Referência do artigo comentado: Silva, m. Contra o dogmatismo realista: notas sobre acordos e jogos. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 248 –270, 2021.
Discutir a questão da objetividade sem cair em um dogmatismo realista constitui-se, em geral, em grande desafio para o filósofo, dada toda a tradição realista da filosofia ocidental. Silva (2021) enfrenta esse desafio de forma muito interessante e tendo a concordar com ele, na maior parte de sua argumentação, principalmente no que tange aos desenvolvimentos wittgensteinianos do autor.
Entre as muitas virtudes do artigo em questão está a sua argumentação contrária a um platonismo de regras como aquilo que forneceria objetividade ao discurso. Parece-me que o autor tem razão em afirmar, de uma perspectiva wittgensteiniana, que é o regramento intrínseco às práticas discursivas que dá objetividade ao discurso. Essa noção de regramento intrínseco das práticas precisa ficar muito clara ao leitor. Para Wittgenstein e a sua, assim chamada, segunda filosofia, as regras são intrínsecas às práticas humanas e não há nada exterior a elas que serviria de padrão regulativo de nossas práticas. As práticas se guiam e têm como padrão de correção regras que são sedimentadas como padrões de uso internamente às próprias práticas.
Aos poucos, algumas ações que se repetem dentro de uma prática vão se tornando critérios de ação, ou seja, vão se tornando regras de ações presentes e futuras. Essas regras são estabelecidas dentro de um complexo jogo de palavras, exemplos, atitudes etc. Nesse sentido, as regras surgem na própria prática humana e contêm em si a orientação para a aplicação, não sendo necessário criar novas regras, para seguir regras ou se referir a regras externas à própria prática. Silva (2021) tem razão, então, em afirmar que a ideia wittgensteiniana não se compromete com um realismo de regras[2] e que isso não incorre em falta de objetividade dos discursos, por um motivo bem simples: as regras que são criadas na própria prática são as regras da prática, e não segui-las faz com que o sujeito incorra em erro internamente à própria prática. Temos aí a objetividade interna às práticas.
Silva atém-se ao fato de que nossas práticas possuem regramento intrínseco e ressalta que esses regramentos não são definitivos, no sentido de imutáveis. Desse modo, gostaria de ressaltar um ponto que me parece não ter sido desenvolvido no texto, a saber, o fato de que não se pode entender que regras são definidoras das próprias práticas, no sentido de que saber as regras de uma prática é já dominar a própria prática. A esse respeito, bem ressalta Wittgenstein, em On Certainty (1972, § 139): “Não somente regras, mas exemplos são necessários para estabelecer uma prática. Nossas regras deixam alternativas abertas e a prática deve falar por si própria.” Práticas são construções humanas complexas, fruto de interações, repetições, valorações, regras, exemplos, e assim por diante, e é nessa linha que estou dizendo que regras não são definidoras das práticas, apesar de parecer impossível falarmos em prática sem regras, já que, para que possamos falar em prática, necessitamos de regularidade e repetição (Wittgenstein, 2001, § 199).
Dito isso, outro ponto que eu gostaria de ressaltar é o fato de que, em muitos momentos do artigo, o autor ressalta o aspecto social e comunitário da criação de regras. Ou seja, ao que parece, para Silva, práticas são intrinsecamente comunitárias. Apesar de não ser a temática central do artigo, isso gerou em mim a dúvida a respeito de se o autor está a defender uma espécie de comunitarismo de regras, no sentido de que regras só fazem sentido, se elas forem compartilhadas comunitariamente. Basicamente, surgiu-me a dúvida sobre se é possível seguir regras isoladamente. Reconheço que esse é um desvio ao tema central do artigo, mas, como o autor usa “comunidade” muitas vezes, no seu texto, ela não me parece uma questão sem sentido.
Assim, gostaria apenas de comentar rapidamente que, caso o autor veja a necessidade de defender que práticas sejam essencialmente comunitárias e que a objetividade das regras passem necessariamente por tal espécie de comunitarismo, eu tenderia a discordar, uma vez que parece perfeitamente plausível imaginar que alguém, dadas as condições iniciais de aprender que existem regras, existem jogos, existem práticas, possa criar práticas e seguir regras, e, mais do que isso, que a prática de um tal indivíduo possa suprir um padrão genuíno de correção. Podemos tranquilamente imaginar uma situação na qual um sujeito isolado possa desenvolver práticas e jogos nunca antes praticados e jogados e repetir com regularidade essas práticas e jogos. Ora, o próprio Wittgenstein escreve: “Poder-se-ia imaginar seres humanos que falassem somente em monólogo, que acompanhassem as suas atividades falando para si mesmos.” (Wittgenstein, 2001, § 243). Não parece difícil perceber que, em algumas práticas humanas, indivíduos criem suas próprias regras para segui-las.
É perfeitamente plausível, por exemplo, imaginar uma pessoa que queira desenvolver um modo de vida tal que ninguém segue, apenas ele, por ele achar correto seguir. Ao desenvolver esse modo de vida, ele pode criar regras e segui-las. Ele pode, por exemplo, desenvolver certas práticas para manter seu corpo saudável e praticá-las repetidamente, corrigindo-se, quando não as pratica corretamente. Não me parece, por exemplo, que um padrão de correção para uma aplicação individual da regra necessita ser construído a partir de aplicações feitas necessariamente por outros indivíduos. Não me parece que a correção da norma necessite ser sempre uma correção social. Com isso, porém, não quero dizer que as regras do indivíduo sejam regras privadas, já que um expectador de sua vida pode descrever as regras de sua vida (é preciso aqui não confundir seguir regras, individualmente, com seguir regras, privadamente).
Para finalizar, gostaria de comentar outro ponto que me pareceu realmente interessante: a defesa de um pluralismo lógico, análogo a jogos. Concordo com o autor que nenhuma ideia tradicional de racionalidade unificada ou universal pode dar conta de explicar o pluralismo lógico. Uma ideia de sistemas lógicos análogos a jogos, por outro lado, parece ser mais capaz de dar conta desse pluralismo, ao focar no fato de que diferentes sistemas de práticas humanas desenvolvem diferentes padrões e regramentos de suas práticas intrinsecamente à suas próprias práticas. As lógicas, nesse sentido, não seriam uma criação exterior, mas fruto da própria ação humana e servindo à própria ação humana. A objetividade delas derivaria justamente de elas serem sistemas de referência de ações internas à prática.
Mas algo que me chamou atenção aqui foi, novamente, uma espécie de ideia de que a regra é definidora do jogo. O autor afirma que, quando acrescentamos ou removemos alguma regra, um novo jogo surge. Acho essa ideia bastante restritiva, principalmente se pensarmos na analogia de jogos de linguagem de Wittgenstein. Como eu já frisei, Wittgenstein acreditava que regras são constitutivas de jogos, mas jogos não se reduzem ao conjunto de regras que os compõem. Ao assinalar que o acréscimo ou remoção de uma regra cria um novo jogo, o autor está se comprometendo com uma ideia estranha de que as regras são a essência do jogo. Ele estaria se comprometendo a aceitar que toda vez que se muda alguma regra no futebol, por exemplo, o futebol se transforma em outro jogo que não futebol.
Com isso, não estou dizendo que nossas práticas não precisam de certa estabilidade, que existem certas regras que são básicas a uma determinada prática e que questioná-las implica uma paralisação ou mudança completa de um jogo, uma conversão, como bem coloca o autor. Porém, como já ressaltei acima, é preciso ter claro também que as regras não são a única coisa que constitui uma prática e não é qualquer mudança de regra que muda um jogo como um todo.
Referências
Silva, m. Contra o dogmatismo realista: notas sobre acordos e jogos. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 248 –270, 2021.
WITTGENSTEIN, L. On Certainty (German/English Edition). Trad. G. E. M. Anscombe and Denis Paul. New York: Harper & Row, 1972.
WITTGENSTEIN, L. Philosophical Investigations. Oxford: Blackwell, 2001.
Recebido: 17/01/2021
Aceito: 23/01/2021
[1] Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), Guarapuava, PR – Brasil, e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Toledo, PR – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8977-8841. E-mail: marciano.spica@gmail.com.
[2] Indo um pouco além dos objetivos do texto de Silva, entendo que Wittgenstein não se comprometeria nem mesmo com uma espécie de idealismo de regras, ou seja, com regras que idealmente deveriam reger as práticas discursivas. Nessa perspectiva, por exemplo, suas ideias sobre práticas, regras e linguagem se afastariam de teses como a de Habermas (2004), mas não há espaço para desenvolver isso aqui.