ROBOTS, INTENCIONALIDADE E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL[1]

 

João de Fernandes TEIXEIRA[2]

 

RESUMO: O artigo aborda probleTrUls filosóficos relativos à natureza da intencionalidade e da representação mental. A primeira parte apresenta um breve histórico dos problemas, percorrendo rapidamente alguns episódios da filosofia clássica e da filosofia contemporânea. A segunda parte examina o Chinese Room Argwnent (Argumento do Quarto do Chinês) formulado por J. Searle. A terceira parte desenvolve alguns argumentos visando mostrar a inadequação do modelo funcionalista de mente na construção de robots. A conclusão (quarta parte) aponta algutnas alternativas ao modelo funcionalista tradicional, como, por exemplo, o conexionismo.

 

UNfl'ERMOS: lntencionalidade; representação mental; inteligência artificial; funcionalismo; robots; conexionismo.

 

I

 

umaramA questão danatureza da intencionalidadeeda representaçãomental constitui dos mais tradicionais problemas da Filosofia. Em diversos episódios da história das idéias, os filósofos tentam esponder a pergunta de como é possível pard nossa mente formar uma representação do mundo exterior que servisse de guia não só para sua cognição como, também, para a orientação de nossos próprios comportamentos.

O surgimento da filosofia cartesiana, na época clássica, constitui um marco importante na história desta questão. Com efeito, deve-se a Descartes a revolução filosófica que trouxe como conseqüência fun<lamental a separação entre mente e corpo, ou entre res cogitans e res extensa. Mas ao mesmo tempo em que efetuava esta mudança paradigmática na história da Filosofia, o cartesianismo deixava como herança não apenas o problema de formular uma articulação entre as duas substâncias de modo a poder explicar o comportamento, como também a questão da própria possibilidade de cognição do chamado mundo exterior. Uma vez postulada a existência de duas substâncias distintas e sua mútua irredutibilidade, restava saber como nossas idéias (ou representações) poderiam espelhar esse mundo fora de nós e para além dos limites de nossa mente.

Uma solução parcial para o problema, oferecida pelo cartesianismo, foi sustentar a existência de um Deus Todo-Poderoso e não enganador que asseguraria a correspondência entre o mundo e arepresentação mental que deleformamos. Este Deus - o famoso deus ex machina cartesiano - constituiria uma espécie de garantia metafísica de que oconhecimentoea representação correta do mundo exterior poderiam ser alcançados.

Contudo,aorelermosaobra deDescartes,notamos hoje quea idéia de um deus ex machina parece muito mais uma hipótese ad hoc do que uma real tentativa de resolver o problema da natureza da representação mental. E alguns anos mais tarde, num episódio posterior da história da Filosofia, a questão parece ser retomada, desta vez com a obra de I. Kant. Com efeito, se tivéssemos de fazer um resumo brutal e ao mesmo tempo grosseiro do contet1do da primeira Crítica kantiana, poderíamos dizer que Kant buscava· investigarcomo que operações internas de nossa mente poderiam captar relações objetivas estabelecidas no mundo externo, tomando assim possíveis o conhecimento e a representação adequada de uma realidade independente de nós. A solução proposta por Kant - muito mais interessante do que a cartesiana - foi afirmar que a realidade que enxergamos e representamos é moldada pelas operações do nosso aparelho cognitivo. Assim, o estudo deste t1ltimo proporcionaria ao mesmo tempo o conhecimento da t1nica versão do mundo que nos é disponível - uma versão que não é, contudo, subjetiva, mas limitada pelo modo como nossas representações podem se articular.

Os séculos XIX e XX contribuíram com mais alguns episódios interessarites na história do problema da natureza da representação mental. Em 1925, o psicó10go e filósofo Franz Brentano publica a Psychologie von empirischen Standpunkt e, numa de suas passagens freqüentemente citadas afirma que:

Every mental phenomenbn is characterized by what the scholastics of the Midle Ages called the intentional (and also mental) inexistence of an object, and what we could call, although in not entirely unambiguous terms, the reference to a content, a direction upon an object (by which we are not to understand a reality in this cases) or an imnt objectivity (1, p.50).

Brentano reviveu o termo intencionalidaáe de textos de filósofos medievais. Ele não queria pura e simplesmente reviver o termo resgatando seu significado original, mas também explorar algumas das conseqüências advindas de sua re-adoção. Uma delas (e cremos que seja a mais importante) foi asseverar a existência de um hiato entre o físico e o mental, derivado da impossibilidade de sistemas físicos virem a gerar estados intencionais.

Nesteponto Brentano parece ter sido bastante fiel à tradição medieval que o inspi- . rara. Os filósofos medievais julgavam que, todas as vezes que pensamos,por exemplo, numa rosa, uma rosa entra na nossa mente. Claro que a rosa que entra na nossa mente não pode ser uma rosa no sentido f(sico, e daí eles julgarem que a geração de idéiaserepresentações requer a capacidadede nossa mente receber formas imateriais - algo que seria possível na medida em que nossa mente nada tem de físico.

A imaterialidade da mente seria, assim, um pré-requisito da sua própria faculdade de representar objetos do mundo exterior.

Mas a importância histórica das teses de Brentano não se resume a re-afinção da imaterialidade do mental. É a partir de seus textos que se inicia uma aproximação entre as questões envolvendo a natureza da representação mental e aquelas envolvendo a natureza da intencionalidade e dos estados intencionais, que passam a ser vistas como constituindo um único problema filosófico amplo e gemI. Assim sendo, representar significa estabelecer uma relação entre um conteúdo mental e o possível objeto a ele correspondente no mundo exterior - uma relação que pressupõe uma direcionalidade em relação a este objeto. Detenninar a natureza desta relação e da direcionalidade que a toma possível significa encontrar uma solução pam o problema da intencionalidade e da natureza da representação mental.

Ecos desta nova maneira de formular a questão tradicional da representação mental podem serencontradosnaliteratum contemporâneasobre Filosofia da Mente, como por exemplo a seguinte passagem da Análise da Mente de B. Russell :

"Vamos supor que estamos pensando na Catedral de S. Paulo. (...) temos de distinguir três elementos que necessariamente se combinam na constituição desse pensamento. Primeiro, temos o ato de pensar, que será o mesmo, independentemente do que estivermos pensando. Depois temos o que caracteriza o pensamento em comparação com outros pensamentos: é o conteúdo. E finalmente, temos a Catedml de S. Paulo, que é o objeto de nosso pensamento. Deve haver uma diferença entreoconteúdodeum pensamentoe aquilo sobre o que o pensamento recai, dado que o pensamento está aqui, ao passo que aquilo sobre o que o pensamento recai pode não estar; portanto vê-se claramente que o pensamento não é o mesmo que a Catedral de S. Paulo. Isto parece mostrar que devemos distinguir entre conteúdo e objeto. (... ) O objeto pode existir sem opensamento, mas o pensamento o. pode existir sem o objeto: os três elementos , ato, conteúdo e objeto são todos obrigados a constituir uma única ocorrência chamada "pensar na Catedml de S. Paulo." (3, p. 14)

Se lermos esta passagem de B. Russell com a devida atenção, verificaremos que nela se esboça nitidamente a relação conteúdo-objeto do pensamento bem como a idéia de uma direcionalidade (intencionalidade) presente na relação que dá lugar a representação mental.

 

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O surgimento de disciplinas novas tais como a Inteligência Artificial e a Ciência Cognitiva que presenciamos nas últimas décadas , reavivou os debatesfilosóficos acerca da natureza da representação mental. A Inteligência Artificial, na tentativa de realizar um de seus principais projetos, qual seja, a simulação do comportamento inteligente, deparou-se com a questão : Pode um sistema artificial gerar estados intencionais e representar o mundo exterior? Será que, como supunha Brentano, a intencionalidade determina um hiato intransponível entre o físico e o mental de tal maneira que a geração de estados intencionais através da construção de sistemas artificiais (f{sicos) estaria inevitavelmente condenada ao fracasso? Esta indagação traz uma nova dimensão para o problema ttlosófico tradicional da representação mental; uma dimensão que extravasa os limites de uma polêmica puramente ttlosófica. Afinal, da capacidade de gerar estados intencionais depende a própria possibilidade de simular comportamentosinteligentes,dotados deelevado grau de flexibilidade,uma vez que a representação do mundo exterior contribui diretamente para sua adaptação face a mudanças nas circunstâncias ambientais.

ramaEste debate toma um impulso decisivo a partir da publicação do artigo de J. Searle, Minds, Brains and Programs em 1980. Neste artigo, Searle apresenta uma critica vigorosa da possibilidade de se obter um equivalente mecânicoparaofenômeno cognitivo humano que normalmente denominamos compreensão. Seu ponto de partida éaanálisedosprogspara compreenderhistóriascurtasdesenvolvidaspor R. Schank na Universidade de Yale e que se concretizaram no trabalho Scripts, Plans, Goals and Understanding.

oOs programas desenvolvidos por R. Schank - conforme assinalamos - têm por objetivo a compreensão de histórias. Por exemplo, se se fornece a um computador seguinte relato: um homem entranum restaurante, pedeum sanduíche esaisem pagar ou deixar gorjeta porque notou que o pão estava estragado, o programa de Schank é construído de tal maneira que lhe é possível responder coerentemente questõeselaboradas com base no texto da história. Tendo em vista estesresultados, Schank sustenta que este tipo de programa é capaz de compreender o texto e constituir uma explicação para a capacidade do ser humano de compreender textos ou histórias curtas.

As criticas desenvolvidas por Searle às pretensões de que um tal programa realmente compreende baseiam-se na construção de um experimento mental que reproduz o procedimento do próprio programa. O caminho adotado por Searle para construir . este experimento mental é o inverso do procedimento normalmenteutilizadopara elaborar simulações cognitivas: trata-se deinstanciaroprogramadeSchanknum sujeito humano.

Imagine um falante trancado num quarto. Este falante conhece o Português e tem em seu poder: a) um texto escrito em Chinês; b) um conjunto de regras de transformação, em Português, que permite executar operações sobre o texto em Chinês. Estas operações são idênticas àquelas desempenhadas pelos programas de Schank: trata-se de operações de decomposição e recomposição de palavras com base num script que contém informação relevante (por exemplo, sobre como são os restaurantes em geral, qual o procedimento para pedir comida, etc.) o que capacita o sistema a responder as questões desejadas.

O falante (trancado no quarto) recebe periodicamente novos textos em Chinês e aplica estas operações ou regras de tran sformação associando as seqüências anteriores com as seqüências mais recentes. Com base nestas regras de transformação ele passa a emitir ou escrevermaisseqüências de símbolos em Chinês.Claro que o falante preso noquartonãosabeprecisamenteoconteddodasinformaçõesqueeleestágerando· com basenosdoistextos e nas regras de transformação. O primeiro texto corresponde, no nosso experimento mental, ao relato que é elaborado com base neste relato, e, as <novas seqüências geradas, àsrespostasaestasquestões.Asregrasdetransformação são bastante complexas, e concebidas de maneira tal que elassimulemosprocessos mentais e o comportamento lingüísticodeumfalante nativo deChinês numa conversação habitual. Após um certo tempo o falante aprendeu a manipularperfeitamente estas regras de transformação, e, combasenos outputs um observador externo poderia dizer que ele compreende Chinês - o que, no entender de Searle constitui um contra-senso.

A instanciação dos programas de Schank num sujeito humano, reproduzida neste experimento mental, é, para Searle, bastante reveladora. Ela mostra que os programas desse tipo não estabelecem as condições necessárias para a simulação da atividade cognitiva da compreensão: o falante aplica as regras de transformação e compreende estasregras,mas as seqüências de símbolos em Chinês não têm nenhum significado para ele. A manipulação de símbolos realizada no programa é inteiramente cega.

Ademais, como ressalta Searle na resposta às objeções ao seu texto Minds, Brains and Programs, "a manipulação de símbolos formais por si só não tem intencionalidade, não é sequer manipulação de símbolo, uma vez que esses símbolos não simbolizam nada. Eles têm apenas sintaxe, mas não semântica". (4, p. 3(0)

Ainda na sua resposta às objeções, Searle ressalta que a esses programas "falta aquilo que chamarei de intencionalidade intrÚlseca ou de genuínos estados mentais". (4, p. 305)

A atribuição de intencionalidade ou de significado diz Searle, é,nestescasos, sempre uma atribuição a posteriori, dependente da intencionalidade intrÚlseca dos sujeitos humanos que observam os outputs do programa.

Mas o que é"intencionalidade intrínseca" no entender deSearle, e que parentesco tem esta noçãocom aidéia de significado? O conceito de intencionalidade intrínseca não é largamente explorado em Minds, Brains and Programs. Searle o desenvolve com maior profundidade em outrosartigos,taiscomo lntrinsic lntentionality e What are lntentional States (1982), bem como no seu livro de 1983,lntentionality. A intencionalidade, segundo Searle, é uma "capacidade" apresentada pelos seres vivos, através da qual nossos estados mentais serelacionamcom osobjetose estados de coisas no mundo. Assim, se tenho uma intenção, esta intenção deve ser a intenção de fazeralgumacoisa,se tenho um desejoou um medo, estedesejo e este medo devem ser um desejo oumedode alguma coisa que está no mundo. Um estado intencional pode ser definido, grosso modo, como uma representação associada a um determinado estado psicológico.

Esta mesma capacidade - estritamente biológica no entender de Searle - percorre nossa linguagem, convertendo-a num po particular de relação organismo/mundo. Contudo, ela não é uma propriedade da linguagem e sim uma propriedade específica que · nossos estados mentais imprimem ao nosso discurso. Nesta operação, os sinais lingüísticos, sejam eles os sons que emitimos ou as marcas que fazemos no papel, passam a ser representações de coisas ou estados de coisas que ocorrem no mundo, e no caso específico das representações lingüísticas podemos afirmar que elas constituem descrições dessas representações ou mesmo representações de representações que estão na nossa mente. A intencionalidade dos estados mentais não é derivada de formas mais primárias da intencionalidade, mas é algo intrÚlsecO aos próprios estados mentais. Nestesentido,a intencionalidade é a propriedade constitutiva do mental e sua base é estritamente biológica - só os organismos desempenham esta atividade relacional com o mundo, constituindo representações. Sua origem está nas próprias operações do cérebro e na sua estrutura, constituindo parte do sistema biológico humano, assim como a circulação do sangue e a digestão.

A intencionalidade intrÚlseca, presente no discurso lingüístico, constitui uma forma derivada de intencionalidade que consiste na relação das representações lingüísticas com os e stados mentais intencionais, o que permite que estas 11ltimas sejam representações de alguma coisa do meio ambiente. Em outras palavras , esta relação entre representações lingüísticas e estados intencionais transforma o código lingüístico num conjunto de signos, ou seja, estabelece o seu significado. Neste sentido, a intencionalidade intrÚlseca constitui para Searle a condição necessária para que um sistema simbólico adquira uma dimensão semântica. Sem esta dimensão semântica não podemos falar de compreensão. E sem esta relação entre representações mentais ou contel1dos intencionais e representações lingüísticas não podemos falar de compreensão de textos ou compreensão lingüística.

mnaA ausência da intencionalidade intrÚlseca nos programas desenvolvidos por Schank está na base da af ção de Searle de que estes l1ltimos constituem um procedimento cego de associação de signos sem significado - um procedimento cego que o deve ser confundido com autêntica compreensão lingüística.

Ora, até que ponto podemos supor que as afirmações de Searle são corretas ? Se o forem, a questão que formulamos no início desta secção e staria respondida em caráter definitivo, ou seja, sistemas artificiais não podem gerar estados intencionais e nem tampouco representar o mundo exterior.

Ocorre que vários filósofos favoráveis ao projeto da Inteligência Artificial apresentaram vários contra-argumentos às posições defendidas por Searle. Alguns deles apontaram falhas no argumento principal, salientando que não sabemos se de fato os computadores podem ounão compreender alguma coisa.A situação seria semelhante a quando observamos um ser humano responder a perguntas acerca de um texto qualquer: como podemos estar certos de que essa pessoa compreende o que está fazendo? Por acaso muitos de nossos processos mentais cotidianos não são tão rotineiros queosfazemos por umaassociação tão mecânica e cega como as do computador? Se as operações efetuadas pelo falante trancado no quarto são cegas, será que não podemos afirmar o mesmo de nossas proprias operações mentais? Mesmo quando tentamos examinar o fluxo de nossos pensamentos, isto não nos nenhuma informação acerca de comoocorrem asoperações de nosso cérebro .Somos, em grande parte, opacos para nós mesmos - e não seria essa uma situação idêntica àquela de alguém que olha para os resultados das operações de um computador e, com base nestes 11ltimos, quer sustentar a afIrmação de que essa máquina nada compreende acerca dessas operações?

É difícilsaber quem tem razão num debatedeste tipo: como todas as polêmicasum filosófIcas, esta também deve ser inconc1usiva. Entretanto, é preciso fazer uma observação importante: a crítica de Searle pode ser considerada correta se levarmos em conta o tipo de modelo computacional da mente sobre a. qual ela recai. Trata-se de modelo muito específico e que vigorou até meados dos anos 80, qual seja, o ftmcionalismo.

O funcionalismo baseia-se na tesede que a essência de nossos estados psicológicos reside na sua interconexão (às vezes causal) com outros estados, formando uma complexa economia de estados internos que media os inputs do meio ambiente e os outputs comportamentais. A natureza e a razão de ser destes nossos estados mentais - sejam elescrenças,volições,imagen s mentais ou o que quer que seja-são determinadas fzmcionalmente tendoem vista os objetivos e tarefas que umsistema vai realizar.A peculiaridade desta concepção reside, contudo, no fato de que os estados mentais e sua natureza são definidos e constituídos através de um conjunto de relações abstratas que eles mantêm entre si. Este conjunto pode ser instanciado em diferentes mecanismos ou sistemas, sejam eles computadores antigos com suas válvulas , sej am organismos com sua estrutura biológica como é o caso do homo sapiens. Se o sistema é capaz de instanciar este conjunto de relações abstratas, ele será um sistema mental ou uma "mente" .

A contrapartida computacional desta concepção de mente será a idéia de que a produção de comportamento inteligente baseia';'se na manipulação adequada de SÚD bolos, de acordo com um conjunto de regras que uma vez aplicadas a estes sÚDbolos devem gerar procedimentos efetivos (Nota A) . A mente é uma máquina que realiza computações, isto é, que opera sintaticamente sobre representações. Uma determinada tarefa é computável se- ela puder ser concebida de tal forma que seja reduzida a um conjunto de representações e de instruções (regras, programas) que opere sobre elas.

Ora, até que ponto este modelo de mente será válido? Discutir a validade do argumento de Searle parece pressupor, num primeiro momento, uma discussão dos limites do modelo funcionalista.

 

fi

 

Numa passagem bastante significativa, o lingüista e filósofonorte-americanoJ. Fodor procura definir a noção de computação que norteia a elaboração dos modelos funcionalistas da mente:

"I take it that computational processes are both symbolic and formal . They are defined over representations, and they are formal because they apply to representations in virtue of (roughly) the syntax of representations." (2, p. 226)

rmarOra, haverá um limite para nossa capacidade de transfo todas as nossas representações do mundo em representações do tipo simbólico? E até que ponto sistemas artificiais, construídos com base no modelo funcionalista de mente poderão efetivamente vir a gerar representações do mundo externo?

Podemos iniciar, esta discussão, imaginando uma situação na qual desejemos construir um robot, com a ímalidade de executar uma ampla variedade de tarefas num meio ambiente real . Para usarmos uma metáfora familiar, podemos supor que este robot tem uma forma semelhante a de um ser humano, com a CPU (Central Processing Unit) correspondendo ao cérebro (ou mente !). A CPU controla o movimento dos periféricos que, dotados de censores, transmitem dados acerca do meio ambiente. Estes dados são, por sua vez, transformados e processados pela CPU que os utiliza para orientar os comportamentos do robot. Em outras palavras, a CPU deste robot elabora os inputs que chegam, transformando-os em representações do seu meio ambiente, que passam a desempenhar o papel de estados internos que vem se somar a outros estados internos que possam porventura serem gerados pelas suas próprias operações. Isto torna nossa máquina imaginária bastante sofisticada, dotada de um elevado grau de autonomia e de complexidade que se aproximam daquela de um ser humano, possibilitando a auto-organização de seu próprio repertório de comportamentos.

Ora, tudo se passa como se a CPU deste robot fosse uma espécie de "câmara cega", onde ocorre um enorme fluxo de estados internos. A situação é semelhante àquela do nosso cérebro, que é um palco por onde passa um enorme fluxo de informações, sejam estas provenientes das próprias atividades cerebrais e orgânicas, ou provenientes do mundo externo através dos sentidos. Ocorre, porem, que o cérebro não pode "ver" de onde provém as informações (ele é uma "câmara escura") e tem de decidir, unicamente com base no seu conteúdo, quais são os estados internos legitimamente representacionais e quais são aqueles que resultam de sua própria atividade. O mesmo ocorre na CPU de nosso robot, que teria de realizar esta tarefa: distinguir entre estados representacionais e outros estados internos sem o auxilio de uma programação prévia.

A dificuldade, de estabelecer a distinção entre estados internos de natureza representacional e outros tipos de estados internos, pode se converter num verdadeiro obstáculo para a possibilidade de atribuir estados intencionais a sistemas artificiais. Dois casos típicos ilustram esta dificuldade:

a)               umaO problema da me11U5ria - Considere-se novamente o caso do nosso robot. Trata:-sedeumaréplica mecânica de um ser humanoadulto.Eleo dispõe de um passado ou uma"infância". Podemos suprir esta deficiência através de um "implante de memória" , ou seja, o implante de uma memória artificial, composta de proposições (lembranças de proposições , em geral expressas verbalmente, tornando-se memória auditiva) ou mesmo como um conjunto de imagens mentais caprichosamente elaboradas e implantadas. Uma vez implantado este dispositivo, nossa réplica mecânica, provavelmente, apresentará um comportamento externo como se tivesse me11U5ria, sendo capaz de responder adequadamente a questões acerca de seu suposto passado, numa cena algo fanúliar de ficção científica que encontramos no filme Blade Runner.

Entretanto, a similaridade de comportamento exibida pela réplica será apenas aparente: sem programação prévia não há como distinguir dentre estados internos aqueles que correspondem a memórias e aqueles que correspondem a estados mentais referentes a eventos no presente. Se as "memórias" forem expressas na forma de conteúdos mentais de caráter imagético, elas se tomam indistinguíveis de outros conteúdos imagéticos que normalmente classificaríamos como imagens mentais, imaginação, etc. No caso das proposições a situação não é diferente: exprimir uma proposição como ocorrendo no passado, através de uma sentença com um verbo no passado não significa referir-se a algo que ocorreu anteriormente no tempo. No caso de um ser humano a dificuldade poderia ser suplantada: conteúdos mentais relacionados a lembranças seriam distintos de outros na medida em que incorporariam e conservariam (parcialmente) uma relação causal com os eventos passados que efetivamente os produziram.

b)     O problema da percepção e da alucinação - Se construirmos um robot e nele adaptarmos um mecanismo de visão artificial que sirva para orientar suas ações no meio ambiente, é bastante provável que tal mecanismo de visão artificial não gere percepções e sim alucinações verídicas. Entendemos por alucinação verídica um tipo peculiar de experiência visual no qual o conteúdo imagético e informacional coincide com aquele de uma percepção genuína. Por exemplo, teremos um caso de alucinação verídica quando uma pessoa tiver diante de si uma paisagem e simultaneamente aluciná-la com todos os seus detalhes. A cena real e a experiência visual (alucinatória) coincidem perfeitamente em termos de conteúdo imagético e informacional, embora essa pessoa possa até mesmo estar vendada, e suas experiências visuais estarem sendo produzidas por uma neurocirurgia.

Pode um sistema artificial distinguir percepções de alucinações verídicas? Tomemos como ponto de partida um sistema que consiste de uma CPU conectada a um "olho mecânico" - algo parecido com uma câmara de TV, responsável pela produção de imagens do meio ambiente onde este sistema se move. Supondo que este mecanismo de visão artificial sirva para a orientação do comportamento, parece haver, neste caso, apenas duas possibilidades. A primeira consistiria em estabelecer todas as ações - e, conseqüentemente, todas as "percepções" ou "experiências visuais" que seriam produzidas pelo seu olho mecânico. Assim, por exemplo, poder-se-ia programar o robot para andar do centro de Paris até a Torre Eiffel, ao mesmo tempo que seu mecanismo de visão artificial produzisse experiências visuais com um conteúdo inteiramente semelhante àquelas que um ser humano tem quando caminha do centro de Paris até a Torre Eiffel. A situação, neste caso, não difere muito daquela na qual o neurofisió10go introduz agulhas e eletrodos no cérebro de seu paciente, produzindo imagens visuais. Este papel é desempenhado pelo programador que, além de produzir alucinações verídicas na sua máquina, estaria também controlando suas ações. O grau de autonomia desta máquina seria mínimo e mesmo que, por hipótese, seu dispositivo'de visão fosse capaz de gerar percepções, tal dispositivo tomar-se-ia praticamente dispensável.

A segunda alternativa consistiria em projetar um robot com alto grau de autonomia, dotado apenas de algumas metas internas gerais. Esta máquina mais sofisticada e não inteiramente pré-programada teria um mecanismo de visão que se encargaria de sua interação com o meio ambiente, possibilitando a auto-organização do seu próprio repertório de comportamentos. Mas como funcionaria este mecanismo de visão? Se se tratar de algo parecido com a câmara de TV de que falamos a pouco, também, neste caso, este dispositivo estaria muito mais próximo da geração de alucinações verídicas do que de percepções. A relação entre as imagens registradas pela câmara e as cenas do mundo a elas correspondentes seria estabelecida através de uma relação causal; . como poderia tal máquina distinguir, dentre seus estados internos de caráter imagético quais seriam aqueles que correspondem às suas percepções e a partir destas produzir comportamentos adequados?

Se projetarmos uma máquina altamente sofisticada, ela será dotada de capacidade de gerar estados internos de caráter imagético: memórias, imagens mentais, etc. Se esta máquina não tiver sido previamente programada para tal, ela não terá condições de gerar uma distinção entre processos internos e processos externos. A incapacidade de estabelecer esta distinção sem o auxílio de programação prévia faz com que suas percepções sejam assimiláveis ao fluxo de processos internos, tomando-as indistinguíveis das alucinações verídicas que poderiam igualmente estar ocorrendo no seu interior. Esta máquina, por mais sofisticada que fosse, não estaria percebendo o mundo a sua volta: ela não pode representd-lo. Seu sucesso na execução de tarefas e na produção de comportamentos adequados ao seu meio ambiente poderia ser muito grande, mas tratar-se-ia, no melhor dos casos, de uma adequação cega, que não pressupõe a geração de estados intencionais. Seria uma situação estruturalmente semelhante ao produtor de textos em Chinês de que nos fala J. Searle (Nota B).

Os dois problemas de que tratamos acima parecem sugerir uma resposta negativa no que diz respeito a possibilidade de sistemas artificiais virem a gerar estados intencionais.Elesapontam para a existência de grandesobstáculos que, ainda precisam ser superados para que isto seja possível. É preciso, agora, tentar responder a nossa primeira indagação, qual seja, se haverá um limite para nossa capacidade de transformar todas as nossas representações do mundo em representaçõe& do tipo simbólico. Abordaremos esta questãõ examinando um terceiro conjunto de problemas.

c)     O problema da auto-referência - Nosso ponto de partida será novamente um robot com alto grau de autonomia comportamental e semelhança em relação a um ser humano. Poderia este robot, em alguma ocasião, ter o pensamento "estou aqui"?

Na literatura contemporânea sobre Filosofia daMente desenvolveu-se a visão de que a base hierárquica das representações possíveis é constituída por conteúdos mentais pré-representacionais ou pré-conceituais. Esta concepção fundamenta-se na idéia de que o caráter significativo que estruturas mentais possam adquirir não depende apenas de sua manifestação local no organismo (ou no cérebro), mas da totalidade do ambiente onde esseorganismoatua.Assim, a determinação do caráter significativo de certos conteúdos mentais não seria dada unicamente por características intrínsecas que estes pensamentos possam exibir, mas pela sua ocorrência contextual estabelecida numa relação entre organismo e meio ambiente. Estes estados mentais - cujo caráter intencional é estabelecido por esta relação simbiótica com o meio ambiente - são chamados pensamentos de re e constituem a base hierárquica das representações possíveis. Seu traço distintivo consiste no fato de eles implicitamente incorporarem um vínculo com a existência de seus referentes no mundo - um vínculo que é responsável não apenas pela própria possibilidade de sua ocorrência na vida mental do organismo, como também pela sua própria identidade enquanto pensamentos.

A natureza intencional (a direcionalidade)deste tipode pensamentos básicos é dada por fatores contextuais que compõem circunstâncias que participam da ocorrência destes pensamentos, e os dotam de umadimensão semântica oriunda da relação do sujeito (ou organismo) com uma realidade extramental. Assim, por exemplo, os partidários deste tipo de visão, acerca da natureza de pensamentos básicos (de re), têm chamado atenção para a necessidade de se distinguir entre ter um pensamento sobre Londres de um pensamento acerca de Londres. Pois para ter um pensamento sobre Londres eu posso estar em qualquer lugar, bastando apenas que minha mente fonne algumas proposições ou imagens das torres do Parlamento e da Oxford Street, enquanto para ter um pensamento acerca de Londres (e se este pensamento deve também dar minha localização espacial), é preciso que eu (meu organismo) esteja. fisicamente em Londres como condição necessária. A distinção não é puramente lingüística como poderíamos ser levados a crer: ela aponta para uma divisão fundamental entre dois tipos de pensamentos, pois o pensamento acerca de Londres (de re) tem sua dimensão semântica estabelecida pelas circunstâncias contextuais em que ocorre o pensamento, enquanto o pensamento sobre Londres independe destas últimas (e constitui um pensamento de dieto).

Substanciandoestepontodevistapoder-se-iaafmnaraimpossibilidadedese construir um robot ou um mecanismo que fosse capaz de ter o pensamento "estou aqui" . O problema é que este pensamento específico (de re),"estou aqui", teria de ser representado no programa central que controla o robot. mas aqui encontramos uma dificuldade fundamental: se o caráter semântico deste tipo de pensamento depende do fato de ele incorporar um fator extramental derivado de uma ligação com as circunstâncias de sua· ocorrênCia contextual, o pensamento do tipo "estou aqui" não adquire significado pelo fato de eventualmente constituir-se comouma representação. Isto porque o significado de pensamentos deste tipo não decorre de nenhum tipo de conteúdo especificável, seja ele iJ'nagético ou proposicional: mesmo que em algum momento do programa do robot aparecesse a proposição "estou aqui ", ela poderia nada dizer acerca da posição do robot no seu meio ambiente. Em outras palavras, o caráter transcendente (e semântico) de um pensamento de re resiste a sua transfonnação plena numa representação ou num pensamento de dieto plenamente conceitualizado. Mas haverá outra maneira de programar a CPU do robot sem antes conceitualizar todas as operações que esta deve realizar? (Nota C)

 

IV

 

Os problemas que delineamos na secção anterior não nos obrigam a validar a conclusão de que o projeto científico da Inteligência Artificial está necessariamente fadado ao fracasso. Esta é a conclusão que pensadores com J. Searle gostariam de extrair das proposições acima, para tentar esboçar mais um argumento em favor da impossibilidade de simulação do comportamento inteligente. Mas esta não é a conclusãoque desejamos extrair, sobretudo na medida em que não partilhamos dos pontos de vista de J. Searle.

Não nos parece que os objetivos propostos pela Inteligência Artificial sejam inatingíveis . Quem sustenta esta perspectiva corre o mesmo tipo de risco que correram aqueles que, no século passado, sustentaram a idéia de que o homem jamais poderia chegar a lua. Ocorre, entretanto, que o modelo computacional de mente, que tem sido utilizado por muitos teóricos da Inteligência Artificial, precisa de uma ampla revisão.

'Esta revisão, que já se iniciou a alguns anos atrás , implica uma reformulação conceitual de grande porte que visa redefinir a metáfora a ser empregada na descrição dos fenômenos mentais. A elaboração de uma nova metáfora implica o progressivo abandono de noções pioneiras da Inteligência Artificial, como por exemplo a própria máquina de Turing e os pressupostos básicos do funcionalismo tradicional. Trata-se de uma tarefa que já se encontra em marcha, protagonizada pelo aparecimento dos chamados modelos conexionistas.

Estes novos modelos reaproximam a Computação da NeurofIsiologia e da Biologia Evolucionária, procurando desenvolver uma nova metáfora onde, por exemplo, o conhecimento pré-proposicional ou subsimbólico poderá ser adequadamente acomodado, resolvendo algumas das dillculdades que a Inteligência Artificial tradicional não pôde superar. "O cérebro é a melhor metáfora para falarmos da mente" - eis o que parece sugerir o conexionismo, num empreendimento teórico de grande envergadura, que visa à integração de vários tipos de conhecimento que até então permaneceram estanques, isto é, sem uma articulação interdisciplinar. Do conexionismo e da profunda revolução teórica que nele está contida, teremos oportunidade de falar em outro trabalho .

NOTAS

 

A - Para se ter uma noção mais detalhada de Máquina de Turing e de procedimento efetivo ver: Teixeira J. de F. O que é Inteligência Artificial, capo 2.

B - Um estudo mais detalhado dos problemas envolvidos na percepção e na elaboração de sistemas artificiais de visão está no artigo de minha autoria " A Máquina de Enxergar" (Revista Discurso, n. 19, 1 991)- Departamento de Filosofia da USP. (No prelo) . Trecho semelhante ao explorado, neste item, encontra-se no referido artigo.

C e- Para um estudo da oposição de re de dieto ver o artigo de minha autoria "Inteligência Artiflcial e Caça aos Andróides" (Psicologia, 1990, número especial sobre Filosofia da Psicologia, no prelo). Trecho semelhante ao explorado, neste item, encontra-se no referido artigo.

 

TEIXEIRA, J. de F. Robots, intentiona Jityandartificial intelligence. Trans/Forml Ação, São Paulo, v. 14, p. 109- 121, 1991.

 

as,ABSTRACT: The paper focuses in pmlosopmcal problems concerning the nature of intentionality and mental representation. The first part presents a historical outline of the problem and reviews some classicaUcontemporary writings on the questiono The second part examines the so-called Chinese Room Argument formuJated by J. Searle. The third part presents a few arguments aiming to show the inadequacy of the functionalist model for the design ofrobots. The conclusion points to some alternatives to the traditional functionalist model such for instance, the connectionist modelo

 

KEYWORDS: lntentionality; mental representation; artificial intelligence; functionalism; robots; connectionism.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2.   FODOR, J. Representations: philosophical essays on the foundations of cognitive science. Cambridge, MA: The MIT Press, 1981.

3.   RUSSEL,B.Aanálise da mente. Trad. Antonio Cirurgião. Rio de Janeiro:Zahar, 1971/ 197ó.

4.    SEARLE, J. Minds, brains and programs. In: HAUGELAND,J.,ed.-Mind designo Vermont: Bradford Books, 1981.

 

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

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TEIXEIRA, J. de F. O que é inteligência artificial. São Paulo: Brasiliense, 1990. (Primeiros Passos, n. 230)



[1] Comunicação apresentada na XIV Jornada de Filosofia e Ciências Humanas - UNESP - Marília - outubro de 1990.

[2] Departamento de Filosofia de Faculdade de Filosofia e Ciências - UNESP -17500 - Marília - SP.