Comentário a “O revisionismo e os perigos da mentira deliberada na perspectiva de Hannah Arendt”: Mentiras e Desinformação

 

Bernardo Alonso[1]

 

Referência do artigo comentado: Passos, F. A. dos. O revisionismo e os perigos da mentira deliberada na perspectiva de Hannah Arendt. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 99 –116, 2021.

 

O artigo O Revisionismo e os perigos da mentira deliberada na perspectiva de Hannah Arendt, de Fábio Abreu dos Passos (2021), traz à tona um debate caro à Filosofia, sobre a relação entre linguagem, pensamento e mundo. Em especial, sobre a tensão entre a produção de mentiras deliberadas e a noção de verdade factual.[2] assunto indispensável para a compreensão de como campanhas de desinformação são tão bem-sucedidas na dita era da informação.

Pensadores são perseguidos desde a antiguidade. O apreço à verdade, conhecimento, argumentação, análise, cuidado, testemunho e memória vai de encontro aos interesses dos que lidam com a produção de mentiras deliberadas e tentativas de forjar cenários investidos em disseminação de desinformação, com fins de controle comportamental. A lista de perseguidos é longa. Seguem alguns exemplos de destaque: Sócrates sofreu a consequência jurídica de fazer perguntas político-filosóficas a seus alunos e bebeu a cicuta. Hipátia, filósofa neoplatônica, foi assassinada por uma milícia de cristãos que clamavam purificar a cidade.[3] Alguns dos escritos de Ockham negavam o direito do papado de interferir nos assuntos dos Estados. O filósofo acabou excomungado e terminou seus dias como refugiado. Os escritos de Galileu sobre heliocentrismo foram submetidos à Inquisição Romana e o filósofo terminou os seus dias recluso. Giordano Bruno foi queimado na fogueira, por difundir visões cosmológicas, caso considerado um marco na história do pensamento livre e das ciências emergentes (GATTI, 2002). Spinoza, aos 23 anos, foi posto em herem, maior censura eclesiástica na comunidade judaica, por suas ideias controversas sobre a autenticidade da bíblia hebraica e suas visões panteístas do divino (NADLER, 2001). Bertrand Russell foi preso por ministrar palestras antiguerra, no início do século XX. Quando Hitler chegou ao poder, em janeiro de 1933, Einstein estava nos Estados Unidos e foi quase imediatamente privado de seus cargos em Berlim e de ser membro da Academia Prussiana de Ciências. Sua propriedade foi confiscada e seus livros queimados em público.

Segundo dos Passos (2021), a mentira deliberada altera o que se diz sobre o mundo e, consequentemente, o que será lembrado sobre esse mesmo mundo. Nas próximas linhas, argumento brevemente que, na era pós onze de setembro, a gênese e a consolidação do capitalismo de vigilância (ZUBOFF, 2019) e colonialismo de dados (COULDRY; MEJIAS, 2019) não apenas ampliou o alcance de mentiras deliberadas, e, portanto, o escopo do que pode ser alterado sobre o mundo por campanhas de desinformação, como também ampliou sua eficácia sobre resultados futuros. Para tanto, faz-se necessário falar sobre assimetria informacional e reforço de crenças falsas.

O novo colonialismo não acontece por si só, mas é impulsionado pelos imperativos do capitalismo. E o capitalismo de vigilância tem como moeda central os dados de usuários da internet. O capitalismo de vigilância reivindica a experiência humana como matéria-prima gratuita para tradução em dados comportamentais. Esses dados alimentam complexos mecanismos de inteligência artificial[4] e são convertidos em produtos de previsão que antecipam comportamentos (ZUBOFF, 2019, p. 8). Quanto mais se conhece o alvo, maior a probabilidade de se conduzir uma campanha vencedora. Tanto o capitalismo de vigilância quanto o colonialismo de dados se valem do (1) fenômeno da assimetria informacional entre agentes (ALONSO, 2020, JACKSON; MORELLI 2011) e de (2) evidências científicas as quais mostram que pessoas tendem a buscar e processar informações de maneiras tendenciosas, que estão de acordo com suas crenças anteriores (PALUCK, 2010, 2012).

O fenômeno da assimetria informacional é fácil de compreender, porém, depende de um aparato robusto para ser vindicado. O fenômeno do reforço de crenças falsas é difícil de ser compreendido, todavia, simples de ser implementado, especialmente quando há o respaldo de autoridades e instituições (PALUCK, 2012).

(1) A assimetria informacional é um conceito desenvolvido em economia, o qual se estende a comportamentos não econômicos, como a teoria das Relações Internacionais. Grosso modo, trata do estudo de decisões em transações em que uma parte possui mais ou melhores informações do que a outra. Um exemplo descomplicado é a assimetria entre o que os líderes nacionais sabem em um determinado momento t, sobre um território em disputa l, dada a discrepância de recursos entre as duas nações, antes de entrar em guerra. Aquele que dispõe de mais informações e é capaz de processá-las de modo adequado tem mais chances de sucesso. Certos cenários, como a pandemia de Covid-19, são perfeitos para expandir a vigilância por meio de aplicativos de rastreamento, uma vez que governos, agências internacionais e empresas de tecnologia anunciaram medidas para ajudar a conter a disseminação do Coronavírus, facilitando níveis sem precedentes de exploração de dados em todo o mundo.

(2) Em governos populistas, a mentira mina a verdade como norma social. Esta é a forma mais nefasta de campanhas de desinformação, nas quais a saúde deixa de ter importância. As pessoas tendem a buscar e processar informações de maneiras tendenciosas, que se conformam com suas crenças anteriores (PALUCK, 2010). Em meio ao conformismo alimentado por figuras de autoridade que emulam palavras de ordem e à medida que vínculos tribais prevalecem, as emoções triunfam sobre as evidências e o desacordo resultante impede a ação em questões sociais graves.

Por fim, é importante salientar que, em nenhum lugar, a perda de perspectiva do mentiroso é mais prejudicial à vida pública, às possibilidades humanas e à saúde do coletivo do que na política, onde complexas forças sociais, culturais, econômicas e psicológicas conspiram para tornar o ataque à verdade traumático em larga escala.

 

REFERÊNCIAS

ALONSO, B. Zero-Order privacy violations and automated decisions about individuals. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, [S. l.], v. 8, n. 3, p. 69-80, 2020.

ARENDT, H. Truth and Politics. In: Medina, j.; Wood, D. (ed.). Truth: Engagements Across Philosophical Traditions. Malden, MA: Blackwell, 2005. p. 295-314.

COULDRY, N.; MEJIAS, U. The Costs of Connection: How Data Is Colonizing Human Life and Appropriating It for Capitalism. Stanford: Stanford University Press, 2019.

GATTI, H. Giordano Bruno and Renaissance Science: Broken Lives and Organizational Power. Ithaca, NY: Cornell University Press, 2002.

NADLER, S. M. Spinoza: A Life. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.

NOVAK JUNIOR, R. M. Christianity and the Roman Empire: Background Texts. Harrisburg, PA: Bloomsbury, 2010.

PALUCK, E. Is It Better Not to Talk? Group Polarization, Extended Contact, and Perspective Taking in Eastern Democratic Republic of Congo. Personality and Social Psychology Bulletin, v. 36, n. 9, p. 1170-1185, 2010.

PALUCK, E. et al, Changing climates of conflict: A social network experiment in 56 schools. Proceedings of the National Academy of Sciences, v. 113, n. 3, p. 566-571, jan. 2016.

Passos, F. A dos. O revisionismo e os perigos da mentira deliberada na perspectiva de Hannah Arendt. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 99 –116, 2021.

ZUBOFF. The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power. New York: Public Affairs, 2019.

 

Recebido: 28/11/2020

Aceito: 10/12/2020


 

 



[1] Docente na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), Cuiabá, MT – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3595-4907 .E-mail: berr.alonso@gmail.com.

[2] Distingue-se “verdade factual” de “fato”. O último está além do acordo e consentimento, e tudo o que for dito sobre ele não muda o estado de coisas. Verdade factual depende de testemunhas e depoimento. “The modern age, which believes that truth is neither given to nor disclosed to but produced by the human mind, has assigned, since Leibniz, mathematical, scientific, and philosophical truths to the common species of rational truth as distinguished from factual truth.” (ARENDT, 2005, p. 296).

[3] Parece que ela foi vítima do embate político que prevalecia na época. Como Hipátia, mulher na escola de Platão e Plotino, com grandes realizações em literatura e ciência e que não se intimidava em comparecer a uma assembleia de homens, tinha entrevistas frequentes com Orestes, calúnias foram disseminadas entre a população cristã e seguidores de Cirilo, de que foi ela que teria impedido Orestes de se reconciliar com o bispo da Igreja Alexandrina (NOVAK, 2010).

[4] Há uma imensa confusão sobre o que significam os termos “Artificial Intelligence” (AI), “Machine Learning” (ML) e “Deep Learning” (DL). Grosso modo, AI é uma técnica que permite que as máquinas imitem o comportamento humano, um sistema que parece inteligente. ML é um subconjunto da AI que usa algoritmos e métodos estatísticos para melhorar, ao longo do tempo, à medida que ganha experiência. E DL é um subconjunto da ML e que é essencialmente uma rede neural na qual o aprendizado elimina parte do pré-processamento de dados que normalmente está envolvido na ML. Esses algoritmos podem ingerir e processar dados não estruturados, como texto e imagens, e automatizar a extração de recursos, removendo parte da dependência de especialistas humanos.