COMENTÁRIO A “Propedêutica do Conceito de Democracia

 

Leonardo Monteiro Crespo de Almeida[1]

 

Referência do artigo comentado: Miranda, l. u. Propedêutica do conceito de democracia. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 182 –211, 2021.

 

O artigo “Propedêutica do Conceito de Democracia”, de autoria de Luís Uribe Miranda, explora muito bem algumas das preocupações de Gilles Deleuze e Félix Guattari, que integram a sua derradeira obra coletiva, O Que é a Filosofia?: a desterritorialização dos conceitos, sim, mas também o seu enraizamento em um plano que será sempre concreto e envolvido por diferentes relações materiais. É um trabalho que, antes de mais nada, interroga a potência do conceito (DELEUZE; GUATTARI, 1991).

É estratégico que o autor tenha optado pelo livro de Roberto Esposito, Pensamento Vivo, uma vez que ali o autor não apenas estabelece a sua compreensão da formação e da atualidade da filosofia italiana, como também expõe a sua autocompreensão enquanto personalidade que participa e contribui para essa tradição. Nesse processo, Esposito recorre explicitamente às indagações de Deleuze e Guattari acerca da territorialização e desterritorialização, já apresentadas em Mil Platôs (DELEUZE; GUATTARI, 2012a; DELEUZE; GUATTARI, 2012b). Trata-se de um conceito central, não apenas para a maneira como Esposito aborda a emergência de uma filosofia italiana que dialoga com outras tradições, mas que também, no decorrer desse diálogo, reformula conceitos, redefine abordagens e traz à tona indagações que emergem de aspectos específicos da vivência italiana, aquela mesma que sustenta a herança de Maquiavel.

Neste ponto, é importante uma cautela adicional, porque tanto o par territorialização/desterritorialização quanto a expressão vivência italiana podem remeter a uma compreensão de terra estabelecida em termos de fixação, como Miranda (2021, p. XX) observou: “[...] a fixação remete diretamente ao fortalecimento de fronteiras e ao estático.” Esse não é o caminho adotado por Deleuze/Guattari, na composição das linhas desses conceitos: é o movimento, a migração e os seus sucessivos deslocamentos que são subjacentes a esse ponto, como observa Esposito (ESPOSITO, 2014, p. 18).

Se a filosofia é atravessada, desde os seus primórdios, por fluxos de migração, de transposição e reinserção em outras circunstâncias, isso também se estende aos seus conceitos. É nesse ponto de cruzamento entre a filosofia e os seus conceitos que o autor estabelece o fio condutor de sua proposta, tendo como recorte a democracia:

O conceito de democracia, submetido à reflexão filosófica, tem um destino similar ao da filosofia. A desterritorialização da democracia, tanto na sua versão grega clássica, quanto na moderna e contemporânea, aparece evidente após o fenômeno da globalização, que coincide com o processo no qual a comunidade acontece como um nada em comum, como uma relação caracterizada pela falta de um lugar comum. (MIRANDA, 2021, p. XX).

 

Se a democracia hoje se impõe como um conceito amplamente disseminado e sobre o qual se forma um consenso difícil de confrontar, afinal de contas, o antidemocrático teoricamente é apresentado como patológico, nos diferentes debates contemporâneos, o significado da democracia e as suas potencialidades estão, sim, abertas à investigação. Ao estabelecer uma tipologia dos significados históricos do conceito de democracia, o autor examina o potencial totalitário subjacente à democracia, o que é abordado em meio à contraposição entre as perspectivas de Ernest Cassirer e de Roberto Esposito (MIRANDA, 2021, p. XX). Se o primeiro associa esse potencial a uma assimilação do democrático ao técnico, potencialmente culminando em uma tecnocracia, o segundo vislumbra esse potencial no valor absoluto atribuído ao próprio conceito.

Em minha leitura, essa sucinta contraposição com Cassirer serve a dois propósitos dentro da estrutura geral da pesquisa: o primeiro, mais evidente, é o do desenvolvimento da reflexão de Esposito em torno da democracia liberal, já apontado no início do trabalho; o segundo ponto, implícito, é introduzir mais uma etapa da reflexão sobre esse conceito, a partir da própria filosofia italiana, ou seja, a desterritorialização do conceito em meio a uma trajetória marcada pelo diálogo entre gerações.

Penso que uma outra possibilidade para o percurso apresentado, a qual remete à especificidade da filosofia italiana, ao mesmo tempo que a coloca em contato com uma outra tradição, a francesa, seria a de explorar mais essa ausência de substancialidade referente à comunidade (ESPOSITO, 2013, p. 83ss). O Nada em comum apontado por Esposito representa aqui também um desdobramento de um diálogo entre autores, que se forma precisamente em contraposição a duas tradições, pelo menos: uma compreensão organicista de comunidade, a Gemeinschaft, e uma outra que será presente em diferentes autores comunitaristas. Em ambas, a totalidade da comunidade é estabelecida em termos de essência e substância (ESPOSITO, 2013, p. 83ss). Os trabalhos de Blanchot (1984), Nancy (2014), Agamben (AGAMBEN, 2001) e, posteriormente, Esposito (2006), instauram uma ruptura com essa abordagem (ESPOSITO, 2013, p. 83).

Uma vez que o autor realizou uma incursão pela filosofia política de Norberto Bobbio, especificamente em sua reflexão crítica acerca da distinção entre ideais democrático e democracia real, culminando, como bem observa o autor, em uma inserção da democracia, no âmbito da teologia, eu acredito que seria oportuno para eventuais pesquisas futuras sobre esse mesmo tema explorar igualmente o lugar da normatividade jurídica, não apenas em Bobbio, mas também na própria perspectiva de Esposito sobre a ausência de essência da democracia e o vazio da comunidade.

Em parte, esse aspecto é abordado no diálogo com Cassirer, mas aqui a preocupação tende a ser uma passagem de uma racionalidade ancorada nos procedimentos para uma compreensão da democracia como valor, o que não é exatamente o ponto que pretendo salientar. O que procuro enfatizar, por normatividade jurídica, no tocante ao democrático, certamente é revestido por um certo procedimentalismo, como pode ser encontrado na obra de Bobbio e no conceito de democracia formal, mas na maneira como a defesa do Estado de Direito (Rule of Law), por meio de uma ênfase na força normativa da Constituição e dos direitos fundamentais, tende a ignorar os riscos e tensões que Esposito realça tanto, em sua incursão pela democracia (BOBBIO, 2009).

Parece-me que uma contemplação desse ponto é realizada pelo autor, quando ele destaca a abertura do democrático em meio ao nada da sua fundamentação. A passagem vale a pena ser citada diretamente:

A Democracia imunitária, como consequência do nada em comum da comunidade e seu tornar-se imunidade, paradoxalmente, poderia ser a chance para a democracia, para sua proteção no entrelaçamento do próprio com o impróprio. A quebra do caráter ontológico da comunidade, abre novas perspectivas para pensar o futuro da democracia como sendo uma ausência. (MIRANDA, 2021, p. XX).

 

Pensá-la como ausência é o contrário de uma compreensão normativa da democracia, a qual entende que o seu potencial disruptivo e incalculável pode ser circunscrito por determinações normativas, como as que se encontram nas Constituições. É a existência dessa abertura que introduz também o risco do político e da desagregação da comunidade: almejar circunscrever essa abertura, através de desenhos institucionais e normas jurídicas, em meu entendimento, implica estabelecer a democracia e a comunidade em termos de presença.

Acredito que possa ser importante explorar ainda de que maneira a reflexão desenvolvida por Esposito acerca do fundamento ausente da comunidade venha a impactar a subjetividade política nas democracias liberais. O ponto é que, como firmado em Communitas e Immunitas, o pertencimento a uma comunidade política por parte dos indivíduos não ocorre em função de uma integração social que lhes atribua direitos e deveres, por meio de uma personalidade jurídica, remetendo-os ao domínio do próprio, mas por um movimento que transcende os limites dessa personalidade rumo a uma dívida, um munus, diante do outro (ESPOSITO, 2013, p. 84).

Neste ponto de discussão, a indagação que proponho é a seguinte: a abertura que envolve a democracia, reiteremos, pensada aqui em termos de ausência, não traria consigo também novas possibilidades de expropriação da personalidade dos indivíduos ou, em direção inversa, formas de personalidade que ultrapassem, modulem e se sobreponham às leis e aos mecanismos democráticos de controle do poder político estabelecido? Entendo que são questões que marcam e emergem, a partir da própria desterritorialização persistente do conceito de democracia e das suas sucessivas apropriações.

 

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. La comunità che viene. Torino: Bollati Boringhieri, 2001.

BLANCHOT, Maurice. La Communauté Inavouable. Paris: Editions de Minuit, 1984.

BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia: Uma defesa das regras do jogo. São Paulo: Paz & Terra, 2009.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Qu'est-ce que la philosophie? Paris: Éditions de Minuit, 1991.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, v. 3. São Paulo: Martins Fontes, 2012a.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, v. 4. São Paulo: Martins Fontes, 2012b.

ESPOSITO, Roberto. Communitas. Origine e destino della comunità. Torino: Einaudi, 2006.

ESPOSITO, Roberto. Community, Immunity, Biopolitics. Angelaki: Journal of The Theoretical Humanities, v. 8, n. 3, p. 83-90, 2013.

ESPOSITO, Roberto. Pensiero vivente. Origine e attualità della filosofia italiana. Turim: Einaudi, 2014 (Versão E-Book).

Miranda, l. u. Propedêutica do conceito de democracia. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 182 –211, 2021.

NANCY, Jean-Luc. La Communauté désavouée. Paris: Editions Galilée, 2014.

 

Recebido: 28/11/2020

Aceito: 04/12/2020



[1] Professor da Graduação de Direito e do Programa de Pós-Graduação na Faculdade Damas da Instrução Cristã (FADIC), Recife, PE – Brasil. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-5742-3344. E-mail: leonardoalmeida326@gmail.com.