METÁFORAS DA DIFERENÇA: A QUESTÃO DO INTEIRAMENTE OUTRO A PARTIR DA TEORIA DA REALIDADE COMO CONSTRUÇÃO

 

Wilson da Silva GOMES[1]

 

■RESUMO: Talvez o tema mais recorrente do discurso filosófico que atravessa o pensamento moderno e a contemporaneidade seja a idéia da realidade como construção. Como reação ao realismo objetivista, que acreditava ser a realidade exterior e independente da subjetividade e para quem a experiência é a capacidade de ser afetado pelas coisas através dos sentidos e de reproduzi-las em conteúdos mentais representativos, a modernidade vai estabelecer que: a) a consciência não é uma mera passividade receptiva, mas atividade configurante; b) a realidade não é refletida pela consciência, mas por ela, de certa forma, construída. A nossa época recolhe esta herança de maneira fecunda particularmente no discurso semiológico: a realidade construída intersubjetivamente é uma teia de significados e valores que o homem institui ao redor de si no mundo. Ela sedimenta-se em sistemas de veiculação sêmicos (sobretudo na lingua) e se fixa em códigos. Daí emerge a questão: tendo a realidade, enquanto construção, os limites e alcance do código, como se comporta a consciência e seus registros perante o não-codificado, o não-construído, a sua ausência? Algumas abordagens desse outro da consciência, apresentadas como declinações de metáforas da ausência, é aquilo que esse artigo pretende apresentar.

■ UNITERMOS: Código; consciência; construção da realidade; filosofia da consciência; outro; signo.

 

Para Femando, como gaia provocação

 

A modernidade é um discurso incompleto. As suas intenções de pensamento. mais fundamentais não esgotaram ainda a própria validade. O nosso momento recolhe a herança, a interpreta, a desenvolve, a recusa e, na alternância própria de qualquer esforço hermenêutico, estabelece o princípio: somos todos modernos.

E o somos também quando, por uma necessidade de penetrarmos os meandros da polissemia do discurso do moderno, incursionamos por certos seus eixos temáticos, implicitamente reconhecidos, mas muito pouco explorados. Esses núcleos de temas geralmente fazem parte de alguns filões muito densos, e emergem aqui e ali, em passagens fundamentais ou em junções marginais, como uma estável formação espiritual fixada numa época ou pensador, ou como um problema errante, idéia vagabunda num discurso que percorre épocas e autores.

 

1. O tema da construção do real no discurso filosófico da modernidade

 

O problema que será aqui apresentado emerge de um discurso sobre a realidade que comparece no pensamento ocidental a partir do século XVI, como uma ruptura epistêmica provocada por algumas construções filosóficas que certas tradições convencionaram-se a chamar de filosofia da consciência.

Descartes representa o emergir desse novo discurso. Na verdade, pretende justificar a ciência moderna como saber objetivo capaz de realizar o ideal platônico de uma epistéme universal, e a teoria da realidade a ela peculiar, segundo a qual o real seria uma totalidade infinita de ser que se deixa apreender completamente mediante um método racional matematizante. O seu programa prevê, por conseguinte, uma investigação de enfoque puramente subjetivo com o intuito de evidenciar como se realizam, na interioridade, as operações do intelecto e por que elas têm um alcance objetivo, de modo que os processos psíquicos interiores (do cientista) possam gozar de uma validade objetiva. Uma investigação que toma a forma de uma teoria do percurso rigoroso que se há de fazer para se atingir a verdade; um discurso sobre o método que, por sua vez, assume como modelo o itinerário do próprio filósofo, resumido em algumas regras básicas.

A primeira dessas regras estabelece que se deve aceitar como verdadeiro aquilo e apenas aquilo que o entendimento apreende de maneira clara e distinta (1985e; 1984a).

Como resultado da sua aplicação da primeira regra do método, segue-se a suspensão do assentimento sobre a validade de ser das verdades atuais, rebaixadas ao estatuto de pré-conceitos. Neste "momento 0" do método, o mundo até então crido como real é apenas uma "cega tendência", uma "crença por hábito" ou um "'instinto", que se vai tornando cada vez mais problemático à medida que Descartes apresenta as coisas de que podemos duvidar e as razões da dúvida: os objetos dos sentidos, porque os sentidos nos enganam algumas vezes e, logo, nos poderiam sempre enganar, assim como porque os objetos da experiência empírica e os da experiência onírica não se distinguem por sinais seguros e, dado que a razão recusa-se a reconhecer a verdade dos objetos dos sonhos, os da experiência sensível resultam, no mínimo, suspeitos; os objetos das ciências, porque visto que alguns homens enganaram-se sobre essas coisas, também eu poderia me enganar; de tudo, enfim, porque pode ser que a minha natureza seja de tal modo defeituosa que me seja absolutamente impossível distinguir o verdadeiro do falso, vivendo eu, portanto, numa ilusão, mas tomando-a como verdadeira. Suspeita-se que a experiência não se distinga da fantasia e que aquilo que ela proporciona seja, na verdade, de natureza idêntica aos objetos da imaginação.

Atingida pela epoché cética de Descartes, a experiência, a possibilidade de apreensão cognoscitiva e volitiva do real entra em crise. E com ela o mundo mesmo, que na experiência e por força dela tem um sentido e um ser para nós; o mundo existe constantemente para nós, enquanto diretamente ao alcance da mão, numa certeza indiscutível e que somente nos detalhes e ocasionalmente pode reduzir-se a mera aparência e tornar-se objeto de dúvida (Husserl, 1959). Entrando em crise todas as validades de ser que se apóiam na experiência, pela primeira vez na história da filosofia a realidade se torna um problema.

A crise da realidade como dúvida geral apresenta-se para Descartes como a ocasião para estabelecer a prioridade, do ponto de vista do Método, do correspondente subjetivo do real: as representações. Com efeito, ainda que a experiência não me possa garantir a existência de coisa alguma, mesmo que ela possa ser apenas a fantasia camuflada para me enganar, o fato é que nos é perfeitamente transparente, evidente, que há processos e conteúdos mentais que se pretendem representativos exteriores. O que implica que eu posso suspeitar que o mundo seja apenas a idéia de mundo e que as coisas existam apenas como entidades mentais por mim produzidas, mas não que estas idéias de fato se dêem. E se há uma faculdade, não importa se a imaginação, a vontade ou o entendimento e os seus processos e objetos, e os sinto como próprios com evidência imediata, eu, pelo menos eu que os sinto como próprios, existo (Descartes, 1984 b; 1985 d).

Está estabelecida na história da filosofia a prioridade da esfera da subjetividade sobre o mundo (Hegel, 1986b). A suspensão do juízo estabeleceu como evidência a vida dos atos do sujeito, da sua capacidade de valorar, dar sentido, imaginar etc. e "o" mundo como um correspondente dessa vida subjetiva, idéia, um cogitatum de algum tipo de cogitatio.

Prioridade que se demonstra ainda mais facilmente seguindo-se os passos posteriores de Descartes, para quem da dúvida geral se sai apenas pela análise dos conteúdos dessa vida da imanência subjetiva, em busca de alguma nota (clareza e distinção) que exija que uma idéia particular possa provir e ser semelhante a uma coisa fora do Ego (Descartes, 1985c): "o pensamento parte do próprio pensamento, como algo certo em si, não de uma autoridade, mas simplesmente desta liberdade..." (Hegel, 1986c).

Certamente que a identificação do princípio da subjetividade para o qual o mundo é uma sua validade e sentido de ser, resumido no verbete Ego, com a alma não deixa de ser problemática; como também o é o seu retorno ao realismo objetivista através da idéia de Deus. Mas a partir dele estava inaugurada uma nova fala para a qual a dimensão egológica é o Prius nas diversas relações que o homem estabelece com o real (Heidegger, 1961, p. 61).

E esta não foi uma descoberta banal. Sobretudo porque põe em crise um modelo de conhecimento que, desde Aristóteles, afirma ser a realidade o universo exterior independente da nossa percepção, subsistente mesmo admitindo-se a nossa ausência e aniquilação, consistindo o conhecimento, por conseguinte, na recepção e imitação deste mesmo real. Destarte, os conteúdos da consciência (as representações) que brotam de experiência seriam o mero reflexo das coisas fora da subjetividade, de onde procederiam e às quais elas seriam necessariamente semelhantes se pretendem proporcionar alguma verdade.

Pelo menos assim o entenderam as gerações de filósofos pós-cartesianos. A filosofia do empirismo inglês, por exemplo, vai concentrar os seus esforços na tentativa de recuperar a necessidade do concurso da exterioridade na origem das idéias que efetivamente habitam a nossa mente e memória, coerentemente com a teoria objetivista da realidade, depois do "choque cartesiano" e o restabelecimento em bases não cartesianas da possibilidade do objetivismo e do realismo (que, sem querer, Descartes golpeou profundamente). A indagação estabelecer-se-ia nesses termos: como exerce a imanência psíquica a sua faculdade de receber impressões sensíveis provenientes do mundo?

Todavia, a análise do modo de ser da mente humana, enquanto entendimento ou intelecto, ou seja, enquanto capacidade de receber, armazenar e veicular repre- sentações derivadas de impressões sensíveis (que na intenção de Locke deveria servir para demonstrar a sua essencial passividade diante do real que se lhe impõe pelos sentidos) paradoxalmente demonstrará justamente a debilidade fundamental da tese do conhecimento como mímesis. Com efeito, para que perceber correspondesse a um mero receber impressões provenientes do exterior (que, portanto, gozaria de uma proeminência ontológica diante do perceber mesmo) necessário seria que a subjeti- vidade percipiente fosse uma mera passividade, funcionasse a modo de espelho, fosse "especular".

Ao terminar transformando-se em um ceticismo e ao fracassar a tentativa de reestruturar Aristóteles depois de Descartes - mas, curiosamente, a partir do princípio cartesiano da prioridade das representações e da atividade da consciência sobre o mundo, o empirismo inglês representa, malgrado as intenções dos seus epígonos, a descoberta da subjetividade como atividade, agressividade produtora.

A conseqüência maior desse movimento é evidenciada sobretudo na filosofia kantiana e vai consistir na afirmação de que há uma subjetividade operante por detrás de toda validade de ser e de sentido. Compreendendo que não se chega muito longe supondo-se que no processo de conhecimento as representações devem corresponder aos objetos, concebidos com os "modelos" exteriores dos nossos conteúdos mentais, Kant altera a hipótese: são os objetos que devem corresponder à nossa subjetividade cognoscente.

É o "ser objeto" mesmo por parte das coisas que muda radicalmente em Kant a sensibilidade, como faculdade de receber representações mediante o modo como somos afetados pelas coisas, de fato sofre a afeição de exterioridades; mas isto é possível apenas enquanto esta exterioridade se submete às formas que a subjetividade possui de si mesma do ser objeto. Em outros termos, a sensibilidade efetivamente nos dá o objeto, mas apenas enquanto "domestica" uma ipseidade exterior a certas condições formais, e a priori, e a transforma em fenômeno, em coisa-para-a-subjetividade. Do mesmo modo, o entendimento que pensa os objetos como conceitos, não apenas os toma da sensibilidade já assimilados pela subjetividade percipiente, mas os submete às condições formais do entender, às suas categorias puras.

O objeto na sua intimidade desprovida de subjetividade é relegado à esfera da incognoscibilidade, enquanto situar-se-ia além das condições e limites da apreensão humana do real. A realidade, portanto, enquanto um complexo de fenômenos, de coisas assimiladas, é um conjunto de representações do espírito (Gemueth), submetendo-se ao princípio geral: a forma de todas as coisas é dada subjetivamente; a subjetividade conhece o real apenas porque o seu perceber é um constituir.[2] Está aberto o caminho para as teorias da realidade como construção subjetiva.

Entretanto, a subjetividade não é a mesma depois de Hegel. A crítica de Hegel à filosofia moral kantiana e ao subjetivismo individualista romântico, a colocação da consciência singular como a soleira inferior do processo ontológico representado na Fenomenologia do Espírito, presente nas etapas superiores, mas apenas como mo- mento superado, subsumido (aufgehoben), tudo isso impossibilitará definitivamente, no seio desta tradição de pensamento, a reposição da consciência psíquica individual.

A filosofia de tradição hegeliana é também filosofia da consciência (ou, pelo menos, como tal pode ser lida) como a onda que vai de Descartes a Kant passando pelo empirismo inglês. Com uma diferença essencial: a consciência que constrói o real é sobre-individual. A Idéia que perpassa o cosmo, configurando-o, o Espírito que se põe na exterioridade e só aí se reconhece, não é prioritariamente o ego, sive anima, sive intellectus de cartesiana memória, é o espírito do mundo (Weltgeist), das línguas e das leis. A reflexão nem mais verte sobre a articulação entre subjetividade e mundo, mas, admitindo que a espiritualidade configura a essência mesma do real, o sistema hegeliano analisa o modo de ser processual deste Real como Espírito, e como Espírito dialético.

Assim, a subjetividade individual, espiritualidade psíquica, transcorre sua existência envolvida na trama que é a razão mesma no seu alternar-se dialético entre exterioridade e interioridade, entre saída e retorno, entre posição e negação, que, em última instância, constitui a história. Sobretudo as categorias de espírito objetivo e absoluto, ou das formas objetivas e autotransparentes da odisséia do espírito, são paradigmáticas. Elas implicam que o real são as marcas, os rastros da espiritualidade como história, e que o mundo exterior é ainda e essencialmente o Espírito mesmo na forma da aparência exterior.

As minhas percepções singulares, portanto, não me põem em relação com uma exterioridade pura, originária; a coisa em sua independência absoluta da Idéia seria simplesmente a "coisa vazia", resíduo de negações de todas as suas determinações (Hegel, 1986 a), estas sim, profundamente "espiritualizadas", portanto, reais.

Quem traduz em termos não metafísicos categorias semelhantes, aplicadas ao fenômeno particular da língua, é Wilhelm von Humboldt. As línguas, enquanto formas em que a subjetividade dos povos se objetivou, não representam um dos dons com que os homens estão equipados para viver no mundo, mas são a possibilidade mesma para o homem de ter um mundo. Como tal, elas não são propriamente um modo de pôr-se em relação com objetos já dados, mas o modo de configurá-los, de constituí-los. Assim, cada língua representa uma peculiar versão ou visão de mundo, disponível a todo indivíduo que faz parte da comunidade de falantes a que a língua é própria.[3]

Os ulteriores desdobramentos das intuições da modernidade vão insistir sobre- tudo neste fato. A língua em particular e o campo simbólico em geral, não são modos diferentes através dos quais uma realidade existente em si revela-se ao espírito, mas os caminhos que o espírito segue no seu objetivar-se. O que implica que o mundo existe para os homens de uma maneira essencialmente diferente de como existiria para um outro ser. O mundo, objeto, palco e condição da experiência humana, é já sempre, de alguma maneira, "construído" pela subjetividade; é por ela perpassado, configurado. Obviamente, não pela subjetividade individual, mas por uma espiritualidade combinada, consciência social. Assim, existir e existir-para-a-consciência se identificam. Tinha razão Berkeley com sua fórmula: ser é, efetivamente, ser percebido (Berkeley, 1989, p. 13).

 

2. O código e o "outro"

 

O momento contemporâneo desta linha de pensamento ocupa-se de explicar o modo de ser da construção da realidade, como conferimento de significado, sentido e valor. O real deixa-se ler completamente como uma tessitura semântica e axiológica, obra de uma subjetividade operante, sedimentada em certas formas simbólicas (linguagem, campo gestual... outros) e nelas disponibilizadas para todos os sócios de um determinado grupo humano. Este tecido de signos, sentidos e valores é prévio a todo ato aperceptivo ou volitivo singular, constituindo, ao mesmo tempo, a sua limitação e a sua condição de possibilidade. Enquanto tal, isto é, enquanto prévio, (inter)subjetivo, limite e condição essencial, esta trama funciona como registro e código de acesso a toda objetividade. Todo reportar-se do homem à "realidade" (significativa e valorada) faz entrar em jogo uma série de sistemas de codificação e registro, ou seja, chama em causa o fato humano.

Desse modo, a idéia de realidade como independência e exterioridade da subjetividade está definitivamente perdida no discurso moderno. A realidade para nós é sempre já significante, com sentido e prenhe de valores que só explicam se chamamos em causa a intersubjetividade operante. Os homens vivem envolvidos nas teias semânticas que construíram ao redor deles mesmos e tudo o que lhe chega à mente é filtrado através delas e por elas possibilitado. Nessa trama estamos inteira- mente implicados, quaisquer movimentos que façamos, a chamamos em causa. Na nossa existência como indivíduos não vemos o tecido, mas através dele, nele. De forma que supomos então que temos a ver com as coisas em si mesmas, quando nos relacionamos com a consciência mesma posta diante de nós, objetivada. Portanto, ver é ler, chamar em questão códigos e registros, logo, previedades. O real é o espelho de Narciso onde a consciência se contempla.

Conhecer, portanto, é re-conhecer algo como marcado pela consciência. O meu conceito de realidade vai até onde alcançam os códigos em que ela se move. "Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo..."

Porém, a história ensina que as visões de mundo nunca são fechadas (ainda que se creiam tal), que os códigos não são impermeáveis e nem substâncias indissolúveis. As fronteiras do real-para-nós são móveis. E esta mobilidade explica-se somente postulando-se seja o desaparecimento da memória social ou tradição, de certas codificações, seja o advento de elementos não registrados, a irrupção, perante o código, de coisalidades não configuradas pela subjetividade, a entrada em cena do "novo". Do seu ser nada pode ser dito a não ser o fato de que ele é o "outro" da consciência e dos seus códigos e registros, a sua não-existência presentificada dramaticamente a modo de ser, a presença da sua não-presença.

Mas será o "outro" da consciência realmente acessível à experiência ou está definitivamente perdida para a subjetividade a possibilidade de algo que não tenha se submetido aos seus códigos, que não reflita a sua face? Seria Narciso, para quem deveria ser espelho, definitivamente, o modelo da teoria dos códigos proveniente da idéia da realidade como construção humana? Quem é o "outro", afinal de contas, quais são as suas formas de confronto com o "mesmo", ou seja, o Código?

O discurso da modernidade, sobretudo o discurso filosófico do moderno, nunca considerou com profundidade estas questões. Ou descambou por fáceis filosofias da religião, ou fugiu aterrorizado diante de uma questão que parecia conduzir diretamente às antipodas de moderno, isto é, ao realismo objetivista. E a retórica dos filósofos certamente não ajudou a uma consideração sistemática do problema. Frases tipo: "Não há fatos, apenas interpretação" (Nietzsche, 1980, p. 149), que recalcam que a busca do totalmente outro é um preconceito lingüístico realista, são verdadeiras no que dizem, mas podem conduzir ao obscurantismo de um dogmatismo antidogmático.

A teoria dos códigos da filosofia da consciência há de se confrontar com a questão do não-construído, do não-codificado. Seja do ponto de vista epistemológico (como a questão em-si, ou do pólo "noemático", talvez), seja de uma forma mais aplicada, do ponto de vista de uma filosofia da cultura e dos signos. Tentemos então, a modo de ensaio, conduzir a atenção sobre os elementos que deveriam compor a fala sobre o outro, suas faces e seus disfarces, desse ponto de vista.

 

3. O nada, o caos e o cosmo

 

A tese. Pareceria que a mente humana é de tal forma constituída que não suporta sequer postular nenhuma objetividade dentro da qual (intus) não consiga ler (legere), aprender alguma ordem que permita a compreensão. Tudo o que possui o estatuto de realidade encontra-se já numa relação de familiaridade com a mente humana. Esta "familiaridade" quer dizer, sobretudo, que a intersubjetividade (de um determinado povo, grupo etc.) traça registros ou códigos (nexos, "ordens") onde vai situar tudo aquilo que lhe está em torno e tudo o que se lhe confronta. Estes registros ou códigos são tornados disponíveis para todos os indivíduos desta comunidade enquanto se sedimentam em certos sistemas de veiculação semântica, com a língua ou com o campo gestual. Em suma, todo o real é sempre já registrado e codificado antes de qualquer ato aperceptivo singular; este mesmo é possibilitado pelas previedades dos códigos e o que consegue é apenas fazê-lo atual, jogar com as possibilidades. Tudo o que existe para uma determinada cultura não apenas pode ser interligado pela mente (mentes) que intersubjetivamente fixou a sua ordem, mas é inteligível, através da sedimentação desta fixação.

Mas a introdução do novo, do não-familiar e, portanto, do ininteligível deve de alguma maneira ser possível. Os códigos permitem entradas, deslocamentos, alteração. De que modo, porém, a consciência vive a iminência do "estranho", enquanto justamente o seu outro?

Representar-se o absolutamente outro como possível é uma experiência assustadora. A consciência pode tudo apreender, atingir, recobrir, menos a possibilidade da sua impossibilidade. Pensar a própria ausência, a aniquilação (nihil!) de si mesma é, pelo menos, angustiante. Significa pensar o impensável, postular o que não se parece com nada que já se saiba, a loucura. Ora, a idéia de Nada passeia nesta faixa. O Nada é o outro do Ser, do ser por parte da consciência. O Nada significa o não-mais-ser-consciência. Como tal o seu significado é por privação, é negativo. Não é positivo, porque não "é"... A consciência não tem sequer categorias para tocá-lo, apenas o roça levemente quando o aborda como um "é" a Ausência, o Não-ser, o nada, em suma.

O Nada presente a nós é morte. Não-mais-ser-consciência é morrer. A angústia é acompanhada por uma recusa neste nível. A consciência assiste o não-mais-ser por parte de outros, admite a possibilidade para os outros, mas implodiria se tematizasse a própria. A consciência corre às trincheiras. A vida eterna, de qualquer maneira que se apresente, é a magnífica saída. O não-ser não precisa ser mais tematizado, o Nada é apenas "aparente", a consciência será sempre. Assim, certos sistemas religiosos evidenciam que o nosso nascer não foi um vir do nada, mas a "passagem" de um estado prévio de existência (completo, íntegro) a um outro (imperfeito). A idéia da vida humana no mundo como "queda", como "perda do paraíso", representa a ruptura com um estado de vida plena. Outros sistemas investem no futuro: a morte é também "passagem" para uma outra vida que, à diferença desta, não mais sofrerá mudanças, a vida eterna.

Quando a religião não satisfaz, há de se recorrer a outras formas. Nas nossas sociedades a melhor delas continua sendo a não tematização da morte. É de mau gosto falar na morte, portar consigo os seus signos (luto, objetos dos finados amigos), o "lugar dos mortos" é isolado, o dia dos mortos é demarcado, o morto deve ser esquecido, como se nunca tivesse existido, em suma, a morte é varrida para debaixo do tapete. A isso corresponde uma consciência ébria no que diz respeito à própria impossibilidade; vivamos o dia, diz Don Juan Tenório.

Mesmo em sociedades onde há um culto aos mortos, isso nada mais é que uma forma de "domesticá-los" (literalmente, ligá-los ao domus, torná-los "de casa"), tornando-os, de uma certa maneira, vivos, presentes. Os mortos cultuados não são propriamente outros, mas uma espécie codificada de "existentes".

Outra forma de aparição do outro para a consciência é o caos. O caos não é indêntico ao Nada, mas uma forma do Ser ou, melhor ainda, o Ser-sem-forma. O cháos é o outro da morphée do nômos, da forma e da lei. É amorfia e anomalia. O que quer dizer que o modo de ser peculiar da consciência é ser-ordem. O caos é o não-ser-or- dem, portanto o não ser inteligível. A consciência é a faculdade de intus ire, de penetrar, de intus legere, de ler dentro, de inteligir: consciência é inte-ligência. Ler significa desvendar trilhas de racionalidade, nexos imanentes e essenciais entre elementos heterogêneos, isto é, ordem. Ler é ver ordem no que é essencialmente plural. Os gregos tinham uma palavra para isso: "cosmo".[4]

O desconforto do contraste entre a consciência e o outro é aqui lido como drama real do conflito entre o cosmo e o caos. O sentimento poético e mítico grego desvenda em uma infinidade de nuances esta relação. O cosmo, a harmonia, é syntonia, homologia diz Heráclito[5], conformidade com o Ser, é symbolon, em suma, é graça, beleza. O caos é turbilhão, conflito, horda, descontrole, exagero, ebriedade, feiúra. O cosmo é proporção, é o reino da medida (mensura, de fato, tem a ver com mens, mente), ratio. Caos, é pandemônio, explosão, o desmedido.

Nietzsche encontra em duas imagens da grecidade a expressão desta oposição. O cosmo é o domínio de Apolo, o belo, o luminoso. O caos é o território de Dionísio, o ébrio, o ambíguo. Apolo é a consciência e necessariamente vence.

A religião novamente faz pensar. O "momento" da Origem é o instante do fim do caos e do início da ordem. O Ser não provém do Não-ser. O Ser sempre foi. Só que antes era caos, e agora é cosmo. No Gênesis, por exemplo, o Espírito pairava sobre o caos. A criação é uma separação: Elohim separa a luz das trevas, separa a terra firme das águas, distingue onde deve aparecer a luz e onde o sol, separa a terra e o firmamento... tudo isso "era" já, só que no reino da indistinção, da indiferença. O que quer dizer muito simplesmente que caos e cosmo não são coisas, mas "estados das coisas" quando sob a luz da consciência ou fora desta. Não há alteração no estatuto de ser, mas no modo de ser.

Deus é, portanto, a consciência que se compreende cosmificando. A criação é uma "poesia de cosmos", uma Kosmo-poiesis (de poiein, criar): "o mundo é um poema", dizia Schelling (1985, p. 695). Diante do Princípio Ordenador, Deus, certas religiões apresentam um Princípio Desordenador, Diabo. O termo mesmo "diabolos" opõe-se a "symbolon" (de sym + ballein, literalmente pôr junto, juntar). O diabo, hipostatização do "diabólico", opõe-se ao "simbólico", à sintonia, harmonia. O diabo seria então o "misturador", o Princípio do caos.

O discurso religioso sobre Deus e o Diabo é, no fundo, uma fala sobre o Mesmo e o Outro, só que naturalmente de uma perspectiva, a da consciência que pensa o seu outro em chave caótica. A metáfora da luz é uma forma alternativa de expor esta relação. O outro, o caos, é o domínio da obscuridade, as trevas, a invisibilidade onde não se distinguem formas, pelo contrário, ilumina, esclarece, evidencia. "Os homens que viviam nas trevas viram uma grande luz...", afirma o judeu-cristianismo. Consciência é visão, supõe luz. A sua ausência, que no fundo é a Ausência mesma da consciência, conduz ao medo, a Face Obscura apavora.

A metáfora da luz conduz a um interessante paradoxo, que consiste na duplicação do outro perante a consciência. A luz traduz o Mesmo na exata medida em que faz ver (ilumina, elucida). O excesso de luz ofusca, impossibilita a visão. A consciência situa-se, assim, entre o Obscuro e o Nume. De fato, o Nume sempre foi considerado nas religiões como Totalmente Outro, a outra face da divindade. "Quem vê Iahweh morre!", acreditava o judaísmo bíblico, tanto que era preciso cobrir o rosto diante dele. Por ter ficado algum tempo em presença de Deus, Moisés teve as suas feições transfiguradas. O nome da divindade não pode ser pronunciado e dele não se fazem imagens, duas formas de posse por parte da consciência. É preciso mesmo demarcar um "espaço" e um "tempo"[6] para que dele nos aproximemos. Diante do Nume a experiência do Mesmo é temor e fascínio e de fascínio enquanto temor. O Nume é o tremendum et fascinans[7] cuja face jamais haveremos de contemplar, sob pena de morrermos.

Numa esfera que circula entre os dois termos da alteridade está a festa. A festa representa uma "quebra" na quotidianidade média, na sucessão dos eventos que constituem a ordem do tempo comum. Uma quebra não significa o fim do fluxo da normalidade, mas uma interrupção temporal desta, a ordem é posta entre parênteses e intervém algo de qualitativamente diferente. A suspensão do cosmo é vivida psicologicamente como uma intensa excitação, como uma embriaguez da razão quotidiana, como "folia" (no seu sentido de loucura). O transe e o exagero (este, mesmo o exagero sexual é buscado e necessário à festa) presentificam instauração momentânea do caos, a intervenção momentânea da desordem no real.

O ser "momentâneo" é fundamental para a compreensão da festa. Sobretudo porque aqui há um fato interessante: o outro é buscado, a consciência cede à sua nostalgia do outro, invalida num espaço a quotidianidade. Pela natureza mesma da sua relação com o outro é levada a controlar a festa. Ela não pode perdurar no tempo, senão torna-se ela mesma a nova quotidianidade e perde a sua "propriedade", o ser extra-ordinário. A festa, portanto, é ritual: nela entra em jogo novamente a passagem mítica do caos ao cosmo. A ordem corre novamente o risco, e os indivíduos são postos temporariamente em uma situação-limite. A sua função é, portanto, garantir a ordem levando os indivíduos à angústia de uma ruptura, ao limiar da horda. A adesão à ordem está garantida enquanto se compreende que aqui estamos em segurança, longe do "risco" e da angústia derivante. Neste sentido, a festa é conservadora, não pretende alterar, mas justificar, devendo para isso levar os indivíduos a um estado de tensão que se durasse a longo seria insuportável.

 

4. O monstrum. O outro como horrível

 

As "metáforas da ausência" declinam-se de várias maneiras. Há caracterizações do outro, talvez em proporções mais modestas, mas igualmente sugestivas. O outro é aquele desconhecido cuja estranheza deve ser tanta a ponto de que não suportaríamos a sua presença como outro, se tal fosse possível. Admitir a sua possibilidade instaura já a explosão das seguranças, das categorias da consciência. A ausência de reconhecimento de uma "ordem", de um registro de inteligibilidade provoca uma crise dos próprios elementos e fundamentos da mente mesma. A mente se confunde, se obnubila, instaura-se uma "pane lógica". A reação emocional que a acompanha pode variar muito, mas pertence sempre à gama das reações de crise: pânico, incômodo, perturbação, embaraço, temor, terror, insegurança, susto, incômodo, pavor, êxtase, afonia etc.

Para descobrir os indícios do outro há uma única pista segura: a pane e o pânico. Onde os encontramos, aí estará declinada mais uma metáfora do outro da consciência. Neste sentido, o "terror" é um fato muito sugestivo. As histórias oralmente transmitidas, primeiro, depois a literatura e o cinema de horror constituem uma interessante fábula do outro. O que faz medo? Uma "presença" qualitativamente distinta de tudo aquilo que é familiar ou ordem, uma ruptura, a intervenção de um elemento ou situação perturbadora.

"Monstro"[8] é o nome para a situação onde as categorias "normais" cessam de valer, onde, dito de uma outra maneira, o pânico se instaura. Vampiros, múmias, lobisomens, bruxas, mortos-vivos e fantasmas são expressões da angústia do Mesmo diante da diferença. Por um momento a lei cessa e há a irrupção de um estado de coisas absolutamente in-habitual. A aparição do estranho (em latim, literalmente, do alienígena, daquele que não é daqui) leva a um momento de ausência de registro (que pode durar muito tempo ou ser logo resolvida, como no "susto"), de vacância lógica, onde o desespero psicológico torna-se terror. "O-que-não-deveria-estar-aqui", o inominável/incontrolável está aqui, ele é alter, alheio (aliens) a mim de tal forma que não o suporto de desespero apenas penso na possibilidade de que ele não se pareça comigo e com o que me é familiar. Não deveria ser possível, mas é, e se aproxima e eu quero acordar pois é absurdo, e se não consigo não quero vê-lo e fecho os olhos e grito para preencher comigo mesmo todos os espaços da minha consciência.

A situação perturbadora se dissipa justamente quando o outro é assimilado ao mesmo, ou seja, quando se consegue tornar semelhante, "as-similar" o novo: o vampiro é um "homem" + "morcego", o lobisomem "homem" + "lobo" e por isso vale para eles o que vale para esses nossos conhecidos: homem, lobo e morcego. O herói é aquele que consegue dominar o pânico enquanto descobre afinidades, parentela, ou gênesis do monstro. O seu "sangue frio" é frieza lógica que registra e classifica o novo (em códigos velhos).

O processo do terror é sempre desencadeado por figuras liminares, isto é, aquelas que percorrem a tênue linha entre o mesmo e o seu outro: o velho cuja presença lembra a morte, a mulher não-mãe, a criança (que se caracteriza pelo seu ainda não ser), o homem do sagrado (muito próximo do Numinoso ou do diabólico) e o louco.. Os espaços são normalmente liminares (igrejas, cemitérios, casas sem família, o espaço sideral), como também o tempo (meia-noite, nem noite nem dia), a situação (as trevas, a noite é o território do "mal") etc.

Enquanto faz sofrer a consciência, o outro, nesse caso, é geralmente o próprio mal hipostatizado: as forças maléficas, infernais, o poder satânico... A consciência sente-se ameaçada pela sua presença e descreve isso no fato que o monstro sempre destrói os homens. Como o ponto de vista aqui é sempre do mesmo, o que se manifesta é a hostilidade da consciência diante da sua negação. O gênero horror é no fundo uma fábula de Narciso: como éramos bonitos antes que as coisas fossem misturadas, como o seremos depois que a situação caótica for dominada!

 

5. As fronteiras do Mesmo

 

A ausência de registro, ou a presença de "arquivos vazios", causa não apenas o pânico, mas também a insegurança, incômodo, perturbação e embaraço. Reações psicológicas não tão intensas, mas talvez mais extensas. A liminaridade ao código (e toda liminaridade é sempre a um registro prévio) é uma experiência inquietante.

A alternativa ética, por exemplo, é um caso de perplexidade. O "diferente", do ponto de vista do Mesmo, é caótico e malvado.

Nas nossas sociedades a homossexualidade é ainda uma diferença, e a hostili- dade para com os homossexuais decorre de demonstrarem uma alterativa em um dos campos mais bem trabalhados pelo Mesmo - a sexualidade. Todo comportamento liminar é socialmente ambíguo, e como tal, um alvo para todos os sentimentos hostis. Quanto mais público for o fenômeno, mais perigoso é. Como nos outros casos o Mesmo também aqui, substancialmente um inseguro, e a sua hostilidade irá na mesma proporção da sua insegurança.

Na xenofobia o outro é o estrangeiro (enquanto estranho); com outros costumes, outra língua, outros deuses, outra cor, ele incomoda. Os códigos e registros não o incluem e às suas práticas, é uma ameaça. O racismo é uma reação paralela. A diferença mais visível torna-se expressão da Diferença enquanto tal. O outro é feio (não cabe no meu código estético), é inferior, porque não se parece comigo.

O inimigo é outro por excelência. O que se traduz na admissão que não é como eu, não é um homem. É um animal! Posso matá-lo, portanto, ainda que eu não fosse capaz de matar um meu semelhante.

O que significa que o Mesmo marca as suas fronteiras, estabelece os próprios limites e alcances (que para ele é a própria ausência de limites). Os out-siders aos leões! Além do limiar, o dilúvio.

O espírito da língua latina capturou o instintivo desconforto diante do outro e marcou a presença perturbadora com um prefixo: ab-. Este é muito sugestivo, enquanto compõe qualificativos claramente estabelecidos a partir de uma perspectiva, a do Mesmo. Qualificativos que marcam o adjetivado como o negativo do Mesmo, como aquele que se encontra além das suas fronteiras. Hostilidade, pânico e repug- nância fazem parte do horizonte semântico do "ab", e provêm daquilo que este efetivamente conota: privação, negação, distanciamento, afastamento, separação. Um ente abjeto (desprezível) ou abominável (repulsivo), uma situação absurda ou abstrata mesma são o avesso da coerência das formas ou beleza (enquanto amabilidade) e da coerência lógica ou normalidade da consciência e seus registros.

Mas não só de ser out-sider vive o outro. Nas fronteiras do Mesmo há uma zona de penumbra onde transitam certos seres nutridos de trevas e luz. São os ambiguos, literalmente, os que estão dos dois lados. Porque são de casa numa faixa que ao Mesmo é extremamente incômoda, sobre eles recai uma outra forma de hostilidade: a suspeita.

A poesia, pelo menos uma determinada poesia, pode se apresentar como um destes entes que se assentam ao limiar do Outro. Enquanto discurso que não é discurso, ou seja, enquanto logos que não mostra (logos apofântikós, segundo Aristóteles), não assere e nada informa a respeito do estado das coisas, mas simplesmente alude, cria remetimento e o remetente enquanto se cria a si mesma, ela em parte desrespeita os registros, invalida os códigos e reinventa a própria "ordem".

A mística é também uma liminariedade. Vive num eterno abebeirar-se junto ao Totalmente Outro e experimenta a incapacidade do código de decifrar significações absolutamente distintas. Capta a própria impotência de falar o inefável, nomear o inominável, recobrir com o Mesmo o avesso de todo o possível.

Mas não seria a loucura, aquela semiquotidiana e aquela "patológica", uma experiência em parte out-sider e em parte liminar? O louco move-se nos registros do Mesmo, sinais e palavras, semântica e gramática..., mas, apenas nos aproximamos, percebemos que aquilo que se apresentava de longe como o Mesmo só o é aparen- temente. Os signos estão para outros significantes, os sinais para conteúdos que se alteram em velocidade estonteante, as palavras podem não estar em lugar de coisas (portanto, não serem signos), mas serem elas mesmas coisas, a gramática permite saltos, interrupções e metalinguagens em ritmos e direções vertiginosas. A loucura é o reino da permuta onde os códigos são pretextos, não margens.

Além disso o homem pode fazer certas experiências de ambigüidade mesmo dentro da quotidianidade média da sua existência. Caracterizar o Mesmo como consciência significa entendê-lo como faculdade de apreensão inteligente. Ainda que as codificações façam entrar em jogo a totalidade do homem somaticidade e afetividade, inclusive - o atendimento fornece o material basilar para tanto. Assim, toda experiência em que a embriaguez do entendimento se dá necessariamente implica um balouçar das estruturas dos registros do Mesmo, e até uma temporária epoch da sua validade.

Todas as declinações do desejo, quando este atua como paixão, são liminares. As experiências emocionais profundas, no seu realizar-se, o estourar das possibilida- des semânticas registradas e a instituição do silêncio pela impossibilidade. O "vivido" é silêncio pela insuficiência do prévio, ou é um patético peregrinar à cata de fragmentos de signos, alusões e remetimentos e nunca discurso. Também o prazer é necessariamente desprovido de expressão da ordem do quotidiano, o entendimento cala enquanto os códigos se consomem.

Enquanto o liminar vive do empalidecimento dos códigos, de uma certa atrofia dos registros, da embriaguez do entendimento, ele é alvo da desconfiança do Mesmo. A ele se opõe a ordem, como lucidez e como sensatez. O lúcido contra o ébrio, o desmedido contra o sensato; estes são os termos do embate. Entre ambos, e do ponto de vista da norma como bom senso, está a suspeita.

Há algo em comum em todas estas experiências liminares. Todas elas são, de alguma maneira, o máximo a que se pode chegar na experiência do outro, sem negá-lo na sua "outredade" (para usar uma expressão de Antonio Machado). São, possivel- mente, as únicas experiências autênticas do outro enquanto outro, em que aquele que experimenta retorna ao Mesmo. A ambigüidade da sua situação consiste justamente nisto: os poetas, místicos, loucos e apaixonados freqüentam a morada do Outro, mas são "dos nossos". O paradoxo consiste em que eles retornam ao Mesmo, mas o Outro de que se acercaram não. O Outro é o reino da incomunicabilidade, isto é, ele é incomunicável enquanto permanece como alteridade.

Mesmo quando pode ser experimentado (quando os códigos se invalidam) não pode ser comunicado (em códigos que para a experiência foram justamente invalidados). A poesia não mostra o Outro, mas alude a ele através de vestígios do Mesmo. Nem mesmo de resíduos do Outro se pode falar, porque o que temos é remetimentos a ele por meio de fragmentos do Mesmo. Isso porque a poesia mora na linguagem, onde se exerce, mais que em qualquer outro "lugar", o potente fascínio do Mesmo: na linguagem o outro é impossível. O místico vive a situação dramática de explicar o obscuro através da penumbra, da metáfora. Santa Tereza, S. João da Cruz, por exemplo, descrevem a própria experiência mística em termos do horizonte semântico (pasmem!) das relações sexuais: o contato místico é como um gozo... sexual. Como o prazer é também inenarrável, resta-nos a possibilidade de comparar o orgasmo ao transe místico.

 

6. O Outro nos olhos do Mesmo

 

Retornamos, assim, à perspectiva da primeira Filosofia da Consciência, para quem o Outro, em termos de "coisa em si", é apenas um inteligível, um postulado. Ao outro não se experimenta, porque experiência supõe leitura e leitura chama em causa os códigos que nos alfabetizam, o transcendental, o prévio. O objeto da experiência é o objeto preparado pelo registro, portanto, o mesmo da consciência ou a consciência na forma de objetividade. As metáforas até aqui declinadas levam à admissão de um contato a-categorial, a-gramático, pré-sêmico com o Diferente. O não-codificado, ou não-ainda-codificado é, em certas condições excepcionais, aces- sível. Mas é um evento meramente subjetivo e incomunicável. A vivência do outro está necessariamente ligada ao singular, enquanto o horizonte da intersubjetividade é o signo, neste caso, um signo impossível.

Uma fatalidade da condição humana. No signo cremos, nos movemos e somos. Destarte, a inquietação diante do Outro, visto como a ausência de ordem por uma comunidade de sujeitos, cessa quando se abre um novo registro, se instaura uma nova ordem, se insere uma trilha de inteligibilidade. De que maneira? Identificando-se (uma "identificação" que é sempre imposição) na situação perturbadora certos aspectos ou capacidades através dos quais ele pode ser assimilado (tornado simil, semelhante) aos códigos preexistentes. O que quer dizer, em outros termos, a obra da consciência vai consistir em descobrir parentescos, assimilando o novo ao habitual, reduzindo o outro ao Mesmo.

As "capacidades ou aspectos" pelos quais o estranho é introduzido nos limites do idêntico podem ser as mais diversas, e a forma do estabelecimento de semelhanças, muito elástica. Desde o estabelecimento de códigos especiais, de forma que a "coisa" permanece, em certo sentido, excepcional, passando por uma gama enorme de possibilidades, até chegar-se a uma assimilação de tal natureza que implique a morte física do outro enquanto tal. Quanto menor for a intervenção cosmificadora, porém, maior a potencialidade perturbadora remanescente e vice-versa.

Submetido ao código, o outro não existe mais como tal. Precisa perder a sua "outredade" para que possa ser comunicável, portanto, real. Neste sentido a consciência revela toda a sua violência. Centrada em si mesma, finda por controlar o insuportável Outro que vez por outra irrompe. O nome, a palavra, em particular, e o signo em geral são o modo de ser-mesmo do domínio. Por isso, é de grande importância no mito do Gênesis o fato de que a criação se conclui quando os seres da terra passam diante do homem e dele recebem um nome. Para a mentalidade judaica antiga o nome está numa relação essencial com o ser mesmo da coisa. O fato de ser o homem quem nomeia, significa que ele apreendeu a essência do nomeado, a constituiu, a dominou. Significa que o ente nomeado não lhe é mais um Outro, diante do qual temer. Fosse Deus a dar o nome isso significaria que o homem estaria perdido num mundo onde as significações são impostas por um outro espírito que não o próprio. No caso dos gregos, Prometeu é cultuado como o criador dos homens não porque os tenha plasmado. Isso quem fez foi Deus. Ele apenas roubou o fogo da linguagem e o deu aos homens. A partir daí emerge o mundo verdadeiramente humano, os homens deixam de viver embaixo da terra, de comer carne crua, de ter medo dos animais. O nome, a unidade semântica mínima, reduz a periculosidade do outro, enquanto o instala numa rede de afinidades sêmicas que a consciência já controla (ou que controla a consciência).

De forma que o Mesmo não é sequer a consciência, se esta for entendida como o saber (con-scientia), a apreensão que se autotematiza, relativamente auto transparente, mas singular e pontual. O Mesmo é a consciência objetivada, a consciência tornada visão de mundo, é o Código. A imanência psíquica não apreende, não fala, não vê, mas é o Código, num certo sentido, que nela vê, apreende e fala O Outro, portanto, não pode ser uma substância que se ocultaria não sei onde, mas pura Ausência. O que "existe" é o Mesmo, o Outro é a sua sombra.

É deste ponto de vista que a diferença, o completamente Outro revela-se uma possibilidade e uma impossibilidade. Possibilidade, enquanto a intervenção caótica, que penetra na forma do novo, é uma realidade que não se pode negar. Impossibilidade, porque assim que é apreendido, o Outro perde a sua alteridade, e dança no Mesmo a dança de todas as realidades e virtualidades semânticas disponíveis e prévias. A "experiência originária", aquela talvez possível às criancinhas, aos loucos e assemelhados está irremediavelmente perdida para os filhos da norma; não temos a menor idéia do que seria um "olhar puro" que captasse o real em sua alteridade plena. Primeiro a pane lógica, depois o pânico, a hostilidade, o medo, o desconforto, a desconfiança, enfim, a reação cosmificadora, o domesticar e o reapaziguamento na segurança do Mesmo. O espaço semântico global, a cultura, ou a realidade enquanto produto da subjetividade é, portanto, o espelho de Narciso onde a consciência reencontra a própria face. Ou, numa imagem ainda mais forte, o escudo onde Perseu divisa a figura da Medusa, evitando contemplar sem mediação o terrível olhar que o faria paralisar-se, tornar-se de pedra, impotente. Medusa é o outro, temível e fascinante.

 

GOMES, W. da S. Metaphors of difference. Trans/Form/Ação, São Paulo, v. 15, p. 131-147,

1992.

 

■ ABSTRACT: The idea of reality as construction may be one of the most recurrent themes cutting across Modern and Contemporary thinking. Objectivist realism has professed reality to be external and independent of subjectivity and maintained that experience was the capacity of being affected by things through the senses and of reproducing them as representative mental contents. As a reaction, Modernity will establish: a) that consciousness is not merely receptive passivity but a configurant activity; b) that reality is not reflected by consciousness but, rather, is somehow constructed by it. Our time rescues such heritage in a particularly fecund manner in the semiological discourse. Intersubjectively construc- ted reality is a web of meanings and values which man institutes around himself in the world. Reality sediments in systems of sign vehiculation (specially the language) and becomes fixed in codes. Therefore the question: if reality, as construction, has the limits and scope of code, how does consciousness (and its records) behave concerning the non-codified, the non-constructed, in the absence of a code? This article deals with some views of this other of consciousness, presented as declensions of metaphor of absence.

■ KEYWORDS: Code; consciousness; reality as construction; philosophy of consciousness; other; sign.

 

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[1] Departamento de Comunicação - Faculdade de Comunicação - Universidade Federal da Bahia.

[2] "(..) se abstrairmos da nossa constituição subjetiva, o objeto representado com as propriedades que lhe atribuía a intuição sensível Jou o conceito do entendimento), não se encontra mais nem pode mais se achar em parte alguma, pois é precisamente esta mesma condição subjetiva que determina a forma desse objeto como fenômeno". Kant, I. Kritik der reinen Vernunft. In: Werkausgabe. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974. 88 p.

[3] Cf. a célebre introdução à Kawi-Werke: Veber die Verschiedenheit des menschlichen Sprachbaues und ihren Einfluss auf die geistige Entwicklung des Menschen-geschlechts, in Wilhelm von Humboldt. Schriften zur Sprache. Stuttgart: Phillipp Reclam Jun., 1973. p. 30-207.

[4] Cf. sobre a questão do cosmos, Karl Loewith. Mensch und Menschenwelt. In: Saemtliche Schriften Stuttgart: Metzlez, 1981, p. 295-328. v. 1

[5] Cf. Heráclito de Efeso, Fragmento 50: "Não de mim, mas do logos tendo ouvido é sábio homologar: tudo é um". In: Pré-socráticos, I. Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1989. p. 56 (Os Pensadores)

[6] 6. Quem apresenta uma interessante reflexão sobre o espaço no "pensamento mitico" é Ernst Cassirer, Philosophie der symbolischen Formen. Berlim: Bruno Cassirer, 1925. v. 2.

[7] A melhor referência sobre este tema continua sendo Rudolf Otto, Das Heilige München: Beck, 1987.

[8] São muito sugestivas, a esse respeito, as observações de Christian Delacampagne, L'invention du racisme. Paris: Fayard, 1983. par.3, p. 51-74. 1a. parte; "Approches de l'autre".