty Fund, 1985.
HUME, David. An Enquiry concerning the Principles of Morals. Oxford: Oxford University Press, 1998.
HUME, David. An Enquiry concerning Human Understanding. Oxford: Oxford University Press, 1999.
HUME, David. A Treatise of Human Nature. Oxford: Oxford University Press, 2007.
Recebido: 07/5/2021
Aceito: 07/6/2021
[1] Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Sergipe (UFS). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0037-7647. E-mail: marcos.balieiro@gmail.com.
[2] Todas as traduções de passagens em inglês são nossas.