Referência do artigo comentado: Passos, F. A dos. O revisionismo e os perigos da mentira deliberada na perspectiva de Hannah Arendt. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 99 –116, 2021.
Faço esse comentário ao artigo de Passos (2021) como um leitor que vem de outros domínios teóricos e que lida, em suas leituras, com outros autores e sistemas de conceitos. Essa diferença de referencial poderia levar a receber o discurso sobre revisionismo e mentira deliberada com surpresa, como quem entra em um lugar pela primeira vez. Entrei em um “lugar de discussão” pela primeira vez, ao ler este artigo. Mas o que há para comentar é que me senti confortável e acolhido, com uma sensação de familiaridade e reconhecimento de similaridades, que esse discurso mantém com minhas leituras e estudos recentes acerca da Sociedade da Informação.
Posso organizar minha sensação de familiaridade e reconhecimento em dois momentos. O comentário que se segue abaixo consistirá em descrever cada um desses momentos e argumentar em favor de um parentesco, de uma correspondência, ao menos de um diálogo significativo, entre conceitos tratados por Passos, em seu artigo, e conceitos que venho procurando compreender e empregar, nas minhas habituais pesquisas e leituras, como pensador da informação. Raciocino, portanto, por analogia, e na medida em que essa analogia se sustenta pelo argumento, meu objetivo será atingido.
A ideia de “mundo”, tal como Passos (2021) toma da interpretação de Hannah Arendt, se destaca por causa do seu aspecto discursivo. É um mundo que depende do discurso sobre o mundo, depende do ambiente da comunicação ou, ainda, de condições necessárias para a enunciação de discurso sobre o mundo. Nas palavras de Passos:
O mundo, que na perspectiva arendtiana deve ser compreendido como um artifício humano que reúne e separa a pluralidade de homens – manifesta em seu seio através de palavras e de ações –, só ganha os seus verdadeiros contornos se for um objeto de discurso. (PASSOS, 2021, p. XXX).
O mundo, assim descrito, pode ser aproximado, em analogia, com a ideia de “semantização do ser”, desenvolvida por Luciano Floridi (2002). Semantização do ser é o processo de atribuição de significado a cada uma das entidades componentes do mundo, por meio do discurso e da comunicação humana (MATOS, 2017). É um processo que se manifesta pela produção e consumo de informação, na forma de diversos tipos de mensagens que têm como veículos os mais variados suportes. Floridi afirma:
A semantização do Ser, ou reação do Eu ao não-Eu (para usar termos fichteanos), consiste na herança e posterior elaboração, manutenção, e refinamento de narrativas factuais (identidade pessoal, experiência ordinária, ethos comunitário, valores familiares, teorias científicas, crenças do senso comum, e por aí vai) que são logicamente e contextualmente (e mesmo às vezes, completamente) constrangidas e constantemente desafiadas pelos dados que elas precisam acomodar e explicar. (FLORIDI, 2002, p. 130).
Nos anos recentes, esse processo de semantização do ser foi profundamente afetado pela constituição do ambiente digital, a ponto de Floridi e outros autores virem a falar do crescimento de uma infosfera – o ambiente marcado pelo fluxo crescente de informação e pelas relações sociais, econômicas e políticas que são mediadas pela informação.
Floridi (2011) desenvolve sua Filosofia da Informação em um percurso discursivo no qual assume grande importância o conceito de “veridicalidade” (veridicality) da informação. Em sua definição geral de informação, uma das condições necessárias a ser preenchida é a veridicalidade: a capacidade de certa informação se sustentar como verdade (FLORIDI, 2011). A tese da veridicalidade da informação se aproximaria, por analogia, da exigência de verdade factual para a fundamentação do discurso veraz sobre o mundo.
Ora, no contexto de vida na sociedade tecnológica do século XXI, os fenômenos informacionais estão ganhando importância, e as consequências econômicas, políticas e sociais do fluxo informacional no meio digital se fazem sentir. Um dos exemplos é o fenômeno das “notícias falsas” (fake news): conteúdos criados e disseminados na Web, com o objetivo de apresentar narrativas enviesadas, tendenciosas ou simplesmente falsas sobre algum assunto de importância pública. A disseminação de fake news tem sido feita, como se observa, com intenções políticas e ideológicas muito definidas. Sua autoria cabe a pessoas, grupos e até mesmo a algoritmos de produção automática de conteúdos.
O artigo de Passos (2021), ao discutir o revisionismo como atitude epistêmica e política e a verdade factual como critério, ou padrão de preservação do sentido da experiência social comunicada, dialoga de forma bastante frutífera com uma abordagem informacional, na qual a ideia de veridicalidade da informação se inscreve como critério para distinguir informação de desinformação. Passos (202,1 p. XXX) assinala que, “[...] para que a significação do mundo seja efetivada, é necessário que se troquem experiências sobre ele e se falem sobre essas experiências.” O discurso público é o maior produtor de significado, que tende a ser amplamente aceito como válido, ou verdadeiro. Inocular o discurso público com narrativas revisionistas atribui significado falso ao mundo, dissemina nas pessoas crenças falsas e, em terceiro momento, modifica a conduta dos agentes. Modificar a conduta coletiva é, possivelmente, o objetivo principal da “investida revisionista”. Esse mecanismo precisa ser analisado em termos epistemológicos e políticos, mas também em termos informacionais. Possivelmente se poderia generalizar, sustentando que, tendo como principal recurso o fluxo de informação, toda ação política que envolve notícias e crenças, como seu material, instrumento e método, é uma ação informacional.
O segundo momento de reconhecimento, na leitura do artigo, ocorre pela analogia entre revisionismo e negacionismo. Negacionismo pode ser descrito como a atitude de negação de um fato estabelecido cientificamente, de forma que pessoas não especialistas sejam levadas a discordar da ciência estabelecida. O termo é aplicado a várias vertentes, como “negacionismo climático”, o qual se refere à negação da ação humana sobre o clima e o aquecimento global, “negacionismo do Holocausto”, concernente à negação do extermínio de populações judaicas, durante a Segunda Guerra, e muitos outros. As estratégias retóricas do negacionismo têm sido cada vez mais discutidas e denunciadas por filósofos, cientistas e jornalistas, em anos recentes. Um exemplo é o artigo “FLICC: 5 Techniques of Science Denial” (DUNNING, 2020), que descreve cinco técnicas comumente usadas pelos negacionistas: recurso a falsos especialistas, falácias lógicas, expectativas impossíveis de cumprir, seleção de observações e teorias da conspiração.
Proponho que se considere que o revisionismo é análogo ao negacionismo. Um é abordado com tônica no fenômeno político, o outro, examinado com tônica no fenômeno informacional. Revisionismo e negacionismo, postos em analogia, provocam o reconhecimento de que podem ser interpretados como nuances ou faces diferentes do mesmo processo complexo: utilizar a estrutura tecnológica, na sociedade da informação, para manipular o discurso coletivo sobre o mundo, em favor de certos interesses políticos, econômicos.
Em horizontes teóricos diferentes, esse problema é tratado com distintas denominações. Seja revisionismo, seja negacionismo, seja mentira deliberada, seja propagação de fake-news, seja a banalização da razão, seja o momento da pós-verdade, seja a semantização, seja a produção do mundo no espaço coletivo. O fenômeno é bem concreto, objetivo e real, e cresce em volume, frequência de manifestação e impacto.
Resgatar uma teoria da verdade objetiva que permita a polissemia do discurso público, sem recair no relativismo exagerado e nem no dogmatismo, esse é o desafio epistêmico e político que o fluxo informacional instala. Este modesto comentário, tentando ligar discursos de domínios distintos pelo exercício da analogia, procura situar as interessantes e bem argumentadas ideias de Passos (2021) no contexto da sociedade da informação e suas dinâmicas.
Referências
DUNNING, Brian. FLICC: 5 Techniques of Science Denial. Skeptoid Podcast. Skeptoid Media, 3 set. 2019. Disponível em: https://skeptoid.com/episodes/4691. Acesso em: 13 out. 2020.
FLORIDI, Luciano. What is the Philosophy of Information? In: FLORIDI, Luciano. Metaphilosophy. Blackwell: Oxford, v. 33, n. 1-2, p. 123-145, jan. 2002.
FLORIDI, Luciano. The philosophy of information. Oxford: Oxford University Press, 2011.
MATOS, José Claudio. Intencionalidade e evolução do significado no pensamento de Dennett e Floridi. Guairacá: revista de Filosofia, v. 33, n. 2, 2017. Disponível em: https://revistas.unicentro.br/index.php/guaiaraca/article/view/5237. Acesso em: 02 de set. 2020.
Passos, F. A dos. O revisionismo e os perigos da mentira deliberada na perspectiva de Hannah Arendt. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 99 –116, 2021.
Recebido: 18/11/2020
Aceito: 26/11/2020
[1] Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e Professor do Departamento de Biblioteconomia da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Florianópolis, SC – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7763-4971. E-mail: doutortodd@gmail.com.