Referência do artigo comentado: Almeida, V. S. de. Reflexões sobre o ninguém na obra de Hannah Arendt. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 326 –342, 2021.
O sentido do pensamento de Hannah Arendt é sucintamente exposto na pergunta elaborada em seus diários (ARENDT, 2002a, p. 520) e destacada por Vanessa Sievers de Almeida: por que existe alguém, e não ninguém? Seu antigo mestre, Martin Heidegger (HEIDEGGER, 1978, p. 33), questionava: por que existe o ser, e não o nada? Há um deslocamento da frase de Heidegger, na paráfrase de Hannah Arendt, que aponta para um abandono da metafísica em prol do pensamento político e ajuda a entender sua recusa a ser chamada de filósofa no sentido clássico do termo (ARENDT, 2002b, p. 123). O que lhe interessava especialmente era a pluralidade de alguéns, e não a questão do ser em geral – pela qual a ontologia fundamental se definira e que, desde Platão, orientou a filosofia. Tratava-se da experiência política, desprezada por Platão e na tradição ocidental que o segue. Essa experiência faculta aos seres humanos aparecerem uns para os outros, em atos e palavras, revelando quem são na própria vida ativa, não na vida contemplativa, de sorte a tornar-se “alguém”, para empregar os termos de Almeida (2021).
O seu artigo “Reflexões sobre o ninguém na obra de Hannah Arendt” constatou algo decisivo: a polis onde quem somos aparece foi pensada originalmente por Hannah Arendt, porque faltava em sua experiência concreta, histórica e pessoal. Judia-alemã no século XX, Hannah Arendt entendeu que os regimes totalitários, como o nazismo, eram cinturões de ferro nos quais ninguém emergia, em sua singularidade; o oposto do espaço onde alguém aparece publicamente em sua diferença no mundo, junto aos outros. Tanto que o seu primeiro grande livro, Origens do totalitarismo, de 1951, estuda o nascimento moderno da sociedade de massa, onde ninguém se singulariza. Só no penúltimo capítulo de A condição humana, de 1958, o alguém é protagonista como um “quem” (ARENDT, 1999, p. 191), onde é belamente descrito, como sublinha Almeida (2021).
De certo modo, porém, a preocupação de Hannah Arendt com o mundo no qual ninguém aparece – e, portanto, que pode ser destruído, sem que ninguém seja nomeado ou identificado, pois todos que seriam alguéns já estariam engolfados em uma maquinaria sistemática impessoal – pode ser retraçada, em sua origem, à conhecida tematização que Heidegger, em Ser e tempo, de 1927, fizera sobre o “ser-com” (HEIDEGGER, 2009, p. 230). Para ele, o modo pelo qual, cotidianamente, somos com os outros é aquele em que cada um foge de si mesmo e o faz, escorando-se genericamente nos outros, mas os outros não são alguéns definidos. São a indefinição do impessoal, que “[...] tira o encargo de cada presença”, pois “[...] todo mundo é o outro e ninguém é si mesmo.” (HEIDEGGER, 2009, p. 185). Heidegger escreveu que “o impessoal, que responde à pergunta quem da presença cotidiana, é ninguém” (HEIDEGGER, 2009, p. 185). Sob esse prisma, a origem do que Hannah Arendt pensa como “ninguém” estaria prefigurada na filosofia de Heidegger.
Não há, nisso, nenhuma tentativa de diminuir a originalidade de Hannah Arendt. Ela mesma escreveu, em uma dedicatória não publicada, que foi fiel e infiel a seu amigo íntimo, e ambas as coisas no amor (ARENDT, 2001, p. 247). Trata-se aqui de, com essa contextualização, explicitar o deslocamento que ela opera: como sua infidelidade surge da fidelidade. Enquanto, para Heidegger, o impessoal é uma estrutura existencial, já para Hannah Arendt, é um problema político. Enquanto, para Heidegger, a sua interrupção se dá na disposição afetiva da angústia, para Hannah Arendt, trata-se de recobrar o sentido da pluralidade mundana. Contudo, o pano de fundo histórico para os dois se assemelha. Heidegger citava, embora timidamente, as “grandes multidões” (HEIDEGGER, 2001, p. 127). Hannah Arendt discutia, detidamente, “as massas” (ARENDT, 1989, p. 355).
O artigo de Vanessa Sievers de Almeida chama a atenção, com razão, para como, nesta sociedade de massas moderna, que desarticulou a representação político-partidária típica do século XIX, o mundo comum entre os seres humanos vai perdendo relevância e, assim, vamos sendo tragados e deixando de aparecer como alguéns. Enfatiza-se, aí, o movimento totalitário, ou seja, aquela tendência que, antes da consolidação da forma de governo totalitária, aparece na sociedade, o que se consagrou chamar, em referência ao filme homônimo de Ingmar Bergman, de 1977, de “ovo da serpente”. É a sociedade de massas onde ninguém aparece que torna possível um governo totalitário.
Nesse aspecto, o artigo de Almeida (2021) explora as páginas sobre a sociedade de massas de Origens do totalitarismo, nas quais a atenção está voltada para um momento histórico preciso, os anos 1920 e 1930, bem como para um local preciso, a Alemanha. O artigo preocupa-se, contudo, com ecos dessas análises no século XXI. Tal preocupação é justificada e, se o centro da discussão é a figura do “ninguém”, pode ser complementada pelas reflexões de Hannah Arendt sobre a violência, pois nelas está em jogo menos a formação social das massas antes do nazismo e mais como essa formação ainda permanece depois dele, confirmando a suspeita de que talvez “[...] verdadeiros transes do nosso tempo”, escreve Hannah Arendt, “[...] somente venham a assumir a sua forma mais autêntica – embora não necessariamente a mais cruel – quando o totalitarismo pertencer ao passado.” (ARENDT, 1989, p. 512).
Ora, se um desses transes do nosso tempo é a prevalência de ninguém, ao invés do aparecer plural de alguéns, nas páginas de Hannah Arendt, de Sobre a violência, constatamos sua continuidade entre nós:
Hoje poderíamos acrescentar a última e mais formidável forma de tal dominação: a burocracia, ou o domínio de um sistema intrincado de departamentos nos quais nenhum homem, nem um único nem os melhores, nem a minoria nem a maioria, pode ser tomado como responsável, e que deveria mais propriamente chamar-se domínio de Ninguém. (Se, de acordo com o pensamento político tradicional, identificarmos a tirania com o governo que não presta contas a respeito de si mesmo, então o domínio do Ninguém é claramente o mais tirânico de todos, pois aí não há ninguém a quem se possa questionar para que responda pelo que está sendo feito [...]) (ARENDT, 1994, p. 33).
Isso fortalece a tese de Almeida (2021) de que o egoísta difere do ninguém. Para ela, o egoísta diz “eu”, faz seu autointeresse superar o interesse comum e sua vida privada suprimir sua vida pública. Já no domínio do ninguém, surge algo diferente. É a supressão do interesse na pluralidade, mas também em si, no mundo, mas também no eu. Ou seja, o problema é mais político que moral: a autodissolução nas massas, a subordinação à ideologia e o mero funcionamento. O egoísmo, portanto, se situaria entre o alguém e o ninguém, sem se identificar com nenhum deles. Todavia, será que, além do egoísmo, há outras possibilidades entre o alguém e o ninguém? Talvez o individualismo.
No século XIX, Tocqueville notou que o egoísmo é um vício tão antigo quanto o mundo, pelo qual o eu se coloca acima dos outros, entretanto, o individualismo é moderno e nasce da igualdade pela qual cada um passa a ter o direito de cuidar (só) da sua própria vida (TOCQUEVILLE, 2000, p. 119). É o nó da democracia, que garante a liberdade para a busca da felicidade individual, mas depende da participação pública. Portanto, há talvez três questões: o egoísmo, que não pertence a uma época determinada; o individualismo, o qual nasce com a era burguesa no século XVIII; e o ninguém, que surge com a sociedade de massas e se expande, no século XX. Em cada etapa, a liquidação do mundo, o espaço comum dos seres humanos, aumenta. E, como pergunta Carlos Drummond de Andrade (1992, p. 276), pode o homem sentir a si mesmo, quando o mundo some?
REFERÊNCIAS
Almeida, V. S. de. Reflexões sobre o ninguém na obra de Hannah Arendt. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 326 –342, 2021.
ANDRADE, C. D. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.
ARENDT, H. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
ARENDT, H. Sobre a violência. Tradução de André Duarte. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
ARENDT, H. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
ARENDT, H. Hannah Arendt-Martin Heidegger: correspondência 1925/1975. Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001.
ARENDT, H. A dignidade da política. Tradução de Helena Martins e outros. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002a.
ARENDT, H. Denktagebuch. Herausgegeben von Ursula Ludz, Ingeborg Nordmann. München: Piper, 2002b, 2 Bde.
HEIDEGGER, M. Introdução à metafísica. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2009.
TOCQUEVILLE, A. A democracia na América: sentimentos e opiniões. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Recebido: 30/10/2020
Aceito: 03/11/2020
[1] Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, RJ – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7889-767X. E-mail: p.d.andrade@gmail.com.