Comentário a “a linguagem violentada e a mimese humana nas democracias espetaculares: interlocuções com Giorgio Agamben

 

Evandro Pontel[1]

 

Referência do artigo comentado: ruiz, c. m. m. b. a linguagem violentada e a mimese humana nas democracias espetaculares: interlocuções com Giorgio Agamben. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 13 –36, 2021.

 

O artigo de Ruiz (2021) versa sobre a questão da linguagem violentada e a mimese humana nas democracias espetaculares. Situa interlocuções a partir do pensamento de Agamben, analisando as possíveis implicações entre a linguagem e a mimese, seus nexos, desde a polis grega, e como a linguagem passou a ser utilizada, em vista de produzir a pretensa verdade no campo político. A problematização parte de uma posição basilar, inscrita nestes termos: “De que democracia se fala? Em que consiste realmente a democracia?” Assim, posto esse pano de fundo, circunscreve sua proposta: “Atentar aos dispositivos de poder presentes nas sociedades e as formas como se edificam os processos de subjetivação/dessubjetivação dos indivíduos.”

Em primeiro lugar, cumpre destacar a reconstrução elaborada acerca de como os dispositivos de poder se fixaram na polis grega, passando pela Roma antiga, transmutando-se em cada época, desde a clássica, atravessando o medievo, e como influenciaram no exercício de poder, incorporando e sedimentando formas de glorificação, eixos estruturantes da política ocidental, desembocando no paradigma moderno de biopolítica, vigente na atualidade. A aclamação, presente desde a Roma antiga, também possuía um sentido jurídico, além de legitimar determinado governante no poder. Mais tarde, seria incorporada pelo cristianismo, enquanto manifestação litúrgica de glorificação divina, na sustentação de monarquias absolutistas, o que demonstra como tais dispositivos se entrecruzaram, no decorrer dos séculos. Destarte, na contemporaneidade, esses dispositivos assumiram outros contornos, enquanto técnica de glorificação do poder, tendo na opinião pública seu modo de efetivação.

A Alemanha nazista é um caso paradigmático: a propaganda formou mentalidades que aderiram a essa lógica. Didi-Huberman observa: produziu-se a distorção da língua e da cultura alemã – a mentira nas palavras pronunciadas: Ex.: Schutzstaffel – “abreviatura de SS”, que significa “a proteção”, “estar sob proteção”, “salvaguardado” (Schutz) (2004, p. 40), quando o destino era a morte nas câmaras de gás. Klemplerer (2009, p. 55) clarifica o modus operandi desse sistema, que “[...] se embrenhou na carne e no sangue das massas por meio de palavras, expressões e frases impostas pela repetição, milhares de vezes, e aceitas inconsciente e mecanicamente.”[2]

Nesse ínterim, a obra de Debord (1997, p. 14) possibilita desvendar como, nas democracias, os planos político e econômico são delineados pela dinâmica espetacular: “Considerado em sua totalidade, o espetáculo é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente [...]” Se a opinião pública reproduz os dispositivos de aclamação, a indagação que se coloca reside em explicitar as transformações das novas tecnologias digitais e informacionais, no século XXI, que permitem a disseminação de conteúdos. Destarte, se a persuasão e a opinião se formam por meio do uso de estratégias de propaganda e de marketing, na produção de consensos, qual a importância dessas transformações? Como elas afetam a produção do conhecimento e da verdade, em tempos de fake news? Quais os efeitos das fake news no campo da disputa política e na opinião pública?

Em seguida, a reflexão revisita o artigo “Sobre os limites da violência”, retomando a relação entre linguagem, verdade e política, que estavam intimamente associadas na Grécia antiga, visto que a linguagem detinha o poder da persuasão na garantia da verdade, e como, a partir da modernidade passou a moldar a vontade dos sujeitos, por meio do uso da propaganda comercial e do marketing, centrados na imagem de algo. Essa constatação evidencia uma forma de violência perpetrada pela linguagem, independentemente da vontade dos sujeitos, pois são induzidos a aceitarem e atuarem de certa forma, o que anula qualquer possibilidade de resistência, por um lado, e, por outro, a própria política acaba sendo contaminada, o que escamoteia uma real violência sub-repticiamente instituída e operacionalizada nos diversos canais (LOVELUCK, 2018), tecnologias digitais e mídias disponíveis que funcionam sob o prisma espetacular, o qual suplanta a própria realidade, nas democracias atuais, que, na visão de Agamben, mesmo sendo um corpo político, podem ser lidas enquanto técnicas de poder, como tantas outras.

Na sequência, situa-se a compreensão de mimese, que tanto pode ser entendida como “imitação emuladora como enquanto criação imitativa”. Platão se posicionou contrariamente à presença dos poetas, os mestres da mimese, na polis, pois sua atividade era entendida como aquela que se restringe a imitar. Em Adorno e Horkheimer, esta emerge na superação do medo, “[...] que leva os indivíduos a camuflar suas diferenças para serem aceitos através da absorção numa identidade igual, que se transforma numa espécie de identidade total”.

Por fim, aborda-se o nexo entre mimese e propaganda, por meio da linguagem instrumentalizada, o grande mérito da reflexão, feito com propriedade, desde o período da Grécia antiga até a modernidade, sob o viés dos dispositivos de poder. Inicialmente, frisa-se a potencialidade do mimetismo, potência criadora, liberada dos dispositivos que colonizam a vida, utilizando em outra direção a própria positividade contida no espetáculo. Por certo, nessa perspectiva, a noção de uso poderia ir significar um passo além. O uso compreende “[...] o ser em sua forma originária, [...] uso de si.” (AGAMBEN, 2017, p. 78). Quer dizer, em um viés relacional e não substancial, em que o constituir-se a si assinala a forma do próprio viver do ser vivente (PONTEL, 2020). Que noção de racionalidade desencadeia, agencia e permite a sustentação desse estado de coisas vigentes? Que uso se faz desse paradigma de racionalidade?

A indagação primeira direciona-se à matriz racional aristotélica fundada na operatividade, expressa nos dualismos ato/potência, matéria/forma, que a coloca em xeque, enquanto logos ordenador, e seus desdobramentos, tentativa de explicitar o real. Logo, uma crítica da violência biopolítica não teria de partir, justamente, de um exame acurado da própria noção de racionalidade idolátrica, de uma crítica à racionalidade idolátrica como condição para uma teoria da violência (SOUZA, 2020)? Por conseguinte, exsurge como tarefa magna redesenhar uma racionalidade dialógica/dialética, que contemple as tensões e contradições, o ainda não abarcado no conceito, o que permitiria reler os desafios e as questões candentes da contemporaneidade.

Uma tal racionalidade, liberada de dispositivos totalizantes, aberta ao múltiplo, permitiria repensar as bases da partilha do comum, o pertencimento à terra, novas formas-de-vida, em direção ao sair da grande noite (MBEMBE, 2014). Esse é um campo de batalhas em aberto, demarcado por relações de poder e, mesmo em um mundo em fragmentos, recompor tais formas de vida consiste na tarefa teórica e política irrenunciável (CHIGNOLA, 2020). Enfim, por mais escura que possa ser a travessia, permanecem lampejos de esperança, pequenos intervalos nos quais ainda há luzes intermitentes (DIDI-HUBERMAN, 2001), no tempo que resta, no tempo de agora, novas sendas de resistência, em direção a uma política que vem.

 

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O uso dos corpos. São Paulo: Boitempo, 2017.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

CHIGNOLA, Sandro. Foucault além de Focault: uma política da Filosofia. Porto Alegre: Criação Humana, 2020.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Imágenes pese a todo: memoria visual del holocausto. Barcelona: Paidós, 2004.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011.

KLEMPLERER, Victor. LTI. A linguagem do Terceiro Reich. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.

LOVELUCK, Benjamin. Redes, Liberdades e Controle: uma genealogia política da internet. Petrópolis: Vozes, 2018.

MBEMBE, Achille. Sair da Grande Noite. Ensaio sobre a África descolonizada. Luanda: Pedago/Mulemba, 2014.

PONTEL, Evandro. Lógicas de exceção: a condição humana e a política entre a vida (nua) e o (bio)poder no pensamento de Giorgio Agamben. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020.

RUIZ, C. M. M. B. A linguagem violentada e a mimese humana nas democracias espetaculares: interlocuções com Giorgio Agamben. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 13 –36, 2021.

SOUZA, Ricardo Timm de. Crítica da razão idolátrica – tentação de thanatos, necroética e sobrevivência. Porto Alegre: Zouk, 2020.

 

 

Recebido: 28/5/2021

Aceito: 30/5/2021


 

 



[1] Professor colaborador e pós-doutorando em Filosofia e Editor assistente na Revista Veritas, Escola de Humanidades, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS – Brasil. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-9659-4231. E-mail: epontel@hotmail.com.

[2] Sugere-se a leitura da instigante reflexão de Ricardo Timm de Souza, que analisa detalhadamente essa questão: Ver: II – Adoecimento da linguagem: fórmulas da idiotia. In: SOUZA, 2020, p. 33-50.