EXERCÍCIOS EM PSICOMITOLOGIA
Osmyr Faria GABBI JÚNIOR[1]
RESUMO: Tanto a psicologia como a psicanálise têm a pretensão de serem ciências. Contudo, suas explicações parecem ser mais estlticas do que cientfjicas. Em Freud, a dimensão da persuasão l parte inerente de sua teoria.O que não impede, contudo, que se possam determinar com precisão os movimentos internos dos seus conceitos.
UNlTERMOS: Psicanálise; psicologia; explicação ciendjica; explicação estltica; retórica.
Die Unsterblichkeit.Vergeltung, das ganze Jenseits sind solehe Darstellungen unseres psychischen Inneren.Meschugge? - P sycho-Mythologie -Sigmund Freud - Brief an Wilhelm Fliess - 12/12/1897.
A psicologia como ciência é marcada pelo aparecimento do laboratório de Wundt em 1879. Entretanto, sua cientificidade sempre esteve aberta a intensos debates. Não resta dt1vida que a comunidade dos psicó10gos, especialmente a americana, continuamente se sentiu fascinada pela crença de que suas pesquisas seguiam os ditames do que consideravam como sendo as exigências do "método científico".
Mas, mesmo quando tudo isso é denunciado como sendo uma quimera, a crítica não ousa tocar a pretensão à cientificidade dos projetos psicológicos. Para alguns, todavia, a psicanálise parece trazer no seu bojo novos preceitos, mais compatíveis com o que se supõe que deva ser uma "ciência humana".
Entretanto, para Wittgenstein, mesmo a teoria freudiana é vítima de tais ilusões. Também ela contrabandearia os requisitos metodológicos da física, sem se dar conta de que o jogo de linguagem que ela instaura é outro. Sem condições de predizer, ela assemelha-se mais a um mito, onde as explicações são estéticas e não científicas.
Ora, a dimensão da persuasão, presente na explicação estética, parece ser inerente ao projeto freudiano, fazendo parte do seu funcionamento. O que não impede que se possa ser rigoroso na determinação e na elucidação das noções que ele mobiliza.
Por conseguinte, nosso trajeto, no que se segue, parte da análise da pretensão da psicologia de ser uma ciência para, ao rmal, formular certas hipóteses sobre a natureza dos estágios da libido na teoria freudiana. O fio condutor de nossa pesquisa é mais visível na terceira parte, quando explicitamos algumas das observações de Wittgenstein a respeito da psicanálise.
"•••assim ambos sistemas de formação (o médico e o psicó10go) não podem ser poupados de uma deformação profissional, em dois aspectos: de uma certa cegueira para o fenômeno social e de uma inclinação para tomar sem mediações e sem problemas conceitos que são apenas sinais de um mundo de experiência. Ambos aspectos, certamente, ocorrem juntos" (30, p. 15 ).
"Os planetas não falam - em primeiro lugar, porque não têm nada a dizer – em segundo lugar, porque não têm tempo - em terceiro lugar, porque se fez com que se calassem" (27, p. 277).
"Não estou pensando em um deus cuja imperfeição resulta da candura de seus criadores humanos, mas sim em um cuja imperfeição representa sua característica essencial: um deus limitado em sua onisciência e poder, falível, incapaz de prever as conseqüências de seus atos e que crie coisas que gerem o horror. Ele é um deus doente, cujas ambições excedem seus poderes e que, a princípio, não percebe isto. Um deus que tenha criado relógios, mas não o tempo que eles medem. Ele criou sistemas ou mecanismos que servem a rms específicos, mas que agora ele ultrapassou e traiu. E criou a eternidade, para medir seu poder, mas q. ue mede sua derrota infinita " (29, p. 209).
"Pode-se dizer que a liberdade do universo depende do afrouxamento das restrições impostas pela ciência" (8, p. 157).
A maioria das análises feitas sobre a psicologia está centrada em tomo de dois pontos: um relativo ao estatuto do conhecimento psicológico e outro referente às relações entre o psicológico e o extrapsicológico. Tendo em conta os objetivos do pre
sente capítulo, vou chamar o primeiro ponto de questão epistemo1ógica. Nesta, a indagação volta-se para uma avaliação dos pressupostos filosóficos, relativos ao conhecimento, colocados em prática, de uma forma geral, pela psicologia. O segundo ponto, que se pode designar de questão socio1ógica, refere-se aos limites exteriores da pesquisa psicológica, ou seja, às condições de possibilidade de sua existência enquanto prática social ou, para simplificar, aos possíveis e inevitáveis vínculos que ela apresenta em relação ao social.
Certamente, a divisão é artificial. Mesmo nos autores que se ocupam apenas da questão epistemoMgica, a questão socioMgica está subentendida e respondida, mesmo que seja à revelia deles. Assim, alguém poderia defender a tese de que a psicologia, quando é inequivocamente científica, é uma ciência biológica uma vez que constrói o seu objeto como objeto natural. Entretanto, tal aflrmação não isentaria o investigador de mostrar que há, ainda, uma especiflcidade do psicológico, (para justiflcar nossa exigência, basta recordar uma observação feita por P. Greco (24, p. 937): "É a infelicidade do psicó10go: nunca estd certo de que faz ciência. Mas se a faz, nunca estd certo de que seja a psicologia.") assim como de exibir o custo social de uma psicologia pensada em tais termos, que, como veremos adiante, não é pequeno.
Entretanto, o mais interessante é explorar os casos onde as duas questões estão explicitamente relacionadas. O pequeno livro de Nick Heather, Radical Perspective in Psychology, pode servir como exemplo, e é excelente para que possamos começar a estabelecer um terreno comum para uma futura discussão (25). O primeiro objetivo do autor é o de realizar uma crítica ao positivismo presente na psicologia. Segundo ele, os principais efeitos dessa fIlosofla sobre a psicologia seriam os seguintes. Ao aplicar métodos e princípios da ciência natural ao homem, acabaria por desumanizá-Io: o homem seria transformado em um objeto inanimado, despido de intenções. Haveria uma desconsideração pelas implicações sociais da pesquisa psicológica, todo questionamento seria considerado como "metafísico", como despido de sentido. Essa estreiteza metodológica levaria a uma trivialidade de conte11do, onde a situação de laboratório aliada a um aremedo de método científico [também aqui não é in11til nos lembrarmos de Politzer (34, p. 21), quando diz que os psicólogos são tão cientfjicos como os selvagens são cristãos] terminariam por deslocar o estudo para uma análise de movimentos e não de ações. Ocorreria um desinteresse pela fIlosofla e, fundamentalmente, pela linguagem natural que poderia fornecer um instrumental 11tH para a investigação das ações humanas. A adoção de um determinismo causal, no sentido humano, não levaria em conta que o homem seria um ser determinado por regras e capaz de auto-reflexão.
Como se pode facilmente aprender, Heather não está apenas criticando um modelo de ciência, ele está pedindo a sua substituição por um outro. Ele não deseja uma psicologia não empírica, o que seria um absurdo, mas reivindica uma transformação na sua forma de considerar e construir o objeto psicológico. O estudo da questão epistemoMgica é seguido de uma análise da questão sociológica, que visa mostrar como uma psicologia, pensada a partir do positivismo, é produtora e reprodutora de ideologias. Para Heather, o seu principal defeito decorre da inabilidade do positivismo em compreender a sociedade historicamente. A cegueira em relação à história traria
sérias conseqüências ideológicas (25, p. 1 8-3ó). Ao tomar o homem como um objeto inanimado, favoreceria e contribuiria para a sua alienação. Ao partir da situação de desigualdade social como um "dado natural " e ao tratá-lo como uma questão de engenharia social, facilitaria a manutenção do status quo. Ao pressupor que o freqüente deflniria o normal, permitiria e justiflcaria a perseguição do diferente ao transformá-lo em algo patolÓgico; ao mesmo tempo, desconsideraria a possibilidade de que exista uma patologia da normalidade. Ao rIXar no indivíduo a sua unidade de análise e ao centrar seus esforços sobre ele, deixaria de lado a tese de que as condições sociais possam ser detenninadas para a situação psicológica do indivíduo.
Em suma, as conseqüências seriam ideológicas porque a psicologia, que resultaria da adoção de um referencial positivista, seria de um tipo que ocultaria e impediria que as pessoas tomassem consciência de que vivem em uma sociedade que se dermiria pelo conflito, produtora e reprodutora de segregação no seio do social. Mas será que as alternativas expostas por Heather resolvem, ou pelo menos, minimizam as sérias queixas que ele mesmo expõe de forma tão clara? Para procurar uma resposta ou, mais modestamente, estabelecer alguns dos seus parâmetros, é preciso recorrer a uma história dos projetos psicológicos, ou seja, é inevitável que examinemos o pano de fundo contra o qual surgiram as diversas psicologias. Acredito que, aqui, o belo texto de Canguilhem (5) Quest-ce que la Psychologie?, possa nos servir, muito bem, de guia.
Para o pensador francês, podemos detectar, na história da psicologia, três grandes projetos. O primeiro, intitulado, ciência da alma, origina-se com Aristóteles, e pensa o psicológico, mais propriamente, a psicM, como território do fisiológico, no sentido, originário e universal de teoria da natureza. Na mesma linha, Galeno (13 1-200)
estabeleceu de forma definitiva que o cérebro, e não o coração, como pensava Aristóteles, era o órgão da sensação e do movimento. O que permitiu numerosas pesquisas, todas na mesma direção, durante séculos, na área da pneumatologia empírica e que relacionavam funções psíquicas e localizações cerebrais. Portanto, a psicologia enquanto psicofisiologia e psicopatologia, compreendida como disciplina médica, remonta ao século 11.
O segundo projeto, iniciado com o declínio da física aristotélica no século XVII, concebe a psicologia como ciência da subjetividade (aliás o próprio tenno, psicologia, aparece no século XVI). Inicialmente, aparece como uma física do sentido externo. A psicologia é entendida como uma física em um duplo sentido: o seu objeto é fornecido pelos físicos - ela, enquanto psicofísica, deve dar conta dos enganos da percepção no ato do conhecimento a partir de um estudo da estrutura do corpo humano, visto como um dado da natureza - e o seu procedimento também deve ser o da física, ou seja, um cálculo - a psicofísica vai exprimir suas descobertas através de relações matemáticas. Uma outra modalidade do mesmo projeto é o da psicologia como ciência do sentido interno, como ciência do eu. O eu penso de Descartes, um sujeito epistemológico, é transformado em um eu psicológico do qual os empiristas farão a sua história natural, e os racionalistas um eu substancial a respeito do qual se poderia ter intuições. Finalmente, a ciência da subjetividade aparece sob a forma de uma ciência do sentido íntimo, onde se troca a concepção do eu penso pela do eu quero. Nela, o fato psíquico não é mais uma unidade dada pelo eu, ele é pensado como uma relação, como uma oposição. Na intersecção entre o primeiro projeto, o de uma psicopatologia, e esse dltimo, surge a psicanálise, onde a relação somato-psíquico é invertida em psicossomática e a psicologia, ao não se reduzir ao que é consciente, transforma o conceito de inconsciente, que era físico, em um conceito psicológico.
o derradeiro projeto aparece no século XIX e concebe a psicologia como ciência dos reflexos e do comportamento, ou seja, como uma biologia do comportamento humano. Sua principal característica é a sua incapacidade constitucional em aprender e exibir com clareza o Seu projeto de instauração (5, p. 87). Para Canguilhem, ele faz do psicó10go o instrumento da ambição de tratar o homem como instrumento.
A condição de possibilidade, para que o psicó10go possa manter-se enquanto instrumento de segunda potência, é a de ignorar essa mesma condição. Em outras palavras, é preciso que ele tenha ilusões sobre a sua situação para que possa mantê-la. Sem dl1vida, essas considerações, a respeito do behaviorismo, acabam por encontrar-se com as teses de Heather sobre a influência do positivismo na psicologia.
Todavia, permanece uma pergunta: por que em todos os projetos há sempre a mesma ambição de pensar-se a psicologia como ciência? O próprio Canguilhem usa sempre a expressão ciência de. Pode aparentar que se critica uma concepção de ciência, mas não a idéia de que a psicologia deva ser uma ciência. Não podemos nos esquecer, para ficarmos nos casos exemplares, que Piaget escreveu Sabedoria e Ilusões da Filosofia (33) para combater a pretensão de que se pudesse existir um conhecimento psicológico supracientífico. Mas antes de endossar a tese piagetiana, é relevante saber o que se está entendendo, geralmente, por ciência. Talvez Aristóteles possa nos servir de guia, esclarecendo sobre alguns dos pontos em jogo. Na Ética a Nicomaco, ele estabelece a seguinte comparação: E de fato um construtor e um geó- metra investigam de modo diverso o ângulo reto: enquanto o primeiro o investiga na medida em que é útil para sua obra, o segundo o investiga segundo o gênero ou de acordo com a diferença especfjica: esta é de fato a pessoa que se dedica a contemplar a verdade (2, 1.092a, p. 1.178). Ou seja, para Aristóteles, o construtor sabe usar, para os fms que se propõe, propriedades do ângulo reto; entretanto, é o geômetra que descobre tais propriedades. Há, portanto, uma diferença entre conhecimento
teórico e conhecimento prático. O primeiro visa à universalidade, o segundo está llTeSO às contingências das suas necessidades momentâneas, são interessantes apenas as propriedades que resolvem o problema que o construtor tem mante ne si. Mais adiante, Aristóteles estabelece o caráter de necessidade do conhecimento do geômetra em oposição ao presente na vida cotidiana: Assim, usamos a expressão levar em conta o pai ou o amigo não no sentido em que dizemos acatar propriedades matemáticas (2, 1.102b, p. 1.185). O que podemos concluir a partir de tais referências? Que, para Aristóteles, e para boa parte da posteridade, as duas condições para que um discurso seja considerado científico são universalidade e necessidade. Por conseguinte, a pergunta que se deve dirigir, agora, à psicologia é a de saber se o conhecimento do psicó10go pode ser universal, isto é, independente de condições geográficas e sóciohistóricas, e necessário, ou seja, se existem premissas sobre o homem, ou sobre o que quer que se pretenda colocar no seu lugar, que fundamentem aquilo que o psicó10go possa afirmar sobre o seu objeto.
A resposta �tiana é negativa. No Prefocio aos Fundamentos Metaftsicos da Ciência Natural (2ó, p. 15-1ó), Kant acredita que a química não pode ser considerada ainda uma ciência. Apesar de realizar experimentos, de fazer observações e de estabelecer leis empíricas, não possui ainda uma teoria da matéria que confira caráter necessário às relações que já descobriu. Em outros termos, a química carece de ftlDdamentação teórica. Contudo, em relação à psicologia experimental, o obstáculo é muito maior, para não dizer insuperável. O objeto psicológico apresenta uma natureza intrinsecamente histórica. É, por conseguinte, a própria historicidade das categorias psicológicas que interdita a psicologia de constituir uma teoria, onde as relações sejam universais e necessárias. Se nos voltarmos para os diversos projetos, assinalados por Canguilhem, veremos que neles está presente a crença na possibilidade da universalidade e da necessidade. Não é por acaso que constroem seu objeto natural, seja ele o cérebro, a estrutura do corpo, o eu, ou o comportamento. Quando Heather aponta para as conseqüências ideológicas de tal crença, que podemos agora acrescentar - presente mesmo nas abordagens que não se reconheceriam ou que não seriam positivistas - podemos nos perguntar se é possível escapar a elas ou se estamos mesmo condenados, qua psicó10gos, a sermos eternamente objetos de críticas desagradáveis como esta de Canguilhem: De fato, de muitos trabalhos de psicologia, retira-se a impressão de que misturam a uma filosofia sem rigor uma ética sem exigência e uma medicina sem controle (5, p. 77). Em outras palavras como manter simultaneamente a idéia de ciência e a crença de que a sociedade é dotada de historicidade? Não se poderia, parafmseando Nietzsche, afIrmar que todos os psicó10gos têm em si o defeito comum de partirem do homem do presente e acreditarem que, mediante sua análise, atingem o alvo, que sem querer o homem paira diante deles como uma verdade eterna, como algo que permanece igual em todo o vértice, como uma medida segura das coisas; que tudo o que o psicó10go enuncia sobre o homem, no ftmdo, nada mais é do que unI testemunho sobre o homem de um espaço de tempo muito limitado; que a falta de sentido histórico é o defeito hereditário de todos os psicó10gos, que muitos, sem se darem conta, até tomam a mais jovem das confIgurações do homem, tal como surgiu sob a pressão de detem1ÍDadas religiões, e mesmo de deteffi1inados acontecimentos políticos, como a fOrnla fIrme de que se tem de partir? (31, p. 24-25)
Sem dl1vida, poderia ser objetado que Nietzsche falava de fIlósofos e não de psicólogos, e que, no ftmdo, se estaria endossando uma posição cética ou se defendendo a tese de que a psicologia nasceu em pecado original sem poder ter a esperança que um dia irá aparecer um Messias. Não, não é verdade. A resposta apresentada consiste em mostrar que se a psicologia quer ser ciência, no sentido mencionado, ela precisa constituir invariantes e ao fazê-Io ela entra em choque com uma história do social entendida como domínio da mudança. Todavia, talvez uma saída possível possa ser encontrada nas próprias considerações de Heather. Em especial, quando ele afIrma que é desejável substituir uma psicologia do movimento, ou seja, uma psicologia onde a unidade de análise apresenta dimensões físicas e pressupõe uma experiência de natureza perceptual, por uma organizada em tomo de ações, onde a unidade de estudo tem dimensões semânticas, onde, por conseguinte, se presentifIca a questão da interpretação.
Entretanto, convém recordar que, no século xvn, não foi apenas a física aristotélica que foi abandonada. Também o foi a teoria das causas aristotélicas. No lugar das quatro causas - material, fonnal, eficiente e final - a nova física, inaugurada por Galileu, ficou apenas com a eficiente. Se antes, tudo que ocorria na natureza tinha um propósito, agora a natureza transforma-se no campo de forças cegas, despidas de quaisquer intenções. Com Newton, o movimento se completa e os planetas deixam de falar. Mas os diversos projetos de psicologia surgidos a partir do século XVI, inspirados pela mesma física, também calaram o homem. Este é pensado, a partir desse momento, como uma máquina. É a partir do jogo entre movimentos maquinais, que se opõem, que tanto Descartes como Hobbes irão analisar a ação humana. Portanto, não basta indicar para a psicologia um novo objeto, o estudo da ação humana. É preciso retirá-lo do mecanicismo introduzido no século XVI e conceber uma nova forma de determinismo que não tome, como modelo, as interações que resultam do choque de bolas de bilhar.
Por outro lado, não é menos verdade que talvez seja a propria concepção de ciência, exemplificada nas suas diversas variantes, que deva ser abandonada. Elas teimam em manter, seja sob que forma for, o recurso a um princípio transcendente. É preciso, portanto, deixar de lado uma concepção de ciência em sentido forte, se quisermos apreender algo sobre o outro e sobre nós mesmos. Para que essas considerações não sejam, mais uma vez, entendidas como um convite ao irracionalismo, ao desespero, etc., vamos retroceder um pouco mais na história da filosofia e recordar muito rapidamente os autores contra os quais Platão e Aristóteles, em parte, escreveram suas obras, os sofistas. A reação contra eles foi tão séria que o termo guarda até hoje conotação negativa. Mesmo quando se recupera o seu sentido original, homem hábil ou sábio em alguma matéria, teima-se em negar que eles tenham sido fIlósofos. Afinal, eles vendiam apenas um falso saber, eram retóricos, despidos de qualquer preocupação com o verdadeiro conhecimento. O principal pecado destes homens, Protágoras, Górgias, Hippias, Pródicus, foi o de pretender que a verdade era humana e, portanto, inequivocamente relativa, e não absoluta. No lugar do contraste entre ser e aparência, verdade e opinião, colocaram apenas o fenÔmeno sem recorrer a qualquer princípio externo ou a um outro mundo, pensado como mais real do que este. Eles desconsideraram qualquer realidade transcendente. Protágoras, por exemplo, afirmou que o homem l a medida de todas as coisas, das coisas que sãO o que são e das coisas que não são o que não são (35, p. 18). Em outros termos, o homem enquanto "ser em uma comunidade" determina e é determinado por aquilo que toma como sendo verdadeiro para ele. Se o homem não pode contrariar sua natureza, pode, no entanto, variar as normas pelas quais se guia. Logo, abandonar uma verdade transcendente não significa abandonar a procura da verdade, mas constatar que ela depende de práticas sociais, onde as relações de poder desempenham um papel intr:Cnseco. Assim, o interesse passa da natureza para a linguagem, para a religião, para a arte, para a poesia, para a ética e para a política, todas entendidas como produções humanas. No lugar do conhecimento (há uma verdade da qual devemos nos inteirar), surge a persuasão (uma vez que não há mais uma verdade absoluta, o máximo que podemos fazer é tentar persuadir o outro da nossa verdade). Sempre é possível opor a um discurso, outro discurso. Como não há mais deuses, nem a Verdade, nem qualquer transcendente de Platão, é no livre choque entre discursos que se adota um As rápidas considerações sobre os sofistas levam a algwnas conseqüências que se integram com as mais recentes pesquisas na história da ciência da física. Podemos citar, entre elas, a liberdade que se ganha em relação a um pretenso método científico. Feyerabend, um excepcional historiador e filósofo da ciência, chegou a conclusão de que em termos de metodologia científica anything goes. O resultado de suas pesquisas na história da física foi o de descobrir que não há nenhwna regra, não importa quão plausfvel, e não importa quão firmelnente.fundamentada na epistemologia, que não tenha sido violada alguma vez (7, p. 23). Por que então o psicó10go deve ser obrigado a procurar o que não existe? Por que a epistemologia da psicologia deve perseguir uma epistemologia da física que só existe no imaginário de alguns psicó10gos? Não estaria na hora de dizer que a liberdade da psicologia depende do afrouxamento das restrições impostas por uma má epistemologia da ciência?
Por outro lado, é também preciso que se abandone a idéia de que a psicologia é alvo de críticas, como algwnas daquelas que apresentamos, porque ela estaria ainda em seus primórdios. Wittgenstein considera que a confusão e a aridez da psicologia não devem ser explicadas pela sua juventude enquanto ciência; seu estado não compartfvel com o da ftsica, por exemplo, no seu in(cio. Pois na psicologia há métodos experimentais e confusão conceitual (38, p. 232e). M está, até onde é possível ver, o grande problema da psicologia: confusão conceitual. A psicologia que deveria fazer uma pesquisa das regras subjacentes às ações humanas, teima em descobrir leis. Não se dá conta do abismo presente entre regras e leis. Para tomar a diferença mais precisa, acredito que podemos estabelecer, a título de ilustração, três distinções relevantes entre elas (Ver, para maiores detalhes, 22, p. 491- 493). Leis enquanto tais têm a pretensão de ser verdadeiras; regras não são nem verdadeiras, nem falsas. As leis definem um domínio de aplicação e referem-se a relações constantes entre elementos; regras são obedecidas ou não e referem-se ao domínio das interações simbólicas. Finalmente, basta que haja uma ocorrência que contraria uma lei para que esta deixe de ser considerada como tal, portanto a sua legitimidade é afetada por qualquer caso que a contrarie; entretanto, a violação de uma regra não afeta sua legitimidade - o seu fundamento está sempre num "dever ser".
A confusão entre regras e leis leva alguns psicó10gos a construírem objetos ahistóricos, como se fosse possível pensar o psicológico com categorias a-históricas. Em seguida, procuram transpor suas teorias, inevitavelmente prescritivas, embora tenham a pretensão de serem descritivas, para condições diferentes daquelas em que foram produzidas. Os efeitos ideológicos são imensos. Assim, as prescrições do psicólogo são dadas a partir de um aval autoconcedido de cientificidade e não como são realmente, isto é, como diretivas morais que se ignoram enquanto tais.
Mas não se poderia encontrar na psicanálise uma resposta satisfatória às indagações feitas? Ela não nos possibilitaria, ao mesmo tempo, a cientificidade almejada e uma teoria sobre o homem enquanto ser que obedece a regras? Para delinear uma primeira resposta, examinemos um momento muito particular e decisivo da história da constituição da teoria freudiana: o abandono da teoria da sedução e a elaboração do conceito de fantasia. Pretendo retirar deste estudo algumas conseqüências relevantes para uma reflexão sobre a natureza do conhecimento psicológico.
O meu fio sem ser o dnico, será um pequeno livro de Jean Laplanche e J.-B. Pontalis, FantaSme originaire, Fantasme des origines, Origines dufantasme (28). Aqui a psicanálise parece ter, como seu material de estudo, a fantasia. E os autores nos c�locam de imediato diante da seguinte interrogação, como diferenciar o fictício daquilo que é verdadeiro? Ou, em termos mais prudentes, em que campo se move o analista, naquele em que as coisas ocorrem, o dos fatos, ou naquele em que as coisas são nar? Não poderia parecer, à primeira vista, para um crítico severo que a psicanálise é uma dupla ficção, uma ficção que se pretende científica e que simultaneamente fala a respeito de ficções?
Quando Breuer ouve Anna O. ele está ouvindo narativas. Elas são produzidas a partir de cenas traumáticas, vivenciadas em estado de auto-hipnose. O estado hipnóide ao mesmo tempo que separa um registro de outros registros, presentes na consciência normal, dá ao primeiro um aspecto ficcional: são histórias que fogem à compreensão, que são ouvidas como relatos fantásticos e que Breuer, por um golpe de sorte, acaba por encontrar o seu lugar de inserção na vida diurna de Anna O.
Entretanto, Freud não persegue o incomum, ele vai usar o método de Breuer para buscar, por trás das coisas ditas, a realidade de uma vivência. No retomo a uma origem, que parece sempre recuar, ele pretende encontrar nartivas, contextualmente consistentes, ao partir da hipótese de que as oferecidas estão em uma forma truncada. Mas aos poucos, podemos constatar que, na sua obra, oposições aparentemente tão inquestionáveis como ficção/realidade, sujeit% bjeto, mundo interno/mundo externo parecem entrar em colapso. De um lado, a ficção, o sujeito, o mundo interno, de outro, a realidade, o objeto, o mundo externo. Como hesitar diante de tal quadro? Diversas escolas de psicologia escolheram o segundo elemento de cada uma dessas oposições, aqueles que, segundo elas, as transformariam, em um passe de mágica, em ciência, sem se perguntarem previamente se a partilha era possível ou se o lado escolhido era mesmo o mais indicado (Nota A).
Freud em um determinado momento criou uma regra de procedimento: ele pede ao analisando que abandone o julgamento de realidade, que diga tudo o que lhe ocorre. Sem ddvida, algo muito estranho para quem está preocupado com fatos, com a forma de controlá-los. Não seria impossível conhecimento que se pretendesse fundar sob a decisão de desconhecer a diferença entre falso e verdadeiro? De qualquer maneira, ao fazê-lo, Freud abandonou decisivamente o interesse pelo conteddo proposicional das proferições feitas por seus pacientes. Em outras palavras, desconsiderou uma concepção de verdade, ou melhor, uma tese sobre uma das funções das proferições, a saber, a de descreverem estados de coisas e de, enquanto tais, poderem ser verdadeiras ou falsas. Contudo, se as proferições não desempenham essa função, não poderíamos concluir que elas seriam sem sentido e assim desprovidas de interesse para a ciência, ou seja, elas não seriam ficções?
Freud batizou a realidade que a análise revela de realidade psíquica. Mas que tipo de realidade é esta? Não estaríamos diante de uma forma de expressar, através de um vocabulário novo, uma velha dicotomia, a dicotomia entre fantasia e realidade? Não, acredito que não. O que se descobre aqui é um novo objeto ou, mais propriamente, constrói-se um novo objeto de investigação: a fala do sujeito. Descartes assinalou a diferença fundamental presente entre a fala de um imbecil e sons produzidos por um habilíssimo papagaio. Certamente, o filósofo francês não tem culpa se, em um determinado momento, achou-se que a psicologia deveria tomar como modelo o papagaio (Nota B). No lugar da ficção, do sujeito, do mundo interior, Freud coloca a fala que supõe, para ser captada, apenas uma escuta, uma escuta igualmente desinteressada.
Existe uma versão da constituição da teoria freudiana que acredita que Freud passou da crença na sedução como algo ocorrido, como fato histórico, material, para a tese de que a sedução era uma fantasia. Ou seja, Freud descobriu tardiamente o que todos não lhe cansavam de dizer: as histéricas mentem. Ele teria decidido construir uma ciência da mentira, ou melhor, um conhecimento que desconsiderasse a diferença entre verdade e falsidade. A sexualidade, neste momento, vista como algo externo e traumático, como uma sedução teria sido transformada em uma substância endógena, a libido infantil, que produziria efeitos danosos caso não fosse bem administrada.
Mas a própria teoria da sedução, tão agradável àqueles que se sentem mais à vontade,:om um Freud "científico", é bem mais sofisticada do que seus admiradores. Ela supõe uma série de condições que precisam ser explicitadas. O primeiro evento, o do atentado, deixa um registro na memória bastante complexo. Simultaneamente houve uma liberação sexual precoce e, devido à inexistência de características sexuais no próprio corpo - a sexualidade só aparece na puberdade - uma incapacidade em compreendê-la enquanto vivência sexual. Trata-se assim de uma espécie de "sexual pré-sexual" (28, p. 27). Após o aparecimento da sexualidade, o sujeito passa a ter a possibilidade de decodificar aquele registro inicial como sendo sexual. Se ao mesmo tempo formarem-se representações morais, o reconhecimento será traumático, e levará a uma alucinação. O sintoma é assim uma negação da temporalidade, ele apresenta-se como algo instantâneo, que se repete incansavelmente. Os histéricos, de acordo com a velha fórmula, sofrem de reminiscências. Não porque estejam presos ao passado, mas porque estão encerrados em um eterno presente, indiferenciado e indiferenciável.
Pode-se constatar, de imediato, que o registro na memória não é um resíduo totalmente externo: ele fixa, além do sujeito do atentado, a própria liberação sexual do indivíduo. Por conseguinte, ele atua como uma infiltração junto às outras represen-. tações presentes na memória, ou seja, a oposição interno/externo não é nítida, nem segura, ela é determinada por um gesto arbitrário do analista (Nota C). Por outro lado, a forma de decodificação depende de uma relação de sentido que o próprio registro inicial institui, isto é, ele acaba por determinar as condições de possibilidade de sua revelação. Por exemplo, no caso E, presente no Entwwf, o fato da cena original envolver representações como vestido, loja, predispõe a que sua revivência alucinatória dê-se a partir desses mesmos elementos cênicos (15, p. 445-48).
Aqui se abre uma questão, assinalada por Laplanche e Pontalis, como um sujeito antes de ser sujeito recebe a sua sexualidade de fora antes que exista para ele a diferença interior/exterior? Ora, Freud, ao abandonar a teoria da sedução e dotar a criança de sexualidade, não desconsiderou os problemas causados pelo fato do ser humano ser prematuro. Se ele tem uma sexualidade, ele a tem enquanto potência, enquanto virtualidade. Se a cena não existiu, então ela é uma fantasia. Portanto, trata-se de saber como ela se constitui, ou seja, é preciso encontrar algo que a fundamente enquanto ficção (28, p. 31 ).
Sabemos que três elementos estarão presentes, a partir de então, na teoria freudiana: fantasia, sexualidade infantil, complexo de Édipo. E, de novo, é preciso prevenir-se para que não se veja aqui um retomo a um estágio anterior ao da teoria da sedução, um onde as polaridades mencionadas voltem a ter o seu valor de evidência. Para tanto, basta ler a sexualidade infantil como um dado biológico, a fantasia como uma produção interior e o complexo como uma interdição externa. As leituras da psicanálise como uma teoria dos estágios de maturação não se cansaram de prestar os seus "bons préstimos" a Freud, ao colocá-lo dentro do quadro de uma psicologia geral, normativa, prescritiva e, no limite, policialesca.
O próprio Freud, ao abandonar a teoria da sedução, parece valorizar os primeiros termos da seguinte série de oposições: sujeito-objeto, constituiçáo-evento, internoexterno, imagindrio-real (28, p. 35). Entretanto, não nos enganemos, o cerne da questão está na oposição estrutura/acontecimento. Se a psicanálise teve algum mérito até a teoria da sedução foi o de destacar a prevalência do primeiro termo sobre o segundo. Uma psicologia deste só pode envolver uma petição de princípio, pois é a partir de tal fundamento que encontra a conexão que permite estabelecer VÚlculos entre os acontecimentos, pensados como autônomos. Ela nunca irá ultrapassar o nível de uma teoria do homem enquan to máquina, e se encontra a máquina no homem, não deve espantar-se. Foi ela mesma que o colocou ali desde o início. Pelo menos no século XVII, os pensadores pareciam não ter esse tipo de ilusões sobre os seus projetos (Nota D)
O que vai servir de estrutura após o abandono da teoria da sedução? Aparentemente é a constituição biológica. Mas não seria retomar ao que já foi abandonado por Freud desde os seus trabalhos mais iniciais? Se ele trocou o elemento de universalidade dado pela anatomia pelo da linguagem, por volta de 1893, não teria sentido voltar ao anatômico sob a forma de uma sexualidade anatômica. Se a fantasia transforma-se no sintoma por excelência, toda fala é ficcional, coloca-se, ainda, a questão de saber qual é a sua origem.
A utilidade do método de Breuer era a de propiciar uma busca pela origem. Freud pôde descrever as suas descobertas sucessivas como resultado desse retomo incansável. E aqui temos uma nova ficção: o que hoje aparece ao homem como realidade psíquica foi um dia, segundo Freud, uma realidade histórica. Portanto, devem existir cenas primitivas que tomam possível cenas inocentes atuarem com posterioridade. Em outros termos, para manter o esquema conceitual da teoria da sedução, Freud foi obrigado a supor cenas primevas equivalentes às cenas da sedução. Mas o que está por trás dessas hipóteses que a antropologia não deixará de criticar, de denunciar como mito quando asl lê em Totem e Tabu? Acredito, com Laplanche e Pontalis, que Freud queria apenas diferenciar entre um primeiro momento, ainda não simbolizável, e um segundo em que isso já é possível. Ou seja, a percepção e a memória se organizam de acordo com estruturas distintas no tempo. As fantasias originárias assinalam tãosomente uma forma primeva de registro. Não sendo, portanto, acontecimentos perdidos na história do homem, são formas primitivas de captar e representar o que ocorre.
Freud constata a existência de fantasias comuns, típicas, de conteádo semelhante. Em qualquer momento da sua história, o sujeito nunca é uma tábua rasa onde a experiência vem deixar o seu registro. Existe sempre algo que organiza, que captura, que Itltra, que seleciona, que estabelece diferenças, ou seja, a memória de algo é função da organização das recordações já existentes. Poder-se-ia pensar que a fantasia originária iria funcionar como uma espécie de transcendental, que daria as condições de possibilidade do registro da experiência humana ao mesmo tempo que a estabeleceria. O que é plenamente possível, se pensarmos a fantasia como uma espécie de sintético a priori, ou seja, como algo exigido para constituir a experiência e que apresenta, portanto, um caráter de necessidade. Cito Laplanche e Pontalis: "De fato, em Freud, a concepção do Édipo é marcada pelo realismo: quer seja representado como conflito interno ("complexo nuclear") ou como instituição social, o complexo permanece um dado; o sujeito o reencontra, a todo ser humano impõe-se a tarefa de dominá-lo " (28, p. 49).
O papel da fantasia originária é o de organizar as fantasias posteriores da mesma forma como a primeira cena de sedução condicionava a segunda na teoria da sedução. O que há de comum nas fantasias originárias? O fato de serem todas fantasias de origem. Elas resolvem para o sujeito a origem de si mesmo, da vida, da sexualidade, da diferença sexual, da morte.
O que possibilita o seu papel organizador é o fato da fantasia ser pensada como cena, como cena originária, como a cena edipiana, a cena de sedução por excelência, aquela opde ação e desejo foram um todo indivisível. Por exemplo, o amor adulto só será possível quando a sedução for abandonada Dominar o Édipo é superar a sedução. Portanto, não é de estranhar que Freud confira à fantasia originária o mesmo papel desempenhado pelo instinto no animal, isto é, a fantasia determina o horizonte de possibilidades disponíveis para o homem. Se o animal é condicionado, dentro de certos limites, pelos seus instintos, o homem o é pela fantasia originária.
Em Visão de Conjunto das Neuroses de Tra�erência (19), Freud descreve, de forma esquemática, a forma de atuação de seis fatores que, segundo ele, estariam presentes nas neuroses de transferência. Mesmo se tratando de um esboço, de um texto não publicado, a nossa atenção volta-se de imediato para a enorme desigualdade, em relação ao espaço, que ele confere aos diversos fatores. Repressão (Verdrãngung), Contra-Investimento, Formação Substitutiva e Formação de Sintoma, Relação com a Função Sexual e Regressão, todos eles ocupam apenas um terço do texto e referem-se tão-somente à histeria de angástia, à histeria de conversão e à neurose obsessiva.
Em contraposição, o fator disposição para a neurose vai ocupar o resto do manuscrito e vai exigir, para a sua exposição, que se considere a divisão entre neuroses de transferência e neuroses narc!sicas, ou seja, as diferenças entre os quadros onde há manutenção do objeto e aqueles onde há perda do objeto. Certamente, devido ainda à polêmica com Jung, Freud tinha todo interesse em explicar uma abordagem coerente das psicoses ou neuroses narc!sicas. Entretanto, o problema parece ser de outra ordem; pois se trata de pensar o fator disposição como um momento que serve de mediador na escolha da neurose. Já sabemos que Freud, em ocasiões anteriores, havia refletido sobre a questão da escolha da neurose.
Por exemplo, encontramos na carta de 30 de maio de 189ó (9, p. 197-201), enviada a Fliess, uma tentativa, por parte de Freud, de solucionar a questão da etiologia das neuroses. Ele acredita que é preciso considerar, em relação à cena traumática, quatro etapas fixadas cronologicamente.
Se a cena de sedução é vivenciada até os 4 anos (primeira parte da primeira etapa), não há imagens verbais, e os sintomas posteriores, caso ocorram, só poderão ser de natureza histérica. Se a cena é vivida entre os 4 e 8 anos (segunda parte da primeira etapa), já há tradução em palavras, e os sintomas, se aparecerem, serão obsessivos. Até os 14 anos (segunda etapa), pode surgir uma cena, cujo recalque na maturidade (terceira etapa) levará a uma paranóia.
No esquema proposto, o fator fundamental na determinação do quadro patológico é dado pela época em que ocorreu a cena inicial. Se ela aparece numa época pré-verbal estão dadas algumas das condições da histeria, ou seja, da conversão. Quando a cena surge numa época onde a criança já é dotada de linguagem, os sintomas são de natureza representativa. As cenas vividas até os 14 anos, se despertadas na vida madura, podem levar a uma paranóia. Freud se interroga sobre o que ocorreria caso as cenas se estendessem por diversas fases etárias ; sua resposta é imediata - o fator decisivo é dado pela cena que ocorreu em época mais remota.
A mesma problemática é retomada em outra carta a Fliess, datada de 0ó/ 1 2/1 89ó (9, p. 217-22ó). Nela Freud combina uma hipótese de caráter topológico sobre o aparelho psíquico - qr é formado por pelo menos três sistemas mnêmicos distintos: signos perceptuais, inconsciente e pré-consciente - com uma teoria etiológica das diversas neuroses, também baseada na cronologia das cenas traumáticas. Aqui ele recorre, inclusive, à teoria dos mlmeros, formulada por Fliess, para estabelecer uma periodicidade sobre o surgimento e a escolha das neuroses.
O elemento comum às duas cartas, e ao texto em exame, reside na tentativa de dar uma enorme prioridade ao fator temporal, ou, mais precisamente, ao fator cronológico na determinação da neurose. Mas o tempo serve apenas para datar uma forma de registrar uma cena. Evidentemente, as duas cartas, ainda, são prisioneiras da teoria da sedução, abandonada na carta de 21 109/ 1897 (9, p. 283-28ó). Portanto, a questão que se coloca é a de saber por que a cronologia, a forma de registrar, é tão fundamental na determinação da escolha da neurose.
Podemos já suspeitar que a resposta consistirá em afin que a fonna de registro condiciona a disposição. Mas para precisá-la, em todos os seus detalhes, partamos de algumas considerações presentes no Entwurf. Na sua primeira parte, ao discutir "O Ponto de Vista BioIógico", Freud declara que "na medida em que alguém se ocupa com a construção de hipóteses científicas, deve começar por levar a sério suas colocações, por ver se elas são incorporáveis, a partir de mais de um ângulo ao conhecimento, e se é possível atenuar a arbitrariedade das construções ad hoc em relação a elas" (15, p. 394-395). O contexto da discussão é dado pela natureza da distinção entre os neurônios <I> (perceptuais) e os neurônios I (memória). O que se deseja é encontrar uma forma de manter a diferença entre eles, a partir de uma identidade inicial. Em outras palavras, as diferenças não serão intrínsecas aos neurônios, mas residirão na quantidade a que eles estão submetidos. Ora, o fundamento para essa diferença vai ser procurado, segundo Freud, "a partir do desenvolvimento biológico do sistema neuronal, o qual, para o investigador da natureza, como todas as outras, é algo que se fonna gradualmente" (15, p. 395). Fazendo as devidas adaptações, podemos sugerir que a questão da escolha da neurose vai repousar em um esquema explicativo semelhante, ou seja, a cronologia determina a fonna de captação daquilo que ocorre, o qual, por sua vez, se rlXa enquanto um dispositivo biológico que acaba por dar conta da diversidade dos quadros patológicos. Dado que a mera cronologia não pode desempenhar o papel que a quantidade realizava dentro do contexto de uma teoria do aparelho psíquico no Entwwf, será preciso recorrer a outros fatores para poder explicitar porque há uma ordem no aparecimento das diversas neuroses. Sem esquecer que, para Freud, o patológico está sempr� contido como possibilidade no normal.
Freud vai encontrar tais fatores em uma suposta "pré-história" da humanidade, cu seja, em um mito instaurador. Vamos acompanhar os membros da sua construção uma vez que eles iluminam os pontos que estamos discutindo.
Segundo ele, as neuroses testemunham a história do desenvolvimento psíquico do ser humano, ou seja, o ser humano está condenado a repetir a história dos seus ancestrais. Ora, para os leitores de Freud, não é difícil perceber qual é o conceito presente aí em filigrana e que já fora sugerido desde a época do Entwurf - o conceito de compulsão à repetição. Em outras palavras, pode-se encontrar aqui a sugestão de que a repetição, neste momento, vai ser pensada enquanto repetição de uma préhistória da humanidade que predisporia os homens a apresentarem certas estruturas libidinais. O patológico é apenas uma rlXação em uma determinada fonna de apreensão do que ocorre.
Em um primeiro momento da pré-história, o homem teria vivido o mundo como paraíso. Com o início do período glacial, a humanidade se tomou universalmente ansiosa e passou a experimentar uma angdstia real diante de toda novidade. A libido objetai se transformou assim em angástia da realidade. Dessa fonna, teria sido criado o protótipo da histeria de angástia. Notem que a primeira forma de apreensão se instala após a perda do paraíso, isto é, o psíquico só aparece depois que surgiu o período glacial.
Mais tarde, devido ao conflito entre a autoconservação e o desejo à reprodução, teria ocorrido o sacrifício dos recém-nascidos. Supondo que já fosse de conhecimento coletivo que a sexualidade leva à reprodução, teria havido um favorecimento das satisfações sexuais perversas porque elas seriam não procriativas. Como a humanidade, ainda, não conhecia a linguagem, estavam dadas as condições para uma estrutura libidinal do tipo histeria de conversão.
Em um terceiro momento, teria aparecido o pai primordial como resultado da adaptação às carências do período glacial. Pai poderoso e inteligente, elaboraria as premissas da linguagem e estabeleceria a Lei, ou melhor, ele próprio seria a Lei. A conseqüência do primado da inteligência sobre a sexualidade teria sido a construção de uma estrutura libidinal obsessiva.
Em resumo, as três neuroses de transferência teriam seus protótipos na luta do homem contra os rigores e carências do pêríodo glacial. Mas os destinos da libido não se deixam encerrar aí. O fato do pai primordial despojar os filhos de sua virilidade, leva-os a abandonar todo objeto de amor, a cessar toda sublimação, a encerrar toda libido em um estado de auto-erotismo. Não estamos mais na esfera da neurose de transferência, passamos para as neuroses narcísicas ou, mais simplesmente, para as psicoses. No caso em pauta, para uma estrutura libidinal do tipo demência precoce.
Para fugir ao pai castrador, os primogênitos entrariam em aliança e apareceriam, como conseqüência, os sentimentos sociais edificados sob a égide da satisfação homossexual. A paranóia seria tão-somente uma defesa contra o retomo dessa fase da pré-história da humanidade.
Finalmente, os irmãos se uniriam e matariam o pai. O seu sentimento de jdbilo daria origem ao quadro maníaco. Mas como estavam totalmente identificados ao pai, enquanto objeto de amor, acabariam por se tomarem melancólicos, ou, mais modernamente, depressivos. A psicose maníaco-depressiva seria o reviver deste t1ltimo período da pré-história da humanidade (19, p. 33-43).
Mesmo um leitor muito caridoso, mas ingênuo em relação ao que está sendo discutido, poderia ficar abismado com a natureza das suposições antropo1ógicas freudianas: o mundo inicial como um paraíso, o conhecimento, pelos homens, na pré-história de que a função sexual está ligada à reprodução, a existência de um poder despótico e centralizador nos primórdios da humanidade, etc. Entretanto, permanecer nesse nível do texto, é ignorar as questões muito ricas que o cercam, a saber, as relativas à repetição e ao papel instaurador da fantasia. Por que os destinos da libido são sempre os mesmos e aparecem numa ordem fixa? A primeira tentativa de resposta por parte de Freud foi a de recorrer a uma antropologia fantástica, onde a filogênese carega dentro de si uma ontogênese primordial. Em suma, a cronologia, para Freud, é fixada pela forma de apreensão da vivência externa e manifesta-se enquanto fator disposicional. Em outras palavras, Freud considera um fator fantástico, um para além da própria psicanálise que, contudo, tem a função de estabelecer as condições do desejo humano, de exibir a ação na qual ele se instaura. Trata-se de um mito instaurador que permite constituir outra articulação, a presente entre desejo e fantasia. Cada um de nós, seria dessa forma, herdeiro de um determinado período da humanidade, cada um de nós testemunharia imortalidade da "pré-história", entendida no mesmo sentido em que o sonho é a prova da imortalidade do desejo infantil. Por conseguinte os sintomas neuróticos expressam formas arcaicas de registro, descritas por Freud, a partir de nossa "pré-história" coletiva.
Para voltar às questões iniciais: qual a posição da psicanálise em relação às polaridades ficção/realidade, sujeit% bjeto, mundo interno/mundo externo que parecem desempenhar um papel tão importante na constituição da psicologia enquanto disciplina autônoma e que se vinculam a uma determinada crença em relação à ação humana? Antes de mais nada, a teoria freudiana opera �a desconstrução dessas oposições, ao mostrar como elas se constituem. Não as toma ingenuamente como um dado seguro, a partir do qual se poderia instaurar um projeto científico baseado na crença da independência entre ação e intenção. A psicanálise constrói fala do sujeito enquanto seu objeto, porque é só aí que ela pode constatar os efeitos produzidos pelas formas arcaicas de apreensão do que ocorre. Em outros termos, tais estruturas determinam o que vai ser captado, a forma de sua organização.
Mas, dadas as considerações feitas, a psicanálise traria verdadeiramente uma solução adequada para as questões perenes da psicologia? Segundo muitos autores, a resposta é negativa. Por exemplo, Daniel Taylor, em Explanation and Meaning, considera que se pode ter um caso exemplar do que seria uma teoria vaga, se nos voltamos para o tipo de explicação proposto por Freud. Segundo ele: "Praticamente qualquer coisa pode ser vista como associada a qualquer outra. Dado que maioria de nós tem alguns pensamentos reprimidos, qualquer caso de esquecimento poderia ser atribuído à associação com um pensamento reprimido. Se o leitor quiser fazer um experimento, substitua qualquer sentença de sua escolha pela sentença Senhor, o que posso dizer, etc. e então a ligue, mediante liames intermediários, com Signorelli de um lado e sexualidade do outro. O exercício tomará manifesto como a flexibilidade da noção de associação permite que qualquer evento seja explicado pelas hipóteses freudianas" (3ó, p. 31).
Assim, Taylor acredita que Freud não forneça critérios para que se possa decidir, a partir das associações produzidas, qual a associação que deve ser considerada como sendo a mais significativa. Na ausência deles, pode-se tomar qualquer coisa como constituindo uma explicação.
O primeiro problema, que merece ser examinado, é o de saber se realmente existe, do ponto de vista do analista, algo que ele tenha o direito de estabelecer a priori, como sendo a associação mais importante, a mais significativa. Para tanto, seria necessário que o analista formulasse hipóteses específicas sobre o que seria relevante numa dada situação de análise. Contudo, ao fazê-lo, ele estaria colocando em cheque o procedimento necessário da "atenção flutuante". Por conseguinte, a questão que permanece é a de determinar se existe algum critério, a posteriori, para julgar a sua crença de que uma determinada associação revelou-se, na construção do caso, como sendo a mais importante. Porém, mesmo que o critério existisse, já estaria comprometida a idéia que na psicanálise explica-se se utilizarmos explicação" no sentido de que se há explicação, então, há predição, dado a ausência da última nesta teoria.
Wittgenstein também critica o procedimento da associação livre: "O que acontece no freier Einfall é provavelmente condicionado por um grande número de circunstâncias. Parece não haver razão para aíIrmar que deva ser condicionado tão somente pelo tipo de desejo em que o analista esteja interessado, e que tenha motivos para considerar que esteja desempenhando algum papel. Se você quiser completar o que parece ser um fragmento de um quadro, talvez seja mais recomendável desistir de pensar intensamente qual seria a mais provável configuração do quadro e, em vez disso, simplesmente olhar o fragmento e desenhar o primeiro traço que lhe vier à mente, sem pensar. Esse poderia ser, em muitos casos, um conselho muito proveitoso a dar-se. Mas seria pasmoso que sempre produzisse os melhores resultados. Quaisquer que sejam os traços que você faça, serão possivelmente condicionados por tudo quanto ocorre à sua volta e no seu íntimo. E se eu conhecesse um dos fatores presentes, ele não me poderia revelar de antemão, com certeza, que traço você iria desenhar" (37, p. 81 ).
Como podemos facilmente constatar, a crítica de Wittgenstein volta-se contra a suposta convergência do procedimento, ou seja, por que um certo tipo de desejo -pensado por Freud como o núcleo de cristalização do sonho (Nota E) - é o ponto de atração, de convergência do freier Einfall?
Vou tentar clarificar algumas das questões presentes tanto na crítica de Taylor como na de Wittgenstein. Freud, no final da parte A do sétimo capítulo da Interpretação dos Sonhos, parece antecipá-las. O seu objetivo principal é o de justificar o uso do freier Einfall na interpretação crítica.
Ele principia por uma aparente descrição do seu método: "Procedemos de tal forma que deixamos de lado todas as representações de objetivo que, de outro modo, dominam a reflexão, dirigimos nossa atenção para um particular elemento do sonho e então anotamos aquilo que nos ocorre como pensamentos não propositados em relação a ele" (12, p. 53 1).
A descrição oferecida parece coincidir com o conselho dado pelo filósofo vienense: desistimos de determinar qual seria a possível configuração do sonho e dizemos a primeira coisa que nos ocorre. "Pensamento não propositado" pode ser lido como "pensamento que não visa determinar o sentido do sonho". Mas, em termos freudianos, tal procedimento parece indicar a remoção do mecanismo de atenção, por parte do ego, isto é, a suspensão do processo secundário, dando lugar ao aparecimento do processo primário. Pois, se falamos em levar em conta o mundo externo, o contexto, estamos no limiar de processos alucinatórios. O pedido do analista parece criar, portanto, as condições mínimas para um diálogo fundado no contra-senso (Nota F).
Segundo Freud, o procedimento é repetido até que se alcance os pensamentos do sonho: "Então captamos um elemento seguinte do conteúdo do sonho, repetimos em relaçãO a ele O mesmO trabalhO e nOs deixamOs, despreocupadOs cOm a direçãO para a qual Os pensamentOs levam, cOnduzir pOr eles, para Onde - cOmO se cOstuma dizer - CaÚflOS de cem em mil. Lá mantemOs a expectativa cOnfiante de cair nO fmal, sem nenhum acré�cimO nOsso, nOs pensamentOs dO sOnhO, a partir dOs quais O sOnhO é cOnstituídO (12, p. 532).
Aqui Freud parece dar razãO a Daniel TaylOr e a Wittgenstein. AO primeirO, quandO nãO nOs infOrma cOmO se dá a escOlha dOs fragmentOs, aO segundO, quandO encOntra por trás da multiplicidade - a passagem dOs cem para mil - uma dnica unidade: O pensamento dO sonhO.
Após essa descriçãO sumária dO que pOderia ser a utilizaçãO dO freier Einfall, O própriO Freud cOloca uma série de Objeções aO procedimentO descritO. POr que O abandOnO da reflexãO levaria, pOr si só, aOs pensamentOs dO sOnhO? ["A cada representaçãO se pOde juntar associativamente alguma cOisa; é bastante estranhO que se deva cair através desse fluxO de pensamentOs sem ObjetivO e arbitráriO justamente sObre OS pensamentOs dO sOnhO (12, p. 532)]. Que se possa juntar sempre alguma cOisa cOm Outra, TaylOr já O sabia, mas a sua pergunta era: cOmO determinar O que seria O pensamentO dO sOnhO? NãO estaria aí precisamente a vaguidade da teOria freudiana, Onde qualquer cOisa pOde ser Oferecida cOmO sendO O pensamentO dO sOnhO?
Para Wittgenstein, O prOblema é OutrO. POr que se deve cOnvergir sempre para O mesmO lugar, Ou seja, para O pensamentO dO sOnhO? É mesmO necessáriO que se acredite que haja algO, nO sOnhO, que tenha a funçãO de ser o pOntO de convergência?
Em segundO lugar, Freud se pergunta se nãO seria muitO mais simples afirmar-se que tudO se relaciOna cOm tudO e que, pOrtantO, sempre se chegará a algum pOntO? [" A crítica terá agOra a Objetar cOntra issO mais OU menOs O que se segue: que, a partir de algum elementO particular dO sOnhO, se chegue em qualquer pOntO, nãO é nadâespantOsO (12, p. 531-532)]. Para TaylOr, seria precisO prever OS pOntOs de chegada se a psicanálise tem pretensões de cientificidade. Wittgenstein, aO cOntráriO, dadO que nãO acredita que nenhuma empresa semelhante à psicanálise, por sua própria natureza, pOssa vir a ser científica, questiOna a hipótese dO pensamentO dO sOnhO.
AgOra Freud se interrOga sObre as garantias de que esse pontO seja precisamente OS pensamentOs dO sOnhO: "DadO que se permite assim tOda a liberdade de ligaçãO de pensamentOs e que só se excluem precisamente as passagens de uma representaçãO a Outra que vigOram nO pensamentO nOrmal, entãO nãO é difícil, a partir de uma série de pensamentOs intermediáriOs, tramar algO a que se dá O nOme de pensamentOs dO sOnhO e que, sem nenhuma garantia, dadO que nãO sãO cOnhecidOs de OutrO mOdO, se faz passar por substitutO psíquicO dO sOnhO (12, p. 532). Uma vez que O procedimentO exige que nãO se pense na possível cOnfiguraçãO dO sonhO, excluem-se "as passagens de uma representaçãO para Outra" (12, p. 532). NãO havendO qualquer determinaçãO prévia dO que seria "O pensamentO dO sOnhO, qualquer cOisa pode-se passar pOr ele. Ora, a indagaçãO de TaylOr visava saber se nãO é exatamente a exclusãO de tais passagens que permite dizer que algO é um "pensamentO dO sOnhO, O U trocandO em middOs, O "pensamentO dO sOnhO seria precisamente estas passagens, os "pensamentos intennediários". Só a existência de hipóteses prévias, acerca da natureza dos pensamentos do sonho, pennitiria escapar a tal tipo de objeção. Seria preciso uma garantia teórica que pudesse ser traduzida em tennos empíricos de forma a testá-la apropriadamente - seriam necessárias, em suma, predições. A indagação de Wittgenstein pode ser parafraseada da seguinte maneira: quantas configurações são possíveis, a priori, para um determinado quadro? A sua resposta é imediata: in1.Úneras, ainda que nem todas sejam igualmente interessantes.
Finalmente, Freud se questiona se não estaríamos conferindo ao acaso um papel cômico que pennitiria encontrar sempre uma interpretação qualquer para qualquer sonho? ["Mas isso é totalmente arbitrário e é um uso aparentemente chistoso do acaso, e quem quer que se dê a este trabalho inl1til pode, através desse caminho, encontrar, para si, em qualquer sonho, qualquer interpretação" (12, p. 532)]. A insinuação freudiana é aqui astuciosa. É como se ela nos colocasse diante de apenas duas alternativas: ou o procedimento é arbitrário, e assim governado pelo acaso, ou ele é necessário e, portanto, determinado. O problema reside em saber se esses dois pares de atributos caminham juntos: arbitrário, logo casual, não arbitrário, logo determinado. Porém, Taylor, que acusa o procedimento de ser arbitrário, não afin que ele seja casual. Ao contrário, ele é determinado mas, dado a vaguidade da teoria freudiana, não se sabe exatamente o quê o detennina. Se o procedimento não fosse arbitrário, isto é, se ele tivesse as garantias teóricas exigidas por Taylor - uma teoria falseável pelo campo empírico - a determinação requerida seria dada pela teoria. Para Wittgenstein, a determinação não pode ser reduzida a uma SÓ, por conseguinte não se p0- de prever qual será o próximo traço ou a próxima associação, ou seja, a convergência só pode ser hipostasiada. Assim, para os dois autores, não há a alternativa proposta por Freud, entretanto há uma diferença relevante entre eles. Para Taylor, a psicanálise não é científica, mas poderia vir a ser. De acordo com Wittgenstein, ela não é científica e, dado o seu objeto, nunca poderá sê-Io.
Mas vejamos como Freud responde aos "opositores" que ele criou. Em primeiro lugar, ele vai responder às críticas de vaguidade e indetenninação. Segundo ele, a interpretação a que se chega não é uma qualquer, mas uma que possibilita um entendimento exaustivo do sonho, uma na qual o sonho é apresentado como uma formação psíquica, cujo sentido é inteligível, isto é, uma interpretação que fornecerá uma "configuração" do sonho.
Certamente, Taylor poderia perguntar se é possível prever qual será essa configuração e se a teoria determina o que se vai entender por "entendimento exaustivo do sonho". Ora, a Interpretação dos Sonhos parece fornecer um sem nl1mero de exemplos do que seria tal entendimento. Em relação à configuração - a questão de Wittgenstein - vamos examiná-la adiante. Por ora, basta atentar para o fato de que Freud está igualmente preocupado com a questão da falseabilidade. Dado que a teoria estabelece uma identidade teórica entre sonho e sintoma neurótico, e que, na situação da neurose, é possível garantir a legitimidade do freier Einfall, a partir do aparecimento/desaparecimento de sintomas, a sua validade também estaria assegurada no caso do sonho ["Também poderíamos afirmar em nossa justificativa que o método durante a interpretação do sonho é idêntico ao utilizado na resolução de sintomas histéricos, onde a retidão do método é garantida pelo surgimento e desaparecimento de sintomas em seu lugar, onde, portanto, a exegese do texto encontra um apoio nas ilustrações intercaladas." (12, p. 532-533)].
Mas não poderia haver mais de uma configuração satisfatória? Ou para retornar a uma outra observação de Wittgenstein: "Você poderia começar com qualquer um dos objetos desta mesa - que, evidentemente, não foram postos aqui por via de sua atividade onírica - e comprovar que todos eles poderiam estar correlacionados numa configuração assim; e a configuração seria igualmente lógica" (37, p. 87). Logo, parece não existir critérios para decidir sobre que explicações podem ser consideradas como satisfatórias e quais devem ser deixadas de lado, ou seja, "Freud nunca mostra como saberemos onde parar, onde está a solução correta" (37, p. 75).
Entretanto, a solução freudiana nos recorda até certo ponto as de Wittgenstein, ou seja, Freud procura clarificar a questão para ver se não estamos diante de um falso enigma ["Mas não temos nenhuma razão para afastar do caminho o problema de saber como se pode, a partir de uma cadeia de pensamentos, através de fiação contínua, arbitrária e sem objeto, chegar a um fim preexistente; embora não consigamos solucionar o problema, podemos eliminá-lo completamente" (12, p. 533)].
As razões para se declarar que se trata de um falso problema são diversas. Em primeiro lugar, não é verdade que no freier Einfall nos entreguemos a um fluxo casual de representações ["É demonstrável como incorreto que nos abandonamos a um fluxo sem objetivo de representações, quando nós, como no trabalho de interpretação do sonho, abandonamos a nossa reflexão e permitimos que surjam representações não propositadas" (12, p. 533)]. Podemos constatar que essa observação só se aplica ao crítico construído por Freud. Tanto Taylor como Wittgenstein não acreditam em um processo casual. O primeiro acha que Freud não consegue determinar, a priori, qual seja a determinação desses fluxos: o segundo acha, por princípio, que não se pode atribuir ao fluxo uma \Úlica determinação, mas não que não exista uma, aliás, para ele, existem inllineras.
Em segundo lugar, durante a utilização do procedimento, o fluxo de representações é governado por representações desconhecidas de objetivo ["Isto permite revelar que sempre podemos renunciar apenas às representações de objetivos conhecidas e que, com o seu término, imediatamente às representações desconhecidas de objetivo - que chamamos imprecisamente de inconscientes - ganham força e determinam agora o fluxo das representações não propositadas" (12, p. 533)]. Em suma, para Freud, a intencionalidade está sempre presente. O que lIXa a determinação das representações é a presença de intenções. Aqui, as dóvidas de Taylor se precisam: "A explicação do comportamento humano em toda a sua complexidade, através de hipóteses sobre atitudes e crenças, apresenta problemas. Considerem a dificuldade para calcular os desejos, as atitudes e as crenças de um homem, a partir do seu comportamento. Dado o seu comportamento seria possível, se se conhecessem suas atitudes e desejos, adivinhar suas crenças e vice-versa. Mas nenhum deles é conhecido, as combinações possíveis de crenças e atitudes que poderiam ser consistentes com o comportamento são infinitas. Os escritos freudianos, por exemplo, mostram que quase todo comportamento pode ser explicado através de motivos sexuais, se hipóteses adicionais adequadas são feitas a respeito de crenças e do significado simbólico de atos e objetos" (3ó, p. 71). Em outras palavras, não pode ser científica uma teoria que recorre à intencionalidade porque ela não pode ser testada de forma independente. Ora, para o fIlósofo austríaco, o problema está na crença freudiana de que a intencionalidade possa ser remetida a uma lÚlica forma.
Finalmente, Freud nos informa que a aparente ausência de relações, usualmente presentes na descrição do sonho, decorre da censura e não do fluxo ser casual ou governado por representações de objetivo desconhecidas ["Os delírios são o trabalho e uma censura que não se dá incômodo de esconder o seu domínio, que, em lugar de prestar sua colaboração, para uma modificação que não seja mais chocante, des carta sem a menor consideração o que lhe faz oposição, de modo que o restante se tome sem conexão. Esta censura comporta-se de maneira análoga à censura russa dos jornais na fronteira, que permite que os jornais estrangeiros cheguem às mãos dos leitores a proteger apenas se estiverem recobertos por traços negros. " (12, p. 534)].
Freud está sugerindo que a intencionalidade não é constatada porque a censura confere às narativas uma idéia de algo casual. Em outras palavras, se não existisse a censura, o sentido do que é dito seria imediato. É ela que produz escândalo e não os pensamentos do sonho. A pergunta que caberia a Wittgenstein seria: mesmo que o sentido dos pensamentos oníricos fosse imediato, por que eles deveriam ter sempre o mesmo sentido, ou seja, por que todas as configurações humanas devem expressar sempre a mesma configuração?
A longa resposta freudiana à questão da convergência consistiu, em dltima análise, em afirmar que não há casualidade e que a sua aparente presença decorre da censura e não da ausência dos processos de atenção e reflexão. Contudo, ela só pode até aqui satisfazer ao crítico construído pelo próprio Freud, está, ainda, longe de roçar a questão de Wittgenstein.
A tentativa de respondê-la pode ser construída, a partir da observação freudiana de que a teoria ensina que, por trás das relações "superficiais e escandalosas", as encontradas no sono, existem outras " corretas e de grande calado", as presentes no discurso da vigfiia (12, p. 53ó). Mas, de novo, não se poderia perguntar a Freud: o que o leva a crer que mesmo na vigfiia esteja sempre presente a mesma coisa?
Freud considera que o freier Einfall está apoiado sobre dois pilares: "as associações superficiais são apenas um substituto de ligação para as reprimidas mais profundas" e "o domínio sobre o fluxo das representações passa para as representações de objetivo escondidas" (Nota G) (12, p. 53ó-537). Wittgenstein poderia tomar o primeiro pilar como um guia para o trabalho do analista. Um guia do tipo: "não tome o que é dito pelo seu valor imediato", o seu valor é ditado pelo uso que o analista faz dele, procure conhecê-Io. Contudo, a função do segundo pilar é completamente diferente. A tese freudiana é a de que independente do uso que se faça, constata-se sempre a presença de uma mesma e dnica coisa. Ora, a questão do filósofo vienense é exatamente esta: o que sustenta o detenninismo freudiano, por que Freud insiste tanto na tecla do determinismo?
Encontramos na Interpretação dos Sonhos, com todas as letras, uma crença profunda no determinismo, na convergência do freier Einfall para um certo tipo de desejo ["Se convido um paciente a abandonar toda reflexão e contar-me o que lhe vem à mente sem cessar, então agar o pressuposto de que as representações de objetivo do tratamento não podem deixar de surgir, e sinto justificada a pretensão de que o mais aparentemente inofensivo e o mais arbitrário que ele me conta estão relacionados com o estado de sua doença" (12, p. 537). Entre as representações de objetivo não conscientes do paciente há uma que merece atenção especial: a que se refere ao analista ["uma outra representação de objetivo, em relação a qual o paciente nada suspeita, é a de minha pessoa" (12, p. 537)]. Assim, existe uma vinculação estreita entre a relação transferencial e a tese do determinismo psíquico. O que nos leva a investigar a natureza da relação transferencial e o seu vínculo com a própria teoria freudiana.
Explorar a relação transferencial é também estudar os efeitos da teoria psicanalítica sobre o seu leitor. Há nove anos, por gentileza do Prof. Bento Prado, publiquei no Almanaque, um pequeno artigo, "Freud e a estrutura retórica" (21), onde afirmei algumas coisas que gostaria de repensar. De alguma maneira, insinuei a tese de que a forma de apresentação, utilizada por Freud nos Três Ensaios sobre Sexualidade, era independente da sua teoria. Ou, sob uma forma mais clara, que a retórica freudiana, isto é, o modo usado, por ele, para persuadir o leitor sobre a veracidade das teses apresentadas, era desvinculado da teoria exposta. Procurei mostrar com que habilidade Freud desenvolvia a tese sobre a sexualidade infantil, mas creditei-a mais a um suposto "dom" advocatício que ele teria do que a algo que apresentaria um caráter de necessidade teórica.
Para tornar as coisas, ainda mais explícitas, diferenciei, inclusive, entre o Freud dos Três Ensaios e o da História do Movimento Psicanal(tico. Insisti que, no primeiro, a crítica histórica (a aplicação da psicanálise a autores das teorias sexuais da época) teria um papel muito preciso a cumprir. Como parte de uma estrutura retórica, seria perfeitamente legítima. Contudo, a crítica histórica, ou melhor, genética, perderia seu valor quando deixasse de lado sua contrapartida epistemológica. Assim, na História, Freud teria realizado uma "psicanálise selvagem" de Adler e de Jung. A falácia genética teria sido cometida repetidas vezes. Mas, ressaltei, o conhecimento do contexto no qual Freud vivera essa polêmica explicaria o seu "erro". Não se trataria de uma obra científica, mas de um manifesto político escrito, especulava, com a intenção de evitar maiores sedições no seio da psicanálise (21, p. 15).
O pano de fundo de toda essa minha argumentação era, sem dl1vida, os meus preconceitos a respeito do que deveria ser considerado como ciência. Um certo furor positivista levou-me a dividir Freud em dois pers :-nagens: um que era cientista e comportava-se de forma adequada, e um outro, político, insensível aos reclamos de uma boa independência entre a psicanálise enquanto ciência e movimento social. O que leva a uma segunda questão, saber se a aplicação do referencial psicanalítico é excludente ou não; ou seja, saber se Freud só usa a psicanálise contra os adversários em momentos de mau humor ou se há uma exigência teórica que a reclama sempre, ou, com maior precisão, se o uso da psicanálise exclui necessariamente qualquer outra chave interpretativa.
Em termos gerais, procurei defender a tese de que a ausência de autonomia por parte da retórica e a exclusividade da interpretação psicanalítica estão intimamente ligadas e são partes constitutivas do discurso freudiano. A forma, através da qual elas relacionam-se, deve ficar mais explícita na medida em que analisarmos certas obras de Freud. Mas já podemos adiantar alguns elementos. Tanto a questão da retórica como a da exclusividade referem-se a "efeitos" de linguagem. A primeira procura, a partir deles, produzir uma certa convicção, a segunda diz respeito a uma determinada maneira de produzi-los. Podemos tentar iluminar um pouco mais as questões propostas recorrendo a um texto freudiano que prima pela sua delicadeza e sutileza,
Uma Recordação Infanti l de Leonardo da Vindo Não me utilizarei da versão publicada, mas da exposta por Freud, na Sociedade Psicanalítica de Viena, em 1 !? de dezembro de 1909. A preferência justifica-se pelo fato dos argumentos fornecidos aqui serem mais explícitos sem, contudo, exibirem divergências relevantes em relação às teses apresentadas naquela. O objeto de Freud não era o de realizar uma psicobiografia, um gênero de reputação duvidosa. mas, como ele assinala no texto publicado, o de "explicar as inibições de Leonardo na sua vida sexual e na sua vida artística" (14, p. 153). E nós estamos interessados em saber o que se está entendendo por "explicar". Não por acaso, Freud inicia sua palestra com o aviso de que estamos diante de um mistério, que se apresenta sob a forma de quatro enigmas: Por que Leonardo tomou-se um grande pesquisador? Por que não terminava as suas obras? Por que as tratava mal? Por que a sua sexualidade permanecia inibida? (32, p. 334)
A psicanálise nos ensina a olhar para a vida infantil, dado que é nela que encontramos as pistas que nos ajudarão a reconstruir o desenvolvimento sexual de Leonardo. É através da história da sua libido que encontramos a solução para os enigmas propostos. Em outras palavras, Freud pretende reconstruir a história de desejo do genial italiano. Sabemos que era fllho ilegítimo de um senhor com uma camponesa, e que só foi viver com o pai, segundo Freud, aos cinco anos de idade. A esses dados muito incertos, acrescenta-se uma recordação infantil, descrita no seu tratado sobre o vôo. Quando criança um abutre teria voado até ele, aberto sua boca com a cauda, e batido com a mesma, numerosas vezes, entre os seus lábios (32, p. 335).
Freud nos adverte, a recordação infantil não pode ser uma recordação da infância. A razão é simples, no nosso mundo cotidiano, abutres não costumam voar até a boca de crianças, colocar a sua cauda entre os lábios das mesmas, etc. Se o relato não é o de uma lembrança, ele o é de uma fantasia relativa à infância.
Ora, o conceito de fantasia, como examinamos na segunda parte, é ba..tante complexo na psicanálise. Ele não se refere a uma produção subjetiva, fictícia; mas sim ao que resulta de um desejo e de algo que o deforma. De forma esquemática, uma fantasia é uma produção psíquica distorcida, plena de sentido, que expressa um desejo. A clínica psicanalítica ensina que a fantasia, em estudo, é uma fantasia homossexual. Para que se tome possível semelhante decodificação, é preciso estabelecer uma identidade preliminar entre cauda e pênis. Segundo Freud, ela nos é revelada por numerosas línguas, inclusive a italiana. Portanto, a primeira tradução da fantasia revela um desejo de felação por parte de Leonardo. Dado que é o pássaro que vem na sua direção, e não o contrário, o desejo é passivo (32, p. 335).
O destinatário de tal interpretação poderia ficar surpreendido. Aos enigmas já apontados acrescenta-se mais um: uma recordação relativa à infância que não pôde ser tomada no seu sentido literal, é traduzida em um desejo aparentemente adulto, em um desejo perverso. Certame�te, o uso lingüístico, apontado por Freud, poderá atenuar a surpresa, mas não mostrar o porquê dessa substituição.
Contudo, as -novas considerações freudianas não parecem ser feitas para apaziguar as nossas dl1vidas. Ele nos pede que nos fixemos no pássaro, no abutre. Somos, então, avisados que o hieróglifo egípcio para mãe é MUT (abutre), cujo som é muito próximo do alemão MUTIER (mãe). Portanto, temos a sugestão de uma segunda identidade: abutre-mãe. A expressão "cauda do abutre", dadas as identidades sugeridas, pode ser substituída, sem mais, pela expressão "pênis da mãe". A mitologia "privada" de Leonardo parece tê-lo levado a construir uma figura hermafrodita. De onde ele poderia ter retirado tal informação? Talvez de uma leitura de comentadores romanos e gregos sobre os egípcios (32, p. 33ó-337).
Sem dl1vida, a "explicação" freudiana está se tomando cada vez menos aceitável. E é aqui que ela, paradoxalmente, revela toda a sua força. Ela nos diz: "Isto, a asa do abutre, é na realidade aquilo, o "phalus" da mãe". E como Wittgenstein assinalou, estamos diante de duas possibilidades: ou Freud "quer explicar tudo quanto há de bom de uma maneira suja, dando a entender que se deleita com obscenidades", o que está excluído, ou "as conexões que estabelece interessam imensamente às pessoas. Têm certo encanto. É encantador destruir preconceitos" (37, p. 48). Mas qual é o preconceito aqui? Que explicação Freud está nos propondo?
Sabemos que ela deve cumprir pelo menos um requisito. Deve ser de tal ordem que permita individualizar Leonardo. Será que ela consiste em afirmar que Leonardo desej ava ter uma relação perversa com a mãe, que só foi possível de se expressar sob a forma de uma fantasia com o abutre? Não, o esquema explicativo não é simples assim. Basta recordar que uma figura fálica feminina também está presente entre os egípcios. Estes acreditavam que o abutre se reproduzia através do vento. Será que, então, Freud quer explicar uma fantasia de um italiano do século XVI, através da mitologia egípcia? Não, Freud não é lung. A ordem de aparição das identidades na argumentação freudiana não corresponde de nenhuma maneira à ordem das suas razões. A identidade [mal a que se chega na ordem expositiva, cauda do abutre é igual a mãe fálica, é a primeira no edifício conceitual psicanalítico; ou seja, qualquer que fosse o pássaro, ele seria tomado como equivalente da mãe. É a teoria da libido que nos informa · sobre a fantasia de Leonardo e sobre os egípcios, e não o contrário. Em outros termos, se o pássaro, por exemplo, for um milhafre, perde-se apenas um pouco da elegância da demonstração freudiana, a oportunidade de mostrar, por meio do mesmo pássaro, como a psicanálise ilumina a mitologia. Aliás, a instância egípcia não perde nada de seu valor, pois o que está em causa é a defesa da universalidade do esquema freudiano. Se a mitologia é entendida como sendo tão-somente uma projeção da mente, a teoria da libido, por sua vez, sugere que deva ser encontrada, em algum momento, em algum lugar, uma representação coletiva que se refere a um personagem feminino e, ainda assim, fálico.
O preconceito presente aqui, como em tantas outras vezes, é a nossa incapacidade, exigida teoricamente, como veremos adiante, em aceitar a importância da vida sexual infantil para a vida adulta. Portanto, o espanto diante da "explicação" freudiana é, também para Freud, parte indispensável do seu apelo. Tudo se passa como se a psicanálise permitisse um certo prazer decorrente da revelação de nossos segredos infantis. Assim, a "explicação" freudiana nos dá o motivo para rejeitá-la, mas, ao fazê-lo, oferece o motivo para aceitá-la. É como se nossa recusa implicasse nossa imediata adesão.
Curiosamente, sabemos que Leonardo referiu-se a um milhafre e não a um abutre. O que levou muitos a apontarem o erro freudiano, como se ele fosse decisivo para as teses apresentadas. Ora, Freud nunca corrigiu o seu texto. Não por teimosia, por obsessão, apenas que, para os argumentos que ele desenvolve, é irrelevante para a história de Leonardo se o pássaro era um abutre ou um milhafre. Mas, sem dtfvida, é relevante, para Freud e para a psicanálise, a universalidade da mãe fálica. Entretanto, resta saber como Freud vai singularizar Leonardo e solucionar os enigmas propostos, isto é, "explicá-los".
O que a fantasia de Leonardo expressa para além do pássaro ser abutre ou não? Que ela surge como uma tentativa de simbolizar a posteriori algo que, em um determinado momento, pelo fato de Leonardo ser muito prematuro, ele foi incapaz de fazer: simbolizar a sedução feita por sua mãe. Segundo Freud, ela o teria beijado diversas vezes na boca, ou seja, a sexualidade materna está por trás da inibição de Leonardo (32, p. 3ó3-37 1). Ou se o leitor quiser de uma forma mais direta, a questão que se colocou, para Leonardo, foi a de como simbolizar uma mãe fálica. Era absolutamente irrelevante para ele, e para Freud no sentido apontado, se o pássaro que veio até sua boca era um milhafre ou um abutre, bastava que fosse um pássaro. Entretanto, independentemente do tipo de ave, não resta dt1vida que a "explicação" dada é no mínimo surpreendente. Ela exige uma total adesão à tese de que apenas o sexual é simbolizável. Senão vejamos. Toda ênfase de Freud recai sobre o fato de que Leonardo não viveu com o seu pai desde o seu nascimento. Quando Leonardo foi escrito, Freud sabia da existência de versões que defendiam a hipótese contrária. Contudo, optou por ignorá-las e aceitar que o pai de Leonardo somente o admitiu em casa quando o seu casamento mostrou-se estéril. Segundo Freud, da Vinci tomou-se um grande investigador, a partir do momento em que se debateu com a questão de saber por que ele não tinha um pai. Por não conseguir solucioná-la, uma vez que no momento em que a colocou, era prematuro demais e não tinha os recursos cognitivos necessários, adquiriu uma inibição que iria perdurar por toda sua vida. Em outros termos, estaria aí o motivo dele deixar as suas obras inacabadas. Ele as tratava como o seu pai o tratou. Notem que mais uma vez a referência é ao sexual, pensado como algo muito prematuro para o sujeito. Os sintomas traduzem apenas a incapacidade crônica de Leonardo de simbolizar situações para as quais se encontra sempre em um estado de prematuridade.
A ausência paterna também criou as condições para uma relação intensa com a mãe. Assim, se Leonardo foi viver com o pai desde o nascimento, e não com a mãe, as condições para o estabelecimento de uma mãe fálica e para as suas primeiras indagações estão comprometidas, e com elas, toda a decodificação proposta em relação à recordação infantil de Leonardo. Pois se o sugar o seio matemo é organizador do desejo, presente na fantasia (o movimento de sua constituição indo do seio enquanto objeto da pulsão egóíca para ele como objeto da pulsão sexual), a sua versão homossexual é estabelecida pela fixação na figura materna e pelo recalque subseqüente desse amor. Tudo que arsque a sua facticidade, por exemplo, a presença paterna, compromete também a argumentação freudiana, ou, pelo menos, a toma teoricamente menos verossímil (32. p. 337).
Supondo que a relação tenha existido nos termos propostos, "explica-se" o fato de Leonardo desconsiderar as suas obras através de uma identificação com o pai. "Na busca pelo sorriso da mãe ele sente-se, em certo sentido, masculino" (32, p. 340). E ao sentir-se assim, dedica à sua produção o mesmo tratamento que o pai lhe ofereceu.
Por conseguinte, é a vida sexual infantil do pintor e inventor italiano que "explica" a inibição de seus afetos. O operador de individuação, introduzido por Freud, consiste em mostrar que apenas uma pessoa que tivesse tido a vida sexual de Leonardo teria produzido as suas obras, ações, fantasias, etc. Em suma, a "explicação" apresenta-se como algo que nos dá um quadro, uma gestalt, onde todas as particularidades aroladas encontram a sua justificativa. Leonardo, por ter nascido ilegítimo e ter tido uma mãe excessivamente tema, e certos fatores que a psicanálise, de acordo com Freud, não pode explicar - a tendência bastante especial para o recalque pulsional e a sua capacidade extraordinária para a sublimação - produziu o que produziu. É dentro desses limites que a biografia psicanalítica pode tomar tais elementos compreensíveis. A forma de apresentação do caso Leonardo não é casual. Ele aparece, inicialmente, como um mistério que deve ser resolvido, a partir de fragmentos. Tudo é montado para reconstruir algo aparentemente impossível: o momento em que Leonardo formou a sua fantasia sobre a infância. Com a meticulosidade de um detetive, atento para os menores indícios, aliás são estes os que contam, Freud nos leva à solução dos enigmas propostos. "Explicar" significa, portanto, montar uma gestalt onde todos os elementos encontrem a sua razão de ser, formando uma narrativa consistente. A cada momento, Freud requer de seu leitor que ele se espante, que se surpreenda com o que está sendo oferecido. Mas é precisamente aí que o leitor acabará por aderir ao esquema freudiano. Pois é a sua resistência ao que lê que assinala a veracidade das proposições psicanalíticas. Ele aprenderá que é preciso traduzir aquilo que é comunicado, que ele está diante de certos "efeitos" que devem ser neutralizados para que a comunicação seja restabelecida. Portanto, a forma de expor a psicanálise já é uma produção de seus efeitos, justificada teoricamente. A retórica freudiana é, por conseguinte, inseparável da teoria. Por outro lado, a análise supõe todo o tempo lima direção para a interpretação, ela deve ir do não-sexual para o sexual. É o mito que se esclarece pela psicanálise, e não o inverso. Mas é preciso aprofundar a pista dada pelo Leonardo: a de que é a nossa própria história infantil que simultaneamente nos atrai e nos repele diante de uma "explicação" psicanalítica. Para tanto, retornemos ao primeiro dos Três Ensaios sobre a Sexualidade (1 3).
Vamos pensá-lo, partir da seguinte perspectiva: Freud acredita na existência da sexualidade infantil. Essa crença contraria numerosos sexó10gos. Como persuadir os adversários? Se se tratasse de proposição matemática ou 1ógica, ele poderia convencer os opositores através de uma demonstração. Bastaria indicar os axiomas de partida, mostrar que não se aplicou incorretamente nenhuma regra de inferência. No caso presente, a coisa é diferente. Na ausência de axiomas, de regras, é preciso persuadir, ou seja, levar o adversário a aceitar uma outra posição, dado que a sua atual irá se revelar, à luz óas considerações feitas, insustentável. Vamos chamar esse procedimento de persuasão de "retórica".
Contudo, antes de esmiuçá-lo, é preciso fazer algumas breves considerações sobre a retórica clássica. O texto de Barthes, Lancienne rhétorique, pode nos servir óe guia (3).
Barthes refere--se à retórica como metalinguagem, ou seja, um discurso sobre o discurso, que reinou no Ocidente entre o século V a.C. até o século XIX d.C. Nesse sentido, ele se refere a várias práticas que foram sucessivas ou simultâneas (3, p. 8ó). Barthes divide a sua história em sete fases, mas vou me deter apenas nas quatro primeiras porque elas permitem definir uma oposição maior entre Aristóteles e Platão, fundamental para os nossos objetivos. Na primeira etapa, temos o nascimento da retórica. Ela aparece nas cidades gregas da Sicília, após a expulsão dos tiranos Gelou Hieeron que haviam feito desapropriações. Para retornar à situação inicial. preciso defender, junto a jdris populares, a terra. Essa proto-retórica preocupa-se com a estrutura do discurso, e divide a falsa, a oratio, em cinco partes: exórdio (introdução), narativa, argumentação, digressão (demonstração) e epílogo (conclusão). Aqui se abre uma primeira demarcação, a existente entre a palavra fingida, a dos sofistas, e a palavra jictfcia, a dos poetas. Na segunda etapa, a figura de destaque é Górgias. Ele introduz um novo gênero literário, além do judiciário e do deliberativo, epidítico, o discurso espetáculo; exemplificado pela oração fdnebre que deixa de ser em versos para ser em prosa� onde presentificam-se as "figuras" de retórica. Na terceira etapa, o marco decisivo é Platão. Para ele, há duas retóricas : uma má, a feita pelos sofistas, que consiste em escrever qualquer discurso, tendo como objetivo a verossimilhança, a ilusão, a opinião; e uma boa, a dialética que visa à verdade, que se refere ao conhecimento. Está subentendida aqui uma divisão entre artes genuínas e esp11rias, relativas tanto ao corpo quanto à mente (3, p. 90-92).
Com Aristóteles surge a quarta etapa. A dialética é vista como a contrapartida da retórica e ambas estão em oposição à ciência. A retórica opõe-se à poética: na primeira visa-se à comunicação cotidiana, o discurso em pdblico, a passagem de uma idéia a outra; na segunda, busca-se a evocação imaginária, a passagem de uma imagem a outra. A retórica é detmida como "a arte de extrair de todo assunto o grau de persuasão que ele comporta" (3, p. 95). Há uma divisão em três partes: o orador, o receptor e a mensagem. Só há retórica daquilo que é verossimilhante. É neste caso que é necessário apresentar provas, desenvolver argumentos. No lugar do silogismo categórico, onde a conclusão decorre estritamente das premissas, Aristóteles coloca o entimema, onde a conclusão é mais provável devido às premissas. Daí, o entimema ser um silogismo aproximativo. Nas suas premissas deve figurar, necessariamente, a opinião corrente mesmo que seja para desacreditá-la mais tarde. Portanto, a retórica vincula-se à lógica. As três partes que nos interessam da arte retórica são: a inventio (encontrar o que dizer: encontrar as provas), a dispositio (colocar em ordem o que se encontrou, dispor as provas em ordem) e a elocutio (acrescentar ao que se diz as "figuras", os ornamentos). Assim, se vai do nível das coisas - "as provas", a inventio para o nível da palavra, da coisa dita - a elocutio, passando pela ordenação das provas, a dispositio.
O estabelecimento de provas, a inventio, conhece duas grandes vias: uma lógica que visa convencer, e uma psicológica que objetiva comover. Na primeira, as provas têm a sua própria força, na segunda é o destinatário que se "comoverá". As provas podem ser inerentes ao seu objetivo, dispensando qualquer transformação por parte do orador, compreendendo tudo que existe antes do caso, são elementos constituídos na. linguagem social. E as provas podem ser o produto de uma transformação executada pelo orador. Dividem-se em duas, o exemplo (indutivo) e o entimema (dedutivo).
O exemplo pode ser real ou fictício, ele pode funcionar como um arquétipo. O entimema apresenta a nátureza de um raciocínio - ele é um silogismo incompleto - e de uma nartiva - ele descreve algo que poderia ter ocorrido. Ele busca a persuasão e não a demonstração. Se há demonstração, não há necessidade de retórica. Em outras palavras, se o silogismo for categórico não há persuasão, há necessidade, estamos no campo da demonstração. É preciso reter firmemente essa dicotomia porque acredito que ela seja central para a oposição entre explicação estética e explicação científica. A predição, na dltima, desempenha a função de uma demonstração, se ela está ausente, o jogo de linguagem é outro. Para Aristóteles, dado que o entimema é feito para o pdblico, são relevantes as considerações de natureza psicológica. O prazer do ouvinte surge do poder do orador de fazer com que o próprio ouvinte chegue a construir o argumento que está sendo proposto, ou seja, de uma espécie de fechamento. O ponto de que se parte não é o de uma certeza científica, mas de uma certeza humana. Ora, o que pode ser tomado como seguro? Aquilo que resulta dos sentidos. Portanto, está suposta uma universalização dos sentidos que depende de um "saber" pdblico. Mas, também, pode-se partir do que é verossimilhante, de uma opinião geral (oposta à universalidade que é necessária) que pode ser contrariada (em oposição ao conhecimento que não pode). Finalmente, pode-se começar por um signo, um índice, que se no início é débil, no fmal aparecerá como forte.
Mas, além do aspecto formal, é preciso considerar o conte1.1do presente nas premissas. Os conte1.1dos comuns a todas as formas de argumentação recebem o nome de lugares, constituindo assim uma tópica. Consideremos agora a ordem das provas, ou a dispositio. Ela compreende quatro partes, onde a primeira e a 1.1ltirna visam despertar a paixão. As partes intermediárias têm um caráter demonstrativo. O exórdio, enquanto início, visa afastar o arbitrário de um começo. Seu primeiro momento é o de seduzir os juízes, o que vai depender da causa se aproximar ou não da opinião corrente. Se ela está bastante afastada, é preciso começar por uma insinuação, por algo que não afronte diretamente o adversário. O segundo momento do exórdio é a partição, onde se anuncia o plano que se vai seguir. O epílogo manifesta igualmente um arbitrário, portanto deve-se usar um sinal que marque com clareza o seu término. Ele, também, comporta dois níveis: o das coisas, onde se resume o que se fez e o dos sentimentos, onde se termina com um gesto teatral.
Os elementos intermediários, a narração e a confrrmação, constituem a parte demonstrativa da dispositio. A primeira expõe, de forma fria, clara, breve e verossimilhante, as provas. Visa preparar a argumentação; nesse sentido as provas são apresentadas sob a forma de "traços", de "vestígios". Dividem-se em dois elementos: os fatos - onde se trata de expô-Ios ou na ordem em que ocorreram ou a partir de um determinado momento. As descrições referem-se aos lugares, aos períodos, aos retratos. A confirmação é onde são enunciadas as "provas". Vamos considerar dois de seus elementos: a proposição, onde se coloca o ponto a ser debatido, e a argumentação, onde são expostas as razões. É recomendável que se inicie pelas provas fortes, passe-se às fracas, e se encerre pelas mais fortes.
Finalmente chegamos à elocutio, ou seja, a escolha das formas de falar na qual iremos expor as provas. É aqui que aparecem as figuras e os tropos da retórica.
Vamos utilizar essa taxonomia, exemplarmente exposta por Barthes (3, p. 121-155), para analisar o primeiro ensaio da teoria da sexualidade freudiana. Partiremos da dispositio, da ordem das provas, para reconstruir a inventio, as próprias provas.
No exórdio, ou seja, na introdução, temos, em primeiro lugar, uma insinuação. Insinuação porque o p1.1blico visado, os cientistas, terão a mesma visão sobre a sexualidade que a chamada opinião popular, como o texto revelará no seu final. Usa-se o termo opinião para opô-Io a conhecimento e, popular, para opô-Io à ciência. Assim, o exame partindo de uma pretensa "opinião popular" parece não contrariar, de imediato, os preconceitos do p1.1blico visado. Aliás faz uso deles.
Freud descreve a opinião popular como apresentando os seguintes pressupostos a respeito da sexualidade (13, p. 47), a pulsão sexual estaria ausente da infância (o fato de falar-se de "pulsão" e não de "pulsões" significa que ela é pensada como unitária), a pulsão sexual se manifestaria como atração de um sexo pelo outro (portanto, há uma identidade sexual tanto por parte do sujeito como do objeto), o objetivo da pulsão seria a união sexual ou todas as ações que levariam nessa direção - ou seja, a sexualidade expressar-se-ia como genitalidade.
O segundo momento do exórdio é dado pela partição, isto é, pelo andncio do plano a ser seguido, mostrar que esses pressupostos são insustentáveis. Contudo, não se trata apenas de exibir o caráter precário delas, porém de sustentar no seu lugar que a pulsão sexual está presente desde a infância, não na forma de uma unidade, mas enquanto pulsões parciais; que não há uma identidade sexual dada a priori, o ser humano é bissexual, ou seja, sexo anatômico não determina o sexo do sujeito e a fortiori a preferência sexual dele, e, fmalmente, que o objetivo da pulsão é determinado pelas pulsões parciais, isto é, a sexualidade não é idêntica à genitalidade, mas pode colocar-se sob o seu domÚlio.
Infelizmente, a ordem de demonstração das novas teses não é idêntica a da sua enunciação. Freud inicia por mostrar a bissexualidade, passa pela comprovação da existência das pulsões parciais, para chegar à prova de que a sexualidade já está presente na infância. Ao fmal, ele indica que os tratados sobre a sexualidade da sua época acabaram por partilhar as mesmas crenças da opinião popular, além de determinar o porquê disso ocorrer.
Vamos, em primeiro lugar, nos deter sob a forma como Freud procura nos convencer da existência da bissexualidade no ser humano. O argumento vai ser construído, a partir de uma ilustração da opinião popular, presente no mito platônico - "a partição do ser humano em duas metades - homem e mulher - que esforçam-se porunir-se de novo no amor" (13, p. 48). O mito tem a função de servir como uma premissa verossimilhante em um certo entimema. Ao mesmo tempo, funciona como uma pista, um traço. Pois uma leitura possível do mito é a de que, talvez, os seres humanos, em um momento inicial de sua existência, fossem bissexuais. Ora, isto é exatamente o que Freud deseja mostrar (recordemos que na narativa, a primeira parte demonstrativa da dispositio, as provas devem ser insinuadas sob a forma de traços, de vestígios, de modo a preparar a conftrmação, onde elas são efetivamente apresentadas).
O mito platônico ilustra a opinião popular no sentido de sugerir uma preftxação do objeto sexual, assim como uma ligação estreita entre pulsão e objeto. Há uma série de entimemas a serem considerados aqui. Por exemplo, se há uma determinação anterior entre pulsão e objeto, então não devem ocorrer casos de inversão, se há uma determinação anterior e ftxa entre pulsão e objetos e ocorrem casos de inversão, então eles se devem a fatores inatos onde se restabelece a determinação anterior, se há uma determinação anterior entre pulsão e objeto e ocorrem casos de escolha de crianças e animais, enquanto objetos sexuais, então eles são devidos a uma degeneração mental.
A rigor apenas o primeiro entimema é bastante simples e reflete diretamente a opinião popular. Para recusá-lo, basta apontar a existência de casos de inversão, pedofilia, bestialismo, necroftlia, etc. O segundo merece um tratamento mais cuidadoso.
Ele aponta para uma detenninação que é a mesma da opinião popular: a soldagem inata masculino/feminino, feminino/masculino, mas apresentada sob uma roupagem científica. Em outras palavras, ao mesmo tempo que Freud abala as crenças da opinião popular, ele mostra como essas teses são partilhadas pela ciência de sua época. Para contrariar o presente entimema, basta mostrar a existência de casos de inversão, onde se toma difícil acreditar que ela seja inata. Basta citar, por exemplo, os invertidos ocasionais, os que têm relações com os dois sexos, o fato da sugestão hipnótica remover casos de inversão, ou as situações ambientais que propiciam o aparecimento de inversão, etc. Contudo, a existência da soldagem é mais complicada. Evidentemente, não se conhecem centros no córtex cerebral ou mesmo cérebros femininos e masculinos, nem há relação entre hermafroditismo e inversão, portanto pode-se duvidar da existência de uma soldagem dessa natureza. O áltimo entimema é descartado pelo exame do que significa a palavra degeneração, e mostrando que ela não se aplica ao presente caso (13, p. 48-52).
Mas, não basta indicar os indícios de que se pode duvidar da existência de uma detenninação anterior entre pulsão e objeto, é preciso questionar a crença que a fundamenta, ou seja, a de que a anatomia define o sexo. Portanto, a crítica aos entimemas citados tem como conseqüência substituir a tese que a anatomia define o sexo pela crença que há disposição bissexual, uma espécie de hermafroditismo psíquico. A vantagem aparente é a de fugir às provas apresentadas por Freud. Se de fato não há uma ligação imediata entre pulsão e objeto, se o essencial e constante da pulsão não é o seu objeto, então é possível começar a acreditar em uma disposição bissexual. Evidentemente, resta saber o que a detennina, no que ela consiste, etc.
Para a opinião popular, o objetivo sexual é a relação sexual. A primeira prova freudiana aqui é a de nos levar a ver a relação sexual de uma forma nova: ele indica que encontramos nela toda uma série de "rudimentos" que, se forem ampliados, serão iguais àquilo que descrevemos como perversões. Está presente toda uma série de pequenas teses. Antes de analisá-las, vou me deter em alguns pontos. A perversão é para a época qualquer manifestação, onde o objetivo da pulsão sexual não é satisfeito, ou seja, não há união sexual. Freud afirmou que, para a opinião popular, o objetivo da pulsão é a união sexual ou as ações que levam nessa direção. Assim, o primeiro problema é o de determinar o caráter dessas ações que levam na direção da união sexual. Elas também são sexuais? Se o são, que objetivos satisfazem?
As duas perguntas são terríveis para as crenças da opinião popular. Se ela responder não à primeira questão, Freud mencionará o seu inequívoco caráter sexual. Se ela responder afirmativamente, fica com o problema de ter de estender da sexualidade para além da genitalidade, acrescido do ônus de ter de explicar que objetivos seriam satisfeitos, o que tomaria difícil manter a tese da unidade da pulsão sexual. Na verdade estão presentes os seguintes entimemas: se o objetivo da pulsão sexual é a união sexual, então só é sexual o genital, se algo não é genital não pode ser sexual.
No seu lugar, Freud procura defender as seguintes teses, na relação sexual normal há rudimentos de sexualidade não genital, a descrição de tais rudimentos corresponde na sua essência à descrição feita pela ciência da época do que se entende por perversão. Portanto, a própria exposição freudiana transfonna-se numa prova da verossimilitude dessas duas teses. Se a primeira for verossúnil, então será possível apresentar a descrição das perversões como uma ampliação desses rudimentos - "a extensão anatômica" - ou uma fixação neles - "fixação nos objetivos sexuais preliminares", isto é, mostrar a verossimilitude da segunda. O que mina defmitivamente a possibilidade de se aceitar os entimemas da opinião popular.
Mas, o que revela o estudo das extensões anatômicas? Que a pulsão sexual não valoriza apenas os genitais, mas todo o corpo do objeto, ou parte do corpo do objeto, ou algo ligado ao objeto, direta ou indiretamente. Há certas partes do corpo, além dos genitais, que parecem ser muito valorizadas: a boca, o ânus. Para tomá-las sexuais, é preciso que a pulsão sexual vença força oposta, a repugnância. No caso de algo ligado diretamente ou simbolicamente ao objeto, se tomado exclusivo, teremos os casos de fetichismo. Notem que todas essas considerações tomam inverossímeis os entimemas da teoria popular.
O estudo da "fixação dos objetivos sexuais preliminares" indica que novas partes do corpo reivindicam o direito de ser consideradas como genitais: a pele, os olhos. E aqui são enunciadas mais duas forças que se opõem a essa valorização do objeto, a vergonha e a dor. Ao mesmo tempo introduz-se a crença de que o objetivo sexual pode ser realizado de forma ativa e de uma fonna passiva. O que permite a Freud considerar que a bissexualidade humana talvez esteja na forma de realização da pulsão. No estudo geral das perversões são acrescentadas mais duas outras forças que se opõem à valorização do objeto: o horror e a moral.
Como explicar a multiplicidade das perversões? Primeiro ampliando o conceito de sexualidade. Sexual passa a ser mais do que o genital. Perversão não é mais o que não é genital, mas o que exclui e se fixa no que não sendo genital, é ainda sexual. Se há várias fonnas de sexualidade; é porque há várias pulsões sexuais, daí o conceito de pulsão parcial. Em outros termos, as provas freudianas tiveram como objetivo mostrar que não se pode sustentar que a pulsão sexual é uma só, dada a multiplicidade de realizações da sexualidade. Se os homens caminham na direção da genitalidade, isto ocorre devido a forças psíquicas, tais como a repugnância, a vergonha, a dor, o horror, a moral.
Freud, através do uso de diversos recursos retóricos, nos levou a substituir as teses de que a anatomia define o sexo e que a genitalidade determina a sexualidade, pela crença de que há uma disposição bissexual e que todo o corpo determina a sexualidade dado que é pluralidade das pulsões sexuais que dotam o objeto de atração sexual e não o inverso. Para tomar verossímil a tese de que a sexualidade está presente na infância, é preciso introduzir explicitamente a psicanálise. Ela nos infonna sobre a vida sexual dos psiconeuróticos; embora tal conhecimento só seja acessível a partir de certas condições determinadas (13, p. 72-73). Se temos acesso a elas, descobrimos que os neuróticos expressam a sua sexualidade, através dos seus sintomas. Estes são transcrições de desejos. Se tomarmos a histeria como paradigma das neuroses, poderemos notar como se apresenta nela uma oposição fundamental entre um impulso sexual excessivo e uma aversão igualmente excessiva à sexualidade. Entretanto, a sexualidade que se expressa no sintoma não é genital, mas perversa; ou seja, a neurose aparece como o negativo da perversão na medida em que aquilo que no perverso se traduz em atos, no histérico manifesta-se, enquanto sintoma.
Freud, que começou por afirmar que os neuróticos não estão muito afastados dos normais, nas suas palavras, "pelo menos próximos dos normais", (13, p, 72), levounos a entender a neurose como sendo quase idêntica à perversão. Dado que nos neuróticos há uma tendência para a extensão anatômica da sexualidade e para objetivos não genitais, tanto sob a forma passiva como ativa, decorrentes de pulsões sexuais que se manifestam de forma independente uma em relação à outra.
Qual poderia ser o objetivo de Freud ao traçar esse caminho da normalidade para a neurose e dessa para a perversão? A resposta é fácil. Basta pensar no seguinte entimema. Se, em certo sentido, a neurose é idêntica à perversão e se a neurose não está muito afastada da normalidade, então a normalidade também em certo sentido não está muito afastada da perversão. Mas que sentido é este que permite pensar tais aproximações?
Para responder, Freud faz algumas considerações sobre a diferença entre pulsão e estúflulo. A pulsão origina-se no interior do organismo e age de forma contínua. O estúflulo é externo e descontúlUo. A oposição presente entre uma sexualidade intensa e uma aversão extrema à sexualidade é explicada pela existência de duas espécies de excitação presentes nos órgãos somáticos que corresponderiam a substâncias quúnicas distintas. Uma ligada à pulsão egóica, outra à pulsão sexual (13, p. 7ó-77). Dado que a última é múltipla - a cada zona erógena corresponde uma pulsão parcial - ela determina a constituição do sujeito. Somos todos perversos, tanto normais quanto neuróticos no sentido de que partilhamos de mesma constituição. A manifestação ou não dos seus efeitos vai depender do grau de repressão a que ela vai estar submetida.
Onde será possível constatar a presença dessa constituição? Na vida infantil. Ora, se há constituição sexual na infância é porque existe sexualidade na infância. Portanto, a exibição de tal constituição é simultaneamente a prova da sua existência.
Por que se acredita na ausência da sexualidade na infância? Devido a um erro. Mas qual a sua origem? Talvez ele decorra de um problema de enfoque. Assim, os tratados sobre sexo centraram-se sobre a hereditariedade. As poucas indicações sobre a sexualidade infantil foram apresentadas como aberrações (13, p. 81). Contudo, Freud não se contenta em apresentar um ponto de vista alternativo. Sem dúvida, os leitores que chegaram até aqui já estão suficientemente espantados com as considerações freudianas, descobriram que são bissexuais e perversos, que as crianças são dotadas de sexualidade, que essa se presentifica em todo o corpo. Estão a ponto de abandonarem a obra e o escritor. Entretanto, Freud vai transformar essa aversão espontânea em conversão à verdade psicanalítica. Aqui a elocutio (a colocação das provas em palavras) se revela inventio (prova).
Este efeito é produzido a partir das considerações que ele tece em tomo da chamada amnésia infantil. Ela é responsabilizada pelo fato de tratados científicos contemporâneos negligenciarem a presença da sexualidade na infância. Cito Freud: "A razão para essa estranha negligência eu busco, em parte, em considerações convencionais que os autores fazem em conseqüência de sua própria criação, em parte, em um fenômeno psíquico que até agora ele próprio subtraiu-se à explicação" (13, p. 82). Há aqui uma dupla origem que, no fundo, vai ser atribuída a uma única fonte que englobará não apenas os autores discutidos, mas o próprio leitor. A primeira origem é da ordem da educação, as pessoas são criadas como se a sexualidade infantil não existisse. Mas a ciência não deve romper com a opinião popular? Certamente ! Portanto, esses autores não chegaram ao conhecimento, ainda estão presos à opinião. A segunda origem já fornece um indício de por que isto ocorreu, há um fenômeno psíquico que por si só se subtrai à explicação, ou seja, é da sua natureza ocultar-se. Evidentemente, podemos nos perguntar: a própria opinião popular já não resultaria da sua existência?
Freud nos ensina que a amnésia é um fenômeno geral mas não universal. Por que ele ocorre se temos razões para acreditar que a memória no período da infância deva ser excelente? Aqui a psicanálise nos "socorre" ao recordar que na amnésia neurótica não houve uma remoção das impressões da infância, elas foram apenas afastadas da consciência pela repressão (13, p. 83-85). Mas o que há nas impressões infantis dos neuróticos que nos leva a ter uma amnésia infantil? Não serão os próprios impulsos sexuais infantis?
Certamente, a exibição deles através da psicanálise constituirá uma prova da sua existência. Entretanto, já é possível fornecê-la agora. Se a amnésia infantil é responsável pelo fato de não se dar importância à sexualidade na infância, logo a constatação da sua existência constitui, ao mesmo tempo, uma prova da sexualidade infantil e do efeito da repressão. Se o leitor não se recorda da sua infância ou apenas de acontecimentos triviais, se acha as teses apresentadas por Freud absurdas, ele tem diante de si uma prova da veracidade da psicanálise. Assim, os efeitos de exposição à psicanálise se transformam em prova da verdade da teoria. Todos: a época, os autores dos tratados e mesmo o leitor dos textos psicanalíticos são elucidados pela mesma chave interpretativa. Quando Freud advertia Jung de que as teses sobre a sexualidade acabariam por se impor sobre ele, Freud sabia do que estava falando (Nota H). A recusa de Jung pôde ser lida, mais tarde, como resistência, e isso era uma decorrência natural da teoria. A estrutura retórica da psicanálise é inerente à teoria e faz parte, como acredito ter mostrado, dos seus efeitos. Ela nos convence na medida em que a repelimos.
Mas há um outro aspecto que eu gostaria de explorar e que nos coloca no centro de nossas preocupações: sugestão de que há uma constituição no ser humano determinada pelas diferentes zonas erógenas. Cada uma das estruturas de desejo pré-genital fixa objetivos e objetos. Estamos interessados em saber que objetivos e objetos são estes. Como eles são registrados e como são recuperados.
Para fmalizar vou me concentrar sobre a teoria dos estágios da libido, enquanto uma teoria sobre as formas de apreensão da realidade. Uso a expressão forma de apreensão no sentido de perceber e reter objetos; ou seja, cada uma das fases prégenitais da libido determina a maneira pela qual o indivíduo registra sensorialmente a realidade e o modo através do qual ele ordena tal registro qua representação.
Chamo o conjunto de representações assim fixadas de inconsciente. Se aceitarmos que a cada uma das fases (com exceção da oral precoce e da genital) corresponde um sistema inconsciente, teremos a hipótese de que o aparelho psíquico freudiano pode ser concebido como uma organização complexa e heterogênea, forma por uma série de, pelo menos, quatro sistemas inconscientes. Antes do início dessa série, haveria um primeiro sistema formado pelos sinais perceptivos, Wahnemungzeichen, (Nota I) constituído na fase oral precoce, portanto, na etapa mais remota da infância; no final da série, estaria o sistema pré-consciente, correspondendo à fase genital.
Antes de apresentar as diferentes fases, é preciso afastar de imediato algumas possíveis incompreensões. A teoria das fases, tal como a vejo, não é uma teoria desenvolvimentista, nem no sentido de Gesell nem no de Piaget. Isto é, ela não implica nem a idéia de que as fases estejam pré-formadas no indivíduo (Gesell) nem que a presença de uma fase acarete o desaparecimento da anterior (Piaget). Concepção que Freud procurou, em outro contexto, expressar através da expressão "série complementar" (Nota J). Aliás, é a sua construção em camadas sobrepostas que permite dar conta de seus efeitos, dado que, em nenhum momento, uma fase pode ser entendida como englobando todas as anteriores e realizando a sua síntese. Além do mais não podemos esquecer que, apesar da teoria freudiana das fases da libido supor certas condições biológicas, ela tem, como mostraremos a seguir, uma dimensão semântica que não pode ser ignorada.
O primeiro sistema, o dos sinais perceptivos, relaciona-se com os objetos sob a forma da incorporação; suas representações apresentam entre si relações de simultaneidade. A evocação de Uma representação já é suficiente para a recuperação de todas as outras. Como os que freqüentam a psicanálise já devem ter notado, é nesse sistema que está a forma mais primitiva e decisiva do circuito de desejo, o seu protó- tipo. Ele é responsável pelo "m1cleo sensorial de cristalização do sonho", para usar uma outra expressão do vocabulário freudiano (Nota L). O sistema dos sinais perceptivos é regido pelo princípio do prazer, desconhece a diferença entre percepção e representação, o que o obriga a viver sob o domínio da alucinação. A inibição das recorrentes alucinações é feita através da formação de um primeiro eu ou ego (Nota M). Com ele, surge a prinÍeira ambivalência no ser humano, que pode ser expressa pela fórmula devorar/ser devorado. Estamos agora em plena fase oral tardia. Nela, os objetos são inscritos (Niederschrift é sinônimo de das Niederschreiben) sob a forma da introjeção. Suas representações, componentes do primeiro sistema inconsciente, organizam-se, como em todos os quatro sistemas inconscientes presentes no aparelho psíquico freudiano, em tomo de relações 1ógicas.
Através do temor, do medo, do horror, as primeiras potências anímicas (seelischen Miichte) (Nota N) construída contra a pulsão sexual, e do predomínio da zona erógena anal sobre a oral, sedimenta-se, sobre o antigo eu, um novo eu; Aqui a ambivalência passa a se expressar pela oposição destruir/ser destruído. A forma de inscrição da realidade é feita por projeção.
O controle do esfíncter, aliado à culpa, a nova potência anímica formada contra a pulsão sexual anal p ce, leva à constituição de um terceiro sistema inconsciente. A inscrição se faz aqui por transposição e a ambivalência se manifesta pela oposição dominar/ser dominado. Um terceiro eu agrega-se aos extratos já existentes, como se fossem camadas de uma cebola.
Finalmente, a repugnância, a pendltima potência anímica a se estabelecer, aliada a certas circunstâncias biológicas, leva à dltima fase pré-genital da libido, à fase fálica. A inscrição dá-se agora por conversão e a ambivalência exprime-se pelo par castrar/ ser castrado. Um quarto eu é acrescentado aos anteriores.
Devido ao pudor, a dltima das potências anímicas descritas por Freud, e determinadas condições biológicas, o indivíduo passaria à fase genital. Nela, a inscrição é feita através da linguagem, não há ambivalência em relação aos objetos, e a dnica oposição é descrita pelo par masculino/feminino. O que se coloca frente à pulsão sexual são, segundo Abraham, as prescrições sociais (1, p. 309).
Feita essa exposição sumária da teoria da libido, pretendo mostrar o porquê dela apresentar uma dimensão semântica.
Para se dar conta de minha tese, basta recorrer ao que seria, de acordo com as considerações feitas, uma neurose ou uma psicose. Elas podem ser compreendidas como perturbações na tradução de inscrições de um desses sistemas para o seguinte. De forma esquemática, se a perturbação ocorrer na tradução do quarto sistema inconsciente, o formado na fase fálica, para o pré-consciente, o resultado será duplo: perda da capacidade comunicativa do sujeito e aparecimento de um sintoma somático. A primeira conseqüência decorre do fato da tradução ser inadequada, dado que a fala do sujeito sofre uma modificação incompleta de sua referência na transcrição de uma representação de um sistema para o outro. Com isso, produz-se uma alteração no sentido da fala do sujeito que impede que as outras pessoas, e, a fortiori, ele mesmo, entendam aquilo que diz. A segunda perturbação é produzida porque, segundo a teoria freudiana, o aumento quantitativo, presente no momento da tradução, é dissolvido segundo o princípio vigente no sistema em que se iniciou o processo, no caso em consideração, dado que se trata do inconsciente formado na fase fálica, por conversão.
Com o objetivo de tornar as coisas mais claras, e poder introduzir o conceito de posterioridade (Nachitrãglichkeit), examinemos um caso clínico de Freud, descrito em A disposição para a neurose de compulsão (1 1). Uma mulher deseja ter um fllho do marido. Este recusa-se e aquela passa a apresentar sintomas de uma histeria de angdstia. O marido dá-se conta, inconscientemente, de que é o responsável pela doença da esposa, e, pela primeira vez, falha na relação sexual. Em decorrência, surgem novos sintomas na mulher. Ela tem, agora, certas compulsões, a de lavar e limpar a casa, além de tomar uma série de medidas protetoras e enérgicas contra danos severos que poderiam causar às pessoas a sua volta, em especial, ao seu esposo.
O que nos revela a história da libido dessa mulher? Aparentemente, que estaríamos diante de dois fatores: um interno, constitucional, outro externo, puramente acidental, a recusa do marido em atender ao seu desejo. Mas, na psicanálise, as coisas não se passam assim, não há essa oposição absoluta entre externo e interno. Freud reduziu tais fatores a um só: à disposição, ou seja, a modificações estruturais, ocorridas ao longo do tempo, na organização da libido. A frustração de não ter o desejo satisfeito não pode ser apreendida sem que se entenda o próprio desejo. Ora, qual é mesmo o desejo? A resposta imediata seria, o de ter um filho. Mas, poderia perguntar o analista, tê-lo de quem? À primeira vista, do marido. Mas aqui a teoria freudiana acredita que tal desejo é organizado pela relação edipiana. Vigora, para todos os desejos que se exprimem, a mesma relação presente entre o desejo infantil e os diurnos na produção de um sonho. O desejo de ter um filho do pai (demonstrado pelos efeitos produzidos, na paciente, pela sua não-realização) conduz Freud a afirmar que o desejo dela era a expressão de um desejo de sedução. A sua não realização - a sua frustração - produz angústia que se traduz como "repúdio de fantasias de sedução" (Versuchungsphantasien). A resposta do marido à angústia da mulher, sob a forma de uma impotência temporária, satisfaz o desejo em um sistema mais remoto, o fálico, mas equivale, ao mesmo tempo, a uma nova frustração se levarmos em conta o sistema mais recente, o genital. O resultado desse desacordo, expresso pela equivalência prazer/fálico, corresponde a desprazer/genital, é um compromisso que pode ser entendido como "formações reativas contra pulsões anais e sádicas" (11, p. 112), isto é, o sujeito foi levado a uma regressão maior ainda.
Freud considera esse caso muito importante porque "... ele poderia reivindicar o valor de um documento bilíngüe, e mostrar como um conteúdo idêntico pode ser expresso por ambas neuroses, em diferentes linguagens" (11, p. 11 1). Vamos considerar, no presente momento, que o conteúdo comum seja o de ter um filho do pai. Como ele se inscreveria como posterioridade no pré-consciente? Através da linguagem ordinária, pelo desejo de ter um filho do marido. Dado que este se recusa, há uma regressão à fase fálica, e o desejo agora se traduz pelo desejo de ter o phalus, equivalente aqui ao desejo de castrar o marido. A defesa contra essa versão arcaica de um mesmo desejo exprime-se sob a forma de angústia. Contudo, o marido resolve atender, inconscientemente, a esse desejo, igualmente inconsciente, da sua esposa, e falha na relação conjugal. A realização inesperada da versão arcaica do desejo leva a uma ampliação da defesa contra o desprazer gerado pela sua tradução, e a uma regressão a uma fase mais primitiva, à fase anal tardia. A oposição fálico/ castrado dá lugar à oposição dominar/ser dominado. Assim, o desejo de ter um filho (genital) traduziu-se numa versão arcaica, no desejo de ter o phalus (fálico). A defesa, movida contra ele, produziu a angústia. Dado que o ponto de fixação dessa paciente localizavase na fase anal tardia, e que ela teve satisfeito o seu desejo na sua versão fálica, o marido comportou-se como se fosse castrado, ela regride, devido ao desprazer gerado, a uma versão ainda mais primitiva do mesmo desejo, a de dominar o marido. A defesa mobilizada contra a sua versão anal produz uma nova formação de comprolIÚsso: a compulsão de limpar e as medidas protetoras contra algum mal que ela poderia causar. Tais medidas visam salvaguardar o objeto de amor da hostilidade a que ele está sujeito.
Como se pode ter notado, a neurose percorreu as diversas traduções de um mesmo desejo no sentido inverso ao da sua formação. Partimos da versão genital e chegamos, no caso dessa paciente, até a sua versão anal tardia. O que nos impõe uma nova tarefa, a de elucidar o que produz o desejo desde a sua versão mais remota, ou seja, desde o sistema dos sinais perceptivos. Antes de estudál.la, pretendo elucidar o que Freud entendeu por "relação 1ógica", quando aflnnou que as relações presentes entre as representações dos sistemas inconscientes são dessa natureza (Nota O), uma vez que também aqui se toma patente a dimensão semântica da teoria da libido.
As representações inconscientes são representações de objetos, onde alguns desses objetos são representações de tennos da linguagem. No texto Zur auffassung der Aphasien (20), Freud diferencia dois tipos de representações: a de objeto e a de palavra. A primeira seria uma representação complexa, onde o elemento organizador é dado pela imagem visual. A segunda, a de palavra, seria uma representação igualmente complexa, mas, estruturada pela imagem act1stica. É através das possíveis relações no interior de cada uma dessas representações e na relação entre as duas que Freud derme os três tipos de afasia. No Entwwf (1 5) ele derme três tipos de representações: a de palavra, a de objeto e a de coisa (Das Ding). A t1ltima é dotada da capacidade de predicar, sem poder ser predicada. Assume, assim, o papel de pura referência. A neurose seria responsável por um rompimento entre a representação de coisa e as outras duas. Mas é na constituição do desejo que se toma mais clara a articulação entre os três tipos de representação. A vivência de satisfação serve de modelo para a produção do circuito do desejo. Nele estão presentes, pelo menos, quatro representações. Uma primeira, a representação de coisa, é representante da pulsão; uma segunda, a representação de objeto, representa o objeto de desejo; uma terceira, a representação de palavra, representa a palavra ouvida, e uma quarta representação indica que o processo de somação, na fronteira do aparelho psíquico, foi interrompido. Essas representações foram inscritas de acordo com uma seqüência temporal, isto é, suas referências apresentavam uma relação de contigüidade. Se forem evocadas de novo, elas serão ocupadas (besetzungen) simultaneamente. Freud usa o tenno desejo para designar precisamente essa ocupação simultânea. Posterionnente, em 1915, em Das Unbewust ( 10) será proposta uma nova terminologia para as representações. A representação de objeto passa a ser constituída por duas representações, a representação de coisa e a representação de palavra. A primeira é considerada como sendo a representação de objeto propriamente dita, e a segunda, a de palavra, ainda representa a palavra ouvida.
Podemos entender, a partir dessas considerações, a expressão "relações 1ógicas". No sistema formado pelos sinais perceptivos encontra-se, como já mencionamos anterionnente, a forma mais primitiva e decisiva do circuito de desejo. O que signilica isso? Tão-somente que é no primeiro sistema de memória que se inscreve o circuito constituído pelo desejo originário, ou seja, nele vigora uma relação de simultaneidade entre duas representações fundamentais: a do objeto de desejo e a da palavra ouvida, que, dadas as considerações feitas em Das Unbewust, podem ser expressas como um vfuculo entre uma representação de coisa e uma representação de palavra. Contudo, o que predomina, aqui, é o aspecto sensorial dessas representações; em especial, o de coisa, isto é, o seu elemento visual. Não podemos nos esquecer que o aparelho psíquico freudiano é pensado de modo a produzir a passagem do domfnio da imagem para o da palavra.
Quando a fase oral tardia surge, e com ela a construção do primeiro sistema inconsciente, o que estava inscrito no sistema dos sinais perceptivos deve ser traduzido nos termos desse primeiro inconsciente. Ora, aqui também se estabelece um nexo ntre representação de coisa e representação de palavra. Mas como o referente é diferente, é como se aquilo que se exprimia em termos de "lábios" tivesse de ser expresso agora em termos de "dentes". "Relação 1ógica" designa que se estabelece entre representação de coisa e a de palavra. Por que não há nos sistemas inconscientes relações de simultaneidade? Porque neles os eus que se fo têm como função precípua inibir o processo primário, ou seja, a relação de simultaneidade. Os vfuculos estabelecidos por eles são de similaridade, ou seja, devem descobrir se o objeto diante deles é, ou não, idêntico ao objeto desejado. Quando da formação do segundo sistema inconsciente, teremos uma nova tradução que se pode descrever através da concepção de que se exprimia em termos de "dentes" deve ser expresso agora em termos de "ânus".
Em suma, podemos ler as diversas fases da libido como relações de tradução entre uma fala muito primitiva, a dos "lábios" e a fala cotidiana; sabendo que, entre elas, há uma série de falas intermediárias, jamais completamente olvidadas, a dos "dentes", a do "ânus", a das "fezes" e a do "phalus".
No caso clínico, examinado há pouco, vimos como o desejo de ter um filho (fala genital) traduz-se na fala fática como desejo de ter o phalus, e na fala anal (das fezes) como desejo de dominar. Mas, se assim elucidamos o aspecto formal do desejo, resta mostrar aquilo que o determina desde a sua versão mais remota.
Subjacente a minha tese de que a teoria da libido apresenta uma dimensão semântica, esteve presente, pressuposta todo o tempo, a, idéia de que a teoria freudiana do inconsciente é, em sentido lato, uma teoria da memória. Por conseguinte, vou reformular a pergunta sobre o que determina o desejo para o que organiza a memória.
Freud descreve três perdas no ser humano: a do seio matemo, a das fezes. e a castração. Uma leitura desenvolvimentista da teoria da libido poderia atribuir à primeira o papel de fundamento, ou seja, a perda das fezes e a castração são terríveis, para o ser humano, porque repetem a perda originária do seio. Se isso fosse verdadeiro, poderíamos pensar que a organização das representações, na memória, é feita em tomo dessa "perda estruturante". Contudo, estaríamos, ao mesmo tempo, poupando Freud de escrever Totem und Tabu (1ó). Não saberíamos o que fazer com as suas hipóteses filogenéticas. Elas seriam perfeitamente dispensáveis. A própria vida de cada um de nós se encargaria de construir os diversos sistemas de memória. Em suma, o desejo seria detenninado pela perda do seio matemo. Todo desejo seria sempre o desejo de reencontrar o seio perdido.
Entretanto, Totem und Tabu foi escrito com a fmalidade de mostrar o que organiza a memória, o que determina o desejo. Não encontramos nele nenhuma referencia ao seio, mas indmeras ao pai morto. O "não matar o totem" está fundado, segundo Freud, em razões puramente emocionais, isto é, ele leva em conta apenas os imperativos sexuais. Ele ignora o princípio da realidade, dado que o pai já está morto. Mas o "não ter relações sexuais dentro do mesmo totem" obedece ao princípio da realidade. Pois se cada um dos filhos fosse governado apenas pela pulsão sexual, eles lutariam entre si para ver quem tomaria o lugar do pai. Portanto, a necessidade de romper a luta de todos contra todos leva a instituir uma lei que é, ao mesmo tempo, um contrato que se exprime pelo imperativo "não tomar as mulheres do pai" (1ó, p. 42ó).
O principal motivo para matar o pai foram as mulheres que o pai possuía. Será que o desejo mais primitivo de todos é o desejo pela mulher? Dificilmente, dado que não podemos nos esquecer de que os filhos expulsos da horda primitiva desenvolveram sentimentos homossexuais. E o que parece ser mais revelador ainda, as mulheres fundaram o matriarcado no vácuo de poder que se produziu entre a morte do pai e o contrato dos filhos. A identificação entre eles não se dá apenas enquanto assassinos do pai, mas também antes da sua morte, enquanto expulsos e ameaçados de castração por ele.
Por conseguinte, a figura do pai é a condição para o estabelecimento da exogamia tanto na primeira rendncia dos filhos - se tomarem as mulheres do pai, serão castrados por ele - como na segunda - o contrato estabelecido, agora, pelos filhos, que se reconhecem como irmãos, impede que qualquer um deles assuma o lugar do pai. Assim, o pai é o primeiro representante do princípio de realidade ao interditar a relação dos filhos com as mulheres. Ele estabelece o primeiro não. Mas, o que deseja o pai? Ele deseja as suas mulheres. Mas é um desejo fora do processo de hominização, é um desejo imediato, animal, despido de mediações. O desejo dos filhos, enquanto desejo formado a partir do desejo do pai, é, por conseguinte, desejo de desejo, um desejo de segunda ordem: ele passa pelo pai e por uma intenção que visa algo do pai. Estamos diante do momento zero da hominização. Mas não é ainda a passagem completa. É o temor à castração que organiza a primeira forma de socialização. Ele se exprime pelo temor de ser incorporado pelo pai, isto é, morto por ele. A homossexualidade dos filhos é a primeira forma de satisfazer o pai, ou seja, ela funda-se em um desejo do pai. Contra ela, aparece o desejo de ser como o pai, enquanto possuidor de mulheres. O que leva ao assassinato do pai, a ser devorado pelos filhos. Mas, de novo, constatamos uma identificação com o pai: ao devorá-lo, isto é, ao castrá-lo, realizam com o pai o que este queria fazer com eles. Em suma, a luta entre os filhos e o pai dá-se em tomo do phalus - o medo da morte é o medo da castração. E é precisamente este dltimo que leva os irmãos ao contrato: não matar o pai ("não matar o totem"), não tomar as suas esposas ["manter as relações de exogamia" (1ó, p. 427)]. Dado esse quadro, é forçoso concluir que a relação com a mãe será sempre mediada pela relação com o pai, ou seja, a relação com o seio já está organizada pela relação com o phalus. Portanto, as fases anteriores à fase fálica não são extra-fálicas, mais um lembrete de que não devemos confundir realidade com realidade psíquica. Se na primeim o phalus aparece tardiamente, na segunda, ele está lá desde o primeiro instante.
Freud escreveu Totem e Tabu movido pela necessidade de supor uma "vivência originária" que determinasse uma "forma de apreensão" do mundo. No tmal dessa obra, ele propõe a seguinte interpretação da tragédia grega. A relação entre o herói trágico e o coro seria uma representação da relação pai/filhos. O herói encama o pai que será morto e o coro a comunidade dos irmãos. Como a tmgédia tem a estrutura de um sintoma, ela apresenta a situação invertida, isto é, a culpa é atribuída ao herói e não ao coro. O herói é responsável pelo seu destino, na mesma medida em que o totemismo sugere que, se o pai fosse bondoso como o animal totêmico, ele não teria sido morto (1ó, p. 438-439).
A vivência fundamental é explicitada pelo complexo de Édipo. O que nos coloca diante de três questões: Como mostrar a presença dele através da história? Como ele pode ser simultaneamente social e individual? Tmta-se de algo realmente vivido ou é apenas uma fantasia?
As três perguntas estão intimamente relacionadas. Se acreditarmos que o Édipo constitui a estrutura básica da psique humana, a primeira questão pode ser reformulada da seguinte maneim: como uma mesma estrutum atravessa a história? A resposta freudiana consiste em recorrer à filogenia. Ela foi o modo encontrado, por Freud, pam dar conta da universalidade do Édipo. · Se nós a aceitarmos, então a resposta à segunda questão é imediata. Dado que todos os seres humanos a possuem, a psique individual é uma forma de apresentação da coletiva, da social. Mas resta por responder, como se constitui algo que a filogenia conserva, e a ontogênese repete? Uma possibilidade seria a de atIrmar que se trata de uma fantasia que surge da repetição das mesmas condições, isto é, da existência da fam!lia. Bem, vários psicanalistas que recusaram as especulações filogenéticas freudianas tomaram essa via, sem notar que ao fazê-lo, estavam destruindo um dos mais belos resultados de Freud - o de mostrar que a fam!lia nuclear não é fundadora de nada. Pam ele, o que funda o ser humano é a horda primitiva, algo que, convenhamos, está bastante afastado da fam!lia nuclear.
É a existência de algo "histórico", de um ato, que instaum as condições pam essa estrutum fundamental, o complexo de Édipo. Para que possa existir a fantasia neuró- tica, é preciso que exista essa estrutum, sem ela não seria possível a experiência humana. Mas não seria precisamente este "mito freudiano" que funda a psicanálise e que nos permite apreender os objetos do cotidiano de uma maneira nova?
A - Pam muitas teorias psico1ógicas, em especial, pam o behaviorismo em todas as suas facetas, passadas ou contemporâneas, a realidade (os fatos), o objeto e o mundo externo sempre fomm pensados na sua qualidade de dados inquestionáveis. Pam outras teorias, ao fugirem do positivismo, o privilégio recaiu sobre a ficção (a produção do sujeito pensada como algo privado), o sujeito, o mundo interno. Mas também aqui não se questionou nem o que acartava tomá-los como primitivos nem se era realmente possível produzir, a partir deles, algum tipo de conhecimento.
B - Para análise dos possíveis equívocos cometidos pela psicologia em relação a Descartes, ver (5). Sobre a opinião de Descartes, encontramos em Discours de la Méthode, na sua quinta parte, a seguinte observação: "Porque é uma coisa bem notável que não haja homens, por mais imbecis e estúpidos, sem isentar mesmo os dementes, que não sejam capazes de colocar juntas diversas palavras, e de comporem assim um discurso através do qual possamos compreender seus pensamentos, e que, ao contrário, não haja nenhum animal, por perfeito e bem aquinhoado que possa ser, que faça o mesmo"(ó, p. 1ó5).
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C - As metáforas do corpo estranho e da infiltração aparecem em (4). Freud neste texto substitui a primeira metáfora pela segunda por julgar que esta é mais compatível com a sua teoria sobre a histeria (teoria da defesa) e aquela com a concepção de Breuer (histeria hipnóide), onde se afirma que não há nenhuma comunicação entre a consciência normal e a consciência hipnóide.
D - Basta recordar �guns dos títulos das obras mais representativas do período como "O Homem-Máquina" de La Mettrie, "O Sistema da Natureza ou as Leis do Mundo Físico e do Mundo Moral" de Holbach ou o " Tratado das Sensações" de Condillac.
E - A expressão "núcleo de cristalização do sonho" aparece em (17, p. ó72). A frase inteira é a seguinte: "Quando for possível, esse componente dos pensamentos do sonho exprime uma influência determinada sobre a forma do conteúdo onlrico, na medida em que ele age, por assim dizer, como ndcleo de cristalização de atração e repartição sobre o material dos pensamentos do sonho".
F - A obediência à regra fundamental, dizer tudo o que lhe ocorre, envolve uma desconsideração pelo contexto, ou seja, o analisando, do ponto de vista técnico, é convidado a alucinar, a produzir "relações superficiais" no lugar das usuais "relações profundas".
G - Como a fala do analisando tem que lutar contra uma resistência, as relações que se apresentam na sua fala também trazem a marca da censura. Envolvem palavras de duplo sentido, relações de assonância temporal sem relação interna de sentido, etc. Ou seja, a fala do analisando deve soar estranha, apresentando aspectos que encontramos habitualmente no chiste e nos jogos de palavra (12, p. 53ó-537).
H - Ver The Freud/Jung Letters, Hogarth Press & Routledge & Kegan Paul, 1974.
I - Esta sugestão foi feita por Freud a Fliess em carta de ó/ 12/189ó (9, p. 217-22ó). Para adaptar as considerações freudianas à segunda tópica, podese tomar a noção de eu (Ich) no sentido sistêmico com a sua característica de ser, na sua maior parte inconsciente. Ao primeiro sistema, o dos signos perceptivos, corresponderia o Id (Es).
J - Ver (18, p. 340). O contexto da discussão é o de saber se a causa de uma neurose deve-se a fatores externos ou internos.
L - Ver (17, p. ó72).
M - A primeira função do eu é a de inibir o processo primário. A sua constituição propicia o aparecimento das primeiras demarcações entre o externo e o interno.
N - A noção de potência anímica é fonnulada em (1 3, p. 85).
O - Ver (9, p. 218). Freud, na verdade, diz que "as representações são ordenadas a partir de algo como relações causais. Os traços inconscientes corresponderiam a algo como recordações conceituais". O fato de serem "recordações conceituais" nos levou a chamar as relações de "1ógicas" e não de "causais", para afastar a idéia de que elas poderiam ser causais em sentido humeano. Ver a esse respeito (23).
GABBI JR., O. F. Studies in psycho-mythology. Trans/FormlAção, S ão Paulo, v. 14,
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ABSTRACT: Psychology, no less, than Psycho-Analysis claims to be a science. Notwithstanding that, its explanations are more probably characterized by its aesthetic nature. Moreover, the compelling dimension belongs intrinsically to the Freudian theory. This, however, doesTÍ t argue against a systematical study of its concepts.
KEYWORDS: Psycho-analysis; psychology; scientific explanation; aesthetic explanation; rhetoric.
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[1] Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UNICAMP - 12081 - CampinasSP.