Comentário a “PROPEDÊUTICA DO CONCEITO DE DEMOCRACIA”: Immunitas: a pele, a nova fronteira

 

Fernando Gigante Ferraz[1]

 

Referência do artigo comentado: Miranda, l. u. Propedêutica do conceito de democracia. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 182 –211, 2021.

 

Em seu artigo “Propedêutica do conceito de democracia”, Luis Miranda (2021) realiza uma análise ao mesmo tempo genérica e específica do conceito de democracia. A parte mais específica do texto, onde o autor se dedica a estudar o pensamento de Roberto Esposito referente ao conceito de democracia, é um convite para tentar abordar um pouco mais detidamente a relação antinômica entre comunidade e imunidade, estabelecida por Esposito, e ver até que ponto ela pode nos auxiliar a entender nosso atual momento pandêmico.

Quando se tematiza a vida e sua relação com a ciência e a política, um nome inevitável a ser evocado é o de Michel Foucault. Talvez o que de mais importante ele nos ensinou é que o corpo vivo é o objeto central de toda política. Il n’y a pas de politique qui ne soit pas une politique des corps (não existe uma política que não seja uma política dos corpos). Todo o trabalho de Foucault poderia ser lido como uma análise histórica das diferentes técnicas pelas quais o poder faz a gestão da vida das populações e traça o corte entre o que deve viver e o que deve morrer.[2] Foucault cunhou um termo para expressar tal relação: biopolítica.

É nesse horizonte de pensamento que se deve entender parte do trabalho de Esposito, pelo menos aquela que vai de Communitas, de 1998, a Termini dela politica, de 2008. Como se sabe, durante essa década, o filósofo italiano trabalhou intensamente sobre o conceito de comunidade e a noção “epidemiológica” de imunidade. Como bem nos lembrou Miranda, em sua leitura de Esposito, na etimologia de ambas as categorias, na sua formulação latina de immunitas e communitas, vê-se que uma é o reverso da outra e ambas derivam do termo munus, o qual, em latim, significa obrigação, lei, dever, mas também dom, oferenda.

A esse respeito, escreve Esposito (2006): “O numus que a communitas codivide não é uma propriedade ou um pertencimento. Não é um crédito, mas, ao contrário, um débito, um empenho um dom-a-dar.”[3] A falta, o impróprio e não o próprio é o que caracteriza o comum. Comum é somente a falta, não a posse, a propriedade, a apropriação. Assim, os membros da comunidade, que é cum (com) munus, se caracterizam pela “obrigação donativa”, pela falta, pela impropriedade. Por outro lado, a imunidade, que é um vocábulo privativo, implica, ao contrário, a isenção, a derrogação de tal condição. “[...] è imune chi è al riparo dagli obblighi o dai pericoli” (é imune quem está ao abrigo das obrigações ou dos perigos). (ESPOSITO, 2012, p. 80).

Indo um pouco além do escopo do texto de Miranda, pode-se afirmar que Esposito (2002) defende duas teses, em seu livro Immunitas. A primeira seria que o dispositivo imunitário (a exigência de isenção e proteção), o qual originariamente se circunscreve ao âmbito médico e jurídico, se expande no curso do tempo a outras linguagens, acabando por invadir toda a experiência contemporânea, seja no campo teológico, seja no antropológico ou no político. Vimos, nessas últimas décadas, surgir de todos os lados barreiras, muros, fronteiras, linhas de separação diante de algo que ameaça, ou pelo menos parece ameaçar nossas identidades biológica, social, cultural, ambiental. Conforme nos recorda Esposito, evocando Elias Canetti, quando esse último indicava na origem da modernidade um curto-circuito perverso entre tato, contato e contágio: “O contato, a relação, o estar em comum, parece imediatamente esmagado sob o risco da contaminação.” (Esposito, 2017, p. 141). Guardemos essa ideia, ela será útil.

A segunda tese de Esposito pode ser enunciada assim: a imunidade, necessária para proteger a vida, quando levada para além de certos limites, termina por negar a própria vida. Daí o subtítulo da obra Immunitas: “proteção e negação da vida”. A conjunção “e” sugere somatória, simultaneidade: a imunização que protege a vida é a mesma que a nega (Esposito, 2012).

Uma leitura possível de um dos marcos teóricos inauguradores do político na modernidade, o Leviatã de Thomas Hobbes, nos levaria a uma radicalização dessa segunda tese. Fica implícito, no texto hobbesiano, que a própria possibilidade de associação, ou seja, a constituição do estado e da lei, só é possível com a eliminação do contato. A associação implica a dissociação de um a cada um em favor de uma associação única com o soberano. Com efeito, se a relação entre os homens é di per se destrutiva, mortal, a única forma de sair desse estado de coisas insustentável é a destruição da relação, ela mesma.

Afirma Esposito (2006, p. 11-12): “Se a única comunidade humanamente experimentável é aquela do delito, não resta que o delito da comunidade: a drástica eliminação de todo tipo de ligação social.” Só é possível a construção do Estado (da associação) com a exclusão do conflito recíproco. “Mas – é o ponto decisivo – tal forma [do Estado] é aquela da absoluta dissociação: só dissociando-se, os indivíduos podem fugir de um contato mortal.” (Esposito, 2006, p. 12). Vínculo de “não relação”. “O Estado é a des-socialização do vínculo comunitário”, sentencia o italiano (Esposito, 2006, p. 13).

Voltei a essa leitura que Esposito faz de Hobbes, para lembrar que para este último e, por decorrência, para toda uma linhagem do pensamento político, a construção do Estado, da sociedade, das leis, enfim, só é possível com a eliminação do contato/contágio recíproco. A intenção não é fazer um paralelo direto, mas lembrar o fato de que, diante de uma pandemia, a única forma de manutenção do social, dizem os epidemiologistas, os peritos da imunização, é o “distanciamento social”, é a eliminação de todo contato, de todo o contágio, visto que pode ser letal.

Se Foucault nos ensinou que não há política que não seja dos corpos, ou seja, biopolítica, Esposito nos ensina que toda biopolítica é imunitária. A política, na modernidade, nasce biopolítica e imunitária.

Nas duas primeiras décadas do século XXI, principalmente a partir da grande crise econômica de 2008, com seus reflexos chegando à atualidade, vê-se um movimento de refluxo das ideias de liberdade de circulação característica do liberalismo e da globalização. Passamos a conviver com diversos matizes de reafirmação do Estado-nação, nos seus termos identitários: minha língua, minha terra, minha nação, meu povo. Um retorno à ideia de fronteira física como condição da reafirmação da identidade nacional e da soberania política. O Brexit e a eleição de Donald Trump, em 2016, foram o coroamento desse movimento, seguido, como caricatura, pela eleição de Jair Bolsonaro, no Brasil, com suas terríveis consequências, análise que infelizmente não cabe no espaço deste texto. Após décadas de liberalismo, voltamos a ver não só a vigilância das fronteiras, mas o bloqueio, o impedimento da circulação de coisas e homens ao redor do mundo.

O que vemos, neste momento, em função da pandemia do Covid-19, é o deslocamento das políticas de fronteiras que vinham ocorrendo no território (que não foram eliminadas, ao contrário) para o nível/escala de cada corpo individual. O corpo do indivíduo tornou-se o novo território a ser protegido, fechado, imunizado contra o vírus. A pele, a epiderme, a máscara tornou-se a nova fronteira. O ar que você respira não poderá ser compartilhado. Vossa casa é o vosso mundo; vossa pele, vossa fronteira. Se toda política é biopolítica e toda biopolítica é imunitária, se todo vínculo possível é “não relação”, a lógica hobbesiana se materializou? Vivemos a abolição de toda relação social estranha à troca vertical proteção-obediência/submissão? O vírus concretizou o inevitável: viveremos na e da renúncia em conviver? Viveremos na e da renúncia de todo contato de todo contágio? O contato, a relação, o estar em comum, será imediatamente esmagado, sob o risco da contaminação? Estamos a um passo da concretização imunitária? A única forma de se relacionar é a não relação? Se a comunidade comporta o delito, é letal, a única forma de sobrevivência individual está no delito da comunidade?

Aqui o que é sacrificado é precisamente o cum que é a relação entre os homens e, por isso mesmo, o que é sacrificado é o próprio homem. Paradoxalmente, os homens são sacrificados, para que possam justamente sobreviver. No entanto, por ora, é o que deve ser feito. Todos nós temos dúvidas de como será o depois, o que gera angústia, ansiedade, medo, mas, em meio à angústia, algo parece certo: jamais voltar a fazer tudo o que fizemos antes.

 

REFERÊNCIAS

ESPOSITO, Roberto. Communitas. Origine e destino della comunità. Torino: Einaudi, 1998 [2006, nova edição ampliada].

ESPOSITO, Roberto. Immunitas: Protezione e negazione dela vita. Torino: Einaudi, 2002.

ESPOSITO, Roberto. L’immunità come soglia. Dialogo con Timothy Campbell. In: MATÍAS, Saidel; ARIAS, Gonzalo (org.). Roberto Esposito dall’impolitico all’impersonale: conversazioni filosofiche. Milano: Mimesis, 2012.

ESPOSITO, Roberto. Termos da política. Comunidade, imunidade, biopolitica. Curitiba: Editora da UFPR, 2017.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

Miranda, l. u. Propedêutica do conceito de democracia. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 182 –211, 2021.

Recebido: 23/11/2020

Aceito: 30/11/2020

 



[1] Professor no Instituto de Humanidade, Artes e Ciências e Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA – Brasil. orcid: https://orcid.org/0000-0002-1969-7229. E-mail: fernandogferraz@gmail.com.

[2] Quanto a isso, ver A vontade de Saber (1976) e os Cursos do Collège de France do período, principalmente Em defesa da Sociedade (1975/1976) e Território, Segurança, População (1977/1978).

[3] Todas as traduções, quando necessárias, serão minhas.