CONCEITOS E ESTRUTURA MENTAL

 

Marcos Barbosa de OLIVEIRA[1]

 

umRESUMO: O objetivo da palestra foi o de apresentar apanhado sucinto da história das inemvestigações sobre conceitos nas últimas decadas, com isso contribuindo para a divulgação da Ciência Cognitiva. O episódio central dessa história l a guinada resultante das pesquisas realizadas por Eleanor Rosch ! outros, a partir do infcio dos anos setenta . Estas pesquisas colocam cheque a CONCEPÇAO CLASSICA DE CONCEITOS (caracterizada na primeira parte da exposição). O fato de que o abandono da concepção clássicg não l uma alternativa vidvel, dd origem ao que chamamos de PROBLEMA DA CONCILIAÇAO, ou seja, o de compatibilizar a concepção clássica com as descobertas modernas. A apresentação se encerra com algumas sugestões para a solução do problema.

 

UNITERMOS: Conceitos; Ciência Cognitiva; Eleanor Rosch; protótipo; categoria Msica.

 

I. INTRODUÇÃO

A apresentação que vou fazer hoje tem por tema, como o diz o título, conceitos e estrutura mental. Este título na verdade é meio tendencioso, pois coloca os dois elementos- conceitoseestruturamental- empédeigualdade,eassimsugereque vou dedicar tanta atenção a um comoaoutro.Oquevai ocorrer defato équevoufalar bastante de conceitos e um pouquinho, no flm, de estrutura mental.

Vou começar esboçando o roteiro, o itinerário do percurso que pretendo fazer com vocês.

Inicialmente vou delinear uma caracterização de que chamarei de concepção clássica de conceitos. Esta é a concepção que vigorou na Filosofla e na Lógica pelo menos desde Aristóteles, e até pouco tempo atrás. Seu m1cleo é a idéia de que um conceitocorrespondeaumconjuntodepropriedadesnecessáriasesuficientes.Por exemplo,paraserum homem-segundoa defm" içãodeAristóteles, éclaro-uma entidade deve possuir as propriedades de ser animal e racional, e é isto que individualiza, que define o conceito de homem.

Pois bem, a partir da década de 70 são realizadas im1meras pesquisas empíricas na Psicologia e na Antropologia a respeito da natureza dos conceitos. Estas pesquisas estabelecem solidamente que os conceitos - em tennosde realidade psicológica - não correspondem à concepção clássica. É sobre estas pesquisas que vou falar na segunda parte de minha exposição.

Na terceira parte vou discutir o conflito entre a concepção clássica e as descobertas modernas. Vou argumentar que a alternativa mais óbvia, qual seja, a de abandonar a concepçãoclássica,nãoé viável, oquevaientãonosdeixarcomumproblema, a saber, o de compatibilizar a concepção clássica de conceitos com as descobertas modernas. Vou chamá-lo de problema da conciliação.

O problema da conciliação constitui a questão central,o cerne de minha exposição. Na quarta e t11tima parte vou primeiro explicar uma solução que já foi proposta, depois expressar minha opinião em relação a ela, ou seja, a de que esta solução aponta direção certa, porbn não vai longe o suficiente. Por t1ltimo, vou fazer um esboço muito sumário daquilo que me parece constituir a abordagem correta para o problema da conciliação. E é só neste fm' alzinho que vai aparecer a noção de estrutura mental.

Esta t11tima parte corresponde ao que julgo original, àquilo que seria minha contribuição ao debate. Digo "seria" porque a descrição de minha proposta vai ser, como disse, extremamente sucinta, e também porque não me sinto ainda plenamente em condições de defendê-Ia. Apresentar esta proposta não é, entretanto, o objetivo principal de minha exposição. Meu propósito é mais modesto, é apenas o de divulgar, de tornar mais conhecido todo este debate que está em curso hoje a respeito da natureza dos conceitos. Com isto espero também estar contribuindo para a divulgação da Ciência Cognitiva - uma vez que esta tradição de pesquisa sobre conceitos constitui um exemplo bem típico do trabalho que se faz na nova disciplina conhecida pelo nome - talvez não muito apropriado - de "Ciência Cognitiva".

 

ll . A CONCEPÇÃO CLÁSSICA DE CONCEITOS

 

Comecemosentão.Gostaria em primeiro lugar de frisar que esta expressão"concepção clássica de conceitos" não é de minha autoria; ela foi introduzida por Smith e Medin no livro Categories and Concepts, de 1981. Minha caracterização da concepção clássica não é entretanto idêntica àdeles ; ésuficientementesemelhante, por outro lado, para que se j ustifique o uso do mesmo nome.

A concepção clássica, como já disse, tem por nt1cleo e noção de propriedades necessárias e suficientes. S ão estas que determinam a aplicabilidade de um conceito: um conceito aplica-se a certa entidade se e somente se esta possuir o conjunto de propriedades que o individualiza.

A lista de propriedades constitui a def'mição de um conceito. Cada propriedade, por sua vez, corresponde a um outro conceito, caracterizado por uma outra lista de propriedades, e assim por diante. Esta seqüência pode dar origem a uma regressão infinita; para evitá-la postula-se aexistência de uma classe de conceitos primitivos, correspondentes a propriedades atÔmicas, indecomponíveis.

A este m1cleo da concepção clássica de conceitos acrescenta-se uma idéia de precisão, de       idade: ou bem um conceito aplica-se a uma entidade, ou bem não ·seaplica; o há meio termo, ese duas entidades quais quer o exemplares de um conceito, elas o são a igual título, ou seja, um conceito não se aplica mais, ou melhor a uma entidade que a qualquer outra; ou ainda,em outraspalavras,não há melhores ou piores representantes de um conceito.

Outro aspecto da concepção clássica é que, de acordo com ela, os conceitos podem se organizar em taxonomias. O exemplo mais paradigmático de taxonomia é o sistema de classificação biológica - cujos níveis correspondem a: espécies, gêneros, famíli as, ordens, etc. Do ponto de vista cognitivo, nenhum nível de uma taxonomia possui uma especificidade intrínseca, ou seja, um nível distingue-se dos outros apenas por sua posiçãona hierarquia, e não por alguma particularidade cognitiva. Isto vai ficar mais claro depois, quando indicanos a maneira pela qual esta idéia tem sido contestada.

A concepção clássica, como já dissemos, foi a que predominou ao longo de quase toda a história da Filosofia e da Lógica.Com algum exagero, pode-se dizer que ela foi na verdade a l1nica concepção bem desenvolvida que existia, e em um m1mero enorme de teorizações dos mais diferentes tipos ela aparece simplesmente como um pressuposto auto-evidente, não questionado e nem ao menos explicitado. Naturalmente não quero dizer com isso que nunca tenha havido controvérsias a respeito da natureza dos conceitos; na verdade, toda. a polêmica sobre os universais que vem desde Platão pode ser entendida como uma disputa sobre a natureza dos conceitos. Mas- de novo, possivelmente com certo exagero -o que poderíamos dizer é que isto que estou chamando de concepção clássica constituiu o terreno comum, a área de acordo implícito entre as várias partes envolvidas nestas seculares controvérsias.

Foiapenas em meados deste século, a meu ver, que a concepção clássica começou a ser colocada em questão. O pioneiro nisso foi Wittgenstein - mas sobre Wittgenstein falarei mais tarde. O desafio à concepção clássica que me interessa mais de perto é o que veio de observações empúicas, de experimentos na Psicologia, e, secundariamente, na Antropologia. Antes de falar desses experimentos gostaria, entretanto, de caracterizar a posição da concepção clássica de conceitos no interior da Psicologia.

afini que a concepção clássica foi a predominante ao longo de quase toda a ohistória da Filosofia e da Lógica; pois bem, mesmo vale para a Psicologia. Até a décadade70a concepção clássica esteve Irr memente araigada na Psicologia, tanto na Cognitiva quanto na behaviourista. Para dar uma idéia mais precisa, vou descrever agora para vocês um certo experimento psicológico, um experimento típico dos estudos sobre conceitos realizados na tradição cognitivista pelo menosdesdea década d e 20 até a década de ó0 de nosso século. (Quanto à tradição behaviourista, veja-se por exemplo 12, p. 285-6)

Gostaria então quevocês imaginassem um conjunto de cartões, de cartas, como as de baralho, havendo em cada carta uma figura. Os atributos dessas figuras variam ao longo de certas dimensões. Quanto à fonua, por exemplo, a figura pode ser um círculo, um quadrado, uma cruz, etc.; quanto à cor, pode ser, digamos, vermelha, amarela ou verde; e quanto ao tamanho, pequena, média ou grande.

Este é um experimento sobre a formação de conceitos, e o que são então os conceitos neste contexto? Em completo acordocoma concepção clássica, osconceitos são concebidos como conjuntos de atributos. No caso, o que temos não são conceitos pré-existentes, naturais, por assim dizer, mas conceitos artificiais, inventados apenas como parte do experimento. Por exemplo, o conceito cabel pode corresponder aos atributos cfrculo e verde. Ou seja, uma figura é cabel se e somente se possuir a propriedade de ser círculo e a propriedade de ser verde, poderido, quanto ao tamanho, ser pequena, média ou grande. A concordância da idéia de conceito que serve de base ao experimento com a concepção clássica, em seus vários aspectos, não precisa ser enfatizada: ela salta aos olhos.

rmarE qual é então o experimento? A tarefa' do sujeito, ou seja, da cobaia do experimento é fo o conceito de "cabel", ou, em outras palavras, descobrir o significado do termo "cabel" .O experimentador vai apresentando as cartas, e para cada uma delas o sujeito declara se se trata de uma carta "cabel" ou não. Depois de cada tentativa, o experimentador informa ao sujeito se a resposta está certa ou errada, até que o sujeito passe a acertar consistentemente, o que sinaliza a descoberta do conceito de "cabel" . Trata-se, na verdade, de um tipodeproblemaque, muitos de vocês terão notado, ocorre freqüentemente em testes de inteligência. Por meio de variações deste esquema básico, os psicólogos puderam estudar relações entre os vários fatores que intervêm no experimento, tais como: o mimero de tentativas necessárias para o descobrimento do conceito, em função da idade do sujeito, de seu nível de escolaridade, da complexidade dos conceitos, das estratégias utilizadas, etc.

Experimentos deste tipo foram realizados por Vygotsky e seus colaboradores nas décadas de 20 e 30 (Cf. 21, capo 5.); na década de 50 um longo e meticuloso estudo foi levado a cabo por três pesquisadores americanos - Bruner, Goodnow e Austin - e publicado no livro que se tomou um clássicona área,olivro quetem por título A Study of Thinking (Um Estudo sobre o Pensamento) (4). Muito de interessante foi descoberto nestas pesquisas; o que eu diria, entretanto, é que elas têm certas limitações e defeitos fundamentais os quais decorrem precisamente do fato de que elas tomam a concepção clássica de conceitos como um pressuposto básico, não questionado. Meu objetivo, entretanto, não é o de desenvolver esta crítica: toda esta tradição de pesquisa sobre conceitos foi mencionada apenas para salientar a profundidade da ruptura que representou o novo paradigma que se instaura a partir do início da década de 70.

 

m. AS DESCOBERTAS MODERNAS

Antes de iniciar a descrição propriamente dita dessas pesquisasmais recentes, alguns prolegômenos são ainda necessários.

Em primeiro lugar, gostaria de frisar que a quantidade dessas pesquisas é muito grande, é enonne a literatura que descreve seus resultados, e representa as inúmeras controvérsias que têm surgido.De fato, a questão da natureza dos conceitos tem sido um dos principais focos de investigação nos últimos tempos não apenas na Psicologia, mas em todo o domínio multidisciplinar da Ciência Cognitiva. Ou seja, não apenas psicó10gos, mas também filósofos, lingüistas, especialistas em Inteligência Artificial, antropó10gos e neurologistas têm se interessado bastante pela questão dos conceitos. Não pretendo aqui naturalmente recapitular toda esta literatura (Nota A). Meu propó- sito é bem mais modesto, pretendo apenas descrever sumariamente alguns dos experimentos mais significativos, do ponto devista da concepção clássica de conceitos, ou mais precisamente, alguns dos experimentos que contrariam, que colocam em cheque a concepção clássica. Mesmo com esta restrição de ponto de vista, meu levantamento estará longe de ser exaustivo. Esta é afinal uma exposição introdutória, muito genérica, e pela limitação de tempo teria que passar por cima de muitas questões, de muitas indagações que poderiam ser levantadas.

O significado principal deste novo paradigma de pesquisa sobre conceitos foi, de fato, o de colocar em cheque a concepção clássica. Esta, entretanto, não foi sua motivação inicial.

O nome mais importante associado ao novo paradigma é o da pesquisadora americana Eleanor Rosch. Rosch foi orientanda de Roger Brown, um psicó10go e lingüista muito influente, e Brown por sua vez trabalhou bastante em colaboração com Eric Lenneberg - cujo interesse maior residia nos aspectos biológicos da linguagem (Lenneberg é o autor do clássico Biological Foundations of Language ( 14» . É com Brown e Lenneberg queahistória quenosinteressa tem início, na década de50. Havia nesta época tanto entrelingüistas quanto entre psicó10gos e antropólogos um grandeinteressepela Hipótese de Sapir- Whoif.Whorf, como vocês devem lembrar, foi umlingüista que se dedicou ao estudo daslínguasindígenasda América do Norte e, influenciado pelas idéias de seu mestre Sapir, veioa fonnular a hipótese que leva seus nomes - e é também conhecida como o Princfpio da Relatividade Lingüfstica - é este o nome que vou usar daqui por diante. Esse princípio diz, grosso modo, que a estrutura cognitiva de um ser humano depende fortemente de sua língua materna, ou, em tennos menos técnicos, que a língua materna condiciona a maneira como uma pessoa )lê - e vive - o mundo. Para tomar um pouco mais nítido o espírito do Princípio da Relatividade Lingüística, vou. citar duas passagens, cada uma de um desses autores. A primeira é de Whorf:

"Dissecamos a natureza em cortes prescritos por nossas línguas maternas. As categorias e tipos que isolamos do mundo dos fenômenos, não os encontramos por eles nos saltarem aos olhos; ao contrário, o mundo apresenta-se num fluxo caleidoscópico de impressões que deve ser organizado por nossas mentes - e isto quer dizer, em grande parte pelos sistemas lingüísticos que temos em nossas mentes. Seccionamos a natureza, organizamo-Ia em conceitos, e atribuímos significados da maneira como o fazemos em grande medida porque somos parte de um acordo para organizá-la assim - um acordo que vigora para toda a comunidade lingüística e é codificada nos padrões de nossa lfugua. ( ... ) nenhum indivíduo é livre para descrever a natureza com absoluta imparcialidade , mas é coagido a certos modos de interpretação mesmo quando se julga mais livre" (22, p. 21 3-4) .

E agora a de Sapir:

"É completa ilusão imaginar que alguém se ajuste à realidade essencialmente sem o uso da linguagem, e que a linguagem é apenas uma maneira idêntica de resolver problemasespecíficosde comunicação ou reflexão (Nota B). Ofatoincontestáveléque o mundo"real" se constrói inconscientemente, em grande parte, na base dos hábitos lingüísticos do grupo. Não há duas linguagens suficientemente parecidas para que se possa considerar que representem a mesma realidade social. Os mundos em que diferentes sociedades vivem são mundos distintos, não meramente o mesmo mundo com rótulos diferentes afixados" (19, p. 162) (Nota C).

Voltando então a Brown e Lenneberg: como tantos outros na época, eles tinham grandes simpatias pelo Princípio da Relatividade lingüística.Julgavam, entretanto, que este não havia ainda sido suficientemente corroborado, ou seja, que as eviQências empíricas aduzidas por Whorf e Sapir não bastavam para comprovar de fato sua hipótese. Teve início assim um programa de pesquisa destinado a trazer à luz tais evidências .

Os sistemas de nomenclatura de cores são um dos aspectos mais óbvios em que línguas de diferentes famílias diferem. Por esta e outras razões, Brown e Lenneberg decidiram focalizar suas pesquisas sobre os conceitos de cor, e suas variações de l1:9gua para língua. O objetivo então era o de corroborar, para este domínio circunscrito, o Princípio da Relatividade Lingüística. Desenrola-se, a pós deste ponto, uma história bastante interessante - porém bastante intrincada também - uma história que o próprio Brown relata muito bem num longo artigo publicado em 197ó - uma peça escrita em homenagem a seu colega Lenneberg, que acabara de falecer (3). Pois bem, todo este episódio - que não terei tempo de contar em detalhe - foi essencialmente uma história de quem foi buscar lã e saiu tosquiado. Explico. Embora os primeiros resultados das pesquisas aparentemente corroborassem o Princípio da Relatividade Lingüística (ainda que numa versão fraca) , na etapa fmal - e o trabalho de Eleanor Rosch já teve um papel crucial - ficou patente que as evidências empíricas obtidas apontavam exatamente na direção oposta, ou seja, elas refutavam o Princípio em questão. O que se percebeu foi que por baixo da aparente diversidade, havia nos sistemas de nomenclatura de cores uma unidade profunda. Mais precisamente: constatou-se que o sistema de nomenclatura de cores pode variar de uma língua para outra, mas esta variação não é aleatória, não é qualquer variação possível, mas deve obedecer acertos princípios, os quais são universais , comuns a todas as línguas humanas . Ou seja, apesar das diferenças nos conceitos de cor, a maneira como os seres humanos vivem as cores não depende em nada de fundamental de sua língua materna.

Porém o que nos interessa mais de perto nesta história toda é que, além de contribuir para a refutação do Princípio da Relatividade Lingü{stica, as evidências empíricas obtidas por Rosch pareciam entrar em choque também com a concepção clássica de conceitos.

A partir daí Rosch, seus colaboradores, e muitos outros depois deles, primeiro, constataram que os aspectos aparentemente adversos à concepção clássica que haviam sido detectados nos conceitos de cor apareciam também em vários outros tipos de conceitos; e segundo, estabeleceram muitos outros resultados que, de diversas maneiras, também entravam em choque com a concepção clássica.

 

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Antes de dar início à breve descrição destas pesquisas que pretendo fazer, ainda, umaobservação é necessária.Meu objetivo é relacionar todas as evidências contrárias à concepção clássica, e não apenas as descobertas por este paradigma de pesquisa do qual Rosch foi a pioneira. O fato é que há observações não-sistemáticas, não "científicas", que, no mínimo, não se coadunam muito bem com a concepção clássica.

Considere-se, por exemplo, o requisito de digitalidade, de precisão que mencionei anteriormente como uma propriedade fundamental dos conceitos, de acordo com a concepção clássica.Numa outra passagem afini que esta concepção é um pressuposto implícito de quase toda a Lógica. Ocasionalmente porém encontram-se manifestações explícitas. Quanto ao requisito de precisão, por exemplo, pode-se ler em Frege:

"No que se refere aos conceitos, temos [ ...] o requisito , de que, para qualquer argumento, eles tenham por valor um valor de verdade; que seja detenninado, para qualquer objeto, se ele cai sob o conceito ou não. Em outras palavras : em relação a conceitos existe um requisito de delimitação precisa: se este não estivesse satisfeito, seria impossível estabelecer leis 1ógicas para eles" (8, p. 135) (Nota D).

Pois bem, não é necessário nenhum experimento psicológico para que nos convençamos de que pelo menos uma boa parte dos conceitos não satisfaz este requisito, o tem limites precisos (Nota E) . O exemplo das cores é paradigmático: seguindo ao longo do espectro, encontramos tonalidades intermediárias , que não são nem uma cor nem outra. Todos os conceitos correspondentes a propriedades físicas que variam continuamente - conceitos como alto e baixo, leve e pesado, e tantos outros - também estes claramente carecem de precisão, de limites bem definidos. não é necessário insistir no óbvio ; mais interessante é saber de que maneira 1ógicos como frege. apesar da obviedade da v agueza dos conceitos, sustentavam o requisito de precisão. A resposta é que eles não viam grande dificuldade neste conflito, considerando a imprecisão dos conceitos simplesmente como um defeito das linguagens naturais , a qual não devia, evidentemente, ocorrer nas linguagens artificiais dos sistemas 1ógicos (Cf. 11, p. 162-3.). O quanto esta resposta é ins'atisfatória vai ficar claro a partir de quase tudo o que tenho ainda a dizer hoje.

Outro componente da concepçãoclássica éa idéia de que conceitos podem ser defm'dos,consistindoestadefinição numa lista de propriedades necessárias e suficientes. Também não é precisorealizar investigações para mostrar que, de novo, isto não é o que parece acontecer com os conceitos das linguagens naturais. Considere-se, por exemplo, o conceito de cão. Uma das propriedades definidoras deste conceito seria presumivelmente a propriedade de ser quadn1pede , de ser um animal de quatro patas. Quando porém vemos um cão que perdeu uma pata num acidente, não lhe negamos a natureza de cão; dizemos que se trata de um cão com três patas. Talvez se possa dizer que isto mostra apenas que ter quatro patas não é uma propriedade definidora do conceito de cão,ou,em outras palavras, queser quadn1pede não faz parte da essência da "canidade", que corresponde apenas a um atributo acidental. O problema, porém, é que aquilo que ocorre em relação à propriedade de ter quatro patas acontece também com todas as outras candidatas possíveis ao estatuto de propriedade essencial, definidora.

Considere-se também a definição aristotélica de homem como animal racional. De novo não é difícil encontrar contra-exemplos. Uma pessoa insana, um louco, concebese normalmente como um ser desprovido de razão, como um ser irracional. Mas embora possamos negar aos loucos alguns dos direitos e prerrogativas dos seres humanos normais, o lhesnegamosoatributo dehumani.dade:um louco não deixa de ser um homem, é um homem irracional.

aEnfim, a conclusão a que se chega após levantamentos sistemáticos respeito de conceitos de vários tipos diferentes é de que, com exceção do domínio das chamadas ciências exatas, da Matemática, especialmente, são problemáticas todas as def'mições que se tenta estabelecer dentro do esquema de propriedades necessárias e suficientes.

 

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Mencionei Wittgenstein anteriormente, e a muitos de vocês esta discussão sobre a definibilidade dos conceitos deve lembrar a famosa passagem das Investigações Filosóficas (23), onde Wittgenstein desafia o leitor a apontar uma, que seja, propriedade comumatodososjogos- jogo  de cartas, de tabuleiro, de bola, etc. Depois de examinar e rejeitar sucessivamente várias candidatas, Wittgenstein conclui pela não existência de tal propriedade comum a todos os jogos.Então propõe que a pertinência ao conceito, neste caso, é função de "uma rede complicada de semelhanças", e a esta rede ele dá o nome de semelhanças fam iliares (par. 66-67).

Logo a seguir nas Investigações Wittgenstein trata do tópico da precisão dos conceitos. Wittgenstein coloca-se como um defensor da imprecisão, ou seja, ele aponta sua existência nos conceitos comuns e, opondo-se explicitamente a Frege, argumenta que nem por ser impreciso um conceito deixa de ser l1til (par. 71).

Não há dl1vida então de que, em relação a estes dois quesitos-a defm' ibilidade e a precisão dos conceitos - Wittgenstein foi um precursor do questionamento da concepção clássica. Ele na verdade foi lido, e é mencionado explicitamente por Rosch (Cf. 1ó, p. 99). Minha impressão, entretanto, é de que as idéias de Wittgenstein sobre conceitos foram absorvidas mais enquanto parte de uma concepção geral - ou seja, como parte de sua segunda filosofia - e menos enquanto questionamento da concepção clássica. Vários fatores que contribuíram para isso podem ser apontados; não desejo, entretanto, me alongar sobre este assunto, estava querendo apenas, de maneira tão breve quanto possível, justificar a pouca atenção que será dispensada às idéias de Wittgenstein sobre conceitos neste trabalho. De qualquer forma, não ddvída de que, enquanto questionamento da concepção clássica, as investigações psicológicas que passo a descrever agora tiveram um impacto muito maior que as sugestões de Wittgenstein.

 

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Passemos agora a uma terceira característica dos conceitos, de acordo com a concepção clássica, a saber, a não existência de melhores ou piores representantes de um conceito , de representantes mais ou menos típicos. Esta característica relaciona-se naturalmente com a precisão ou vagueza dos conceitos. Se um conceito não é preciso, se casos-limite, entidades às quais um conceito nem bem se aplica nem bem não se aplica, então certamente existe uma gradação de representatividade. Podemos, entretanto , imaginar uma situação em que há casos-limite, porém na qual entre os casos centrais, não duvidosos , não haja hierarquia de representatividade. Ou seja, um conceito pode ser vago, havendo, entretanto, casos aos quais ele com certeza se aplica, de tal maneira que entre esses casos não gradação de representatividade, são todos igualmente típicos.

Para mostrar que, mais uma vez, este aspecto da concepção clássica não se coaduna com a realidade dos conceitos, para tanto já se fazem necessárias observações e experimentos psicológicos propriamente ditos.

Podemos começar com o caso das cores. Estas pesquisas sobre os conceitos de cor foram empreendidas, como já mencionei, com o objetivo de corroborar o Princípio da Relatividade Lingüística, e uma das razões para isso foi a variabilidade bem conhecida dos sistemas de nomenclatura de cores nas IÚlguas naturais. Cada língua tem um certo ndmero de termos básicos (Nota F) para designar as cores, um ndmero que varia de um máximo de 11 no inglês e outras IÚlguas indo-européias , a um mÚlimO de dois - este é a caso da IÚlgua dos Dani, um povo da Nova Guiné que possui apenas o termo "mola"para as cores claras e quentes, e"mili"para os tons escuros e frios (p. 14ó) . A maioria das IÚlguas indígenas norte-americanas têm apenas um termo para designar as cores que nósdistinguimos como verdes ou azuis; em muitos casos, o termo em questão é também a palavra que designa o mar (p . 130).

Pois bem, de acordo com o Princípio da Relatividade Lingüística, esta diferença entre as línguas implicaria uma diferença nas maneiras de as pessoas verem, ou viverem as cores. Mas como testar empiricamente esta aItrmação? Resposta: fazendo experimentos em que são dadas aos sujeitos tarefas cognitivas' e avaliando seu desempenho. Um dos experimentos, por exemplo, consistia no seguinte: mostrava-se ao sujeito uma amostra de cor num cartão, durante certo espaço de tempo, digamos, cinco segundos; depois esperava-se 30 segundos, e em seguida pedia-se ao sujeito para indicar qual a cor que correspondia à que lhe havia sido mostrada antes, a partir de um quadro com quarenta cores diferentes- incluindo, naturalmente, a cor mostrada no início (p. 14ó). A idéia então era de que a dificuldade encontrada pelo sujeito refletisse as características do sistema de nomenclatura de cores de sua lfugua materna.

Por exemplo, se a cor mostrada inicialmente fosse um verde, e a coleção de 40 cores incluísse também um azul, era de se esperar que um falante de inglês tivesse mais facilidade para fazer a identificação corta do que um índio cuja língua materna não distingue o verde do azul.

Os experimentos, entretanto, para surpresa de Brown e Lenneberg, não detectaram diferença significativa alguma. Ou seja, o fato de uma língua ter um nome para determinada cor, não a toma mais facilmente reconhecível.

O que se descobriu é que de fato existem diferenças entre as cores; algumas são mais facilmente identificáveis que outras. Ao longo de toda a gama de cores existentes, há certas regiões bem definidas em que a facilidade de reconhecimento atinge um pico. Estas regiões correspondem às chamadas cores focais, e estas o em nlÚnero de 1 1 . A constatação que contraria o Princípio da Relatividade Lingüística é de que as cores focais não variam de língua para língua, de cultura para cultura. Elas constituem um universal cognitivo e refletem uma característica básica, estrutural, do aparelho visual humano. Esta conclusão a que os experimentos psicológicos conduzem, coaduna-se também com resultados de estudos neurofisiológicos sobre o aparelho visual humano (p. 152) .

Do ponto de vista de minhas considerações sobre conceitos, entretanto, o que interessa mais é o fato de que existe uma relação entre as cores focais e os sistemas de nomenclatura de cores nas várias línguas. Não vou entrar em detalhes aqui, direi apenas, tomando o português como referência, que os fal antes dessa língua consideram algumas tonalidades como mais representativas de cada cor que outras ; e mais, que para cada cor uma tonalidade relativamente bem definida que é considerada como a mais representativa de todas. Existe, portanto , um verde por excelência, um vermelho por excelência, e assim por diante. Estas tonalidades correspondem às cores focais, e constituem protótipos associados aos termos básicos de cor do português .

 

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Chamemos de tipicalidade o fenômeno da existência de protótipos num determinado domínio conceitual (já que prototipicalidade seria longo demais) . As pesquisas que acabei de relatar estabeleceram, portanto, a tipicalidade dos conceitos de cor. Esteresultado,como mencionei anteriormente, foi a seguir, pela própria Eleanor Rosch, e por muitos outros pesquisadores, estendido para vários outros domínios conceituais, tais como os referentes a espécies biológicas, a artefatos - peças de mob1lia, ferramentas e veículos - figuras geométricas, etc (Cf. 1ó).

O q ue se verificou para todos esses casos foi, primeiro, que existe uma concordância muito grande entre as pessoas a respeito de quais são os exemplares mais ou menos representativos, mais ou menos típicos de um conceito. Quase ninguém contesta, por exemplo, a afirmação que uma vaca ou uma cabra são representantes mais típicos do conceito de "mamífero" do que uma baleia, um morcego ou um tatu.

O que se constatou em segundo lugar foi que o grau de tipicalidade dos vários exemplares de um conceito é um fator crucial no desempenho de um ndmero muito gmnde de tarefas cognitivas, tarefas estas que envolvem várias faculdades, ou funções cognitivas:a percepção, a memória, a imaginação, etc. Infelizmente o vou ter tempo de exemplificar muito esta arrrmação, nem vou descrever em detalhes os experimentos.Alguns resultados o bastante plausíveis. Por exemplo, o tempo que uma pessoa gasta para classificar uma baleia como mamfero, é maior que o tempo necessário para a aplicação do mesmo conceito a uma vaca. outros resultados são bem mais surpreendentes, por exemplo,oque envolve a relação de semelhança, ou de similaridade. Estamos acostumados a pensar a relação de similaridade como simétrica, ou seja, dados dois objetos A e B, A é tão parecido, tão semelhante a B, quanto B é semelhante a A. Pois bem, experimentos - cujos detalhes não vou poder descrever agora - mostraram que há uma tendência a que os exemplares menos típicos sejam considerados mais semelhantes em relação aos mais típicos do que vice-versa. Ou seja, um morcego é considerado mais parecido com uma vaca do que uma vaca é parecida com um morcego (1ó, p. 97).

Outro resultado curioso é o de que este fenômeno da tipicalidade manifesta-se até mesmo em relação ao conceito matemático de paridade - a propriedade de um mimero umser par ou ímpar. Constatou-se - numa pesquisa de 1983 - que, por exemplo, 22 é mimero par mais típico que 1 8 ; 22 é por assim dizer, mais par que 18, e 7 é mais ímpar que 23, e assim por diante (1 ).

 

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Passemos agora ao I1ltimo dos aspectos dos conceitos, de acordo com a concepção . clássica, que é contestada pelas modernas descobertas psicológicas. Este é o aspecto que se refere às estruturas em que os conceitos se organizam, às taxonomias. Ao descrever a concepção clássica no início, disse que segundo ela as taxonómias têm a seguinte característica: que os níveis de uma. taxonomia distinguem-se uns dos outros apenas por sua posição na hierarquia; disse também que esta afmn ação iria ficar mais clara numa OCasião posterior. Essa era a ocasião a que estava me referindo.

maPara começar, é preciso introduzir outros exemplos de taxonomia. Além do sistede classificação biológico que mencionei, foram estudadas várias taxonomias não-cientfficas, ou seja, presentes nas linguagens naturais, no senso comum. Seja, por exemplo, o conceito de artefato, isto é, de objeto construído pelo homem. A partir dele existem hierarquias em que os outros níveis correspondem a: mobília, cadeira, cadeira de balanço; ou ao longo de outro ramo: veículo, caro, car esporte; ou ainda: instrumento musical, piano, piano de cauda, e assim por diante.

Pois bem, o que as investigações dos psicó10gos revelaram, para um mimero muito grande dessas hierarquias, foi que em cada uma delas existe um nível especial- que foi denominado nível básico por Eleanor Rosch (18). Numa taxonomia, os conceitos pertencentes ao nível básico são chamados de categorias bdsicas. Para não destoar da nomenclatura de Rosch, vou passar a usar, ao discutir este tópico, o termo categoria em vez de conceito; a mudança, entretanto, é apenas de rótulo: no presente contexto, "categoria" é um sinônimo perfeito de "conceito".

Rosch introduziutambémmaisduas outras noções,as quaisse relacionam com a de categoria básica, a saber, as noções de categorias, ou níveis superordenados (superordinate) esubordinados (subordinate). A idéia é bem simples.Por exemplo, se"caro" é uma categoriabásica,"veículo" é uma categoria superor de nada, e"carro esporte" a categoria subordinada.

Bem, mas o que são, afinal,as categorias básicas?São categorias que apresentam uma série muito grande de particularidades cognitivas. São as categorias que:

1.   são aprendidas primeiro pelas crianças: "gato", por exemplo, é uma categoria básica, e é aprendida antes da categoria superordenada "animal", e antes da subordinada "gato siamês";

2.     são as categorias mais rapidamente aplicadas, ouseja,otempo médio, medido em experimentos psicológicos,que uma pessoa leva para identificar um objeto como um martelo (outra categoria básica), é menor que o tempo gasto para identificá-lo como uma feramenta, ou como um martelo de vidraceiro;

3.     correspondem em nível mais alto para o qual uma 11nica imagem mental é associada à categoria como um todo;

4.     correspondem em nível mais alto em que uma pessoa usa programas motores semelhantes para interagir com as entidades às quais o conceito se aplica.

Esta lista poderia ser, ainda, bastante alongada. um artigo recente de George Lakoff, ondese encontra umalistasemelhante- a qual tem nada menos que onze itens(13,p.107). É esta abundância departicularidades cognitivas, todaselas convergindo para um mesmo nível de cada taxonomia, que impressiona, que faz com que a constatação da existência das categorias básicas corresponda realmente a uma gelwIna descoberta cientfjica.

Para deixar claro que a existência das categorias básicas, no mÚlimo, nãoestá prevista na concepção clássica, basta observar que na Lógica Aristotélica, que é naturalmente solidária à concepçãoclássica nãoháreferenciaalguma aum nívelbásico; uma hierarquia de níveis, porém cada um sedistingue dosdemaisporsua posição na hierarquia, e não por particularidades de qualquer outro tipo.

Com isto encerro este relato extremamente sumário, infelizmente, das modernas descobertas psico1ógicas e antropo1ógicas que colOc:u-am em questão a concepção clássica de conceitos. Devo acrescentar que estas descobertas deflagraram uma atividade teórica muito vigorosa; im1meras teorias ou concepções a respeito dos conceitos têm sido propostas, teorias e concepções que tentam dar conta, tentam explicar os fatos a respeito dos conceitos que foram estabelecidos pela pesquisa empírica (Cf., por exemplo, 20). Não é possível, portanto, falar da concepção moderna, que existem várias. É por isso que não oponho a concepção clássica a uma concepção moderna, e sim às descobertas modernas.

 

IV. O PROBLEMA DA CONCILIAÇÃO

Havíamos chegado ao ponto de onde se descortinava um conflito: de um lado a concepção clássica dos conceitos, de outro as descobertas modernas. Diante deste quadro, olance mais óbvio seria o de abandonar a concepção clássica:se ela está em desacordo com as descobertas modernas a respeito de conceitos, e se estas - como acredito ser o caso - já foram suficientemente corroboradas para afastar qualquer ddvida razoável, então nada mais nos restaria a não ser considerar a concepção clássica como refutada, e, conseqüentemente, rejeitá-la.

Há várias razões, entretanto, que militam contra esta linha de ação. Em primeiro lugar, se a concepção clássica não tem fundamento algum no real, fica difícil explicar como pôde se originar, e se manter por mais de dois milênios a ilusão de que ela representaria fielmente a n atureza dos conceitos.

A segunda consideração não é independente da primeira, e tem como base o fato de que a concepção clássica sustenta-se, na verdade, em certas intuições bastante universais e profundas - fato este comprovado inclusive por investigações psicoló- gicas empíricas (Nota G).

A terceira razão, finalmente, tem a ver com a Lógica e a racionalidade. A concepção clássica, como já mencionei, é solidária a, é um pressuposto de quase toda a Lógica, tanto a aristotélica quanto a moderna (Nota H). Quanto a seu estatuto, por outrolado,a Lógica é considerada normalmente como uma disciplina do mesmo tipo que a Ética, isto é, uma disciplina nonnativa. A Lógica, no dizer de Frege, prescreve a maneira como devemos raciocinar, a maneira como devemos fazer inferências (Cf.9, p. 4 e128 ;e7, p.12).Ora, inferênciassão compostas de proposições,e proposições são formadas de conceitos; os conceitos são, " por assim dizer,osátomos de que se compõem as demais entidades lógicas. Segue-se daí que podemos legitimamente caracterizar oobjetivodaLógicacomosendoo deprescrever como devemos tratar os conceitos que temos em nossas mentes, e com o auxílio dos quais conhecemos o mundo. Os conceitos de que falam os lógicos, entretanto, são os correspondentes à concepção clássica. Ora, se, interpretamos as descobertas modernas como estabelecendo que os conceitos que de fato temos não correspondem à concepção clássica, entãotodoo conteddonormativodaLógicatoma-sevazio,toma-seinaplicável ao nosso raciocínio. Seria como uma doutrina ética, ou talvez uma norma de boas maneiras, que prescrevesse como devêssemos bater as asas. Que sentido faria tal norr, dado que, como é do conhecimento geral , os seres humanos não são providos de asas?

A Lógica - e aqui aparece o vínculo de minhas considerações com o tema geral dessa Jornada, ou, mais precisamente, com a idéia, também normativa, de racionalidade - a Lógica, como eu dizia, é em geral vista como estreitamente associada à razão, à racionalidade. Ser lógico é condição certamente necessária; para muitos é na verdade a condição nuclear, a condição mais essencial para que se possa atribuir a uma entidade o estatuto de ser racional. Se alguém sistematicamente comete contradições e infenciasinválidas,a tendência é que ele seja consi rado como irracio nal, como desprovido de razão.

Ora, se o abandono da concepção clássica de conceitos tem como conseqüência o esvaziamento do conteddo normativo da Lógica, então a própria noção de racionalidade tem que passar por uma reformulação radical , não levando em conta, é claro, a alternativa de abandonar também o ideal de racionalidade.

 

*       *       *

 

Vimos então três razões que mostram ser inaceitável a rejeição pura e simples da concepção clássica de conceitos. Mesmo se nenhuma das três for por si só considerada conclusiva, em conjunto elas são mais que suficientes para que se procure alguma saída para o impasse que não envolva a rejeição da concepção clássica. Chegamos assim ao problema que constitui o foco desta exposição, a saber, oproblema de conciliar a concepção clássica com as descobertas modernas a respeito dos conceitos. Para facilitar a exposição, chamarei este problema de o problema da conciliação.

 

v. CONCEITOS E ESTRUTURA MENTAL

 

Não sou o primeiro a adotar os pontos de vista que conduzem ao problema da conciliação, outros autores já perceberam sua existência, e tentaram resolvê-lo. Em seu livro Categories and concepts, Smith e Medin tomam emprestada de Miller e Johnson-Laird (1 7) a idéia de que um conceito tem dois aspectos, ou facetas, a saber um cerne ("core") - ao qual estão associadas as relações de um conceito com outros -, e um procedimento de identificação ("identification procedure") que entra em cena quando a questão é aplicar ou não um conceito a uma entidade percebida através dos sentidos. A sugestão de Smith e Medin para o problema da conciliação - sugestão que se tomou bastante popular entre os psicólogos - consiste na idéia de que os aspectos clássicos e modernos dos conceitos não são, na verdade, incompatíveis, e isto porque eles se referem a facetas diferentes dos conceitos, os aspectos clássicos refletindo, naturalmente, o cerne, e os modernos o procedimento de identificação.

Minha posição é de que a proposta de Smith e Medin aponta na direção certa, porém não vai longe o suficiente. O raciocínio é o seguinte:

Os experimentos psicológicos que evidenciaram os aspectos modernos dos conceitos envolvem tarefas cognitivas que mobilizam várias faculdades mentais: a percepção, a imaginação, a memória, a inferência,alinguagem e outras.Se, à maneira deFodor (em The Modularity of Miná. (ó»postularmos, em correspondência com cada uma dessas faculdades um málulo, então teremos um núcleo, um esboço de uma teoria sobre a estrutura mentOl. O que observações não sistemáticas indicam, e os experimentos psicológicos deixam patente, é que as entidades mentais a que chamamos conceitos participam derVários processos mentais diferentes. Tomemos, como exemplo, o conceito de cão. Este conceito entra em cena quando vejo um ser à minha frente e um	um	umo identifico comocão, quando imaginocão, quando me lembro decão, umaquando faço a inferência que me leva de 'x é cão' a 'x é quadrúpede', etc. Um pressuposto não explfcito, de boa parte das investigações que jtfforam feitas sobre conceitos, éodequeé     mesmá entidade mental - no caso, o conceito de cão - que participa de todos estes processos. A proposta de Smith e Medin um primeiro passo ao atribuir dois aspectos, ou facetas, a esta entidade. Nós vamos mais longe, primeiro afmnando que, em princípio,um conceito pode ter não apenas duas, mas várias facetas, cada uma correspondendo a um processo mental, e segundo, umaadmitindo também a possibilidade de que não se trata na verdade de várias facetas de uma mesma entidade, mas sim de várias entidades diferentes, as quais têm entre si determinadas relações de correspondência. De acordo com este ponto de vista, o conceito de cão não designaentidade, mas sim umafamaia de entidades mentais, cada membro correspondendo a um módulo , ou, em outras palavras, cada membro representando um modo de ser do conceito, enquanto participante de cada tipo de processo mental. Uma conseqüência evidente deste ponto de vista é o princípio segundo o qual o estabelecimento da natureza dos conceitos pressupõe uma teoria sobre a nameestrutura e o funcionto da mente humana. Ou seja, podemos conhecer os membros de cada família de entidades mentais, que correspondem a um conceito, quando dispusermosdeuma teoria que explique quantos e quaissão os módulos de que se compõea mente humana, como éo funcionamento decada um deles, como eles se inter-relacionam, etc.

Para tomar mais inteligível - e mais plausível - minha proposta, podemos introduzir neste ponto a questão de se os animais têm ou não conceitos. Por um lado, os conceitos, por assim dizer, têm um pé na linguagem; existe no mínimo uma relação muito estreita entre um conceito e a palavra que o designa. Se considerarmos este aspecto dos conceitos como essencial, então somos levados a afirmar que os animais não têm conceitos, já que não têm o dom da linguagem (Nota 1) . Por outro lado, é evidente que os animais são capazes de executar tarefas cognitivas, que podem ser interpretadas muito naturalmente em termos de conceitos. Por exemplo, se um cão discrimina um osso como comestível, e passa a roê-Io, então não é estapafúrdio afirmar que o animal aplica o conceito de comida a certo objeto. A saída do dilema consiste naturalmente em distinguir os conceitos que os animais possuem daqueles possuídos pelos seres humanos. Dizemos assim que os conceitos animais têm alguns, mas não todos os aspectos dos conceitos humanos; eles constituem uma versão, ou forma primitiva destes. Ao usar as expressões "conceitos animais" e "conceitos humanos", estamosfalando como se o objeto de nosso discurso fosse dois tipos diferentes de uma mesma entidade; a outra alternativa é usar expressões diversas, que corresponderiam, então, a entidades diferentes - mas que teriam entre si certas relações de correspondência. Esta segunda alternativa é a adotada, por exemplo, por dois autores que trataram recentemente destas questões. Andrew Woodfield, em seu Schemas and Protoconcepts: a Two-tier Model ofConcept Formation (24), usa a expressão esquemas perceptuais (perceptual schemas) par'! designar aquilo que chamamos conceitos animais,enquantoR.Bogdan, emWhat do we need conceptsfor? (2), introduz, com o mesmo objetivo, categorias comportamentais (behavioral categories). Seja qual for onomequeselhes queira atribuir, o fato é que tais entidades estão presentes também nos seres humanos - na medida em que há tarefas cognitivasquesão levadas a cabo essencialmente da mesma maneira nos homens e animais, tarefas das quais participam as categorias comportamentais(para usara expressão de Bogdan). Notese tambéma relação estreita - porémnãodeidentidade - quehá entre, de um lado, a distinção cerne/procedimento de identificação, de outro a distinção conceito (propriamente dito)/categoria comportamental .

 

*       *       *

 

Minhaproposta consiste,então,essencialmente em uma tese e um corolário. A tese é a de que um conceito é na verdade uma fam1lia de entidades, cada qual correspondendo a um processo mental;dela decorre o corolário segundo o qual a investigação sobre a natureza dos conceitos só pode ser realizada no contexto de uma Teoria da Estrutura Mental.

Como mencionei no início , não vou, por vários motivos, fazer a defesa dessas teses agora. Gostaria, entretanto, de concluir esta exposição com uma réplica àquela que talvez sej a a primeira objeção que minhas propostas podem provocar. Um crítico poderia dizer-me o seguinte:

Você partiu de um problema relativamente simples, relativamente bem definido - o problema de conciliar a concepção clássica com asdescobertas modernas- e em vez de resolvê-lo, colocou em seu lugar todo um conjunto de problemas. Ou seja, antes tínhamos apenas um tipo de entidades - os conceitos - cuja natureza precisávamos elucidar. A tarefa agora é a de esclarecer a natureza não apenas de um, mas de vários tipos de entidades, e também a natureza das relações que existem entre eles. Além disso - continuaria o crítico - você remete a solução desses problemas a uma Teoria da Estrutura Mental - que é realmente um empreendimento enorme. É enorme na medida em que uma teoria como esta deve dar conta, presumivelmente, não apenas dos fatos referentes a conceitos, mas de tudo o que se sabe de essencial sobre todos os demais aspectos e funções da mente. Em resumo, na tentativa de eliminar um monstro, eu teria dado origem a vários outros, muito mais terríveis.

Respondo: a culpa é minha. Eu insistiria nasminhas propostas, retrucando ao crítico que se o problema da conciliação aparece como sendo muito difícil nesta abordagem,é porqueele é de fato muito difícil; ese há uma perspectiva a partir da qual ele parece fácil, esta perspectiva é enganosa.

A moral da história para mim é a seguinte: que a estratégia de dividir para conquistar, a estratégia de isolar os fenômenos, que deu tão bons resultados em tantas ciências, não funciona bem em relação aos fenômenos da mente. A mente humana é um sistema holístico ; holístico neste sentido, de que , muito mais do que em outros domínios, é impossível compreender as partes sem entender o todo.

 

NOTAS

 

A- Para um levantamento desta literatura,sãoconvenientescomo ponto de partida as bibliografias das obras mencionadas, a seguir. O capítulo 12 (A world categorized) , do livro de Gardner (TheMind' s New Science)( lO), constitui uma boa introduçãopara o estudo das pesquisas cognitivistassobreconceitos. Do ponto de vista da Psicologia, são bastante dteisosreview articles,de Mervis e Rosch, e de Medin e Smith, ambos na An Review oi Psychology, 1981 ( 1ó) e1984 ( 15), respectivamente.Os principais aspectos filosóficos do tema em pauta são tratados no ndmero especial, dedicado a conceitos, da revista Mind and Language, que foi publicado em 1989 (ver referências a artigos de Lakoff (13) e Bogdan) (2).

B  - No original ... and that. language is merely an identical means oisolving specific problems oi communication or rejlection .

C               - Existe tradução brasileira, de J. Mattoso Câmara Jr., em Lingüfstica C011U) Ciência ( 19) (p.20).Atradução apresentada éde minha autoria, porém não difere em nada de essencial da de Mattoso Câmara.

D  -Existetraduçãobrasileira,de Paulo A1coforado, em gica e Filosofia da Linguagem (8) (p. 48). A tradução apresentada é de minha autoria, porém não difere em nada de essencial da de Paulo Alcoforado.

E  -O quenãosignifica que tais experimentos não tenham sido realizados. A imprecisão dos conceitosmanifesta-senain consistência em sua aplicação; ou seja, ora julga-se que um conceito aplica-se, ora que não se aplica a uma determinada entidade. Esta inconsistência foi detectada experimentalmente tanto em julgamentos de sujeitos diferentes quanto em julgamentos de um mesmo sujeito, em ocasiões diferentes.Cf. MerviseRosch, Categorizationoi NaturalObjects ( 1ó), p. 101 .

F  - Para a noção de 'termo básico de cor', v. Brown (3), p.141. Este texto de Brown é a fonte principal do relato que se segue no texto; as indicações de ndmero de página entre parênteses referem-se a este artigo.

G  - McNamara e Sternberg, citados por Medin e Smith (20), p.122.

H - As exceções são alguns ramos recentes da Lógica, particulannente os sistemas da chamada jUzzy logic. A Lógica jUzzy,entretanto pode-sedizer que faz parte do movimento de contestação da concepção clássica; seu ponto de partida é a premissa de que os conceitos têm na verdade limites imprecisos.

I      - Não levando em conta, naturalmente, a tese de Fodor (em The Language of Thought (5» , segundo a qual o processamento cognitivo dos animais, tanto quanto o dos seres humanos, se numa linguagem do pensamento.

 

OLIVEIRA, M. B. de. Concepts and mental structure. Trans/Fonnl Ação, São Paulo, v. 14, p. 73-91, 1991.

ABSTRACT:Thea im of thetalk wasto present abrief account of thehistory of investigations aboutconceptsinthelast decades, thereby contributing to the difsion of cognitivescience.The central episode in that history is the tuming point that resultedfrom the researches carried out by Eleanor Rosch and others from the beginning of the 70's. Those researches constitute a challenge to the CLASSICAL VIEW OF CÓNCEPTS (which is described in thefirst part ofthe exposition). The fact that the rejection of the c/assical view is not a viable altemative generates what we called the PROBLEM OF CONCIUATION - that is, the problem of conciliating the classical view with the modem empirical results. The exposition ends with some suggestions towards the solution of the problem of conciliation.

 

KEYWORDS: Concepts; cognitive science; Eleanor Rosch; prototype; basic category.

 

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[1] Departamento de Filosofia da Educaç ão e Ciências da Educação - Fac uldade de Educação - USP - São Paulo - SP.