OBJETOS INTENCIONAIS E EXISTÊNCIA OBJETIVA

 

 

Jairo José da SILVA[1]

 

umnRESUMO: Neste artigo quero apontar para a possibilidmie de ontologia da matemática que, mesmo mantendo alguns pontos em comum com o platonismo e com o construtivismo, desli­ ga-se destes em outros pontos essenciais. Por objeto matemático entendo o foco referencial do umn	nomas,discurso matemático, ou seja, aquilo sobre o qual a matemática fala. Entendo que a existência destes objetos meramente intencional, presuntiva, simultaneamente, objetiva, no sentido de masumnser existência comunalizada, compartilhada por todos aqueles engajados fazer matemático. A existência objetiva das entidades matemáticas não está, entretanto, garantida de vez porumn todas, apenas enquanto o discurso matemático for consistente. Este é o esp{rito do crittrio deum existência objetiva enunciado que, acredito, deve sustentar ontologia matemática sem o pres­ suposto da existência independente dedomlnio de objetos matemáticos, sem o empobrecimento que lhe impõem as diferentes versões construtivistas e sem a aniquilação que lhe infringe o formalismo sem objetos.

 

UNrrERMOS: Ontologia da matemática; existência matemática.

 

 

A dream we dream aLone is only a dream. a dream we dream together is reality

John Lennon

 

Bertrand Russell disse, certa vez, que na matemática não se sabe do que se está falando, nem se o que se fala é verdadeiro. Mais do que um mot d'ésprit do grande homem, esta aflrmação é o relato fiel de uma matemática formalista levada às últimas conseqüências. A matemática entendida como um jogo de símbolos sem signillcado, segundo regras explicitamente estabelecidas é, a rigor, um discurso sobre nada em particular.Conseqüentemente,nãolhecabenenhumanoçãodeverdadecomotal, a não ser a sua pré-condição formal, a consistência. Nestas condições dificilmente a matemática se poderia chamar ciência, que é sempre um discurso verdadeiro sobre algo.

Mas esta não é, evidentemente, a doutrina oficial sobre o que é a matemática. Para alguns(e.g.Gõdel)a matemática, comoqualqueroutra ciência,apenas descreve uma realidade, independentemente existente, como a encontra, seus enunciados são verdadeiros porque dizem de certos estados de coisas que são como realmente são, e enunciados presentemente indecidíveis (comoa hipótese do contínuo, por exemplo) são, não obstante nossa presente ignorância, ou verdadeiros ou falsos. Este ponto de vista, que chamaremos de platonismo ou realismo(ontológico), nos coloca grandes questões, algumas aparentemente insolúveis, das quaisnão é amenor aquela que pergunta ondeexatamente devemos procurarosobjetosmatemáticos , umavezque não são objetos em nenhum grau acessíveis aos sentidos, nem, enquanto existentes in­ dependentemente, objetos mentais, nem, evidentemente, habitantes do empíreo celeste.

Em oposição aos realistas, os intuicionistas, da escola de Brouwer têm respostas prontas a estas questões. Os objetos matemáticos são propriamente constructos mentais.

A matemática reduz-se, assim, a um dossiê de vivências mentais . A conseqüência mais notável deste ponto de vista é a desqualificação da noção clássica (realista) de verdade e o resultante abandono dos princípios clássicos da lógica.

É nossa opinião que é possível uma filosofia da matemática que preserve do rea­ lismo algumas teses, masque se recuse em acompanhá-lo em todas elas, e que por outro lado conceda aos intuicionistas, e outros construtivistas, alguns pontos.

Queremos neste artigo argumentar:

1                             - que os objetoseestadosdecoisasdeque trata tematicamente a matemática são, como em qualquer ciência,meramenteintencionais.Concedemosassim aos realistas a equiparação da matemática às ciências naturais , mas anulamos o seu pressuposto metafísico. Acreditamos , aliás, que posturas metafísicassão aoepistemologicamente irrelevantes. Aos construtivistas concedemos que as obje­ tividades matemáticas são indissociáveis da consciência, mas nos recusamos em remetê-las à interioridade psíquica, o que nos levaria psicologismo e ao solipsismo;

2                            - que a objetividade do discurso matemático é essencialmente constituída pela intersubjetividade cultural. Enunciaremos, na seqüência, alguns critérios de existência objetiva dos entes e situações matemáticas baseados nas noções de invariância e consistência, que pressupõem que uma linguagem e, mais geralmen­ te, uma racionalidade, sejam compartilhadas por uma comunidade co-partícipe na tarefa do fazer matemático.Concedemos, assim, aosrealistasque a matemática é uma ciência sob a nonna da objetividade, mas novamente sem conceder-lhes o pressuposto metafísico da existência independente de uma realidade à qual o discurso matemático se refira, negando simultaneamente o subjetivismo inerente às escolas construtivistas.

Os objetos e as situações da matemática não são , como querem os realistas, inde­ pendentes. Sua própria natureza é de objetos dependentes da consciência que os constitue intencionalmente. Nem são por isso, como querem os intuicionistas, objetos mentais. A matemática é um fazer comunalizado, cujoobjetoé,tipicamente,um objeto cultural,enãoum dossiê de vivências mentais de uma consciência ideal, mais ou menos realizada nos matemáticos reais.

Comecemos com um exemplo. Suponhamos um domínio de objetos que " se ofereça" a nós em alguma forma de intuição fundamental, suponhamos, neste exemplo, o domínio dos pontos do espaço (Nota A). Aceitemosque nenhuma forma de per­ cepção de objetos é apenas percepção dos objetos enquanto tais, mas de objetos em configuração (Nota B). Assim, os pontos do espaço se apresentam segundo certas relações fundamentais que seriam, segundo Hilbert:

1    - a relação ternária: três pontos estão alinhados;

2     - a relação: três pontos distintos A, B e C estão alinhados e B está entre A e C;

3     - a relação: quatro pontos são coplanares;

4     - a relação de congruência AB=CD entre dois pares de pontos AB e CD.

Uma certa correspondência p entre pontos do espaço que a cada ponto A faz cor­ responder um único ponto,quedenotaremospor p(A),e talquepara cada pontoB exista um único ponto A t.q. B=p(A)será chamada de um automorfismo do espaço se para cada uma daquelasrelações básicasacimativermosque se uma seqüência de pontos AI"'" An está na relação, entãoaseqüênciadepontosp(Al>, •, p(An) também estará na relação, e vice-versa.

Tomemos duas figuras (que podem ser entendidas como conjuntos de pontos) que sejam intuitivamente similares, isto é, com a mesma forma (segundo Leibniz, que são indiscerníveis, cada uma considerada em si mesma). Podemos tomar o conceito de similaridade preciso dizendo que:duas figuras são similares se podem ser levadas uma na outra por uma correspondência que não altere a disposição dos pontos do espaço da perspectiva das relações elementares, isto é, se existe um automorfismo do espaço que leve uma na outra. É exatamente por isso que Weyl afirma que, para os geômetras,a jarmade figuras éalgo objetivo (aomenosparaa geometria euclidiana) e propõe o seguinte cririo de objetividade:

uma qualquerrelação entre pontosdo espaço éobjetiva se é invariante com respeito a qualquer automorfismo, isto é,seR éuma talrelaçãoepéumautomorfismo, então R(AI,. ., AnJ  R(P(AI),... , p(An).

Assim, por definição de automorfismo, todas as relações fundamentais são objeti­ vas. São também objetivas todas aquelas derivadas das fundamentais por certas ope­ rações lógicas, como por exemplo, disjunção, negação, conjunção, quantificação, etc.

Tudo muito bem, mas nossa maneira de apresentar as coisas distorceosfatos. Quando nos dispomos a estudar a geometria do espaço, nem as relações fundamentais, nem os axiomasque as envolvem, nos são conhecidos. Já Se fazia geometria há milê­ nios antes de Hilbert listar as relações básicas e os axiomas da geometria euclidiana.

O que ocorre,em verdade,éuma inversãodaordemapresentada acima.Começa­ se com um grupo de transformações G (um conjunto especial de correspondências . entre pontosdo espaço), a partir deste grupo defme-se similaridade (duas figurassão similares se podem ser levadas uma na outra por uma transformação de f) e objetividade (uma relação é objetiva se é invariante com respeito a todas as transformações de r). A questão da axiomatização da geometria é agora uma questão secundária.

É esse exatamente o sentido que Feliz Klein tinha em mente,no programa Erlanger, ao dizer que uma geometria é determinada por um grupo de transformações.

O interessante no approach de Klein é que o grupo r é mais ou menos arbitraria­ mente escolhido. Não se faz, como no caso da descoberta das relações fundamentais, apelo a nenhuma intuição doadora, o que enfatiza ainda mais o caráter, ao menos em parte, convencional dos objetos de estudo (os invariantes objetivos) da geometria em questão.

Se existe alguma possibilidade de disputa quanto à evidência das relações funda­ mentais entre pontosdo espaço,não parece haver senão acordo quanto à evidência da relação de sucessão entre números inteiros não negativos (os números naturais). Weyl e Poincaré consideram a intuição dos números naturais dados na ordem deter­ minada por esta relação como a mais fundamental das intuições matemáticas. Kant considera o esquema de um suceder-se de unidades homogêneas discretas como o esquema formal de todos os processos seriados , o que vale dizer de todas as expe­ riências do sentido interno.

Sobre esta intuição fundamental, isto é, dados o domínio dos números naturais e a relação básic:;a (binária) entre números naturais: m é o sucessor de n, Weyl (6) busca desenvolver toda a teoria clássica dos números reais e das funções reais contínuas.

O critério de objetividade aplicado a este caso, entretanto, trivializa-se, uma vez que a transformação identidade é o único automorfismo entre números naturais com a relação sucessor e, assim, qualquer relação definida será objetiva.

uumnuwnrmasOfato de que, em Das Konti , Weyl considera apenas as relações derivadas da relaçãosucessor por explícitas regras , mostra que outros compromissos filos6ficos o prendem além do critério de objetividade. Explicitamente, o compromisso com uma forma de construtivismo que pode ser lida nos primeiros trabalhos de Husserl (que foi professor de Weyl), onde relações complexas num dornfuio devem ser constituí­ das segundo intenções expressas por fode uma linguagem originariamente dada. No caso de Das Kontin , esta é uma linguagem não elementar (isto é, mais com­ plexa que as linguagens de I ordem) , cuja única relação básica é a relação sucessor.

ammeÉ prática comum em matemática a introdução de elementos ideais num domínio previamente constituído, em geral tendo em vista a preservação de certas leis simples. Um exemploé a introdução por Ku r (18 10-1893) de números ideais na teoria dos números, fim de restaurar as leis de divisibilidade, perdidas na passagem dos números racionais aos números algébricos, um outro é a introdução de números imaginários (séculoXVI)para o tratamento formal deequaçõesalgébricas, ou ainda os pontos no infinito da geometria projetiva.

É possível,àsvezes,interpretartaiselementosideaiscomomeras façonsde parler, como substitutos convenientes de objetos já presentes no dornfuio de partida, como por exemplo "quando entendemos que um número imaginário não i senão um par de números reais".

Alguns matemáticos , como por exemplo Hilbert, estariam inclinados a vê-los como nomes sem referência, e todo o discurso que os envolva como literalmente sem signi­ ficado, do qual se pediria que fosse apenas logicamente consistente, e cuja única finalidade seria selVir como um meio para se derivar enunciados sobre os entes do domínio previamente dado, estes sim significativos , aos quais os entes ideais se agregam sem compartilhar com eles o mesmo status ontológico.

Como esta saída nem sempre é possível e como também nem sempre podemos "eliminar" um ente ideal por redução, temos que enfrentar a questão : que "existência" lhes atribuir? Em que sentido podemos dizer que existem objetivamente?

Acredito que a resposta mais correta seria que eles existem como objetos intencio­ nais , e existem objetivamente como existem as entidades teóricas das ciências natu­ rais , vírus ou galáxias, o éter eletromagnético (Nota C) ou campos grevitacionais. Voltaremos a este assunto mais adiante.

Dado que para Weyl o único domínio constituído da intuição matemática é o dos números naturais com a relação do sucessor (Weyl afIrma que sua existência está em si), todos os elementos da análise, números racionais, números reais e funções devem ser introduzidos como elementos ideais.

O que nos lembre o muito citado dito de Kronecker: os inteiros foram criados por Deus, todo o resto é trabalho do homem.

Como Weyl considere apenas relações objetivas entre números naturais, a sua análise trabalha apenas com númerose funções reais objetivos , que nada mais são que objetos dejin fveis, a partir dos números natureis por relações deriváveis da re­ lação básica de sucessão por algumas poucas operações lógicas. Em Weyl, os objetos abstratos tem assim necessariamente uma estrutura sintática e apenas os números na­ turais são sintaticamente simples.

Esta saída para o problema ontológico relativo às entidades ideais é inspirada por Husserl, que em muitos textos, em especial em "A Origem da Geometria" , aponta para a linguagem cómo constituinte do "corpo" das entidades abstmtas.

Resumindo, no tmtamento construtivo da análise matemática sob a norma da obje­ tividade, Weyl considera dois domínios distintos de objetos e relações , de um lado os números naturais e a relação básica de sucessor, dados numa intuição fundadore e, portanto, sintaticamente simples, de outro os demais números e outros objetos com­ plexos e relações derivadas, portanto , sintaticamente complexas.

Há problemas entretanto, nem todos os objetos e estados de coisas ideais da análise podem ser introduzidos por abstração. O próprio Weyl não tratou senão da teoria das funções con1J{nuas. Pare o tmtamento clássico da análise, alguns objetos devem ser introduzidos, como a maior parte dos entes ideais da matemática, por simples pos­ tulação, isto é, é lhe dado um nome epropriedades,sem,noentanto,explicitar-se nenhuma relação objetiva da qual derive por abstração .

Outro problema está em se aceitar que alguns objetos e relações matemáticas se ofereçam a nós numa intuição livre originária e fundadora, de modo irrecusável. Isto equivaleriaemaceitar-sea existência de alguma espéciedeevidênciaapolítica,isto é, universal e necessária,algo um tanto afastadodo presente espírito da matemática, em especial depois do "escândalo dos fundamentos", nos primeiros anos deste século.

Assim,emquesentidoodiscursomatemáticosobreobjetoseestadosdecoisas que nem seoferecemaonossoespíritode modo irrecusável,nem são derivados destes por abstração, mas que são apenas postulados, é objetivo? Em que sentido estas obje­ tividades existem? Em quesentidoestediscurso éracional?Essesobjetose situações são, necessariamente, menos reais que os objetos e situações de outras ciências,ou mesmo das objetividades da percepção?

É umpressupostodorealismoingênuoquesim.Almalomundoda percepçãoe das ciências naturais esta aí, e esta presença valida a objetividade do discurso verda­ deiro sobre ele. A matemática, por outro lado,seriadona doseu próprio nariz, o mundo não lhe diria respeito, e seria de sua competência construir seus próprios objetos arbitrariamente.

Mas se por um momento nós nos recusarmos a assumir o ponto de vista do realismo ingênuo, e pusermos novamente a questão, as respostas não serão tão óbvias.

Consideremos alguns paralelos. Nos seus esforços para reduzir a aritmética à lógica, Frege, no fim do século passado, desenvolveu uma teoria de classes, onde cada pro­ priedade daria origem, por abstração, a um objeto do mesmo tipo daqueles do domínio da variável livre da propriedade em questão. Esses objetos estariam muito bem constituídos se Russell não demonstrasse que este pressuposto implica contradição.

Até o aparecimento da teoria da relatividade os físicos viam-se envolvidos com a suposta existência de um meio material de propagação das ondas eletromagnéticas , o éter, que não hesitaram em descartar assim que lhes apareceu a oportunidade, princi­ palmente porque este objeto deveria, para sempre cumprir seu papel, ter propriedades físicas contraditórias.

Imagine-se passeando por um cais,à noite, e julgando perceber na neblina um na­ vio ao longe. Mais alguns passos e você tropeça nesse objeto que acreditava ser bem maior, e estar bem mais longe.Antes mesmo de dar-se conta de em que você realmentetropeçou ,oobjetoconstituído como objeto daquela primeira percepção dissolve-se na neblina enganadora,porque éincoerenteafirmá-lo comoum navio ao largo e, simultaneamente, como aqui, em terra e aos meus pés.

Não é minha intenção enveredar-me pela fenomenologia da percepção, mas parece­ me claro que os objetos da percepção sensível podem ser tão evanescentes quanto as entidades da física ou os objetos da matemática. E essa evanescência é, tanto em sentido figurado quanto no sentido da lógica, uma perda de consistência.

Uma vez posta fora de ação a tese do realismo ingênuo, os objetos e situações ob­ jetivas, da percepção sensível ou da matemática, são meramente intencionais , isto é, presuntivos, dos quais posso aimna r a existência objetiva se, e apenas se, não puder inferir proposições contradit6rias a partir daquelas coerentes com o objeto ou a si­ tuação como intencionados.

Tragesser (Nota E) propõe o seguinte critério para a asserção justificada de existência (objetiva) de objetos presuntivos : N6s estamos justificados em afinnar que um objeto presuntivo é um objeto existente na medida em que temos e acumulamos asserções justificadas sobre ele, na medida em que podemos ver que podemos pros­ seguir acumulando mais asserções justificadas, e na medida em que podemos ver que asasserções justificadas acumuladassão, e continuarão a ser, mutuamente c onsistentes e coerentes.

Um objeto intencional é sempre dado conjuntamente com um sistema de atos de consciência que conferem validade a asserções sobre o objeto, por isso Tragesser fala deasserções justificadas

Tragesser airr ma que este critério é inspirado pela seguinte passagem do § 49 das "Idéias" de Hussed: "O que é transcendente é dado através de certas conexões empíricas.Dado diretamenteecom completude crescente através de contínuos perceptuais harmoniosamente desenvolvidos, e através de certas formas met6dicas de pensamento baseadas na experiência, atinge cada vez mais, completa e imediatamente, determinaçõeste6ricasdetransparênciacrescenteeincessante progressividade.Assumamos que a consciência com seu conteMo experimental e seu fluxo é realmente tão articulada em si mesma que o SUjeito da consciência .no livre jogo te6rico de ati­ vidade empírica e pensamento possa levar todas estas conexões à completude. • . ; assumamos, ainda, que as condições proprias pam o funcionamento consciente estão de fato satisfeitas, e no que se refere à ação da pr6pria consciência, nada falta que pudesse de alguma forma ser requerido para oaparecimentode um mundo unitário e do conhecimento te6rico mcional dele. Perguntamos agora, pressupondo tudo isto, é ainda concebtvel, não é pelo contrário absurdo, que o correspondente mundo transcendental não exista?"

Não devemos, entretanto, confundir este critério, no caso de entidades matemáticas, com aquele proposto por Poincaré (Nota D) :Um objeto matemáticoexiste na medida em que não implique contradição, quer consigo mesmo, quer com airrmações já admitidas.

Para Poincaré não se pode amnari     a existência antes de se demonstraranão­contradição,paraTmgesserpode-seairrmar existênciaamenosde manifesta contra­ dição (se isto, em algum momento, ocorrer). OcritériodeTmgesser podeservisto também como uma elaboração dasugestãode Wittgenstein (8) deque,enquanto oculta,uma contradiçãas good as gold.

Evidentemente, não podemos também confundir uma filosofia da matemática que adote tal critério de existência com um formalismo do tipo hilbertiano, onde os SÚl­ bolos para entidades ideais são apenas isto, símbolos , cuja existência, enquanto marcas no papel, é propriamente uma existência, enquanto objetos concretos.

Creio que algumas palavras são necessárias para justificar-se tomar o critério de existência objetiva, não apenas de existência para mim, mas de existência para todos que compartilhem comigo a tarefa de pensar as objetividades postas.

Para Weyl a intuição é o fundamento dltimodoconhecimento.Para que nãose chegue, entretanto, rapidamente a alguma forma de solipsismo é preciso que minha intuiçãoseja equivalente à sua intuição. Aquelas situações que eu descrevo, mas que não encontram correspondência nas situações que você descreve, devem ser descar­ tadas como ilusões, quimeras pessoais, sem significação objetiva. É este o cerne do critériodeobjetividade de Weyl que, provavelmente, foi, neste particular, influenciado por Fichte, que ele interpreta como aftrmando que do eu (prático) deriva-se a ordem doque deve ser,a ordem do ideal, masdo confmamento dessa derivação sem f101 por um princípio opositor, o não-eu, tem-se a ordem do real.

Se bem que ocritério de Tragesser possa ter uma leitura solipsista, como dando­ me critérios para que eu possa justificar a existência de objetos que me apareçam nas minhas vivências, independentemente de serem ou não objetos pdblicos (em particular nocasoda percepção sensível), ele pode igualmenteser um cririo de exisncia objetiva se a princípio o objeto for posto numa vivência coletiva, se toda a coletividade engajar-se no pensar este objeto como posto naquela vivência, e apenas assim, e se a coletividade compartilhar da mesma linguagem e dos mesmos critérios de compatibi­ lidade dos enunciadossobre o objeto. Como é evidentemente o caso das objetivida­ des das ciências.

A ciência, como nos ensina Husserl, é um projeto coletivo, os cientistas engajam-se uns com os outros natarefa conjunta de explicitar oseu sentido, e constituir o corpo de seus enunciados , no escopo de uma racionalidade por eles constituída e mantida numa linha contínua que costura o trabalho de homens separados, no espaço e no tempo, numa trama única, e fundamenta o projeto de uma ciência como um ideal num horizonte teleol6gico, cujos objetos encarnam-se, adquirem corporeidade, nos textos que podem ser a todo momento mobilizados.

A existência objetivaéassim constituída na intersubjetividade, ea objetividade que justificadamente podemos aftrmar como existente é uma objetividade cultural, da qual todos podem falar coerente e consistentemente, como estando at. para todos.

Um ponto importante a ser tocado, mas do qual não nos ocuparemos , é que um tal domínio de objetos intencionais pode admitir uma noção "clássica" de verdade e, conseqüentemente, uma 16gica clássica, mas não o fará necessariamente.

eHá domínios que podem, igualmente, admitir uma 16gica não-clássica uma noção não-clássica de verdade (intuicionista, por exemplo). Tudo depende de que atos de consciência são admitidos como validando asserções sobre os objetos do domínio. O domínio dos contínuos geométricos qualitativamenteextensivos,consideradopor Weyl (7), por exemplo, entendidos como "o que permite um desmembramento de tal espécie que as peçassão,pela sua própria natureza, da mesma espécie mais baixa que aquela determinada pelo todo indiviso" , exigem uma 16gica não-clássica. Se qui­ sermos um exemplo da física, as proposições sobre os objetos subatômicos da mecâAnica quântica n ão admitem uma lógica proposicional clássica, a lei distribuitiva, por exemplo, p A (q V s) = (p A q) v (p s) não é válida.

Finalizamos sumarizando. Colocamos a seguinte questão: é preciso pressupor-se um domínio independente de objetos para se garantir objetividade ao discurso ma­ temático? As alternativas ao realismo ontológico clássico seriam apenas ou o psico­ logismo intuicionista ou o formalismo sem objetos? Se entendermos esta objetividade como significando independente do sujeito, então não parece haver mesmo outra saída. Mas o pressuposto metafísico da existência independente de um domínio de objetos matemáticos não tem mais força para fazer sentido da matemática como tem sido desde sempre praticada que o mito compartilhado pela comunidade matemática de que tal domínio efetivamente existe.

Ou dito de outra forma: para que estes objetos deveriam existir se eu já ajo como se existissem? O que quero dizer é que se objetividade for entendida como estando aí identicamente o mesmo para todos, então a tese do realismo ontológico é irrelevante para garantir-se a objetividade do discurso matemático.

Foi neste sentido que a entendemos aqui. Os critérios que aqui expusemos nos garantem que podemos falar de objetos e situações, nós, a comunidade dos matemáticos, objetivamente, cano se existissem independentemente do fazer matemático.

O critério do Weyl tem, ainda, alguns compromissos com uma forma restrita de realismo ao pressupor que uma intuição fundamental de objetos simples e estados de coisas elementares seja compartilha com evidência por toda a comunidade.

O critério de Tragesser elimina até mesmo este vestígio platonista ao admitir que todo objeto e todo estado de coisas são sempre simplesmente intencionais. São focos referenciais do discurso no qual a comunidade se engaja, denotados pelos nomes e relações da linguagem na qual se o discurso e cuja existência objetiva, para esta comunidade, está garantida a menos que haja evidente inconsistência do discurso. A inconsisncia lógica acarta a inconsistência ontológica.

Se a busca de critérios de existência objetiva nos levou necessariamente ao relati­ vismo intersubjetivo é porque, como diz Weyl (7), "quem quer que deseje o absoluto, deve introduzir a subjetividade e o egocentrismo na barganha; quem quer que se dirija ao objetivo, deve fazer face ao problema da relatividade".

 

NOTAS

A- Herman Weyl não aceitaria que pontos geométricos se apresentam intuitiva­ mente. Pelas suas características tais pontos são constructos te6ricos.

B- O que Searle afIrma para a percepção visual valeria para qualquer forma de in­ tuição: ali seeing is seeing that (Cf. 3).

C - Esta pseudo-entidade foi mencionada para lembmr que a existência de objetos intencionais é meramente presuntiva, e que do ponto de vista fenomenológico esta é a dnica forma de existir que conta, mesmo para os objetos da percepção

sensível.

D - (Cf. 1 e 2).

E - (Cf. 4 e 5).

 

 

SILVA, J. J. da. lntentionalobjects andobjectiveexistence.Trans/FormlAção,SãoPaulo, v. 14, p. 155- 1 64, 1991.

 

ABSTRACT: In this paper I show the possibility of an ontology of mathematics that keeps some points in common with platonism and constructivism while diverging from them in other essencial ones. Iunderstandthatmathematicalobjectsaresimplythe referential focus of mathematical discourse, I also understand that their existence is merely intentional but none the less objective, in the sense of being shared by all those who are engaged in the mathematical activity. However, the objective existence of mathematical entities is not secured once andfor ali but only in so far as the mathematical discourse is consistent. This is the core of the criterium of objective existence put forward and that I believe should sustain a mathematical ontology without the presupposition of the independent existence of a domain of mathematical objects, and without the . restrictions imposed onit by constructivism andformalism in theirvariousversions.

 

KEYWORDS: Mathematical ontology; mathematical existence.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1.    POINCARÉ, H.Science et méthode .Paris: Flamarion, 1927.

2.    POINCARÉ, H.La scienceet fhypothese .Paris: Flamarion, 1943.

3.    SEARLE, J. Intentionality: an essay in the philosophy of mind. Cambridge: Cambridge University Press, 1983

4.    TRAGESSER, R. Phenomenology and logic.ComeTI University Press,1977.

5.    TRAGESSER, R. Husserl and realism in logic and mathematics. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.

6.    WEYL, H. Das Kontinuum: Kritische Untersuchungen über die Grundlagen der Analysis. Leipzig: Gruyter, ·1918.

7.    WEYL, H. Philosophy ofmathematics and natural science. New York: Atheneum, 1 963.

8.    WITTGENSTEIN, L. (1939) Wittgenstein's lecturesonthe foundationsof mathematics. Cambridge. 1939. Ed. por Diamond. Harvester: Hassosks, 1976.



[1] Departamento de Matemática do Instituto de Geociências e Ciências Exatas - UNESP - 13500 - Rio Claro ­ SP