Comentário a “Ciência e ética em Popper: a ética da responsabilidade dos cientistas

 

Marco Antonio Barroso[1]

 

Referência do artigo comentado: Dias, E. A. Ciência e ética em Popper: a ética da responsabilidade dos cientistas. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 68 –86, 2021.

 

Historicamente, o filósofo Karl R. Popper destacou-se como epistemólogo e filósofo político, no século XX. Entre suas principais contribuições estão, para a epistemologia, a teoria do falseacionismo, a qual afirma que uma teoria nunca pode ser provada, mas pode ser falseada, o que significa dizer que pode e deve ser examinada por experimentos. Para a teoria política, contribuiu com o conceito de sociedade aberta, no qual defende uma sociedade plural fundada nos princípios da democracia liberal. Ressalta-se, também, no pensamento popperiano, a ideia da crítica como ferramenta fundamental para o progresso científico e social. Como assinala o próprio pensador, em sua autobiografia, tanto A miséria do historicismo quanto A sociedade aberta surgem da teoria do conhecimento formulada na Lógica da pesquisa científica. Ou seja, tanto a teoria política quanto a teoria histórica popperiana surgem da convicção de que são as respostas dadas às questões “O que podemos saber?” e “Até que ponto é certo nosso conhecimento?” que orientam as atitudes humanas (Popper, 1976, 123).

Destarte, o pensador austro-inglês defende que em ambas, ciências naturais e históricas, toda explicação começa por um mito, que é criticado e revisto – gerando o processo de eliminação crítica dos erros. Surgem assim novos problemas, os quais vão gerar novas conjecturas, isto é, novas teorias provisórias. Para explicação formal de sua ideia, o autor formulou o seguinte esquema simplificado:

 

P1→TT→CD→P2

 

em que P1 é o problema inicial, TT é a teoria provisória, CD é a discussão crítica que trará novos problemas, ou P2.  

Mas, em oportuno momento, a professora Elizabeth de Assis Dias nos propõe a reflexão sobre a relação entre ciência e ética, em uma leitura popperiana. Com a reflexão trazida em seu texto, a pesquisadora expande o campo dos estudos acerca da obra do filósofo austro-inglês, Karl R. Popper, em língua portuguesa, analisando as implicações entre ética e ciência, enfatizando a ética da responsabilidade, que estaria na base da teoria popperiana da ciência.

Nosso comentário é, pois, um chamado de atenção para o recorte utilizado por Dias (2021), uma vez que entendemos não ser tão usual a leitura da teoria popperiana pelo viés da ética. Participando do movimento de expansão do campo de interpretação epistemológico, desenvolvido por Karl R. Popper, a autora acompanha Kiesewetter (1997) e Artigas (2001), os quais apontam que seu criticismo e o falseacionismo, derivado daquele, teriam raízes éticas. Para esses intérpretes do criticismo popperiano, a concepção de ciência é sustentada por uma ética da responsabilidade, no sentido weberiano, “[...] que pressupõe a autonomia dos cientistas, sua liberdade de escolha, o que os torna responsáveis por suas decisões por determinados ‘padrões’ de pesquisa.”

Essa ética seria, conforme defende Dias, uma renovação do juramento hipocrático à ciência. Dias destaca ainda a reinterpretação da herança kantiana dessa proposição ética, feita por Popper, como o imperativo categórico que orienta o fazer científico. É possível entender a admiração e a influência da ética kantiana em Popper, por meio de seu texto “Immanuel Kant: o filósofo do Esclarecimento (Um discurso por ocasião dos 150 anos da morte de Kant)” (POPPER, 2006). Nesse texto, o filósofo iguala a ética kantiana à sua teoria do conhecimento, ao conceituá-la, igualmente, como uma “revolução copernicana”. Segundo assevera o autor, Kant humaniza a ética, como humanizou a cosmologia, ou seja, a ciência – lembremos que, no texto “De volta aos pré-socráticos”, Popper (2014) afirma que toda ciência, em alguma medida, é cosmologia.

A revolução copernicana da ética kantiana estaria contida, para Popper, no âmbito de sua doutrina da autonomia, a qual nos impõe a obrigação de recusar a aceitação cega ao comando de qualquer autoridade; caberia a nós decidir, por nossa própria responsabilidade, a moralidade de uma ordem. Na interpretação do pensador austro-inglês, a ética kantiana supera a mera interpretação de que nossa consciência é nossa única autoridade: ela mostra o que nossa consciência exige, de forma imperativa, para que uma ação seja considerada moral. Ressignificando a fórmula do imperativo categórico, escreve Popper (2006, p. 171): “[...] ouse ser livre, e respeite e proteja a liberdade de todos os outros.” E, um pouco mais à frente, conclui: “Kant mostrou que todo homem é livre: não porque nasceu livre, mas porque nasceu com um fardo – o fardo da responsabilidade pela própria liberdade de sua própria decisão.” (POPPER, 2006, p. 172).

Entretanto, como ressalta Dias, esse kantismo ético ressignificado de Popper não é de fundo deontológico, mas pode ser interpretado como: 1) consequencialista, uma vez que considera uma ação como moralmente boa, por meio de suas consequências; 2) como uma ética da responsabilidade, na medida em que exige e pressupõe a responsabilidade das decisões aos sujeitos. Dias assegura que “[...] tal ética não visa pautar as ações humanas de um modo universal, como pretendia Kant, mas sim, o agir de um gênero em particular, o dos cientistas.”

 

REFERÊNCIAS

ARTIGAS, M. Lógica y Ética en Karl Popper. Navarra/España: EUNSA, 2001.

Dias, E. A. Ciência e ética em Popper: a ética da responsabilidade dos cientistas. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 68–86, 2021.

KIESEWETTER, H. Fundamentos éticos da filosofia de Popper”. In: O’HEAR, A. (org.). Karl Popper: Filosofia e problemas. São Paulo: Editora da UNESP, 1997. p. 325-340.

POPPER, Karl R. Autobiografia intelectual. São Paulo: Cultrix, 1976.

POPPER, Karl R. Em busca de um mundo melhor. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

POPPER, Karl R. O mito do contexto: em defesa da ciência e da racionalidade. Lisboa: Edições 70, 2009.

POPPER, Karl R. O mundo de Parmênides. São Paulo: Editora da Unesp, 2014.

 

Recebido: 18/11/2020

Aceito: 23/11/2020

 


 

 



[1] Professor da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG/Ubá), Ubá, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9484-2369. E-mail: marco.faria@uemg.br.