Apresentação

 

Marcos Antonio Alves[1]

 

Com muita alegria, apresentamos o terceiro número do volume 43 da revista Trans/Form/Ação. Nos últimos dois anos, a revista tem ficado mais encorpada, com uma quantidade de páginas bastante elevada. Tal ampliação momentânea se deve, por um lado, à nossa tentativa de diminuir a fila de manuscritos em processo de avaliação e, por outro lado, à meta almejada de minimizar o período de tempo entre a aprovação da submissão e sua consequente publicação.

Como resultado dessas diretrizes, o tempo médio entre a submissão dos textos e a decisão editorial foi reduzido drasticamente, passando de aproximadamente 13 meses para menos de cento e vinte dias. Entendemos que tal agilidade, na medida do possível, constitui parte das boas práticas do fluxo de trabalho de uma revista acadêmica, principalmente em respeito aos autores dos manuscritos submetidos. Ressaltamos, entretanto, que essa agilidade nem sempre é possível, dada a dificuldade frequentemente apresentada de encontrar pareceristas, de receber os pareceres no tempo solicitado ou mesmo da necessidade do pedido de mais pareceres em situações de igualdade de pareceres favoráveis ou desfavoráveis à aprovação da submissão.

As dificuldades encontradas na agilidade no processo avaliativo refletem, na quase totalidade das vezes, a elevada quantidade de trabalho de nossos parceiros, principalmente no Brasil, e não a indisposição ou falta de avaliadores possíveis nas áreas temáticas em filosofia. Além de pesquisadores, os avaliadores também são docentes, orientadores, gestores, bem como de muitas outras atividades acadêmicas e burocráticas acumuladas. Por isso, somos muito gratos aos nossos parceiros que destinam parte de seu tempo para esse serviço voluntário, mas de grande valia para o desenvolvimento e a socialização de pesquisas em filosofia.

Em outra frente, também encurtamos o tempo entre a aprovação final do artigo e sua publicação. Esse período, porém, não tem como ser muito menor do que sete meses. Apesar de estarmos buscando maximizar elementos referentes à agilidade no serviço, a revista prioriza a qualidade da publicação, seja do conteúdo propriamente dito, seja da apresentação do material publicado. Para não perder a qualidade, tanto na publicação de textos com conteúdo compatível com os objetivos da revista quanto na sua apresentação, os artigos aprovados passam por um processo cuidadoso de correções e revisões gramaticais, normalizações, com a participação dos autores, que dão a aprovação final das modificações. Depois disso, o texto vais para edição, diagramação, conversão XML e, finalmente, para publicação no site da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp e no SciELO, bem como nas outras bases de dados às quais a revista está indexada.

Os serviços posteriores à aprovação do manuscrito são executados por profissionais rigorosamente selecionados, cada um demandando seu próprio tempo para a realização de um cuidadoso e atencioso trabalho. Com a crise financeira que assola o financiamento das revistas científicas no país, a agilidade de alguns serviços também pode ser afetada. Entretanto, nossa meta continua sendo, sem ressalvas, além de manter a qualidade da revista, também preservar e garantir o acesso aberto, assim como continuar sem qualquer cobrança de taxa de bancada ou de publicação.

Com essas práticas, esperamos continuar contribuindo para o desenvolvimento da filosofia e de áreas afins, da socialização do conhecimento, com vistas à inserção social. Em tempos difíceis como o que estamos passando, em momento de pandemia, de crise econômica, dificuldades em diversos setores, buscamos a sobrevivência desta revista, almejando a difusão, democratização e socialização do conhecimento filosófico, por meio da Unesp, uma Instituição de Ensino Superior de reconhecida qualidade e prestígio nacional e internacional.

A ampliação do tamanho dos fascículos também se deve à inovadora seção de comentários, muito bem apreciada pela comunidade acadêmica. Conforme explicita Alves (2020, p. 10), a Trans/Form/Ação “[...] tem como objetivo a socialização do conhecimento, buscando promover o debate e a interlocução de ideias.” Em vista disso, inauguramos, em 2020, uma nova modalidade de textos, a qual consiste em comentários de artigos aprovados, consentidos previamente pelos seus autores. Anexados ao artigo original, eles são produzidos pelos pareceristas do manuscrito submetido. Trata-se de uma crítica construtiva, não mais da qualidade do artigo, uma vez que o processo avaliativo já foi ultrapassado. O comentador pode expor possíveis discordâncias de ideias, comparação de conceitos entre autores, perspectivas ou sistemas filosóficos, diferenças hermenêuticas, metodológicas, epistemológicas. É possível também construir uma ampliação, explicitação ou mesmo a inserção de algum conceito importante para a compreensão da linha argumentativa do artigo comentado, notas explicativas relevantes ou a posição do comentador a respeito da tese exposta.

Este fascículo apresenta 14 artigos, publicados em ordem alfabética dos autores, como viemos fazendo nos últimos tempos, com dezessete comentários. Coincidentemente, contrariando o comum, este fascículo contém apenas textos escritos em português. Em geral, cerca de 40 por cento dos artigos publicados na revista são de autores estrangeiros. São trinta e cinco autores, oriundos de 16 estados brasileiros, representantes de todas as regiões do país, além de um pesquisador vinculado a instituição com sede na Suécia: Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe, Tocantins. Está sendo uma política da revista ampliar a distribuição das regiões geográficas do país e do exterior dos autores que publicam na revista. Embora ainda em número reduzido, é marcante também a presença de autoras, neste fascículo, totalizando 6 publicações.

Alguns artigos possuem três comentadores. A grande quantidade de comentários se deve, por um lado, à aceitação por parte da comunidade a essa modalidade de textos e também da quantidade de avaliadores, sempre no mínimo três, aos quais estamos recorrendo no processo avaliativo dos manuscritos. Além da maior confiabilidade no referido processo, também ampliamos o valor didático das avaliações, bem como o caráter dialógico, próprio da filosofia.

O primeiro artigo exposto foi escrito por Castor M. M. Bartolomé Ruiz, com comentário de Evandro Pontel. O artigo é intitulado “A linguagem violentada e a mimese humana nas democracias espetaculares: interlocuções com Giorgio Agamben”. Conforme o autor, é urgente aprofundarmos as análises críticas da deriva espetacular das atuais democracias. Para contribuir com esse objetivo, ele analisa, inicialmente, alguns aspectos das pesquisas de Agamben a respeito das democracias espetaculares. Em seguida, desenvolve uma análise a respeito da linguagem, que, na origem da política, na Grécia antiga, propunha criar um novo modelo de poder fundamentado no convencimento da verdade e como, posteriormente, essa linguagem se deslizou para técnicas instrumentalizadoras da verdade na política. Feito isso, apresenta os nexos da mimese humana com a deriva espetacular da linguagem, nas democracias contemporâneas.

Em seguida, publicamos “O conceito de natureza na filosofia de Ludwig Feuerbach”, de Eduardo Ferreira Chagas. O autor destaca a tese de que a natureza, para Feuerbach, é um existente autônomo e independente e possui primazia ante o espírito. Para tal pensador, a natureza material, que existe, em sua diferencialidade qualitativa, independente do pensar, é diante do espírito o original, o fundamento não deduzível, imediato, não criado de toda existência real, que existe e consiste por si mesmo. Feuerbach, continua Chagas, opõe a natureza ao espírito. Ele a entende não como um puro outro, que só por meio do espírito foi posto como natureza, mas como o primeiro, a realidade objetiva, material, que existe fora do entendimento e é dada ao homem por meio de seus sentidos, como fundamento e essência de sua vida.

Trata-se, pois, primeiro daquela essência (luz, ar água, fogo, plantas, animais etc.), sem a qual o ser humano não pode nem ser pensado nem existir. A natureza é, para Feuerbach, a pluralidade de todos os objetos e essências que realmente são. Sob essa condição, é possível conceber a natureza como a garantia da exterioridade mesma, como que um existente fora de nós, que nada sabe de si e é em si e por si mesmo; por conseguinte, ela não deve ser vista como aquilo que ela não é, isto é, nem como divina, nem como humana. A natureza sempre existiu, quer dizer, ela existe por si e tem seu sentido apenas em si mesma. Ela é ela mesma, ou seja, nenhuma essência mística, pois, por trás dela, não se esconde nenhum absoluto, nada humano, nada divino, transcendental ou ideal, finaliza Chagas.

“Ciência e ética em Popper: a ética da responsabilidade dos cientistas” é o artigo escrito por Elizabeth de Assis Dias. Esse texto é seguido de três comentários, produzidos por Amélia de Jesus Oliveira, Marco Antonio Barroso e Remi Schorn. Dias analisa as relações entre ciência e ética, em Popper, mais precisamente, a natureza dessa ética que está na base de sua teoria da ciência. A autora busca evidenciar que a concepção popperiana de ciência está alicerçada em uma ética da responsabilidade, a qual pressupõe a autonomia dos cientistas, sua liberdade de escolha, o que os torna responsáveis por suas decisões por determinados “padrões” de pesquisa. Ela busca mostrar que essa ética da responsabilidade já se faz presente em sua lógica da investigação, de forma pouco explícita, quando suas preocupações estão voltadas para o problema da demarcação científica e sua proposta de um critério de cientificidade e de uma metodologia para a ciência. A adoção de tal proposta requer dos cientistas uma decisão que envolve objetivos e valores. Como demonstra a autora em seu artigo, em escritos, nos quais Popper expressa suas preocupações com questões éticas inerentes à ciência, essa ética da responsabilidade se apresenta de forma nítida, ao definir certos compromissos para os cientistas, tendo por base o juramento de Hipócrates, além dos princípios éticos que devem nortear suas pesquisas.

O quarto artigo é “O revisionismo e os perigos da mentira deliberada na perspectiva de Hannah Arendt”, de autoria de Fábio Abreu dos Passos, comentado também por três pesquisadores: Bernardo Alonso, José Claudio Matos e Valéria Cristina Lopes Wilke. A produção de notícias falsas, que, conforme o autor, tem como finalidade a disseminação de informações inverossímeis, constitui componente tradicional no jogo político. Nesse sentido, a tentativa deliberada de construir mentiras sobre assuntos públicos, deturpando a realidade, é levada a cabo por teóricos como Paul Rassinier e Marco Antônio Villa, cujas obras se inscrevem no interior do movimento revisionista.

A proposta de Passos é formular, em termos políticos, o que se denomina revisionismo e relacioná-lo com os perigos da mentira deliberada, na perspectiva de Hannah Arendt. O revisionismo deve ser compreendido como movimento de fomento e disseminação de mentiras deliberadas, o qual tem o propósito de adulterar o mundo, negando, por exemplo, a existência de fatos históricos como Holocausto e Ditadura Civil-Militar Brasileira. O autor busca mostrar que um dos antídotos capazes de mitigar os efeitos da mentira deliberada é a verdade factual, que, por ser construída pelo testemunho plural, tem uma natureza política. Ela assegura que o mundo não seja ameaçado em suas estruturas constitutivas, isto é, que as ações que nele ocorrem não sejam alteradas e as memórias dessas ações não sejam corrompidas.

Em quinto lugar, publicamos “Religião, vida e sociedade: breve estudo a partir de Bergson e Freud”, de Geovana da Paz Monteiro. Geovana indaga em que medida a religiosidade, observada a partir de seu contexto originário, seria um dos meios encontrados pela civilização para abafar impulsos humanos primários tendentes à desagregação social e moral. A despeito dessa tentativa de controle, ela questiona o quanto tais impulsos ditos primitivos prevalecem, em nossa constituição biológica, psíquica e social, de modo a justificarem comportamentos aberrantes tão comuns em nossa época. Ela adota por base as ideias de Henri Bergson, presentes no segundo capítulo d’As duas fontes da moral e da religião, intitulado “A religião estática”, em cotejo aos argumentos de Sigmund Freud, apresentados, sobretudo, em O futuro de uma ilusão e Totem e tabu. Apesar da aproximação com as ciências sociais, a autora diz seguir a hipótese de que o livro de Bergson nutre um diálogo mais fecundo com a teoria freudiana, no que tange à compreensão da religiosidade dita primitiva em oposição, ou não, à civilizada.

Em seguida, publicamos “O externalismo semiótico ativo de C. S. Peirce e a cantoria de viola como signo em ação”, escrito em parceria por Pedro Atã e João Queiroz e comentado também em parceria, algo inédito, por Cesar Fernando Meurer e Nara Miranda de Figueiredo e, em seguida, por Max Rogerio Vicentini. Conforme frisam os autores, o principal propósito de seu trabalho consiste em fornecer uma ontologia semiótica para redescrição do externalismo cognitivo ativo, desenvolvido recentemente pelo paradigma 4E (embodied, embedded, enactive, extended cognition). Na sua abordagem, sistemas cognitivos distribuídos (SCDs) são descritos como semiose, ou signos em ação. Eles exploram a relação entre semiose e cognição, como concebida por C. S. Peirce, em associação com a noção de sistema cognitivo distribuído (SCD). Introduzem a abordagem externalista peirciana, com ênfase na noção de distribuição temporal da semiose, e descrevem SCDs e seus elementos como “ação dos signos”.

Para desenvolver esse argumento, examinam um exemplo de SCD – improvisação verbo-musical do repente, repentismo, ou cantoria de viola. Trata-se de um fenômeno de improvisação verbo-musical, o qual tem a forma de um desafio em poesia oral versificada. Os autores descrevem esse fenômeno como a incorporação da estrutura formal de uma tarefa cognitiva e de um processo inferencial. Essa incorporação corresponde a uma semiotização das performances do repente como SCDs. A tendência temporalmente distribuída do repente organiza o SCD como um sistema que realiza experimentos metassemióticos sobre a ação dos signos.

Em sétimo lugar, aparece o artigo “Propedêutica do conceito de democracia”, publicado por Luis Uribe Miranda, seguido de dois comentários, produzidos por Fernando Gigante Ferraz e por Leonardo Monteiro Crespo de Almeida. O artigo parte da caracterização da filosofia como migração e desterritorialização, tendo como fio condutor o conceito de democracia. Para tal, Miranda realizou uma propedêutica não exaustiva do conceito, evidenciando a plurivocidade semântica adquirida em diferentes momentos da história da filosofia. Após as críticas do conceito de democracia liberal de Norberto Bobbio, abre-se a possibilidade para pensar a democracia, a partir das análises de Roberto Esposito. Contudo, o autor busca mostrar que a tese de Roberto Esposito segundo a qual a comunidade é uma ausência, uma falta, um nada do nada, permite pensar que a democracia, ao menos na primeira fase do pensamento do filósofo italiano, também se caracteriza por essa falta. Ao mesmo tempo, é justamente nela que habita a sua possibilidade de se manifestar como uma democracia por vir.

O oitavo artigo é intitulado “Pressuposto ético da alteridade na hermenêutica filosófica à luz do sofista de Platão”. A autoria é de Luiz Rohden e Leonardo Marques Kussler, seguido de comentário de M. R. Engler. Segundo os autores, a teoria filosófica de Gadamer comporta a proposta da hermenêutica filosófica enquanto um projeto ético. Embora ele não tenha abordado essa relação de forma sistemática, Rohden e Kussler propõem, no artigo, explicitar e aprofundar a noção de alteridade enquanto pressuposto ético fundamental da hermenêutica gadameriana, à luz do Sofista de Platão. Para tanto, na primeira seção, eles abordam a estrutura e as formas de interação do conceito de outro, tal como apresentado por Platão, no Sofista, que trata de aspectos da identidade, da diferença, da coexistência do eu e do outro enquanto princípios metafísicos.

Em um segundo momento, propõe uma percepção possível da apropriação de Gadamer relativamente aos conceitos platônicos que dialogam entre si, por meio da dialética, com base na subjetividade moderna. Desse modo, os autores do artigo procuram justificar que os traços fundamentais da ética hermenêutica têm base em princípios não autoexcludentes, visto que não se exige o assujeitamento do outro como condição da formação e da manutenção identitária de si. Por fim, reconduzem a hipótese de que o outro hermeneuticus é tão importante quanto o eu hermeneuticus para a compreensão de si e do mundo, em uma relação copartícipe, a qual não nega diferentes modos de ser para se afirmar com significativas implicações pessoais e sociopolíticas.

Seguindo, temos “Contra o dogmatismo realista: notas sobre acordos e jogos”, de Marcos Silva, comentado por Marciano Adilio Spica. Silva discute a possibilidade da existência de regras e critérios independentes de nossas práticas discursivas, a partir da filosofia de Brandom e do desenvolvimento filosófico de Wittgenstein. Para tanto, examina a normatividade na lógica, no desafio próprio da pluralidade de lógicas não clássicas, motivando a sua constituição no ambiente social, em função da analogia com jogos. Essa abordagem redunda em uma alternativa pragmatista ao dogmatismo realista. A partir dessa perspectiva pragmatista baseada na noção de jogos e acordos, o autor busca defender que não é a objetividade do discurso que garante a normatividade de nossas práticas, mas, ao contrário, é a normatividade intrínseca de nossas práticas, seu conjunto de autorizações e proibições, que deveria fundamentar a objetividade do discurso.

A décima publicação é “Evento ou ato? Sobre as críticas de žižek a Badiou”, de Mariana Pimentel Fischer, comentado por Fabiano Veliq. Fischer examina o conceito de Evento elaborado por Alain Badiou e o contrapõe à noção lacaniana de ato, tal como reformulada por Slavoj Žižek. Para isso, ela investiga alguns dos trabalhos centrais em que o filósofo francês reconstrói ideias de Lacan, a partir de engenhosas associações com Espinosa, Ésquilo e textos militantes de Marx. A autora afirma que Badiou escreve sobre uma ruptura não dialética entre Ser e Evento. Žižek, mais fiel a Lacan e também a Hegel, defende a existência de uma unidade entre as dimensões separadas por Badiou. De acordo com o esloveno, um ato político não estabelece, de pronto, um engajamento em um novo começo. Ele apenas limpa o caminho para isso. Dizer “não” seria, então, suficiente para a realização de um verdadeiro ato revolucionário?

Em seguida, publicamos “Demônios da brasilidade: notas para um niilismo tropical”, escrito por Rodrigo Barros Gewehr e comentado por João Paulo S. Vilas Boas. Gewehr se ocupa de fixar algumas bases de reflexão sobre a possibilidade de se pensar uma brasilidade, com base no conceito de niilismo. Ele visa a compreender se seria viável uma aplicação específica desse conceito no contexto brasileiro. A ideia do demoníaco entra em cena para dar conta do índice do imponderável, em todo construto coletivo, salientando que as dinâmicas psíquicas, quer individuais, quer coletivas, se realizam na cultura em formas sobredeterminadas. Nessa busca de se pensar a brasilidade, o autor propõe o entrelaçamento do niilismo com traços culturais já elencados por certos autores, como Mário de Andrade, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, entre outros.

Na sequência, publicamos “Reflexões sobre o ninguém na obra de Hannah Arendt”, de Vanessa Sievers de Almeida, comentado por Pedro Duarte. Em sua obra As origens do totalitarismo, lembra a autora, Hannah Arendt afirma que os regimes totalitários revelaram ser possível transformar pessoas em seres supérfluos, isto é, elementos substituíveis e descartáveis. Já em seus escritos tardios, como os da coletânea Responsabilidade e julgamento, a pensadora se refere ao ninguém, um ser humano que deixou de ser uma pessoa. Assim, embora sob diferentes designações, o ninguém aparece em vários pontos de sua obra. Almeida se propõe compreender essa figura, estabelecendo contrapontos com a figura do alguém, ou do quem, e com a do “egoísta”. Arendt mesma não usa o termo “egoísta”, mas, defende Almeida, a distinção entre ele e o ninguém ajuda a caracterizar o último com maior nitidez, como um fenômeno próprio da sociedade de massa, em especial dos regimes totalitários. A autora busca mostrar como as figuras extremas do ninguém e do alguém e, em algum ponto entre os extremos, a do egoísta se tornam profícuas, não só para compreender algumas experiências analisadas por Arendt, mas também para pensar sobre as nossas.

O penúltimo artigo é “A ciência da política de David Hume”, de Vinícius França Freitas, que é comentado por Marcos Balieiro. O artigo apresenta uma interpretação que procura sistematizar a compreensão humiana dos princípios da ciência da política. Por um lado, o autor argumenta que a ciência da política é uma ciência sobre formas políticas de organização (monarquia, aristocracia e democracia, por exemplo), fundada sobre axiomas cuja verdade é eterna e imutável e independe de fatores contextuais – como, por exemplo, cultura, moral e educação. Por outro lado, a ciência da política é também uma ciência sobre a conduta dos seres humanos em sociedade (a ação de um corpo de indivíduos que resiste à tirania de um governante, por exemplo), fundada sobre máximas ou princípios gerais, cuja verdade é contingente e mutável e dependente de fatores contextuais.

Finalizando os quatorze artigos deste fascículo, publicamos “O infinito e a vida em Hegel: apontamentos a partir do terceiro capítulo da fenomenologia do espírito”, de Vinícius dos Santos. Conforme o autor, um dos maiores percalços para a compreensão da lógica dialética de Hegel encontra-se na relação peculiar que ela estabelece entre finito e infinito. Mais precisamente, na tese da imanência dinâmica do finito no infinito, a qual permite ao pensamento hegeliano sustentar e compreender as contradições inerentes ao real, sem dissolvê-las ou fixá-las, por exemplo, ao modo kantiano. Tal problemática aparece de modo mais explícito, por exemplo, ao final do terceiro capítulo da Fenomenologia do Espírito, e demarca uma das inflexões mais importantes da obra, justamente no momento em que a consciência se depara com a infinitude e, por conseguinte, com a Vida enquanto movimento do próprio Espírito. É esse agenciamento, que auxilia a desvendar algumas das linhas de força da dialética de Hegel, que Santos reconstrói nesse artigo.

Este fascículo publica, por fim, o comentário de autoria de Gregory Gaboardi ao artigo escrito por Ana Margarete Barbosa de Freitas e Felipe Rocha Lima Santos, intitulado “A brief discussion of the empirical plausibility of the Reflective Epistemic Agency”, publicado no “Dossier Ernest Sosa”.

Assim está constituído este fascículo da Trans/Form/Ação. Desejamos boa e proveitosa leitura e consequentes debates dos conteúdos publicados. Como sempre, para a revista, é um grande prazer poder contribuir para a construção e socialização do conhecimento filosófico!

 

REFERÊNCIA

ALVES, M. A. Apresentação. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 43, n. 2, p. 9-16, 2020.

 

Recebido: 10/7/2021

Aprovado: 13/7/2021



[1] Editor responsável da Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da Unesp. Docente no Departamento de Filosofia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Marília, SP – Brasil e Líder do Grupo de Estudos em Filosofia da Informação, da Mente e Epistemologia – GEFIME (CNPq/UNESP). Pesquisador CNPq/Chamada Universal. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5704-5328. E-mail: marcos.a.alves@unesp.br.